Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3554/18.1T8BRG.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A decisão que decreta a inversão do contencioso é incindível da correspondente decisão que deferiu a providência cautelar, por resultar expressamente da lei que ambas devem ocorrer em simultâneo e porque a lei manda expressamente estender à decisão que tenha invertido o contencioso os meios de impugnação previstos para o decretamento da providência;

II - Com a prolação da decisão que decreta a providência ocorre a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pelo que a pronúncia sobre a inversão do contencioso não pode ocorrer em decisão subsequente à decisão de mérito.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

D. S., Fernando, António e Luís, instauraram procedimento cautelar comum contra Joaquim, pedindo que, com dispensa do contraditório prévio, seja o requerido condenado:

- a reconhecer o direito de propriedade dos requerentes sobre os imóveis identificados no requerimento inicial;
- a abster-se de praticar atos lesivos da propriedade dos requerentes, nomeadamente a não derrubar as nogueiras, a não escavar a leira e a não construir o muro na propriedade dos requerentes.
Mais requereram a inversão do contencioso, nos termos do n.º 1 do art.º 369.º do Código de Processo Civil (CPC).
Foi dispensado o prévio contraditório do Requerido, após o que foi designada data para inquirição das testemunhas arrolada pelos requerentes.

Foi então proferida decisão, datada de 20-07-2018, que decidiu o seguinte:

“ (…)
julgo procedente a presente providência cautelar e, em consequência, determino a notificação do requerido:

a) Para reconhecer o direito de propriedade dos requerentes sobre os imóveis identificados no requerimento inicial;
b) Para se abster de praticar actos lesivos da propriedade dos requerentes, nomeadamente a não derrubar as nogueiras, a não escavar a leira e a não construir o muro na propriedade dos requerentes.

O acto da notificação/diligência será realizado pela Instância Local de Guimarães - Unidade de Serviço Externo.

Registe e notifique, sendo ainda após efectuada a diligência o Requerido nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 366º, n.º 6, e 372º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil e também para querendo se pronunciar sobre a requerida inversão do contencioso nos termos do art.º 369º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
Custas pelos Requerentes – art.º 539º, n.º 2, do C. P. Civil – a atender, contudo, na acção respectiva, sem prejuízo do apoio judiciário”.

O Requerido foi notificado, em 02-08-2018, da decisão proferida, bem como e para os efeitos previstos nos artigos 366.º, n.º 6, e 372.º, n.º1 do CPC, no prazo de dez dias, recorrer ou deduzir oposição à providência, tudo nos termos que melhor constam do teor da certidão de notificação constante dos autos.

Foi então proferido despacho, em 03-09-2018, nos seguintes termos:

“Por sentença de fls.59 e seg., proferida aos 20 de Julho de 2018 foi decretada a providência requerida nos autos.
Regular e pessoalmente notificado da mesma, o Reqdo. não deduziu oposição e também nada disse no que respeita à requerida inversão do contencioso.
Cumpre decidir, dando-se aqui por integralmente reproduzida a factualidade já julgada como provada na referida decisão de 20 de Julho de 2018.

Nos termos do disposto no artigo 369º/1 do C. P. Civil, a inversão do contencioso depende da verificação de dois requisitos cumulativos, a saber: - que a matéria adquirida no procedimento permita que o juiz forme a convicção segura acerca da existência do direito acautelado; - que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

No caso, o(a) julgador(a) ficou com a convicção segura da existência do direito acautelado, face à prova testemunhal e documental produzida em audiência.

Acresce, também, que o Reqdo. não deduziu oposição, sendo que o cumprimento da providência decretada se mostra adequado à composição do litígio e acautela devida e definitivamente o direito dos Reqtes.

Nessa medida, não se vislumbram fundamentos bastantes para exigir que os Reqtes. sejam onerada com a obrigação de instauração da acção principal.

Pelo exposto, defiro à requerida inversão do contencioso e, em consequência, dispenso os Requerentes da propositura da acção declarativa de que o presente procedimento cautelar seria dependente.
Notifique.
*
Oportunamente, à conta
Custas pelos Requerentes – art.º 539º, n.º 2, do C. P. Civil – a atender, contudo, na acção respectiva, sem prejuízo do apoio judiciário”.

Inconformado, o Requerido Joaquim apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação do despacho proferido a 03-09-2018, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

« - Prevê o art. 369, n.º 1 do CPC que «Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal ... », do que resulta que a decisão sobre a providência requerida é indissociável da decisão sobre a inversão do contencioso, razão pela qual estes dois pedidos devem ser apreciados na sentença, não podendo ser relegada para momento posterior, a decisão sobre a inversão do contencioso.
- O despacho de 03/09/2018, ora em discussão, que deferiu a requerida inversão do contencioso, dispensando os requerentes da propositura da ação principal, foi proferido já depois do trânsito em julgado da sentença de 20/07/2018, que havia decidido pela procedência da providência cautelar e determinado a notificação do requerido para reconhecer o direito de propriedade dos requerentes sobre os imóveis identificados no requerimento inicial e bem assim para se abster da prática de actos lesivos da propriedade dos requerentes, nomeadamente a não derrubar as nogueiras, a não escavar a leira e a não construir o muro na propriedade dos requerentes, o que foi feito a 02/08/2018.
- Após terem sido notificados da sentença, os requerentes não arguiram a nulidade por omissão de pronúncia, pelo que ficou assim esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613, n.º 1 do CPC), estando assim ele legalmente impedido de decidir, em momento posterior, sobre a inversão do contencioso, como fez.
- Quer se entenda que o despacho de 03/09/2018, ora em análise, enferma do vício de nulidade, por o Tribunal ter praticado um ato que a lei não admite e que, atenta a sua natureza, influi decisivamente no bom exame e decisão da causa, quer se considere que tal despacho, por padecer de um vício essencial, a falta de jurisdição, determina a invalidade do ato, determinando a inexistência jurídica de tal decisão, o certo é que a mesma carece de apoio legal e, nessa medida, não pode manter-se em vigor na ordem jurídica, devendo ser revogada.
- Foi assim violado, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 195, 196, 2a parte, 197, n.º 1, 199, n.º 1 e 200, n.º 3 e ainda o previsto nos arts. 369, n.º 1, 370, n.º 1 e 613, n.º 1 e 3, todos do CPC.

Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, ser revogada a decisão que deferiu a inversão do contencioso, constante do despacho recorrido, com o que se fará a devida e desejada JUSTlÇA”.

A autora D. S. apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso interposto e a consequente manutenção do decidido.

Também o autor Luís apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso interposto e a consequente manutenção do decidido.

O autor Fernando veio declarar aderir às contra alegações apresentadas por D. S., corroborando tudo que ali é expresso.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o objeto do presente recurso circunscreve-se a saber se a decisão que decretou a inversão do contencioso podia ter sido proferida após o trânsito em julgado da decisão que decretou a providência requerida, em procedimento cautelar sem contraditório prévio.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1.Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

O recorrente insurge-se contra o despacho proferido a 03-09-2018, que deferiu a requerida inversão do contencioso e, em consequência, dispensou os requerentes da propositura da ação declarativa de que o procedimento cautelar seria dependente.

O artigo 369.º, n.º 1 do CPC prevê que, mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

No caso vertente, não está em causa a aferição dos pressupostos materiais do decretamento de tal mecanismo, mas tão só saber se a decisão que decretou a inversão do contencioso podia ter sido proferida após o trânsito em julgado da decisão que decretou a providência requerida, em procedimento cautelar sem contraditório prévio, como sucedeu no caso vertente.

A este propósito, o já citado artigo 369.º, n.º 1 do CPC é expresso no que concerne ao momento em que deve ser decretada a inversão do contencioso, a qual “tem de ocorrer em simultâneo com a decisão que julgue o procedimento cautelar, mesmo nos casos em que não haja contraditório prévio” - cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 433, em anotação ao referido preceito.

Atenta a expressa referência legal quanto ao momento em que deve ser proferida a decisão de inversão do contencioso, é manifesto que a referida decisão não podia ser proferida posteriormente à decisão que deferiu a providência, ainda que a título incidental.

Na verdade, trata-se de uma exigência legal de natureza imperativa e preclusiva, na medida em que da mesma depende a possibilidade de impugnação da decisão que tenha invertido o contencioso. É o que decorre do confronto entre o n.º 1 do artigo 372.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito, dos quais resulta que, nos casos em que a providência tenha sido decretada sem audiência prévia do requerido, este deve cumular a impugnação da decisão que tenha invertido o contencioso com os meios de defesa previstos para a decisão proferida sobre a providência, no caso, o recurso ou a oposição, a deduzir na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366.º do CPC.

Assim, e tal como esclarecem ainda António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., p. 433), “Nos casos em que a providência (com inversão do contencioso) tenha sido decretada sem audiência prévia, o requerido, uma vez notificado (art. 366.º, n.º 6) para o exercício do contraditório quanto à providência, seja por via de recurso, seja por via de oposição (art. 372.º, n.º1), deve cumular aí os argumentos contra a inversão do contencioso (art. 372.º, n.º 2).

(…) A decisão que indefira a inversão do contencioso é irrecorrível. A que defira é impugnável com o recurso que eventualmente venha a ser interposto da decisão sobre a providência, verificados os pressupostos gerais”.

Assim sendo, não se mostra legalmente admissível a prolação de decisão de inversão do contencioso após o trânsito em julgado da decisão que decretou a providência, posto que o requerido ficaria impedido de a impugnar nesse momento nos termos e para os efeitos previstos no artigo 372.º do CPC.

É certo que, na parte final da decisão que decretou a providência, em 20-07-2018, foi, além do mais, determinada a notificação do requerido, sendo ainda após efetuada a diligência, nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 366º, n.º 6, e 372º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil e também para querendo se pronunciar sobre a requerida inversão do contencioso nos termos do art.º 369º, n.º 2 do mesmo diploma legal.

Sucede que, como se viu, a lei manda expressamente estender à decisão que tenha invertido o contencioso os meios de impugnação previstos para o decretamento da providência, pelo que, tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, a oposição prevista no artigo 369.º, n.º 2 do CPC não se destina ao contraditório do requerido sobre o pedido de inversão do contencioso, antes pressupondo já uma decisão de pronúncia sobre a inversão do contencioso.

Neste contexto, e tal como se decidiu no Ac. TRG de 14-04-2016 (relator: Francisca Mendes), p. 436/15.2T8EPS-A.G16 disponível em http://www.dgsi.pt., em situação idêntica à dos presentes autos, “Se tivesse sido decretada a inversão do contencioso, os requeridos poderiam ter impugnado tal decisão que poderia ser revogada ou mantida (art. 372º, nº3 do CPC).

Após a prolação da sentença e não tendo sido arguida a nulidade por omissão de pronúncia, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz (artº 613º, nº1 do CPC) ”.

Entendendo-se que a decisão que decreta a inversão do contencioso é incindível da correspondente decisão que deferiu a providência cautelar, por resultar expressamente da lei que ambas devem ocorrer em simultâneo, é manifesto que com a prolação da decisão que decretou a providência ocorre a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, tanto mais que o requerido não deduziu oposição ao decretamento da providência, na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366.º do CPC.

Em consequência, a decisão recorrida, que deferiu a requerida inversão do contencioso, não podia ter sido proferida posteriormente à decisão que deferiu a providência, ainda que a título incidental.

Cumpre, assim, julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida.

Sumário:

I - A decisão que decreta a inversão do contencioso é incindível da correspondente decisão que deferiu a providência cautelar, por resultar expressamente da lei que ambas devem ocorrer em simultâneo e porque a lei manda expressamente estender à decisão que tenha invertido o contencioso os meios de impugnação previstos para o decretamento da providência;
II - Com a prolação da decisão que decreta a providência ocorre a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pelo que a pronúncia sobre a inversão do contencioso não pode ocorrer em decisão subsequente à decisão de mérito.

IV. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos recorridos, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Guimarães, 25 de outubro de 2018


Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar
Eva Almeida