Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4744/17.0T8BRG-A.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PENSÃO
SUSPENSÃO DA PENSÃO
CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – A pensão devida por acidente de trabalho visa indemnizar a perda ou a diminuição da capacidade de ganho do sinistrado.
II – Sendo o acidente simultaneamente de trabalho e de viação e o responsável civil pelo acidente de viação tenha, no âmbito da acção que conheceu da responsabilidade civil, sido condenado no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, destinada a compensar a perda ou diminuição da capacidade de ganho (lucros cessantes), é de considerar verificada a cumulação de indemnizações, justificando-se o reconhecimento do direito de desoneração previsto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 17 da NLAT, até que se mostre esgotada a cobertura do capital recebido por acidente de viação, uma vez que é o responsável civil quem deve em primeira linha responder pelo ressarcimento do dano sofrido.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
APELANTE: V. M.
APELADA: X – COMPANHIA DE SEGUROS, SPA

I – RELATÓRIO

Após o trânsito em julgado da sentença que apreciou o acidente de trabalho a que os autos se reportam veio, por apenso, a X – COMPANHIA DE SEGUROS, SPA instaurar acção especial para declaração de suspensão de direitos resultantes de acidente de trabalho contra V. M., pedindo que se declare suspenso o pagamento pensão fixada nos autos principais emergente de acidente de trabalho, até perfazer o valor da indemnização cível de €225.000,00, quantia esta em que a Y, S.A. pagou ao Réu, a título de lucros cessantes e danos patrimoniais futuros, em virtude do acidente ocorrido em 16/09/2016, simultaneamente de viação e de trabalho, de que este foi vítima.
O Réu contestou, dizendo que na acção emergente de acidente de viação peticionou a quantia de €319.453,30, a título de danos patrimoniais e a quantia de €215.200,00, a título de danos não patrimoniais, não assistindo ao autor o direito de se desvincular do pagamento da pensão atribuída, com o argumento de que outro responsável já assegurou, em termos transitórios, o ressarcimento de alguns dos danos que lhe foram causados.

Findo os articulados, nos termos previstos na alínea b) do artigo 595.º do CPC. foi proferido despacho saneador/sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgando procedente a acção, declaro a requerente, “X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, desonerada do pagamento ao Réu, V. M., da respectiva pensão anual e vitalícia que a este foi arbitrada no processo principal, até perfazer a importância global de 225.000,00 €, sem prejuízo do duodécimo pagável no mês de Novembro de cada ano, nos termos do artigo 72º, nº 2 da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro que, por não ter a mesma natureza que a pensão sendo antes uma prestação de carácter estritamente social, deverá continuar a ser paga pela entidade seguradora, que comprovará oportunamente esse pagamento.
Custas a cargo do Réu.
Registe, notifique e, após trânsito, vão os autos ao Mº Público a fim de proceder ao cálculo do período de desoneração do pagamento da pensão.
Fixo à acção o valor de 6.661,51 €.”
*
Inconformado veio o Réu V. M. interpor recurso de apelação, no qual formulou as seguintes conclusões que passamos a transcrever:

“1. Por sentença proferida, em 08 de Outubro de 2020, o tribunal de 1ª instância julgou procedente a ação de suspensão do direito a pensão movida por X Companhia de Seguros, S.A., desonerando esta ao pagamento ao Requerido, aqui Recorrente, da pensão anual e vitalícia que a este foi arbitrada, nos autos principais, até perfazer a quantia global de €225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros).
2.Com fundamento no facto de que a congénere Companhia de Seguros Y, S.A., enquanto seguradora do veículo que embateu no veículo que o sinistrado conduzia pagou a este a quantia global de €500.000 (quinhentos mil euros), sendo a quantia de €225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros) relativa a danos patrimoniais (invalidez permanente).
3. Ou seja, de que o Recorrente não pode receber duas vezes o mesmo dano – pensões laborais e/Invalidez permanente.
4. Sucede, porém, que o Recorrente não está a receber em duplicado, nem recebeu a quantia de €225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros) a título de Pensão de Invalidez, duas vezes.
5. Ora, em primeiro lugar, tal aconteceria se as despesas apresentadas à aqui Recorrida e pagas por esta fossem, igualmente, apresentadas à sua congénere e, igualmente, pagas por esta, facto que não se verifica.
6. Tal aconteceria, também, se o Requerido tivesse recebido, de ambas companhias de Seguros, a quantia de €6.661,51 a título de pensão anual global e vitalícia.
7. Anote-se que, em sede de Tentativa de Conciliação, realizada em 06/02/2019, o Recorrente prescindiu, claramente, do subsídio de readaptação e a prestação suplementar por Assistência de Terceira Pessoa (vide Acta de 06/02/2019),
8. Em virtude, de tais danos terem sido peticionados no âmbito da ação declarativa cível com o n.º 1884/17.9T8BRG-J5, mantendo-se todas as demais obrigações inerentes à Recorrida.
9. Naquela ação cível o Recorrente peticionou a quantia de €319.453,30 (trezentos e dezanove mil quatrocentos e cinquenta e três euros e trinta cêntimos), a título de danos patrimoniais.
10. E de €215.200,00 (duzentos e quinze mil e duzentos euros) a título de danos não patrimoniais.
11. Tendo efetuado transação no âmbito do processo cível em que recebeu a quantia de €225.000 a título de danos patrimoniais futuros e o remanescente a título de danos não patrimoniais.
12. Pois, como é bom de ver, o Requerido ficou numa cadeira de rodas e, como tal, apesar de não haver dinheiro que lhe pague tal perda,
13. O Requerido, nunca em momento algum, prescindiu dos danos não patrimoniais peticionados no valor de 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros), danos esses que não foram pagos pela aqui Recorrida X.
14. Anote-se que a transação que o Recorrente efetuou e que por ele foi assinada, que se encontra junta aos autos do processo cível e que aqui se renova, diz claramente que a: “ tal quantia integra toda a indemnização que lhe é devida por danos patrimoniais futuros, seja a título de lucros cessantes no valor de €225.000, seja a título de despesas com assistência de terceira pessoas…”.
15. Ora, daqui resulta que o Recorrente não aceitou tal quantia a título de invalidez permanente, como pretende fazer crer o Tribunal a quo.
16. Saliente-se que, em sede de tentativa de conciliação, nestes autos laborais, o Recorrente prescindiu da indemnização respeitante ao auxílio de terceira pessoa, bem como a respeitantes às obras de readaptação da sua habitação.
17. Por outro lado, a sentença de que se recorre funda-se, apenas e tão, no documento – recibo – emitido pela seguradora aquando do envio do cheque,
18.Nem se trata da transação efetuada nos autos de processo civil.
19.Estamos a falar de um documento emitido pelos serviços administrativos da congénere, sobre o qual, nem o próprio advogado da seguradora tem “voto na matéria”.
20.Pois, como bem se sabe, as seguradoras, à luz do sistema bancário emitem os documentos sem possibilidade de alteração pela outra parte.
21.Tendo sido colocada a designação no recibo “invalidez permanente”, sem nunca tal termo ter sido mencionado, em nenhum projeto de negociação e, como tal não consta transação efetuada, assinada e remetida aos autos de processo n.º 1884/17.9T8BRG´.
(…)
24. Ora, tivesse o Tribunal a quo realizado audiência de julgamento e teria ganho e formado a sua convicção no sentido de que a indemnização negociada com a congénere Y versava sobre assistência a terceira pessoa, obras de readaptação na habitação e danos não patrimoniais.
25. Pelo que, não pode ser atribuída qualquer relevância às alegadas desconformidades entre o que o Recorrente aceitou na transacção do processo cível e as declarações apostas pela própria seguradora no recibo que emite ao sinistrado.
26. Reitera-se que na transação assinada pelo Recorrente e remetida para os autos de processo n.º 1884/17.9T8BRG- Juízo Central Cível de Braga – Juiz 5 não mencionada sequer, a expressão “invalidez permanente”.
27. (…)
28. Por outro lado, e atenta a posição da sentença recorrida cumpre esclarecer que (o dano), a indemnização peticionada nos autos de processo civil visavam, e visam, ressarcir não é um dano laboral, mas um dano de natureza geral,
29. Ou seja, o que corresponde à denominada incapacidade permanente geral, correspondente à afetação definitiva da capacidade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, a qual não tem sequer expressão em termos de incapacidade para o trabalho, apenas exigindo do Recorrente esforços acrescidos nesse domínio.
(…)
32. Ora, no caso sub judice a Recorrida está a efetuar o pagamento mensal da IPATH de 82%, ao aqui Recorrente,
33. Ao passo que a congénere civil – Y - procedeu ao pagamento da indemnização por assistência de 3ª pessoa, obras de readaptação, carro adaptado, cadeira de rodas e DANOS NÃO PATRIMONIAIS!
(…)
36. Em suma: as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado,
37. Pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto,
38. O que não se verifica.
39. O interesse protegido através da consagração da regra da proibição de duplicação ou acumulação material de indemnizações é, não o do lesante, responsável primacial pelos danos causados,
40. Mas o da entidade patronal (ou respetiva seguradora) que, em termos de responsabilidade meramente objetiva, garante ao sinistrado o recebimento das prestações que lhe são reconhecidas pela legislação laboral – pelo que não assiste ao lesante o direito de, no seu próprio interesse, se desvincular unilateralmente de uma parcela da indemnização decorrente do facto ilícito com o mero argumento de que um outro responsável já assegurou, em termos transitórios, o ressarcimento de alguns dos danos causados ao lesado.
41. Neste caso, não assiste razão ao Recorrido, o qual está a proceder ao pagamento, mensal da pensão arbitrada em sede laboral decorrente da incapacidade de 82% fixada ao Recorrente.
42. Tudo isto a significar que a Recorrida não pode suspender o pagamento da pensão decorrente do acidente de trabalho até que se mostre esgotada a quantia de €225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros), tal como ordenado na sentença ora recorrida, em virtude de tal quantia ter sido arbitrada a título de danos não patrimoniais ao Recorrente
43. A não ser assim, o que não se concede, o Recorrente não teria recebido a devida indemnização pelos danos não patrimoniais, os quais, são bens elevados, basta atentar para tal no simples facto de ter ficado, até ao fim dos seus dias, preso a uma cadeira de rodas.
44. Quanto muito a Recorrida pode exercer direito de regresso sobre a congénere.
45. Se não o fez, soe dizer-se, “sibi imputet”, mas nunca suspender-se o pagamento da pensão anual e vitalícia que foi arbitrada ao sinistrado/Recorrente, nestes autos, desonerando-se a Recorrida X – Companhia de Seguros, S.A. de tal obrigação.
46. Sinistrado este, parte mais “fraca”, nos presentes autos, pelo que não pode o mesmo ficar provado de receber a pensão anual e vitalícia decorrente da incapacidade de 82% que lhe foi fixada, fruto de acidente de trabalho.
47. Por tudo o supra exposto e, sem necessidade de mais amplas considerações, devem V/Exas. Venerandos Desembargadores, revogar a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância, mantendo-se a obrigação do pagamento da pensão anual e vitalícia, a pagar pela Recorrida ao Recorrente,
48. Com o que farão V/Exas. a habitual e inteira Justiça”
A recorrida apresentou as suas contra alegações, concluindo pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito devolutivo e subidos os autos a este Tribunal da Relação, foi dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 87.º do CPT.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Não foi apresentada resposta ao parecer.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87º n.º 1 do CPT), a questão trazida à apreciação deste Tribunal da Relação consiste em apurar se a recorrida pode desonerar-se total ou parcialmente do pagamento da pensão por incapacidade permanente emergente acidente de trabalho que tem estado a liquidar ao recorrente.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância deram-se como provados os seguintes factos:

a) O Réu, V. M. foi vítima, em -/09/2016, de um acidente que foi simultaneamente de trabalho e de viação.
b) Na sequência do acidente de trabalho, foi instaurado o respectivo processo – que correu termos neste Juízo com o nº 4744/17.0T8BRG –, no qual figurou como seguradora a aqui autora e como Autor o aqui Réu e que terminou por acordo homologado judicialmente, resultante da tentativa de conciliação.
c) Segundo esse acordo – homologado judicialmente – a aqui Autora ficou obrigada a pagar ao sinistrado, ora Réu:
a. a pensão anual e vitalícia de 6.661,51 €, calculada com base na retribuição anual transferida e de acordo com a Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) de 82%;
b. a quantia de 5.533,70 €, a título de subsídio por elevada incapacidade; e
c. a quantia de 20.00 €, referentes a despesas com transportes.
d) A aqui autora está a pagar ao Réu a pensão anual e vitalícia supra referida.
e) No âmbito da acção emergente de acidente de viação, que correu termos sob o nº 1884/17.9T8BRG, no Juiz 5 do Juízo Central Cível de Braga, a Companhia de Seguros Y, S.A. pagou ao ora Réu, a quantia global de 500.000,00 €, sendo:
a. 75.000,00 €, a título de diversos/pagamento;
b. 200.000,00 €, de indemnizações; e
c. 225.000,00 €, a título de invalidez permanente.

Por resultar incontroverso com base nos elementos que constam dos autos designadamente os documentais, quer por se mostrar relevante para a boa decisão da causa (natureza dos montantes indemnizatórios fixados), ao abrigo do disposto no art.º 662.º do CPC. adita-se o seguinte facto:

f) Da transacção celebrada no âmbito da acção emergente de acidente de viação, proc. n.º 1884/17.9T8BRG, que veio a ser devidamente homologada por sentença proferida em 24-04-2019, consta o seguinte:

“1 - O/a A. reduz o seu pedido à quantia global de €500.000,00 (QUINHENTOS MIL EUROS) para completo e total ressarcimento dos danos havidos com o sinistro e que são peticionados na acção sendo que tal quantia integra toda a indemnização que lhe é devida por danos patrimoniais futuros, seja a título de lucros cessantes no valor de €225.000,00, seja a título de despesas com a assistência de terceira pessoa no valor de €200,000,00;
2 – A ré obriga-se a pagar tais quantias no valor total de € 500.000,00 dentro do prazo de 30 dias e mediante o envio duma carta-cheque ao escritório do/s mandatário/s do/a A., na cidade de Braga, ou se assim vier a ser comunicado, por transferência bancária para o NIB do lesado.
3 – Com o dito pagamento o/a Autor/a dá quitação integral e absoluta de todos os danos passados, presente e futuros por si sofridos por efeito deste acidente de viação, nada mais havendo de vir a reclamar depois da Ré seguradora por via do sinistro ajuizando;
4 – Mais reconhece e aceita o/a Autor/a, em função deste sinistro ser ainda de natureza simultaneamente laboral, que a ré Y irá comunicar à sua congénere X, parte passiva em AT, a efectuação desses pagamentos e/ou respectivos valores integrados e assim processados, para efeitos do disposto na Lei nº 98/2009 que regulamente o regime de reparação de acidente de trabalho e com eventual repercussão nas pensões laborais ainda porventura ali vigentes (v. art. 17º da cit. Lei Laboral);
5 – As custas em dívida a Juízo serão suportadas por ambas as partes ou a meias, sem a reclamação de custas de parte por ninguém.”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da desoneração do pagamento da pensão por incapacidade permanente emergente de acidente de trabalho

Da factualidade provada resulta desde logo que o acidente sofrido pelo Recorrente foi simultaneamente, de trabalho e de viação.
Decorre ainda da factualidade provada que a recorrida foi condenada a pagar ao recorrente/sinistrado, na qualidade de responsável pela reparação do acidente de trabalho, uma pensão anual e vitalícia de €6.661,51, calculada com base na retribuição anual transferida e de acordo com a Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) de 82%.
Por outro lado, na ação cível que correu termos no Juiz 5, do Juízo Central Cível de Braga, destinada a apurar a responsabilidade pelo acidente de viação, a Companhia de Seguros Y S.A. foi condenada a pagar ao sinistrado a quantia de €225.000,00 a título de lucros cessantes; a quantia de €200.000,00 a título de despesas com a assistência de terceira pessoa; e a quantia de €75.000,00 a título de ressarcimento dos restantes danos.
O tribunal de ad quo considerou que a indemnização no valor de €225.000,00 indemnizou o mesmo dano cuja reparação é objecto da atribuição por acidente de trabalho, já que visando a mesma reparar os lucros cessantes é de excluir a hipótese de que com o pagamento de tal valor se pretendeu ressarcir danos não patrimoniais. Assim, ao abrigo do disposto no art.º 17.º n.ºs 2 e 3 da NLAT (Lei nº 98/2009 de 4/09) por se verificarem as circunstâncias que levam à desoneração da seguradora do ramo de acidentes de trabalho, foi decidido suspender o pagamento da pensão anual e vitalícia até perfazer o montante de €225.000,00.
O recorrente/sinistrado não se conforma com esta decisão.
Antes de mais cumpre deixar consignado que tendo em consideração a data em que ocorreu o acidente a que os autos se reportam – 16.09.2016 - o regime jurídico aplicável é o que resulta da Lei n.º 98/2009, de 04/09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, doravante designado por NLAT.
Como é consabido a pensão devida por acidente de trabalho visa indemnizar a perda ou a diminuição da capacidade geral de ganho do sinistrado. E, por outro lado, a indemnização por danos patrimoniais - lucros cessantes - atribuída no âmbito da responsabilidade subjetiva civil visa reparar uma vantagem que o lesado iria beneficiar, se não fosse a lesão, nomeadamente o direito de ganho que se frustrou.

Resulta do seu artigo 17.º da NLAT, o seguinte:

“1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.”

Daqui resulta, designadamente dos números 2 e 3 que, nas situações de confluência de responsabilidades pelo mesmo acidente, o direito à indemnização decorrente dessas responsabilidades não é cumulável em relação ao mesmo dano concreto, aí se prevendo o direito de desoneração do responsável pela reparação do acidente de trabalho, caso o sinistrado receba de terceiro, pelo mesmo dano uma indemnização superior à que seria devida pela entidade responsável pelo acidente de trabalho ou, caso a indemnização arbitrada seja inferior à dos benefícios conferidos em consequência do acidente de trabalho, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante indemnizatório.
Melhor concretizando em caso de ocorrência de acidente de trabalho, em que o sinistrado seja totalmente ressarcido do prejuízo que sofreu, nos termos previstos na NLAT, caso incumba a um terceiro estranho à relação laboral proceder ao ressarcimento do mesmo dano, não pode o sinistrado, já ressarcido pelo terceiro, voltar a sê-lo, agora pelo empregador, pois caso tal ocorresse verificar-se-ia um enriquecimento injustificado, já que seria duplamente indemnizado/ressarcido pelo mesmo dano. O princípio vigente nesta sede é o da não duplicação ou acumulação material de indemnizações, sob pena de estarmos perante um injusto locupletamento do sinistrado ou dos seus beneficiários. São assim tais indemnizações complementares no sentido de subsistir a emergente do acidente de trabalho, para além da medida em que venha ser absorvida pela estabelecida nos termos da lei geral.
Visa-se apenas ressarcir totalmente o prejuízo sofrido, não permitindo injustos enriquecimentos como sucederia no caso de ser permitida a acumulação das duas indemnizações.

Quer a Doutrina, quer a Jurisprudência, têm entendido de forma uniforme, que as consequentes indemnizações – emergente de acidente de trabalho e de indemnização comum – “assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.” – cfr. Ac. STJ de 11/12/2012 (relator Lopes do Rego), consultável em www.dgsi.pt.

Como se refere a propósito do acidente simultaneamente de trabalho e de viação, no Ac. do STJ de 14-12-2016, proc.º n.º 1255/07.5TTCBR-A.C1.S1 (relator Pinto Hespanhol) “…quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, as indemnizações atinentes não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral caráter subsidiário, pelo que os responsáveis pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho ficam desonerados do pagamento de indemnização destinada a ressarcir os mesmos danos já reparados pelos responsáveis dos danos consequentes ao acidente de viação, visando tal regime evitar que os respetivos beneficiários acumulem um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto, o que configuraria um enriquecimento injusto.”
Contudo, compete ao responsável pelo infortúnio laboral alegar e provar os pressupostos para o reconhecimento do reclamado direito de desoneração - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 20/04/2016, P.1255/07.5TTCBR-A.C1, consultável em www.dgsi.pt.
Retornando ao caso dos autos temos como certo que o acidente sofrido foi, simultaneamente, de trabalho e de viação. Mais se demonstrou que no âmbito da mencionada ação cível, declarou-se ser devida ao recorrente uma indemnização no valor de € 225.000,00, que visou ressarcir danos patrimoniais futuros, concretamente lucros cessantes, pois no que respeita às despesas com a assistência de terceira pessoa e outros danos, neles se incluindo os danos não patrimoniais, foram fixados outros montantes distintos.
Com efeito resulta, do teor da petição inicial que deu origem ao processo por acidente de viação, que o recorrente, para além do mais, alegou que em consequência do acidente ficou paraplégico e, por isso, definitivamente incapacitado para o exercício da sua profissão de serralheiro (artigos 46º e 47º da PI), o que veio a determinar a caducidade do seu contrato de trabalho. Reclamou por isso no âmbito da referida acção o pagamento da quantia de €299.592,00 a título de dano patrimonial futuro resultante da perda de ganhos, valor este que calculou com base na retribuição que auferia à data do acidente e de acordo com os anos de vida previsível e expectável.
Por outro lado, da transacção efectuada no âmbito da referida ação resulta manifesto que a quantia de € 225.000,00 foi acordada como forma de ressarcir os danos patrimoniais futuros, a título de lucros cessantes, não contemplando qualquer indemnização relativa a danos não patrimoniais, como pretende fazer crer o Recorrente.
Aliás, apesar de não mencionados expressamente no âmbito da transacção a reparação do dano não patrimonial, o certo é que ficando por esclarecer o título a que foram liquidados os €75.000,00, que perfazem os €500.000,00, acordados, sempre seria de entender que a sua reparação estaria abrangida em tal quantia.
Assim, no que respeita aos danos patrimoniais futuros - a título de lucros cessantes - mencionados na transacção parece-nos evidente que os mesmos correspondem no acidente de trabalho aos danos resultantes da perda da capacidade de trabalho e de ganho do recorrente, para cuja reparação lhe foi atribuída a pensão.
Estando assim demonstrado que em consequência do acidente dos autos, correu termos uma acção cível, no âmbito da qual a Seguradora responsável pela reparação do acidente de viação foi condenada por sentença transitada em julgado, a pagar ao sinistrado uma indemnização de €225.000,00, “por lucros cessantes”, os quais se destinam a compensar a perda da capacidade geral de ganho do trabalhador/sinistrado, não resta qualquer dúvida de que esta indemnização visa ressarcir o mesmo dano que fundamentou a pensão atribuída ao réu no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho.
Ora, tendo o réu recebido no âmbito da ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, indemnização no valor total de €225.000,00, a título de lucros cessantes, que independentemente dos diferenciados critérios que conduziram à fixação de tal indemnização, não pode deixar de ser considerada como destinada a compensar a perda de capacidade geral de ganho do sinistrado.
Nesta conformidade teremos de concluir que o prejuízo patrimonial da perda ou diminuição da capacidade geral de ganho do sinistrado (que a pensão anual e vitalícia fixada na ação de acidente de trabalho visa reparar), se encontra reparado pela indemnização fixada na ação cível, que visa a reparação do mesmo dano e que já se encontra liquidada.
Estando assim demonstrado pela Seguradora responsável pela reparação do acidente de trabalho que o sinistrado recebeu, no âmbito da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, uma indemnização destinada a compensar o dano sofrido pela perda de capacidade de ganho do sinistrado, nenhuma censura merece a decisão que determinou a suspensão das pensões fixadas na ação de acidente de trabalho e desonerou a recorrida do pagamento de tais pensões até que se mostre esgotada a cobertura do capital recebido no valor de €225.000,00 por virtude do acidente de viação.
Em suma, sendo o acidente simultaneamente de trabalho e de viação e o responsável civil pelo acidente de viação tenha, no âmbito da acção que conheceu da responsabilidade civil, sido condenado no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, destinada a compensar a perda ou diminuição da capacidade de ganho (lucros cessantes), é de considerar verificada a cumulação de indemnizações, justificando-se o reconhecimento do direito de desoneração previsto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 17 da NLAT, até que se mostre esgotado a cobertura do capital recebido por acidente de viação, uma vez que é o responsável civil quem deve em primeira linha responder pelo ressarcimento do dano sofrido.
Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência designadamente nos Acórdãos (consultáveis em www.dgsi.pt) da Relação de Évora de 12-09-2018, proc. n.º 314/14.2TTABT-A.E1 (relatora Paula Paço); Ac. Relação do Porto de 03/06/2019, proc. n.º 448/15.6Y2MTS.P1 (relator Nelson Fernandes) e Ac. Relação de Guimarães de 30/03/2017, proc. n.º 348/10.6TTBGC-B.G1, relator Eduardo Azevedo, no qual participei como 1ª Adjunta e do qual consta o seguinte sumário:
“Provado que está ter o sinistrado recebido indemnização nos termos gerais de direito pelos danos patrimoniais decorrentes do acidente de viação e de trabalho quanto a dano emergente e futuro da perda da capacidade de ganho, tem o FAT direito à desoneração da sua responsabilidade na medida do recebido pelo mesmo do terceiro responsável cível.
É precisamente esta a situação que se verifica no caso, pelo que mais não resta do que confirmar a decisão recorrida, e consequentemente julgar o recurso de improcedente.

V – DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida
Custas a cargo do Recorrente.
Notifique.
21 de Janeiro de 2021

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga