Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1490/19.3T8VRL.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA LISTA PROVISÓRIA DE CRÉDITOS
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No âmbito do PEAP, a lista provisória de créditos pode ser objeto da impugnação com os fundamentos referidos no art. 130º, nº 1, do CIRE, que se considera aplicável a este processo por força do disposto no nº 3, do art. 222º-A, do CIRE, uma vez que tal norma não é incompatível com a natureza do processo. Assim, a impugnação da lista provisória pode fundamentar-se na indevida inclusão ou exclusão de créditos, na incorreção do seu montante ou na qualificação do crédito.
II - Não havendo impugnação, a lista torna-se de imediato definitiva, nos termos do art. 222º-D, nº 4, do CIRE, e não pode ser alterada.
III - A existência de erro na lista definitiva não é matéria de conhecimento oficioso, ressalvando-se desta regra geral unicamente a possibilidade de correção oficiosa de um erro manifesto, ou seja, de um erro certo, claro, notório, patente e que resulte evidente para qualquer pessoa face aos elementos constantes dos autos, não carecendo de diligências, averiguações, produção de prova adicional ou elaboradas considerações jurídicas.
IV - Constitui questão nova a existência de erro na lista definitiva que nunca foi suscitada no tribunal recorrido e que não se encontra abrangida pela possibilidade de correção oficiosa posto que não ocorre no caso concreto uma situação de erro manifesto, estando assim vedada ao tribunal de recurso a possibilidade de sindicar e corrigir o invocado erro relativo à qualificação dos créditos como subordinados.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

P. J. veio apresentar requerimento inicial de processo especial para acordo de pagamento o qual, por despacho datado de 5 de setembro de 2019, foi admitido liminarmente tendo sido nomeado como administrador judicial provisório o Dr. L. N..

O Sr. administrador judicial provisório apresentou a lista provisória de credores, a qual não foi objeto de impugnação, tendo sido convertida em definitiva por despacho de 16.10.2019.

Nos termos da lista provisória apresentada em 3.10.2019, que veio a ser convertida em definitiva:

- o crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira é um crédito não subordinado, tem o valor de € 146,59, reporta-se a coima, e representa 0,2% dos créditos.
- o crédito da X é um crédito não subordinado, tem o valor de € 27 484,10, reporta-se a contrato de locação financeira mobiliária e contrato de mútuo e representa 32,4% dos créditos.
- o crédito de A. R. é um crédito subordinado, tem o valor de € 45 000, reporta-se a empréstimo e representa 53% dos créditos.
- o crédito de B. E. e G. R. é um crédito subordinado, tem o valor de € 12 276,79, reporta-se a compra e venda de imóvel e representa 14,5% dos créditos.

Foi apresentado plano de pagamentos em 10.1.2020, onde consta o crédito da X como crédito comum e os créditos de A. R. e B. E. e G. R. como créditos subordinados, referindo-se que os créditos comuns representam 32,4% e os créditos subordinados 67,5%.
No plano de pagamentos foi proposto um plano para os credores comuns e um plano para os credores subordinados.

Foi junta aos autos a ata de abertura de votos e votação do plano de recuperação, diligência realizada em 26.2.2020, da qual consta que votou a favor a credora A. R., votaram contra os credores X, Sucursal em Portugal e B. E. e G. R. e a Autoridade Tributária e Aduaneira não expressou a sua posição.
Perante o resultado desta votação, o Sr. Administrador Judicial considerou que o plano apresentado foi rejeitado pelos credores, nos termos do art. 222º-F, nº 3, al. b), do CIRE, uma vez que mais de metade dos votos favoráveis obtidos corresponde a créditos subordinados.

Em 4.3.2020 foi proferida decisão que considerou que “não obstante o resultado da votação ter atingido mais de metade dos votos a favor, considerando que tal votação favorável corresponde a créditos não subordinados, dos sentidos de voto elencados pelo Administrador Judicial Provisório conclui-se que o plano apresentado não foi aprovado pelos credores, o que se declara.
Tendo em consideração a não aprovação pelos credores do acordo de pagamento apresentado, não homologo o mesmo.”
*
O requerente P. J. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1 - Assente, pelo cotejo entre os preceitos que regem sobre o PER e o PEAP que o principal elemento que os distingue é o de que a ideia de recuperação do devedor está ausente do PEAP, basta atentarmos na respetiva tramitação subsequente para concluirmos que, no mais, as impressivas semelhanças devem levar a que, os demais princípios àquele processo especial aplicáveis, e cuja densificação a doutrina e a jurisprudência têm vindo a efetuar, encontrem acolhimento neste.
2 - O princípio da igualdade dos credores admite uma desigualdade de tratamento entre os credores, mas a mesma tem de se mostrar justificada por razões objetivas, e tem de obter a anuência dos credores visados por tal tratamento mais desfavorável, que se encontrem em situação idêntica à de outros credores que beneficiem de um acordo mais favorável.
3 – No caso dos autos a alegada diferenciação assim entendida na sentença recorrida, tem uma justificação objetiva, não se sustentando em qualquer base subjetiva;
4 – A decisão de não homologação viola o princípio da igualdade consagrado no citado artigo 194.º do CIRE, como tal deve ser homologado o plano proposto e votado favoravelmente pelos credores, que são comuns na sua totalidade.
5 – A sentença recorrida faz errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 194º, 215º, 216º e 222º F nº 2, 3 e 5, 17.º-D.4, 47.º e 48 .º do CIRE (normas jurídicas violadas).
6- Existiu um erro manifesto, de conhecimento oficioso, na apreciação da qualificação dos créditos de A. R. e B. E. e G. R., o que se requer seja declarado por este Tribunal, que tem como consequência a nulidade da sentença.
7- O crédito de B. E. e G. R. resulta de sentença transitada em julgado que condenou o Requerente no pagamento de € 11.500,00 a título de enriquecimento sem causa e não de qualquer compra e venda de nenhum imóvel como consta na lista definitiva de créditos.
8- O crédito de A. R. resulta de uma confissão de dívida junta aos autos que constitui título executivo.
9- O facto de não terem sido impugnados, nos termos do disposto no art. 17.º-D.4 do CIRE não faz precludir o direito para efeitos de votação e homologação do plano, como tem decidido a jurisprudência, quer dos Tribunais da Relação, quer do STJ.
10.- Os créditos de B. E. e G. R. e de A. R. foram erradamente qualificados e classificados como subordinados, sendo comuns, o que é de conhecimento oficioso e deve assim ser declarado, com a consequente homologação do plano dada a votação expressa, o que se requer.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se existe erro manifesto, de conhecimento oficioso, na qualificação como subordinados dos créditos de A. R. e B. E. e G. R., devendo tais créditos ser classificados como comuns;
II - na hipótese afirmativa, saber se o acordo de pagamento deve ser aprovado.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos a considerar para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

Como ponto prévio, e no que concerne à delimitação das questões que supra se elencaram como integrando o objeto do recurso, importa salientar que a decisão recorrida não procedeu à apreciação do acordo de pagamento apresentado do ponto de vista da sua substância ou mérito. Ao invés, a decisão limitou-se a considerar que o acordo não foi aprovado pelos credores e, por esse motivo e como consequência direta dessa não aprovação, não o homologou.
Sendo este o conteúdo da decisão, não tem pertinência discutir se o acordo proposto respeita ou não o princípio da igualdade dos credores, consagrado no art. 194º, do CIRE. Tal análise só se justificaria se a decisão tivesse incidido sobre o próprio conteúdo do acordo e tivesse recusado a sua homologação com base numa apreciação de mérito da concreta solução apresentada, o que, repete-se, não ocorreu.
Como tal, pese embora a referência que é feita nas alegações à violação do art. 194º, do CIRE, por parte da decisão recorrida, considera-se que esta matéria não integra uma questão a decidir no presente recurso.

Do mesmo modo, embora nas alegações também se refira a existência de nulidade da sentença, o recorrente alega que a mesma decorre da existência de um erro manifesto, cuja correção pretende obter.
Assim, verdadeiramente, o que o recorrente pretende é que se altere a qualificação dos créditos subordinados para créditos comuns e que, em consequência dessa alteração, se considere o acordo aprovado.
Esta situação nunca seria reconduzível a uma nulidade de sentença, cujas causas se encontram taxativamente elencadas no art. 615º, nº 1, als. a) a e), do CPC, sendo manifesto que o invocado pelo recorrente não se enquadra em nenhuma dessas alíneas. Aliás, o recorrente, pese embora refira a nulidade da sentença, nunca a enquadra em nenhuma norma.
Consequentemente, entende-se que o recorrente não pretende verdadeiramente suscitar a nulidade da decisão, à luz do art. 615º, do CPC, mas sim a existência do erro cuja correção requereu, motivo pelo qual não se incluiu a nulidade nas questões a apreciar.

Feitas estas considerações, passemos, então, à análise das questões objeto do presente recurso.
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I - Existência de erro manifesto, de conhecimento oficioso, na qualificação dos créditos como subordinados e alteração da sua classificação para créditos comuns

Alega o recorrente que existiu um erro manifesto na qualificação dos créditos de A. R. e B. E. e G. R. como créditos subordinados pois o crédito de B. E. e G. R. resulta de sentença transitada em julgado que condenou o Requerente no pagamento de € 11.500,00 a título de enriquecimento sem causa, e não de qualquer compra e venda de nenhum imóvel como consta na lista definitiva de créditos, e o crédito de A. R. resulta de uma confissão de dívida junta aos autos que constitui título executivo.
Entende que esses créditos devem, por isso, ser qualificados como comuns, alterando-se a qualificação que lhes foi atribuída, por se tratar de um erro que é de conhecimento oficioso sendo que o facto de não terem sido impugnados, nos termos do disposto no art. 17.º-D., nº 4, do CIRE, não faz precludir o direito para efeitos de votação e homologação do plano.

Vejamos, pois, se lhe assiste razão.

Para aferir se é possível proceder oficiosamente à correção do erro na qualificação dos créditos importa previamente traçar o regime jurídico do Processo Especial para Acordo de Pagamentos (PEAP) por forma a compreender a finalidade desse processo e os princípios que o orientam.
O PEAP foi criado pelo DL 79/2017, de 30/6, que entrou em vigor no dia 1 de julho de 2017, mediante o aditamento ao CIRE dos artigos 222º-A a 222º-J.
Este novo processo veio possibilitar ao devedor que não seja uma empresa o recurso a um processo idêntico ao Processo Especial de Revitalização (PER), regulado pelos artigos 17º-A a 17º-J, do CIRE, ficando este último reservado para as empresas.
O PEAP surge, assim, como um “PER específico” dos devedores que não sejam empresas sendo que a principal diferença quanto aos pressupostos de aplicação do regime do PER e do PEAP reside na qualidade dos devedores abrangidos, sendo o conceito nevrálgico de distinção entre o âmbito de aplicação dos dois regimes o de empresa (comercial ou não comercial) e não o de personalidade singular ou o de personalidade coletiva (cf. Ana Alves Leal e Cláudia Trindade, O processo especial para acordo de pagamento (PEAP): o novo regime pré́-insolvencial para devedores não empresários, in RDS IX (2017), 1).
Pese embora se trate de processos autónomos e distintos, existe uma tão grande similitude entre o PER e o PEAP que se justifica que se afirme que “o PEAP não é, na verdade, outra coisa senão “o PER dos não empresários”, configurando-se o seu regime como o regime do antigo PER deslocado para outra parte do Código” (cf. Acórdão do STJ, de 04.07.2019 in www.dgsi.pt).
Outro elemento distintivo essencial dos dois regimes é o facto de o PER também pressupor a recuperabilidade do devedor, diversamente do que sucede no regime do PEAP que não pretende alcançar tal desiderato, mas tão só obter um acordo de pagamento entre o devedor e os credores.
Excecionando estes elementos distintivos, os dois regimes são no essencial tão idênticos que as impressivas semelhanças entre ambos devem levar a que os princípios aplicáveis ao PER, e cuja densificação a doutrina e a jurisprudência têm vindo a efetuar, encontrem acolhimento no PEAP (cf. Acórdão da Relação de Évora, de 22.02.2018, in www.dgsi.pt).

O PEAP carateriza-se por ser tendencialmente extrajudicial, sobretudo na fase das negociações, “em que a intervenção do julgador é pontual em homenagem aos valores da celeridade, da informalidade e da eficácia” (Ac. da Relação do Porto, de 05.11.2018, in www.dgsi.pt).
Essa intervenção judicial ocorre em momentos cruciais, como seja a nomeação do administrador judicial provisório (art. 222.º-C, n.º 4 do CIRE), a decisão das impugnações da lista provisória de créditos apresentada pelo administrador judicial provisório (art. 222.º-D, n.º 3 do CIRE), a decisão sobre a computação, no cálculo das maiorias necessárias à aprovação do plano, de créditos impugnados, e a decisão de homologação ou não homologação do acordo de pagamento (art. 222.º-F, n.º 5 do CIRE). A intervenção judicial é, assim, necessária para garantir ao processo a sua natureza concursal, ou seja, a vinculatividade do acordo de pagamento face a todos os credores do devedor, incluindo aqueles que não participaram nas negociações ou não tiveram qualquer intervenção no processo (art. 222º-F, n.º 8 do CIRE) (cf. Acórdão da Relação de Guimarães, de 6.2.2020, in www.dgsi.pt).
No que concerne à tramitação, o PEAP inicia-se com a apresentação de requerimento subscrito pelo devedor e pelo menos um credor no qual conste a manifestação de vontade de encetarem negociações com vista à elaboração de um acordo de pagamento. Recebido este, o juiz nomeia um administrador judicial provisório (art. 222º-C).
Após esta nomeação, entra-se na fase de reclamação de créditos com a tramitação regulada no art. 222º-D.
Os credores dispõem de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho de nomeação do administrador judicial provisório (AJP) para reclamarem os seus créditos.
O AJP elabora uma lista provisória de créditos que remete ao tribunal e que é publicada no portal Citius.
Esta lista pode ser impugnada no prazo de 5 dias úteis.
Se houver impugnação cabe ao juiz apreciar a mesma.
Se a lista não for impugnada, converte-se de imediato em definitiva.
Embora nada seja dito em específico sobre qual a matéria objeto da impugnação, entendemos que a impugnação pode ter por fundamento a indevida inclusão ou exclusão de créditos, a incorreção do seu montante ou a qualificação do crédito, matérias estas referidas no art. 130º, do CIRE, que se considera ser aplicável à impugnação da lista provisória de créditos no PEAP, por força do disposto no nº 3, do art. 222º-A, do CIRE, uma vez que tal norma não é incompatível com a natureza deste processo.
Terminada a fase da impugnação dos créditos, inicia-se a fase das negociações regulada nos nºs 5 a 10 do art. 222º-D.
Concluídas as negociações, há que distinguir consoante no acordo de pagamento tenham intervindo todos os credores e seja obtida a sua aprovação unânime, ou tal situação não ocorra.
No primeiro caso, o acordo é remetido ao tribunal para apreciação judicial que pode resultar em homologação ou recusa (art. 222º-F, nº 1).
No segundo caso, o acordo é remetido ao tribunal e publicitado dispondo os credores do prazo de 10 dias para votarem o mesmo por escrito, sendo os votos remetidos ao AJP que os abrirá em conjunto com o devedor, elaborando documento com o resultado da votação (art. 222º-F, nºs 2 e 4).
Este resultado é remetido ao tribunal para apreciação judicial de homologação ou recusa.

Nos termos do art. 222º-F, nº 3, do CIRE:

Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o acordo de pagamento que:

a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou
b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.

Feitas estas considerações gerais sobre a tramitação do PEAP e traçado o campo de intervenção do juiz, conclui-se que o momento próprio para reagir relativamente a qualquer incorreção referente aos créditos é a fase de impugnação da lista provisória que decorre após a sua publicação no portal Citius. Uma vez ocorrida tal publicação, os credores, o devedor ou qualquer interessado têm o dever de analisar a lista de créditos no que respeita à identificação do credor, ao montante de crédito em capital e juros, data da sua constituição e do seu vencimento, natureza e proveniência do crédito, suas garantias, etc. e, verificando a existência de qualquer incorreção, têm o ónus de a impugnar. Se não o fizerem, a lista torna-se de imediato definitiva e não pode vir a ser alterada.
Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação do Porto, de 4.2.2014, (in www.dgsi.pt), proferido a propósito do PER mas com plena aplicabilidade ao PEAP dada a similitude de regimes, o qual considerou que “depois da publicação no dito Portal da lista provisória de créditos, ela não pode mais ser alterada, por quem quer que seja, (incluindo o Administrador Judicial Provisório, o tribunal, etc) a não ser pela publicação de uma outra lista, então definitiva, e no caso se alguma das eventuais impugnações judiciais terem tido procedência.
E, conforme se considerou no Acórdão da Relação de Lisboa, de 28-10-2014 (in www.dgsi.pt), também proferido relativamente ao PER mas com idêntica pertinência em sede de PEAP, “a impugnação de créditos tem, aliás, particular importância se atendermos a que os créditos - tal como figuram na lista - têm implicação na determinação da base de cálculo das maiorias de aprovação do acordo recuperatório. Por isso, no processo de revitalização, e muito em especial em sede de reclamação de créditos, elaboração da lista provisória e da apresentação das impugnações, não resta outra alternativa aos credores, senão a de, no seu próprio interesse, consultarem regularmente o portal, sob pena de perderem a oportunidade de agir ou de terem menos tempo para o fazer.”
Na verdade, e uma vez que no PEAP não há lugar a qualquer graduação de créditos, a função relevante da lista definitiva de credores é a de legitimar o credor a intervir nas negociações e compor o quórum deliberativo previsto no art. 222º-F, nºs 2 e 3, do CIRE. Por isso, têm os interessados que pretendam fazer valer tais direitos de reagir no momento próprio, impugnando a lista que contenha incorreções antes de a mesma se tornar definitiva.
Consideramos, assim, tal como decidido nos dois arestos acabados de citar, que, não tendo havido impugnação da lista provisória de créditos publicada no Citius, a mesma torna-se definitiva, nos termos do art. 222º-D, nº 4, do CIRE, e não pode ser alterada.
Em sentido análogo, considerou o Acórdão da Relação de Coimbra, de 4.4.2017, (in www.dgsi.pt) que “o “processo”, por definição, é exatamente isto: uma sequência ordenada de atos praticados em certos prazos, com vista à prolação de uma decisão, no mais curto lapso de tempo e com a maior economia de meios possíveis. O que chama à colação e exige autorresponsabilidade, racionalidade e preclusão” sobretudo “numa tramitação processual de cariz urgentíssimo como é do PER” e, acrescentamos nós, do PEAP. Consequentemente, este acórdão negou a possibilidade de a lista definitiva poder ser alterada, por aplicação analógica do artº 130º, nº3, com a alegação de existência de erro manifesto.

Pelo exposto, entendemos que, como regra, a lista de créditos definitiva não pode ser alterada.
E entendemos, ainda, que a existência de algum erro na lista definitiva não é matéria de conhecimento oficioso. Na verdade, não existe norma legal que imponha tal oficiosidade e, embora o art. 11º, do CIRE, consagre o princípio do inquisitório, o mesmo é limitado ao processo de insolvência, de embargos e incidente de qualificação da insolvência, não estando expressamente prevista a sua aplicação ao PEAP. Tal princípio também não é de considerar aplicável por força da remissão geral constante do nº 3, do art. 222º-A porquanto o mesmo não é compatível com a natureza do PEAP que se configura, essencialmente, como um processo de tendência extrajudicial e em que a primazia é a da vontade das partes.

Apesar de o erro na lista de créditos definitiva não ser matéria de conhecimento oficioso, admite-se a possibilidade de correção oficiosa de um erro manifesto, pois a justiça meramente formal não deve prevalecer, sem mais e cegamente, sobre a justiça material.
Porém, essa possibilidade de correção oficiosa estará sempre na dependência de o erro ser manifesto, ou seja, de ser certo, claro, notório, patente e de resultar evidente para qualquer pessoa face aos elementos constantes dos autos, não carecendo de diligências, averiguações, produção de prova adicional ou elaboradas considerações jurídicas. Imagine-se, por exemplo, que na lista de créditos constava que o valor era de 40 000 € e, no documento de confissão de dívida, constava que o valor era de € 45 000. Ou que o nome da credora continha um lapso. Este tipo de erros, por serem tão flagrantes e manifestos, sendo claramente detetáveis e resultantes da mera leitura dos documentos, têm de constituir exceção à enunciada regra geral de impossibilidade de alteração da lista definitiva pois parece-nos excessivamente formalista a solução contrária de não admitir a possibilidade desta correção oficiosa.
Porém, não é este tipo de erro que está em causa no caso em apreço.
Quanto ao crédito de B. E. e G. R. o recorrente afirma que o mesmo decorre de uma sentença transitada em julgado que condenou o recorrente no pagamento de € 11.500,00, a título de enriquecimento sem causa, e não de qualquer compra e venda de imóvel.
Porém, não se encontra junta aos autos a sentença em que alegadamente se baseia tal crédito, mas tão só partes do processo executivo instaurado com vista à cobrança do mesmo. Não há, assim, elementos juntos que permitam concluir que na qualificação deste crédito como subordinado ocorreu erro manifesto, com as características supra definidas.
Quanto ao crédito de A. R. encontra-se junta a confissão de dívida subscrita pelo devedor. Mas tal não afasta a possibilidade de o crédito ser considerado subordinado por força da existência de relações de afinidade entre o devedor e a credora, nos termos dos arts. 48º, al. a) e 49º, nº 1, als. a) e b), do CIRE. Nesse sentido aponta o referido pelos credores B. E. e G. R. que afirmam que a credora A. R. é irmã da esposa do devedor, sendo, por isso, cunhada deste, o que, a confirmar-se, tornaria o crédito subordinado por a credora ser pessoa especialmente relacionada com o devedor pessoa singular.
Assim, os elementos que existem nos autos não permitem concluir pela existência de um erro manifesto na qualificação dos créditos, passível de correção oficiosa. O erro ora invocado pelo recorrente poderá ou não existir, mas a sua apreciação, porque não é de conhecimento oficioso, tinha de ter sido suscitada em sede de impugnação da lista provisória de créditos, o que não sucedeu, tendo a lista sido convertida em definitiva.

A existência de erro na lista definitiva nunca foi suscitada no tribunal recorrido.
Constitui, assim, uma questão nova que está a ser colocada pela primeira vez em sede de recurso.

Como escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 119) “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 8.11.2018 (in www.dgsi.pt)por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido (...). A única exceção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objeto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objeto.

A apreciação de questão nova em sede de recurso só seria possível se se tratasse de matéria de conhecimento oficioso, o que, no caso, não sucede, como já supra se explanou.
Como tal, é vedado a este tribunal sindicar e alterar a qualificação da natureza dos créditos de subordinados para comuns.
Mantendo-se a qualificação dos créditos como subordinados, resulta evidente que o acordo de pagamento não foi aprovado pelos credores porque obteve um único voto favorável, correspondente ao da credora A. R., e, embora este crédito represente 53% do total dos créditos, como é um crédito subordinado, não permite obter o valor exigido pelo art. 222º-F, nº 3, do CIRE, de metade dos votos favoráveis corresponder a créditos não subordinados.
Assim, perante a não aprovação do acordo de pagamento pelos credores, é inteiramente justificada a recusa de homologação constante da decisão recorrida que não merece reparo e é de manter.

A alteração da decisão estaria sempre dependente da alteração da classificação dos créditos para créditos comuns, a qual não ocorreu. Por tal motivo fica prejudicada a apreciação da segunda questão recursória.

Conclui-se, pois, pela total improcedência do recurso, devendo o recorrente suportar as custas respetivas, nos termos do art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
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Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):

I - No âmbito do PEAP, a lista provisória de créditos pode ser objeto da impugnação com os fundamentos referidos no art. 130º, nº 1, do CIRE, que se considera aplicável a este processo por força do disposto no nº 3, do art. 222º-A, do CIRE, uma vez que tal norma não é incompatível com a natureza do processo. Assim, a impugnação da lista provisória pode fundamentar-se na indevida inclusão ou exclusão de créditos, na incorreção do seu montante ou na qualificação do crédito.
II - Não havendo impugnação, a lista torna-se de imediato definitiva, nos termos do art. 222º-D, nº 4, do CIRE, e não pode ser alterada.
III - A existência de erro na lista definitiva não é matéria de conhecimento oficioso, ressalvando-se desta regra geral unicamente a possibilidade de correção oficiosa de um erro manifesto, ou seja, de um erro certo, claro, notório, patente e que resulte evidente para qualquer pessoa face aos elementos constantes dos autos, não carecendo de diligências, averiguações, produção de prova adicional ou elaboradas considerações jurídicas.
IV - Constitui questão nova a existência de erro na lista definitiva que nunca foi suscitada no tribunal recorrido e que não se encontra abrangida pela possibilidade de correção oficiosa posto que não ocorre no caso concreto uma situação de erro manifesto, estando assim vedada ao tribunal de recurso a possibilidade de sindicar e corrigir o invocado erro relativo à qualificação dos créditos como subordinados.
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Guimarães, 9 de julho de 2020

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos