Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
70/14.4TBMR-A.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
AVERIGUAÇÃO OFICIOSA DE PATERNIDADE
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
CASO JULGADO
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. O despacho de inviabilidade proferido na acção de averiguação oficiosa de paternidade prevista nos arts. 1864º e ss. do CC, atenta a natureza administrativa e de jurisdição voluntária do próprio processo em que é proferido, não forma caso julgado, pelo que não impede a instauração da acção comum de investigação da paternidade.
II. No entanto, na falta do despacho (positivo) de viabilidade proferido na aludida acção, o Ministério Público não poderá intentar a acção oficiosa (isto é, em nome próprio e no interesse público) de investigação de paternidade.
III. Também nos casos previstos no art. 1866º do CC, e no que aqui nos interessa, no caso da al. b) (decurso do prazo de dois anos sobre o nascimento do menor), é legalmente inadmissível a instauração oficiosa (pelo Ministério Público na sua veste Estadual) da acção de investigação de paternidade.
III. Se o Ministério Público instaurar nestas circunstâncias acção oficiosa de investigação da paternidade deve o Réu ser absolvido de Instância por procedência da excepção dilatória de ilegitimidade activa, excepção que é do conhecimento oficioso pelo Tribunal.”
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.
I. RELATÓRIO.
Recorrente: B.;
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O Exmo. Magistrado do Ministério Público intentou a presente acção oficiosa de Investigação de paternidade, sob a forma de processo comum, contra B., residente no … (morada da petição inicial).
Termina pedindo que o menor C. seja reconhecido como filho do Réu para todos os efeitos legais, ordenando-se o devido averbamento registral.
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Contestou o Réu a pretensão do Ministério Público.
Termina pedindo:
- que seja decretada a incompetência absoluta do tribunal e ser o Réu absolvido de instância e ou/ser decretada a incompetência relativa do Tribunal;
- que seja rejeitada a perícia solicitada, porque não é legalmente admissível nos termos em que foi requerida;
- que seja julgada improcedente a acção.
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De seguida, foi proferida a seguinte decisão que aqui se reproduz integralmente:
“…1 — Ao abrigo do art. 303.°, n° 1 do CPC, fixo o valor da acção em 30.000,01€ (trinta mil euros e um cêntimo).
II — Nos termos do art. 593º, n ° 1 do CPC não se realiza audiência prévia.
III - Foi suscitada uma questão prévia e invocada uma excepção de incompetência.
No que se refere ao justo impedimento, a inoperacionalidade do CITIUS no arranque da reorganização judiciária foi um facto notório, reconhecido em diploma legal, pelo que se admite a contestação.
Relativamente à questão da incompetência, também fruto da reorganização, a acção foi remetida para o Tribunal de Família e Menores, que é competente.
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Não existem outras nulidades, excepções processuais ou questões prévias de que cumpra conhecer.
IV — Objecto do litígio: relação de filiação entre C.e B..
V — Tema da prova: C. nasceu fruto das relações sexuais do R. com D.?
VI — Admite-se a prova testemunhal arrolada, bem como as declarações de parte.
Nos termos do art. 411.° do CPC, determina-se realização de uma perícia a realizar pelo IML, tendo por objecto aferir se o R. é pai biológico de C..
Remeta cópia da petição, contestação e documentos juntos, bem como do presente despacho.
Prazo: 30 dias.
VII — Realizada a perícia será agendado o dia do julgamento.….”
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É desta decisão que o Réu/Recorrente veio interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
“1) Tendo o réu sido notificado do despacho saneador vem do mesmo interpor Recurso de Apelação, ex vi arts. 644º nº 1 al. b) e nº2 als. b), d) e h) todos do CPC), o qual deverá ter efeito suspensivo, nos termos, entre outros, do art. 647º nºs 3 a) e 4 do CPC.
2) Entende o recorrente que existem nulidades, excepções processuais e questões prévias que o tribunal deveria ter conhecido, até as invocadas pelo réu, mas não o fez no despacho saneador que proferiu.
3) A averiguação oficiosa de paternidade com o nº…, que correu nos Serviços do Ministério Público de …, nos termos do art. 1864º e seguintes do CC, foi arquivada, por decisão datada de 21-01-2002, face ao previsto no art.1866º, al. b) do Código Civil.
