Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
367/14.3GBGMR-A.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: RECOLHA AMOSTRAS CONDENADOS
REGIME LEGAL APLICÁVEL
LEI Nº 90/2017
DE 22.08 E ART. 8º DA LEI 5/2008
DE 12.02
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Face à alteração ao art. 8º da Lei 5/2008, de 12.02, introduzida pela Lei nº 90/2017, de 22.08, que se aplica aos processos pendentes, dada a sua natureza processual, para além da recolha de amostra passar a ser indubitavelmente obrigatória, passou a ter de ser ordenada na própria sentença e não só depois do trânsito em julgado desta.
II - No presente processo, pendente à data da entrada em vigor da Lei nº 90/2017, de 22.08, a aplicação imediata deste diploma que alterou a redação do art. 8º, nº2, da Lei nº 5/2008, de 12.02, afetaria irremediavelmente a harmonia e unidade de atos processuais, designadamente da sentença proferida e dos ulteriores atos dela dependentes, já que quando foi proferida a sentença não tinha o tribunal a quo de se pronunciar sobre o cumprimento do disposto no art. 8º, nº2, da Lei nº 5/2008, devendo este aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória.
III - Logo, decorrendo da nova redação daquele preceito legal que tal cumprimento devia ocorrer na sentença, e tendo esta já sido proferida e transitado em julgado, ficaria o tribunal definitivamente impedido de exercer aquele seu dever legal. Tal consequência, resultante da aplicação imediata da lei nova, é impeditiva da pretendida harmonia e unicidade dos atos processuais e, como tal, é inadmissível.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum Singular nº 367/14.3GBGMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 2, na sequência de requerimento apresentado, a 24.09.2019, pelo Ministério Público, promovendo o cumprimento do art. 8º/1 da Lei 5/2008, através da correção da sentença proferida nos autos, nos termos do art. 380º do Código de Processo Penal, no dia 04.10.2019, pela Exma. Juiz foi proferido despacho com o seguinte teor (referência 165027518):

“--- Dispõe o art.º 380.º n.º 1 do CPP que: “O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando: a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º; b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.”. ---

--- Por seu turno, reza o art.º 374.º do CPP que:

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.”. ---
--- Assim, tendo em atenção tais preceitos legais, entendemos que o cumprimento do disposto no art.º 8.º n.º 1 da Lei 5/2008, não cabe naqueles. Isto é, a ordem de recolha de amostra com vista a obtenção do seu perfil de ADN não compreende um caso de aplicação do art.º 380.º do Código de Processo Penal. ---
--- Ora, dispõe o art.º 8.º n.º 2 da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro que “A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença.”. ---
--- Deste modo, de acordo com tal dispositivo legal, o momento em que é ordenada a recolha de amostra é na sentença. Nos autos a sentença foi proferida em 03.03.2016 e transitou em julgado em 04.04.2016, pelo que, nesta fase, cremos que o promovido é intempestivo. ---
--- Pelo exposto, indefere-se o promovido por ser intempestivo. ---
--- Notifique. ---”


▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório:

1. Nos presentes autos, o arguido foi condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período, não se tendo determinado, em sede de sentença, a recolha de amostra ao arguido e a inserção do perfil de ADN na respectiva base de dados.
2. Através do despacho recorrido, o Tribunal a quo recusou ordenar aquela recolha e inserção do perfil de ADN, com fundamento na circunstância do art.º 8º/2 da Lei 5/2008 determinar que tal decisão seja tomada na sentença.
3. O art.º 8º/2 da Lei 5/2008 só passou a exigir que a recolha de amostra e a inserção do perfil de ADN seja ordenada na sentença, após as alterações introduzidas pela Lei 90/2017.
4. À data da prolacção da sentença (03/03/2016), vigorava a redacção original do 8º/2 da Lei 5/2008, que exigia que essa recolha e inserção fosse ordenada após o trânsito em julgado da sentença.
5. Ao recusar a recolha e a inserção do perfil com fundamento na redacção introduzida pela Lei 90/2017, o despacho recorrido faz uma aplicação retroactiva das disposições deste diploma, em violação do disposto no art.º 12º/1 do Código Civil.
6. O art.º 12º/1 do Código Civil impõe a aplicação da redacção original do art.º 8º/2 da Lei 5/2008, devendo-se ordenar, portanto, a recolha da amostra e a inserção de perfil de ADN peticionada pelo Ministério Público.
7. Mesmo que assim não se entenda, a alteração introduzida pela Lei 90/2017 pretendeu resolver as dúvidas que se tinham suscitado na jurisprudência sobre o carácter obrigatório e automático de tal decisão, determinando que a recolha e a inserção “é sempre ordenada”, de forma a instituir e manter uma efectiva base de dados de perfis de ADN para efeitos, entre outros, de investigação criminal (art.º 1º/1 da Lei 5/2008).
8. Neste contexto histórico e teleológico, a circunstância do despacho cumpridor do art.º 8º/2 da Lei 5/2008 (redacção actual) estar ou não inserido uma sentença é secundário, uma vez que o crucial é cumprir a obrigação legal de recolha e inserção do perfil de ADN, não o momento em que esse cumprimento é satisfeito.
9. Assim, a exigência legal de prolacção da decisão em sede de sentença tem um valor meramente ordenador, não preclusivo da possibilidade de tomada posterior da decisão que é legalmente obrigatória e automática.
10. Mesmo que assim não se entenda, sempre será de corrigir a sentença, de modo a fazê-la incluir a decisão obrigatória/automática, nos termos do art.º 380º do Código de Processo Penal, tal como se decidiu no Ac. do TRC de 02/20/2019, proferido no proc. 269/16.9GAACB-A.C1.

Termos em que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por decisão
que defira o promovido, assim se fazendo Justiça.

▪ Na primeira instância, o arguido, notificado do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, não apresentou resposta.

▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer sustentando a procedência do recurso.

Entende que, com os atuais contornos legais, a exigência em questão da prolação da decisão sobre a matéria na sentença não tem um valor meramente ordenador; contudo, a fundamentação do douto despacho recorrido, motivada, apenas e só, pela circunstância de não ter sido a decisão tomada na sentença (e não por qualquer ordem de razão conexionada com o automatismo, a obrigatoriedade, ou falta dela, da tomada de decisão a tal propósito, ou com eventual necessidade de fundamentação para o efeito), carece de sustentação válida, uma vez que, efetivamente, à data da sentença, o que vigorava era a ordem de recolha e inserção do ADN após o trânsito em julgado da sentença, nada impedindo, pois, a nível legal, que se satisfizesse o promovido.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (Thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são:

A) Da tempestividade da recolha de amostra no condenado para inserção do perfil de ADN após a prolação da sentença - sucessão de leis processuais.
B) Da pretendida correção da sentença – aplicabilidade do art. 380º do Código de Processo Penal.
*

III – APECIAÇÃO:

Momento processual legalmente fixado para o decretamento da recolha de amostra e inserção do ADN do arguido condenado – aplicação da lei processual no tempo:

Nos autos a que se reporta o recurso ora em apreciação, constata-se que, por sentença proferida em 03.03.2016 e transitada em julgado em 04.04.2016, foi o arguido J. L. condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática de crime doloso.
Nessa sentença não foi ordenada a recolha de amostras de ADN do arguido.

Preceituava o art. 8º, nºs 1 e 2 da Lei nº 5/2008, de 12.02, na redação originária, vigente à data da prolação da sentença:

«1 - A recolha de amostras em processo crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição do arguido, ao abrigo do disposto no art. 172º do Código de Processo Penal.
2 - Quando não se tenha procedido à recolha de amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída.» - (sublinhado nosso).

Após as alterações introduzidas pela Lei nº 90/2017, de 22.08, passou a prescrever-se no art. 8º, nº1 e 2 da Lei nº 5/2008:

«1 - A recolha de amostra em arguido em processo criminal pendente, com vista à interconexão a que se refere o n.º 2 do artigo 19.º-A, é realizada a pedido ou com consentimento do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento escrito, por despacho do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.
2 - A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença.» - (sublinhado nosso).
Concordamos com o digno Magistrado do MP recorrente quando afirma que a alteração introduzida pela Lei 90/2017 pretendeu resolver as dúvidas que se tinham suscitado na jurisprudência sobre o carácter obrigatório e automático de tal decisão, determinando que a recolha e a inserção “é sempre ordenada”, de forma a instituir e manter uma efectiva base de dados de perfis de ADN para efeitos, entre outros, de investigação criminal (art.º 1º/1 da Lei 5/2008).
Na verdade, na vigência da redação originária do art. 8º da Lei 5/2008, perfilaram-se duas correntes jurisprudenciais antagónicas, uma defendendo a não automaticidade da ordem de recolha de amostras de ADN, e outra entendendo que tal recolha, verificados os demais requisitos vertidos no preceito, é automática, legalmente obrigatória.

Ilustrando a primeira das preditos entendimentos jurisprudenciais, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/10/2011, processo nº 721/10.0PHSNT.L1-5, acessível em www.dgsi.pt, onde se decidiu:

“I - A recolha de amostras de ADN, a que se refere o art.8, nº2, da Lei nº5/08, de 12-2, não é automática face a uma condenação transitada em julgado, pressupondo a existência de grave perigo de continuação criminosa ou outros receios relevantes que possam ou permitam inferir a necessidade daquela recolha e subsequente conservação;
II - Determinando aquela recolha, a sentença deve fundamentar em concreto aquele perigo, de modo a convencer da sua necessidade e proporcionalidade”.

Em sentido contrário, a título exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/05/2015, proferido no processo nº 241/11.5JELSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, onde se expende:

“- Da leitura dos nºs 1 e 2 do art. 8º da Lei 5/08 de 12.2, resulta que a recolha de ADN é automática, não dependendo de qualquer pressuposto, que a Lei não impõe (com excepção da condenação por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída) e sendo certo que pode ser ordenada logo após a constituição de arguido.
- A automaticidade da recolha resulta ainda da previsão do nº 6 daquele art. 8º, que prevê a possibilidade de ser dispensada a recolha da amostra, mediante despacho judicial, sempre que não tenham decorrido cinco anos desde a primeira recolha e, em qualquer caso, quando a recolha se mostre desnecessária ou inviável. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a possibilidade de dispensa é que terá que ser determinada por despacho fundamentado, não a recolha”.

No mesmo sentido, o pertinente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2018, processo nº 279/16.6PBCTB.C1, disponível em www.dgsi.pt., referindo:

«- A intenção do legislador terá sido a de determinar a recolha de ADN como determina a recolha de impressões digitais e, de facto, não se vê como aquela recolha pode restringir direitos fundamentais do arguido, entendendo-se, outrossim, que essa determinação não viola qualquer preceito constitucional.
A questão da recolha de amostra de ADN para a base de dados de perfis (de ADN) encontra-se apreciada de um modo bastante desenvolvido pelo ac. do Tribunal Constitucional nº 333/2018, ao sindicar a constitucionalidade dessa recolha ao abrigo da referida Lei 5/2008.

Assim, no que para o caso mais releva, aí se afirma/decide:
(…)
9. A LBDADN (Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro) regula a constituição e funcionamento da base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e de investigação criminal (artigos 1.º e 4.º), definindo os termos e condições da identificação genética de pessoas.
A criação de uma base de dados de perfis de ADN ampliou as possibilidades de identificação dos responsáveis pela prática de um crime, permitindo comparar os perfis constantes da base de dados com os perfis resultantes das amostras biológicas colhidas durante uma investigação criminal. Uma tal ferramenta pressupõe a recolha do maior número de amostras possível. Se não existirem amostras a base de dados não pode funcionar. Neste contexto, a recolha de perfis de ADN a condenados constitui uma importante fonte de inserção de perfis para comparação.
A referida lei foi alterada uma primeira vez pela Lei n.º 40/2013, de 25 de junho, e viria a ser de novo alterada pela Lei n.º 90/2017, de 22 de agosto. A última alteração teve em vista reforçar a eficácia da Base de Dados de Perfis de ADN por se ter verificado que os resultados iniciais ficaram muito aquém das expectativas, provocando um subaproveitamento daquela base de dados (designadamente, ficando muito aquém da capacidade de auxiliar a investigação criminal alcançada em outros países), em face do reduzido número de perfis recolhidos tanto nos locais do crime (amostras problema) como relativos a pessoas condenadas (amostras referência), a que acresce números também muito baixos de ficheiros de perfis que visam fins de identificação civil…No âmbito do presente processo, no entanto, releva a versão da LBDADN, na redação da Lei n.º 40/2013, de 25 de junho, pois foi essa a aplicada pelo tribunal a quo. Assim, a análise realizada no presente acórdão dirá apenas respeito a essa versão da Lei em causa.
10. De acordo com o regime constante da LBDADN, em processo crime a recolha de amostras em arguidos não condenados ou em arguidos condenados é realizada por despacho do juiz (artigo 8.º, n.ºs 1, 2 e 3 da LBDADN) sendo necessário um outro despacho judicial para a inserção do perfil de ADN na base de dados (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da LBDADN). Também o arguido não condenado pode solicitar a recolha de amostras (artigo 8.º, n.º 1).
(..)
De acordo com a jurisprudência aludida do Tribunal, não existe desconformidade com a Constituição na restrição de direitos, liberdades e garantias configurada pela recolha de material biológico para análise de ADN sustentada em lei de carácter geral e abstrato emanada da Assembleia da República (sem efeito retroativo), uma vez que visa a salvaguardada de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sendo necessária e adequada ao objetivo prosseguido (os fins próprios do processo penal) e não diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais afetados. Ademais, e apesar de não se reportar a uma medida de instrução criminal, a norma atribui a um juiz a decisão de recolha de ADN sem consentimento do condenado em pena de prisão igual ou superior a 3 anos. Desta forma, acautela uma tutela reforçada aos direitos atingidos pela via da intervenção judicial e da habilitação legal específica, cumprindo, pois, as exigências constitucionais identificadas na jurisprudência do Tribunal.
(…)
19. A norma em análise no presente processo coloca uma questão particular. Ao prever a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos (ainda que esta tenha sido substituída), a ordenar por despacho do juiz de julgamento, após trânsito em julgado da condenação, o legislador instituiu como regra a referida determinação, prescindindo, na interpretação do tribunal a quo, de uma análise casuística da pertinência em sujeitar o arguido a recolha ADN e subsequente inserção na respetiva Base de Dados.
Tratando-se de uma norma que prevê a colheita coativa de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, não existem dúvidas sobre o seu carácter restritivo de direitos fundamentais, nomeadamente o direito à proteção da reserva da intimidade, dos dados pessoais e da dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano.
20. A competência do juiz exigida na norma para ordenar a recolha da amostra de ADN, contra a vontade do visado, encontra, portanto, justificação na circunstância de se tratar de um ato restritivo de direitos fundamentais, não se alicerçando embora diretamente nas garantias do processo criminal, designadamente no parâmetro constante do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição (que refere que toda a instrução é da competência de um juiz).
(..)
21. Sobre a recolha de amostras em processo-crime – medida genuinamente processual que traduz, pois, uma dimensão normativa diferente da que constitui o objeto do presente recurso – rege o n.º 1 do artigo 8.º, dispondo que é realizada a pedido do arguido ou ordenada oficiosamente, ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172.º, do CPP (artigo 8.º, n.º 1, da LBDADN). Ponderados os interesses em presença em cada processo, designadamente a relevância para a descoberta da verdade e o grau de ingerência nos direitos fundamentais do arguido que a recolha da amostra de ADN representa – e considerando todos os aspetos pertinentes a uma tal ponderação, como seja, por exemplo a situação de saúde do visado ou a sua idade – o juiz decide, necessariamente por despacho fundamentado, sobre a respetiva necessidade e adequação, garantindo a justa medida em cada caso concreto, sem estar limitado por um pressuposto formal alusivo ao tipo de crime em investigação, ou moldura penal prevista para a sua punição.
Diferentemente, para cumprir a previsão da medida não genuinamente processual contida na norma em análise o juiz limita-se a verificar se estão reunidos os pressupostos formais indicados pelo legislador e que consistem na ausência de recolha anterior no mesmo processo, na condenação por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, e no trânsito em julgado daquela condenação.
Desta forma, e diferentemente do que se passa na medida genuinamente processual prevista no n.º 1 do artigo 8.º, na norma em análise existe uma dimensão que se traduz na atribuição ao juiz de uma mera operação de associação de efeitos definidos pelo legislador à condenação criminal em determinada pena de prisão.
22. Assegurada que está, pelo legislador, a competência judicial para ordenar a recolha das amostras de ADN aos condenados bem como para determinar a subsequente inserção na base de dados de perfis de ADN, e definidos os pressupostos legais da sua determinação, a questão que a norma em causa pode colocar é a de saber se a reserva de juiz ali prevista constitui suficiente garantia dos direitos fundamentais afetados. E isto porque o juiz deve, por via de regra, determinar a referida recolha de amostra de ADN do arguido, verificados os pressupostos formais indicados na norma…
Isto é, estando preenchidos os pressupostos legais objetivamente definidos, o juiz não precisa de indicar fundamentação adicional para proferir a ordem de recolha de amostra ADN ao arguido. Só a dispensa exige fundamentação adicional, designadamente para demonstrar a desnecessidade ou a inviabilidade da recolha.
É, portanto, a conformidade constitucional desta delimitação entre regra e exceção estabelecida pelo legislador que importa agora verificar. Desde logo à luz da configuração das reservas de juiz como concretizações dos direitos fundamentais, sendo inquestionável que à luz da Constituição tais reservas visam assegurar uma proteção adicional ou reforçada dos direitos fundamentais.
Na verdade, sendo incontroverso que o princípio da proporcionalidade ocupa lugar central na avaliação dos requisitos materiais exigidos nas restrições de direitos fundamentais – de acordo com o n.º 2, do artigo 18.º da Constituição, tais restrições devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos»…
Constitui entendimento estabilizado na doutrina, que a razão de ser da transferência legal das decisões mais graves para a competência do juiz reside no facto de a lei esperar deste último uma atuação segundo o modo de pensar específico de um juiz («spezifisch richterlicher Denkweise», na designação do Tribunal Constitucional alemão), mesmo quando estão em causa atos que não revistam natureza estritamente jurisdicional. Apesar de não ser possível precisar concretamente o que deva entender-se por modo de pensar específico do juiz, é incontroverso que, na sua apreciação, este nunca deverá perder de vista o princípio da adequação entre meios e fins bem como a proibição do excesso.
E sendo assim, o que interessa verificar é se a substituição – por via de regra - da ponderação do juiz pelo critério do legislador acautela devidamente os direitos fundamentais do visado.
23. A questão coloca-se, portanto, em saber se a regra da recolha de amostras de ADN a condenados em pena de prisão igual ou superior a 3 anos (ainda que substituída), respeita o princípio da proporcionalidade.
(…)
26. Em suma, a instituição pelo legislador - no cumprimento do seu poder de densificação dos pressupostos materiais da medida restritiva de direitos fundamentais na norma que a habilita - da regra da recolha de ADN a condenados em pena igual ou superior a 3 anos de prisão, ainda que substituída, apresenta-se como uma medida útil, necessária e proporcional aos fins prosseguidos, sendo os casos de eventual desnecessidade ou excesso deixados ao prudente critério jurisdicional a fundamentar com base nos elementos concretos do processo, em concretização da tutela dos direitos fundamentais dos visados, o que se insere plenamente nos fins da reserva judicial de reforço da tutela conferida pela posição institucional de neutralidade e de independência que caracterizam estatuto do juiz. O regime legal em que se insere a norma em apreciação responde à prescrição dos pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais que densificam suficientemente a autorização legal para a medida e acautela o justo equilíbrio entre interesses públicos e privados concorrentes.
(…)
28. É assim de concluir pela não inconstitucionalidade da norma que determina que a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com finalidades de investigação criminal e inserção na base de dados respetiva, é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, após trânsito em julgado, quando a mesma não foi já realizada, interpretativamente retirada pela decisão do artigo 8.º, n.º 2, da LBDADN”.

E embora o acórdão não o diga expressamente (pois não era esse o objeto do recurso então apreciado), mostra-se implícita a aceitação de que a recolha de ADN, na situação de condenação em pena de prisão igual ou superior a 3 anos pela prática de crime doloso, é ordenada pelo juiz, não se tratando de mera faculdade mas sim de obrigatoriedade legal, o que lhe confere a natureza de um poder-dever.
E, na verdade, da conjugação do teor do referido número 2, com o número 6 do artigo 8º da Lei nº 5/2008 (ao prever-se neste a possibilidade de ser dispensada tal recolha de amostra para as situações descritas e fundamentadas), afigura-se ser a melhor interpretação sobre a questão.
Com a ressalva de que a recolha da amostra de ADN não era logo ordenada na sentença, mas sim e apenas após trânsito em julgado daquela

E acrescenta-se, perante a alteração ao art. 8º da Lei 5/2008, introduzida pela Lei nº 90/2017, de 22.08:

«Com esta nova redação, que tem aplicação nos processos pendentes, para além da recolha de amostra passar a ser indubitavelmente obrigatória, passou a ter de ser ordenada na própria sentença e não só depois do trânsito em julgado desta.

Com a presente alteração de regime e procedimento na recolha de amostra de ADN, foi alterado/eliminado o anterior nº 6 do artigo 8º (de onde se retirava já a natureza obrigatória/automática de tal recolha) sendo substituído pelo atual nº 7, que passou a ter a seguinte redação:

7 - Quando se trate de arguido, em processo pendente ou condenado, em vários processos, simultâneos ou sucessivos, não há lugar a nova recolha de amostra e consequente inserção de perfil, utilizando-se ou transferindo-se o perfil do arguido guardado no ficheiro a que se reporta a alínea g) do n.º 1 do artigo 15.º, exceto se a recolha de nova amostra for considerada necessária pela autoridade judiciária competente, oficiosamente ou a requerimento escrito, que pode ouvir, para o efeito, o INMLCF, I. P., ou o LPC, consoante os casos.»

Após esta extensa citação, que se justifica pela sua pertinência, lavramos aqui o nosso entendimento de que a recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é automática, legalmente obrigatória e, como tal, deve sempre ordenada pelo tribunal. Por despacho judicial do juiz após trânsito em julgado da decisão condenatória, na vigência da versão originária do art. 8º, nº2, da Lei nº 5/2008, de 12.02, ou na sentença, na sua atual versão, introduzida pela lei nº 90/2017, de 22.02.

Temos ainda por certo que, face à sua natureza processual, a Lei Nova aplica-se aos processos pendentes, sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anteriorcf. art. 5º, nº1, primeira parte, do CPP.

Posto isto, ainda que por fundamentos jurídicos diversos, cremos que assiste razão ao recorrente quando pugna pela aplicação in casu da Lei Antiga, isto é, da redação originária do art. 8º, nº2 da Lei nº 5/2008.

Diferentemente do que aquele defende, não está em causa no despacho recorrido, que fundamentou a decisão na redação atual do art. 8º, nº2 da Lei 5/2008, na redação introduzida pela Lei 90/2017, uma aplicação retroativa das disposições deste diploma, o que constituiria uma operação proibida pelo artigo 12º, nº1, do Código Civil.

Em primeiro lugar, porque, como vimos, não se aplica em processo penal aquela regra da legislação substantiva civil que determina que a lei só dispõe para o futuro, pelo que não faz sentido convocar o disposto no segundo segmento da norma, excecional, que ressalva os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular – efeitos que no caso inexistem -, caso seja legalmente atribuída eficácia retroativa à lei nova.

E, mormente, porque existe norma expressa que regula a aplicação da lei processual penal no tempo, que, fixando a regra da aplicação imediata aos processos pendentes, comporta exceções, sendo uma delas a vertida na al. b) do nº2 do art. 5º do CPP, e que se aplica ao caso sub judice.

Prescreve o art. 5º, nº2, al. b), do CPP:
“…
2 – A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:

b) Quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo”.
No presente processo, pendente à data da entrada em vigor da Lei nº 90/2017, de 22.08, a aplicação imediata deste diploma que alterou a redação do art. 8º, nº2, da Lei nº 5/2008, de 12.02, determinando que a ordem judicial de recolha de amostra de ADN ao condenado conste da sentença, e não, como sucedia anteriormente, que fosse determinada em despacho proferido após o trânsito em julgado da condenação, afetaria irremediavelmente a harmonia e unidade de atos processuais, designadamente da sentença proferida e dos ulteriores atos dela dependentes.

Com efeito, quando foi proferida a sentença não tinha o tribunal a quo de se pronunciar sobre o cumprimento do disposto no art. 8º, nº2, da Lei nº 5/2008, devendo este aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória. Logo, decorrendo da nova redação daquele preceito legal que tal cumprimento devia ocorrer na sentença, e tendo esta já sido proferida e transitado em julgado (2), ficaria o tribunal definitivamente impedido de exercer aquele seu dever legal.
Tal consequência, resultante de uma acrítica e imponderada aplicação imediata da lei nova, é impeditiva da pretendida harmonia e unicidade dos atos processuais, e, como tal, é inadmissível.
Por conseguinte, não colhe a fundamentação aduzida pelo tribunal a quo para indeferir a promoção do Ministério Público no sentido de ser dado cumprimento ao disposto no art. 8º, nº2, da Lei nº 5/2008, de 12.02, devendo a Mma. Juíza ter optado, nos termos do art. 5º, nº2, al. b), do CPP, pela aplicação ao caso da redação do preceito legal anterior à conferida pela Lei nº 90/2017, de 22.08, e, nessa conformidade, uma vez que se verificam os demais pressupostos legais para o efeito, deferir o promovido - ainda que não por via da erroneamente ali reclamada correção da sentença.

Destarte, com os fundamentos supra aduzidos, cumpre julgar procedente o douto recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que, nos termos do art. 8º, nº2 da Lei 5/2008, na redação originária, ordene a recolha de amostra no arguido condenado e a consequente inserção no respetivo perfil de ADN na base de dados.
*

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que, nos termos do art. 8º, nº2 da Lei 5/2008, de 12.02, na redação originária (aplicável por força do disposto no art. 5º, nº2, al. b), do CPP), ordene a recolha de amostra no arguido condenado e a consequente inserção no respetivo perfil de ADN na base de dados.

Sem custas (art. 4º, nº1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais, e art. 513º, nº1 do CPP, a contrario).
*
Guimarães, 11 de maio de 2020,

Paulo Correia Serafim (relator)
Nazaré Saraiva

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


1 - Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2 - É inaplicável ao caso o disposto no art. 380º do CPP, não podendo o tribunal corrigir a sentença, pois que a mesma, ao tempo da sua prolação, não omitiu pronúncia sobre esta matéria e não enfermava de qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade que devesse ser eliminado.