4) Existe violação dos artigos 1865º nºs 4 e 5 do Código Civil e art.205º da Organização Tutelar de Menores, pois não existem provas seguras da paternidade, e muito menos existe despacho final do juiz a ordenar que seja proposta acção de investigação de paternidade, sendo ilegal a presente acção de investigação de paternidade.
5) O MP funda a presente acção no art.205º nº1 da OTM, violando o Princípio da Legalidade.
6) O réu à data dos factos teria cerca de 70 anos, pelo que não existe a presunção do art. 1871º do CC, face até ao seu nº2.
7) A presente acção configura abuso de direito, tendo já o réu sido prejudicado a vários níveis com a mesma, nomeadamente dano grave à honra e consideração, pelo que lançará mão da respectiva acção indemnizatória após o final dos autos.
8) O despacho saneador é nulo e inverídico, pois existem nulidades, excepções e outras questões que já deveriam ter sido conhecidas, mesmo oficiosamente, o que se invoca.
9) Os sujeitos e a causa de pedir são agora, também, os mesmos da acção de averiguação oficiosa de paternidade, havendo violação de caso julgado, o que se invoca.
10) Existe omissão de pronúncia no despacho saneador, sendo o mesmo nulo e sem nenhum efeito, porquanto omite a questão da inexistência de indicação do objecto e discriminação das questões de facto, que o MP pretende ver esclarecidas através do exame pericial, violando o art. 475º nº1 do CPC.
11) Existe ainda omissão de pronúncia, pois o despacho saneador não se reporta à perícia solicitada pelo MP, ou seja, se admite ou não admite, e em que termos e porquê.
12) A perícia foi ordenada de forma ilegal, sendo inadmissível os termos em que foi requerida.
13) O Réu não foi questionado sobre se aceita ou não submeter-se a tal perícia médica, sendo o seu decretamento ilegal.
14) Não pode o juiz a quo ordenar uma perícia oficiosamente com base no art.411º do CPC, para assim obviar a conhecer das nulidades e irregularidades invocadas, sendo o despacho saneador nulo.
15) Existe violação da competência territorial e da matéria (65º, 96º, 278º do CPC e 38º nº1 e 123º nº1 al. l) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (NLOFJT)), cujo despacho saneador não fundamenta a decisão, sendo nulo e sem nenhum efeito.
16) A presente acção foi intentada no Tribunal Judicial de …, sendo então competente o Tribunal Judicial de Família e Menores de … (competência especializada, cfr. art. 65º do CPC).
17) Foi arguida a incompetência absoluta de tal Tribunal o que implica a absolvição da instância nos termos do artº 96º e ss., 278º todos do CPC, não tendo sido a decisão do tribunal a quo devidamente fundamentada, pelo que a mesma é nula e sem nenhum efeito, o que se requer.
18) Diz o art. 38º nº1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto que: “A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.”, bem como o seu nº2 que acrescenta que: “São igualmente irrelevantes as modificações de direito, […]”, pelo que terá de ser declarada a incompetência do Ministério Público de …. para intentar a acção, o que se requer.
19) Quer isto significar que apesar da alteração Legislativa da reorganização judiciária, e os presentes autos terem sido remetidos ao Tribunal de Família e Menores, não ficou sanada a incompetência do Tribunal de …, pois essa incompetência permanece, já o réu teve de contestar a acção nesse Tribunal, residindo em ….
20) Tal remessa dos autos para o Tribunal competente por força do novo mapa Judiciário, não releva para efeitos da verificação da competência do Tribunal nos termos do art. 38º da Nova LOFTJ (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 735/13.8TBLSA.C1, de 13-05-2014).
21) Deverá, assim, ser o Réu absolvido da instância, pois o momento da verificação da competência do Tribunal afere-se aquando da instauração da acção, e não aquando do despacho saneador, o que se requer que seja verificado e atestado.
22) Tendo a presente acção também sido intentada pelo MP de … a presente acção é ilegal, o que se requer que seja atestado.
23) Isto porque diz o Artigo 123.º, sobre a Competência relativa a menores e filhos maiores, nº1 al. l) que compete igualmente às secções de família e menores: “Proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade e preparar e julgar as acções de impugnação e de investigação da maternidade e da paternidade.”.
24) Logo o Tribunal de …. mostra-se totalmente incompetente para intentar a presente acção de investigação de paternidade, que só poderia ter sido iniciada pelo Tribunal de Família e Menores de … , ex vi. Art.123º nº1 al. L) da NLOFTJ, o que invalida o processado subsequente, o que se requer que seja atestado.
25) Mostra-se ilegal a dispensa de audiência prévia, por força do estatuído no art. 591º nº1 al. b) por remissão do art. 593º nº1 do CPC, o que se argui com todas as consequências legais.
26) Foi invocada a incompetência absoluta do Tribunal, pelo que não se pode dispensar a audiência prévia, o que se requer que seja verificado.
27) O exame decretado viola o art. 417º nº3 al. a) do CPC, ou seja, a integridade física e moral do réu, nem tendo o Tribunal a quo indagado se o réu aceita submeter-se a tal exame, sendo assim ilegal, o que se requer que seja verificado.
Nestes termos e demais de Direito aplicáveis deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e por via dele:
i. ser o réu absolvido da instância por violação da Lei (arts. 1864º; 1865º nºs 4 e 5; 1866º al. b) do Código Civil e art.205º da Organização Tutelar de Menores);
ii. ser decretada a violação de caso julgado;
iii. ser decretada a omissão de pronúncia do tribunal a quo, sendo o despacho saneador nulo;
iv. ser a perícia determinada considera ilegal e violadora do art. 417º nº3 al. a) do CPC, até porque nem foi o Réu questionado sobre se aceita submeter-se a tal perícia;
v. ser considerado que existe violação da competência territorial e em razão da matéria (65º.96, 278º do cpc e 38º nº1 e 123º nº1 al. l) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (NLOFJT), cujo despacho saneador obviou a conhecer de forma fundamentada;
vi. ser decretado que o Tribunal de … é totalmente incompetente para ter intentado a presente acção de investigação de paternidade, pois só poderia ter sido iniciada pelo Tribunal de Família e Menores de …., ex vi art.123º nº1 al. L) da NLOFTJ, o que invalida o processado subsequente.”
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O Exmo. Magistrado do Ministério Público não apresentou contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente/Réu coloca a(s) seguinte(s) questão(ões) que importa apreciar (alterando-se a ordem do conhecimento das questões apenas quanto à questão do pressuposto da competência):
- saber se existe violação da competência territorial e da matéria (65º, 96º, 278º do CPC e 38º nº1 e 123º nº1 al. l) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (NLOFJT)), já que, apesar da alteração Legislativa da reorganização judiciária e dos presentes autos terem sido remetidos ao Tribunal de Família e Menores de …, não ficou sanada a incompetência do Tribunal de …;
-saber se é ilegal a propositura da presente acção porque não foi proferido o despacho judicial (de viabilidade da acção) na acção oficiosa de paternidade do Tribunal e saber se aquele despacho proferido naquela acção forma caso julgado impeditivo da instauração da presente acção- questões levantadas nos itens 1 a 23 das alegações;
-saber se é ilegal a dispensa de audiência prévia, por força do estatuído no art. 591º nº1 al. b) por remissão do art. 593º nº1 do CPC;
-quanto à prova pericial:
a) se existe omissão de pronúncia quanto à prova pericial requerida pelo Ministério Público;
b) se a perícia foi ordenada de forma ilegal;
c) se o exame decretado viola o art. 417º nº3 al. a) do CPC, ou seja, a integridade física e moral do réu.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto provada com interesse para a discussão do objecto do recurso:
1. Teor da decisão proferida a fls. 13 e 14 que constitui o objecto do presente recurso que já acima se reproduziu integralmente:
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Comecemos por analisar a primeira questão atrás enunciada.
Levanta o Recorrente a questão de saber se tendo a presente acção sido instaurada no Tribunal de … existe violação da competência territorial e da matéria (65º, 96º, 278º do CPC e 38º nº1 e 123º nº1 al. l) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (NLOFJT).
Entendeu o Tribunal recorrido que tal excepção dilatória de incompetência invocada pelo Réu mostra-se prejudicada na sua apreciação, já que “fruto da reorganização judiciária, a acção foi remetida para o Tribunal de Família e Menores, que é competente”.
Não há dúvidas que o Tribunal competente para conhecer da presente acção de investigação de paternidade, de acordo com a Lei actual da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), é a Instância Central de Família e Menores de ….– arts. 123º, nº1, al. l).
A questão que se coloca é a de saber se, conforme defendeu o Tribunal de Primeira Instância, essa competência atribuída legalmente pela Lei 62/2013 (LOSJ) e pelo DL 49/2014 de 27 de Março é a aplicável ao caso concreto não se verificando qualquer questão de competência.
Entende o Recorrente que não porque:
- a presente acção deveria ter sido instaurada no Tribunal Judicial de Família e Menores de … (competência especializada, cfr. art. 65º do CPC) e não no Tribunal Judicial de ….
-apesar da alteração Legislativa da reorganização judiciária, e os presentes autos terem sido remetidos ao Tribunal de Família e Menores, não ficou sanada a incompetência do Tribunal de …, pois essa incompetência permanece, já que o réu teve de contestar a acção nesse Tribunal, residindo em …;
- Tal remessa dos autos para o Tribunal competente por força do novo mapa Judiciário, não releva para efeitos da verificação da competência do Tribunal nos termos do art. 38º da LOSJ pois o momento da verificação da competência do Tribunal afere-se aquando da instauração da acção.
Cumpre decidir.
A presente acção foi instaurada em 14.3.2014, pelo que, no momento da instauração da acção, vigorava a Lei 3/99 de 13 de Janeiro -Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ).
Ora, estabelecia o art. 22º n.ºs 1 e 2 da LOFTJ (com correspondência no artº 38º da LOSJ) que a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito posteriores, excepto, quanto a estas últimas, se for suprimido o órgão a que estava afecto ou lhe for atribuída competência de que antes carecia (cfr. art. 60º do CPC).
Nesta conformidade, atendendo àquele critério, sendo a presente acção, uma acção de investigação da paternidade é manifesto que o Tribunal competente era o Tribunal de competência genérica que abrangesse a área do município de ….
É que nos termos do art. 82, nº1, al. j) (a contrario) da LOFTJ só se atribuía competência ao Tribunal de Família para proceder à averiguação oficiosa da paternidade, pelo que a competência para a acção de investigação era atribuída ao Tribunal de competência genérica – art. 77º, nº1, al. a) da LOFTJ) (1).
Por outro lado, em termos de competência territorial, atendeu-se à residência do Réu indicada na petição inicial (…), sendo que, como é pacífico, a competência, como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor (pedido e causa de pedir).
Na verdade, para decidir qual das normas corresponde a cada um dos “índices” de competência, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção, isto é, há que atender, apenas, ao modo como o autor delineia o pleito na petição inicial, quer quanto aos elementos objectivos – causa de pedir e pedido –, quer quanto aos elementos subjectivos – identidade dos sujeitos.
Assim, a competência afere-se pelo pedido do autor, sendo uma questão a resolver, unicamente, de acordo com os termos da pretensão do autor (compreendidos, aí, os respectivos fundamentos) (2).
Nesta conformidade, se atendermos às regras de competência em vigor no momento da instauração da acção teríamos que a acção teria sido instaurada no Tribunal competente, atento o exposto.
Sucede que o Tribunal em causa foi extinto com a entrada em vigor da LOSJ por força do art. 117º da citada Lei, ou seja, o Tribunal em causa a que se encontrava afecto o presente processo foi “…suprimido…” (para utilizar a expressão da parte final do art. 38º da LOSJ; cfr. também o art. 22º da LOFTJ).
Nessa sequência, determinou o legislador para estes casos que os processos transitassem à data da instalação dos novos Tribunais para o novo Tribunal que fosse competente de acordo com as novas regras de competência material e territorial- art. 104º do DL 49/2014.
Ora, na nova LOSJ foi alterada a competência material da Instância Central de Família e Menores no sentido de esta competência passar a abranger “… as acções de investigação da paternidade…” (art. 123, nº1, al. l) da LOSJ), pelo que, em termos materiais e territoriais, a competência passou a ser da Instância Central de Família e Menores de …- art. 71º, nº1, al. g) do DL 49/2014- cuja área de competência abrange o município de ….
Tanto basta para julgar improcedente o recurso com este fundamento, confirmando-se nesta parte a decisão do Tribunal de Primeira Instância, a que, além do mais, não se pode apontar o vício da falta de fundamentação, pois que este só se verifica quando se verifica a total ausência de fundamentação, o que não é seguramente o caso concreto da decisão aqui questionada.
Na verdade, quanto à arguição deste vício de nulidade, importa dizer que à excepção dos actos meramente ordenadores do processo e dos despachos de mero expediente, compete ao juiz fundamentar todas as decisões tomadas: art. 154º nº 1 do CPC (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre justificadas”).
A relevância de tal fundamentação fica demonstrada com o facto de a lei cominar com a nulidade a sentença que não obedeça a tal comando: art. 615º nº 1 al. b) do CPC.
Mesmo que o CPC não o referisse, essa necessidade de fundamentação resultaria por imposição directa do art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP): “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Será esta fundamentação que assegura ao cidadão o controlo da decisão e permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado.
Essa fundamentação deve ser expressa e, ainda que sucinta, deve ser suficiente para permitir o controlo do ato.
Ora, no caso concreto, o Tribunal de Primeira Instância, tendo sido preciso e sintético na fundamentação que apresentou, produziu, como se disse, fundamentação suficiente a permitir que as partes controlassem a decisão proferida e consequentemente que o presente Tribunal se pronunciasse sobre essa fundamentação (no caso até para a confirmar).
Improcede a nulidade invocada.
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Entremos na apreciação da segunda questão.
Quanto à invocação da existência de caso julgado formado pela decisão de arquivamento do processo de averiguação oficiosa de paternidade, importa dizer que o Recorrente também não tem razão.
Na verdade, importa referir, de uma forma sintética, que o despacho proferido, em sede de averiguação oficiosa da paternidade, de inviabilidade da acção- tanto mais com o fundamento invocado do decurso do prazo de dois anos sobre a data de nascimento (art. 1866, al. b) do CC) - não obsta à instauração da acção de investigação por qualquer uma das pessoas legitimadas para a instaurar (inclusivamente, o Ministério Público, ainda que, como iremos ver mais à frente, apenas só quando intervenha na veste de representante do menor)
Aliás, mesmo que viesse a ser instaurada uma acção oficiosa de investigação da paternidade pelo Ministério Público (art. 1865º, nº 5 do CC e art. 205º da OTM- actual art. 62 do RGPTC), na sequência do proferimento de um despacho de viabilidade proferido na acção prévia de averiguação oficiosa de paternidade, e aquela primeira acção fosse julgada improcedente, nem assim se verificava uma situação de caso julgado, uma vez que decorre expressamente da lei que pode ser intentada nova acção de investigação da paternidade (sem intervenção activa do Ministério Público na sua veste Estadual), ainda que fundada nos mesmos fundamentos, conforme decorre de uma forma expressa do art. 1813º do CC, aplicável às acções de investigação da paternidade por força da remissão estabelecida no art. 1868º do CC.
Deste preceito legal decorre, assim, que contra a força normal atribuída ao caso julgado a improcedência da acção oficiosa de investigação da paternidade instaurada pelo Ministério Público não obsta a que nova acção (judicial) seja proposta com o mesmo fim da anterior, ainda que baseada nos mesmos factos.
“ A razão justificativa desta franca derrogação da doutrina (força vinculativa especial) do caso julgado material está nas menores garantias de apuramento da verdade que oferece a acção instaurada pelo Ministério Público (entidade oficial representada por agentes que nem sempre conhecem suficientemente a teia das relações existentes no meio social e familiar em que o nascimento ocorreu e a acção se desenrola), em face da acção proposta ou prosseguida pelas pessoas que normalmente gozam da legitimidade para propô-la ou prosseguir com ela (arts. 1814º e 1818º do CC) …” (3).
Independentemente deste argumento de maioria de razão- retirado da conclusão de que se nem a sentença proferida na acção de investigação da paternidade oficiosamente instaurada pelo Ministério Público (na sua veste Estadual) (art. 1865º, nº 5 do CC; cfr. art. 1847º do CC) forma caso julgado, muito menos o despacho de inviabilidade da averiguação oficiosa de paternidade pode formar esse caso julgado-, importa ainda referir que aquele despacho de inviabilidade proferido na acção de averiguação oficiosa de paternidade prevista nos arts. 1865º e ss. do CC também nunca poderia formar caso julgado, atenta a natureza do próprio processo em que é proferido esse despacho final.
É que “ o processo de averiguação oficiosa não tem a natureza de um verdadeiro pleito, dirigindo-se à recolha de elementos para uma eventual acção de investigação, como disse, o S.T.J. no sumário do ac. de 28.5.97 (www.dgsi.pt) na sequência de um entendimento pacífico…” (4).
Trata-se, pois, de um “processo administrativo de apuramento da viabilidade da acção” (5).
Além disso, trata-se de uma decisão proferida num processo de jurisdição voluntária, onde, como é sabido, as decisões podem ser modificadas quando ocorram circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (art. 988º do CPC).
Nesta conformidade, não há dúvidas que, contrariamente ao defendido pelo Recorrente, a acção de averiguação oficiosa de paternidade não faz caso julgado em relação à presente acção de investigação de paternidade.
Julga-se improcedente o Recurso com este fundamento.
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Importa, de seguida, que o presente Tribunal se pronuncie sobre o outro fundamento de ilegalidade invocado pelo Recorrente, qual seja o de que o Ministério Público não poderia ter proposto a presente acção porque não foi proferido o despacho judicial (de viabilidade da acção) na acção oficiosa de paternidade do Tribunal.
Ou seja, alega o Recorrente que não existe o despacho final do juiz a ordenar que seja proposta acção de investigação de paternidade, sendo ilegal a presente acção de investigação de paternidade, já que o MP funda a presente acção no art. 205º nº1 da OTM, violando o Princípio da Legalidade.
Cumpre decidir.
Com interesse para esta parte da decisão importa ter em atenção os seguintes factos:
-Compulsada a petição inicial constata-se que o Ministério Público deduz a sua pretensão em nome do Estado (e não em representação do menor);
- Invoca como preceitos legais que lhe permitem deduzir a sua pretensão o disposto nos arts. 1847º do CC e 205º da OTM;
- refere no item final que “…nos serviços do Ministério Público de … correram os autos de averiguação oficiosa da paternidade com o n.° 1/00, tendo sido determinado o seu arquivamento por decisão datada de 21-01-2002, dado ter decorrido o prazo previsto no art.° 1866.°, alínea b) do Cód. Civil.”
- o menor nasceu no dia 29.12.1999, mas só foi registado em 24.10.2008;- doc. de fls 20
- a acção de investigação de paternidade foi instaurada em 14.3.2014.
Ora, tendo em conta esta factualidade, afigura-se-nos que efectivamente o Ministério Público, na veste em que interveio nos presentes autos, não podia instaurar oficiosamente a acção de investigação da paternidade:
1. já que a Intervenção oficiosa do Ministério Público no âmbito desta acção oficiosa depende da existência do aludido despacho de viabilidade;
2. e, por outro lado, porque no momento da instauração, já tinham decorrido dois anos sobre a data do nascimento do menor (art. 1866º, al. b) do CC).
No que concerne ao primeiro fundamento, importa atender a que, “…na falta de despacho (positivo) de viabilidade, o Ministério Público não poderá intentar a acção oficiosa (isto é, em nome próprio e no interesse público) de investigação de paternidade, em que o registado não é parte formal…”(6) -como sucede inequivocamente no caso concreto.
Com efeito, nestas situações o Ministério Público (junto do Tribunal competente) só tem um meio de “ fugir “ à inexistência de despacho de viabilidade proferido na averiguação oficiosa (nomeadamente, nos casos em que como o aqui em apreciação, o despacho não foi proferido por terem decorrido já o prazo de dois anos sobre a data do nascimento) que é “… intentar a acção de investigação não em nome próprio e no interesse público (em representação do Estado), mas em nome do menor registado e no interesse imediato deste…”(7), invocando as pertinentes normas legais do respectivo Estatuto do Ministério Público (Lei 47/86- arts. 3º e 4º).
Assim, nestas situações (do decurso do prazo estabelecido da al. b) do art. 1866º do CC) nada impediria que o Ministério Público (na qualidade de representante do menor) continuasse a investigar a filiação, mesmo depois do decurso daqueles dois anos sobre a data do nascimento, a fim de intentar, naquela veste, a acção de investigação da paternidade (8).
Um outro tanto já não sucede quando o Ministério Público, sem ser na sequência do proferimento de despacho de viabilidade proferido na averiguação oficiosa de paternidade, vem intentar a presente acção oficiosa de investigação da paternidade, uma vez que, nesta veste Estadual, já se encontra impedido, de continuar a promover esta acção oficiosa, podendo apenas, como se referiu, deduzir nestes casos a sua pretensão, invocando que o faz em nome do menor, no interesse deste, e como representante do mesmo.
Na verdade, o legislador é expresso e imperativo em considerar que, nos casos previstos no art. 1866º do CC, e no que aqui nos interessa, no caso da al. b), é legalmente inadmissível a instauração oficiosa (pelo Ministério Público na sua veste Estadual) da acção de investigação de paternidade (tal como também é inadmissível a prévia averiguação oficiosa da paternidade depois do decurso do aludido prazo de dois anos sobre a data de nascimento do menor- o que aliás motivou que tal procedimento de averiguação administrativo tenha sido arquivado, segundo se noticia nos autos) (9).
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber qual o enquadramento processual que deve merecer esta “ilegalidade”, como lhe chama o Recorrente- o que tem a sua importância porque, não sendo do conhecimento oficioso por parte do presente Tribunal, poder-se-ia ainda levantar a questão de saber se o Recorrente não estaria aqui a apresentar uma “questão nova” insusceptível de ser conhecida em sede de recurso.
Ora, conforme decorre do exposto, a questão que o Recorrente coloca, no fundo, contende com o pressuposto processual da legitimidade (art. 30º do CPC) no sentido de se dever ponderar se se mostra atribuída legitimidade ao Ministério Público para instaurar a presente acção, sem ter na sua “posse” o aludido despacho de viabilidade proferido na averiguação oficiosa da paternidade e sem dar obediência ao prazo de dois anos previsto na al. b) do art. 1866º do CC, excepção dilatória de ilegitimidade que, como é sabido, é do conhecimento oficioso pelo Tribunal.
Na verdade, a exigência da al. b) do art. 1866º do CC é um “… requisito negativo de que depende a legitimidade do Ministério Público para actuar em nome próprio.
Assim, se ele intentar a acção (oficiosa) de investigação de paternidade, em oposição ao disposto neste preceito, será julgado parte ilegítima. Naturalmente, e conforme já dissemos, o Ministério Público poderá contornar a questão da ilegitimidade, propondo a acção em nome do menor, deixando nesta acção de ter relevo o decurso do tempo… “(10) -o que o Ministério Público aqui não efectuou.
Por outro lado, não se pode deixar também de salientar que a obtenção de um despacho de viabilidade no âmbito da acção prévia de averiguação oficiosa da paternidade funciona aqui como “… outro requisito, desta vez positivo…”.
Assim, se o Ministério Público intenta a acção oficiosa e não alega que obteve aquele despacho de viabilidade, como sucedeu no caso concreto, “… será caso de indeferimento liminar, pois a ilegitimidade é manifesta… “(11).
Aqui chegados, tem que se concluir que efectivamente a instauração da presente acção oficiosa de investigação da paternidade pelo Ministério Público na sua veste Estadual constitui, para utilizar a expressão do Recorrente, “uma ilegalidade”, ilegalidade essa que se traduz, em termos mais rigorosos, no reconhecimento da existência de uma situação de ilegitimidade processual activa do Ministério Público para intentar a presente acção em nome do Estado, ilegitimidade essa que constitui uma excepção dilatória, susceptível de ser conhecida de uma forma oficiosa pelo Tribunal, e que conduz à absolvição de instância do Réu (arts. 30, 278º, n.º 1, alínea d), 576º, n.º 2, 577º, alínea e), 578º, todos do CPC).
Pelo exposto, resta-nos julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa do Ministério Público e, em consequência, julgando procedente o presente Recurso, determinar a absolvição de instância do Recorrente/ Réu.
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Uma última nota, para referir que, face à procedência desta excepção fica obviamente prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas pelo Recorrente como fundamento do Recurso.
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Sumário:

I. O despacho de inviabilidade proferido na acção de averiguação oficiosa de paternidade prevista nos arts. 1864º e ss. do CC, atenta a natureza administrativa e de jurisdição voluntária do próprio processo em que é proferido, não forma caso julgado, pelo que não impede a instauração da acção comum de investigação da paternidade.
II. No entanto, na falta do despacho (positivo) de viabilidade proferido na aludida acção, o Ministério Público não poderá intentar a acção oficiosa (isto é, em nome próprio e no interesse público) de investigação de paternidade.
III. Também nos casos previstos no art. 1866º do CC, e no que aqui nos interessa, no caso da al. b) (decurso do prazo de dois anos sobre o nascimento do menor), é legalmente inadmissível a instauração oficiosa (pelo Ministério Público na sua veste Estadual) da acção de investigação de paternidade.
III. Se o Ministério Público instaurar nestas circunstâncias acção oficiosa de investigação da paternidade deve o Réu ser absolvido de Instância por procedência da excepção dilatória de ilegitimidade activa, excepção que é do conhecimento oficioso pelo Tribunal.”
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III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente, e, em consequência, revogando-se a decisão recorrida, absolve-se o Réu de Instância por procedência da excepção dilatória de ilegitimidade activa do Ministério Público para instaurar a presente acção oficiosa de investigação de paternidade.
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Sem custas.
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Guimarães, 15 de Dezembro de 2016.
(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)
(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)
(Dra. Elisabete de Jesus Santos de Oliveira Valente)

(1) V., por todos, Tomé Ramião, in “OTM anotada e comentada”, pág. 238 e 239; v. também a decisão do Conflito proferida pelo Exmo. Vice-Presidente da RE de 6.12.12(António Manuel Ribeiro Cardoso), disponível in Dgsi.pt;
(2) Alberto dos Reis, «Comentário ao Código de Processo Civil», vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, in “ Noções Elementares de Processo Civil “, pág. 91, e Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 104;
(3) Antunes Varela/P. Lima, In “ CC anotado,”, vol. IV, pág. 71;
(4) Pereira Coelho, in “Curso de direito da família”- vol. II, T. I, pág. 192;
(5) Antunes Varela/P. Lima, In “ CC anotado,”, vol. IV, pág. 285;

(6) Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 146; Pereira Coelho, in “Curso de direito da família”- vol. II , T. I, pág. 211 e 212;
(7) Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 147;
(8) V. por ex. na Jurisprudência, o ac. do Stj de 11.1.2000 (citado por Abílio Neto; CC anotado, pág. 1485) onde se refere que :” I-O Ministério Público pode, em representação do menor, intentar a acção de investigação de paternidade; II- A essa acção comum de investigação da paternidade distinta da acção especial de investigação oficiosa não é aplicável o prazo de caducidade de dois anos previsto no art. 1866º, al.b) do CC”;
(9) Como refere Pereira Coelho in “Curso de direito da família”- vol. II , T. I, pág. 192 se acção oficiosa de investigação da paternidade é inviável pelo decurso do prazo, deixa de ter sentido a continuação da averiguação oficiosa da paternidade, pelo que “… quando se completam dois anos sobre o nascimento, a instrução que esteja a ser feita é arquivada…”; no mesmo sentido o ac. da RE de 30.1.2003 (relator: Oliveira Pires), in CJ, T. 1, pág. 240; cfr. no entanto, actualmente, o disposto no art. 62º do RGPTC já que como refere Tomé Ramião, in “Regime Geral do Processo Tutelar Cível anotado e comentado”, pág. 224: ”(o impedimento previsto no art. 1866º, al. b) do CC) é uma circunstância que “… não colide com a legitimidade do Ministério Público para continuar a investigar a filiação que não está estabelecida, e propor a respectiva acção, passando agora a ter cobertura legal para realizar as diligência de prova tidas por adequadas…” para, acrescentamos nós, eventualmente ponderar a instauração da acção comum de investigação da paternidade em nome do menor; cfr. também o ac. da RE já citado onde já se referia que o arquivamento do processo de averiguação da paternidade pelo decurso do prazo de dois anos sobre o nascimento “… não prejudica evidentemente o recurso pelo MP à acção de investigação da paternidade comum em representação do menor, podendo a eventual recolha de elementos tendentes à propositura da acção decorrer em processo administrativo (do Ministério Público) distinto da averiguação oficiosa que é arquivado…”- o que agora está plasmado na lei;
(10) Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 147;
(11) Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 148;