Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
334/15.0PBVCT-A.G1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
ESTUPEFACIENTE
DISTRIBUIÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Na situação em que foi determinado o arquivamento dos autos, por ter decorrido o prazo da suspensão provisória do processo, nos termos do artº 282º, nº 3, do CPP, é competente materialmente para determinar a destruição de amostra de produto estupefaciente guardada em cofre, dando cumprimento ao disposto no artº 62º, nº 6, do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, o Juiz de Instrução Criminal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 - RELATÓRIO
No processo acima identificado, tendo sido decretada a suspensão provisória do processo, após o decurso do prazo da suspensão e cumprimento da injunção imposta ao arguido, foi determinado o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 282º, nº. 3, do C.P.P., após o que, a Digna Magistrada do Ministério Público, por despacho proferido, em 29/04/2016, determinou que os autos fossem remetidos ao Mmº Juiz de Instrução, a fim de dar cumprimento ao disposto no artigo 62º, nº. 6, do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro, relativamente a fls. 31 e 32.
Nessa sequência, o Mmº Juiz de Instrução, proferiu despacho, em 23/05/2016, declarando perdido a favor do Estado o produto estupefaciente nos termos promovidos e declarando-se materialmente incompetente para determinação da destruição do mesmo produto, por entender que a competência, para o efeito, é do Ministério Público.
Inconformado com esta decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação de recurso as seguintes conclusões:
«1.º - - O processo penal português tem uma estrutura acusatória (integrada por um princípio de investigação) que assenta, entre o mais, na direcção do inquérito pelo Ministério Público, que é a autoridade judiciária competente, em fase de inquérito, para praticar todos os actos, com as restrições previstas na lei.
2.°- A questão essencial deste recurso prende-se com a determinação da autoridade judiciária competente para, arquivado o processo, na sequência de suspensão provisória do processo, ordenar a destruição da droga guardada em amostra cofre.
3.º - A situação está especialmente regulada pelo Decreto-Lei n.° 15/93 de 22 de Janeiro (lei specialis derogat lex generalis), nos n.°s 4 e 6, do artigo 62.°, sendo que, no n.º 4, o legislador estipulou a competência para a destruição da droga remanescente (além da amostra cofre), e o no n.° 6, a competência para destruição da amostra cofre.
4.º - Ora, para o remanescente, a lei estipula, no prazo de 5 dias, a autoridade judiciária competente ordena a destruição da droga remanescente;
5.°- Enquanto que para a amostra cofre, a lei preceitua, proferida decisão definitiva, o tribunal ordena a destruição da amostra guardada em cofre.
6.° - O arquivamento previsto no artigo 282°, n.° 3, do Código de Processo Penal, é uma decisão definitiva, considerando que o processo não poderá mais ser reaberto (note-se que a lei estatui decisão definitiva e não trânsito em julgado).
7.º - Relativamente à destruição da amostra cofre, o legislador ao invés de ter usado a expressão “autoridade judiciária competente”, como fez em relação ao n.°4 usou a expressão “tribunal” (ou seja, independentemente da fase processual em que se encontram os autos).
8.º - Compreendemos a opção legislativa, considerando que a amostra está vocacionada a ser guardada até à decisão definitiva dos autos, para prevenir qualquer eventualidade de confronto ou de reexame, pelo que, em função da situação normalmente pressuposta para a ocorrência de tal hipótese, só o tribunal a poder assumir.
9.º - Acresce que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
10.º - Assim, se o legislador referiu tribunal, não quis seguramente referir-se a autoridade judiciária competente, nem tampouco ao Ministério Público.
11.º - Deste modo, ao decidir como fez, andou mal o tribunal a quo, confundindo a previsão do n.° 4 com a do n.° 6, considerando que era também o Ministério Público a autoridade judiciária competente para determinar a destruição da amostra cofre,
12.°- o que, manifestamente, não tem acolhimento na letra da lei.
13.º - Pelo exposto, ao decidir como decidiu, tribunal a quo, violou o disposto nos artigos 51.°, n.° 2, 62.° do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro e o artigo 268.°, n.° 1, al. f), Código de Processo Penal.
Conclui, no sentido de que deverá o recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro, que ordene a destruição da amostra cofre.
O recurso foi regularmente admitido, após o que o Mmº. Juiz a quo fez uso do disposto no artigo 414º, nº 4, do Código de Processo Penal, sustentando a decisão recorrida, nos termos e pelos fundamentos que fez constar no despacho de fls. 29.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, a fls. 36 a 39, concluindo no sentido de que «(…) é da competência do Mº.Pº. ordenar a destruição da droga remanescente, na fase de inquérito que dirige – artº. 262º, nº. 1 do CPPenal, sendo também da sua competência ordenar a destruição da droga que constitui a amostra-cofre, um minus, em relação àquela, desde que a decisão fina do inquérito seja sua, mormente se determinou o arquivamento do mesmo, na sequência de uma decretada suspensão provisória do processo. Recurso, a julgar, por isso, sem provimento
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Decisão recorrida
O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Nos termos promovidos a fls. 69, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, declaro o produto estupefaciente aí mencionado perdido a favor do Estado.
No mais promovido (destruição) a competência para o promovido é da autoridade judiciária competente, conforme especificado pelo artigo 62º, nº. 4, do decreto-lei nº. 15/93 de 22-01, ou seja, o Ministério Público, não tendo os autos saído da fase de inquérito e conforme, de resto, dentro da própria orgânica do Ministério Público, a Circular nº. 3/2008 da PGR, sugere, pelo que ao abrigo do normativo legal supra citado e ainda dos artigos 17º e 32º, ambos do Código de Processo Penal, declaro-me materialmente incompetente para a determinação da promovida destruição de produto estupefaciente.
(…)»
2.2. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões do recurso, a única questão suscitada é a de saber, na situação em que foi determinado o arquivamento dos autos, por ter decorrido o prazo da suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no artigo 282º, nº. 3, do C.P.P., qual a entidade competente, se o Ministério Público, se o Juiz de Instrução Criminal, para ordenar a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, dando cumprimento ao disposto no artigo 62º, nº. 6, do Dec.-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro.

2.3. Do conhecimento do recurso
O Sr. Juiz de Instrução criminal tendo declarado perdido a favor do Estado o estupefaciente mencionado na promoção de fls. 69, na sequência do arquivamento dos autos determinado pelo Ministério Público, após o decurso do prazo da suspensão provisória do processo e cumprimento da injunção imposta ao arguido, convocando o disposto no artigo 62º, nº. 4, do Dec.-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro, declarou-se materialmente incompetente para determinar a destruição da amostra guardada em cofre, por entender que a competência para tanto é do Ministério Público.
Está, pois, em causa a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, após realização de exame laboratorial, pelo LPC.
Vejamos:
Sob a epígrafe “Exame e destruição das substânciasdispõe o artigo 62º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro:
«1 - As plantas, substâncias e preparações apreendidas são examinadas, por ordem da autoridade judiciária competente, no mais curto prazo de tempo possível.
2 - Após o exame laboratorial, o perito procede à recolha, identificação, pesagem, bruta e líquida, acondicionamento e selagem de uma amostra, no caso de a quantidade de droga o permitir, e do remanescente, se o houver.
3 - A amostra fica guardada em cofre do serviço que procede à investigação, até decisão final.
4 - No prazo de cinco dias após a junção do relatório do exame laboratorial, a autoridade judiciária competente ordena a destruição da droga remanescente, despacho que é cumprido em período não superior a 30 dias, ficando a droga, até à destruição, guardada em cofre-forte.
5 - A destruição da droga faz-se por inceneração, na presença de um magistrado, de um funcionário designado para o efeito, de um técnico de laboratório, lavrando-se o auto respectivo; numa mesma operação de incineração podem realizar-se destruições de droga apreendida em vários processos.
6 - Proferida decisão definitiva, o tribunal ordena a destruição da amostra guardada em cofre, o que se fará com observância do disposto no número anterior, sendo remetida cópia do auto respectivo.
(…)
Relativamente à destruição da droga remanescente, após a realização do exame laboratorial, a orientação defendida pela jurisprudência atualmente maioritária, atento o disposto no nº. 4 do citado artigo 62º que alude «à autoridade judiciária competente» e considerando a definição deste conceito estabelecida no artigo 1º, al. b) do C.P.P. - considera-se o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente a actos processuais que cabem na sua competência - vai no sentido de que a competência para ordenar tal destruição cabe, na fase de inquérito, ao Ministério Público e nas fases da instrução e do julgamento, ao Juiz que preside a cada uma dessas fases do processo. – neste sentido, vide, entre outros, Ac. da R.L. de 22/11/2011, proferido no proc. 792/10.9PGALM-AL1-5, Ac. da R.E. de 03/12/2015, proferido no proc. 500/13.2GBSLV-A.E1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.
Em relação à competência para ordenar a destruição da amostra guardada em cofre, a questão é muito controvertida, defendendo certo sector da jurisprudência que de harmonia com o disposto no nº. 6 do artigo 62º do Decreto-Lei nº. 15/93, essa competência é sempre do juiz, integrando a previsão do artigo 268º, al. f), do C.P.P., tendo em conta a expressão «tribunal» empregue naquela norma e é determinada uma vez proferida decisão definitiva (neste sentido, vide, entre outros, os referenciados Acórdãos da R.L. de 22/11/2011 e da R.E. de 03/12/2015); e sustentando outra corrente jurisprudencial, que a expressão «tribunal», empregue no enunciado nº. 6 do artigo 62º, deve merecer uma interpretação mais ampla, abrangendo o Ministério Público, que terá competência, para ordenar a destruição da amostra guardada em cofre, quando a decisão final proferida no processo, for sua, o que acontecerá na fase de inquérito, nomeadamente, se determinou o arquivamento dos autos, por ter decorrido o prazo da suspensão provisória do processo decretada.
Que dizer?
Salvo o devido respeito pela posição contrária, entendemos assistir razão, ao recorrente, perfilhando-se a orientação pelo mesmo defendida, no sentido de que a competência para ordenar a destruição da amostra guardada em cofre, é sempre do juiz, independentemente da fase processual em que tiver sido proferida a decisão final, nos autos.
Justificando:
Resulta do disposto no artigo 62.º n.º 3, do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro, que até decisão final do processo, fica sempre guardada a amostra-cofre da droga apreendida e submetida a exame laboratorial.
Tal como faz notar o Digno recorrente, no recurso, a amostra do estupefaciente está destinada a ser guardada até à decisão definitiva do processo, para prevenir qualquer eventualidade de necessidade de confronto ou de reexame, pelo que, em função da situação normalmente pressuposta para a ocorrência de tal hipótese, estando-se perante um elemento com relevância probatória, justifica-se que a competência para ordenar a destruição dessa amostra seja um ato jurisdicional, competindo ao juiz, independentemente, da fase processual, em que seja proferida a decisão definitiva.
Por outro lado, tal como salientam os defensores da orientação que acolhemos e é também frisado pelo Digno recorrente, não poderá ser inócua a diferença de terminologia utilizada pelo legislador, no nº. 4 e no nº. 6 do citado artigo 62º, para se referir a que ordena a destruição, respetivamente, da droga remanescente, após a realização do exame laboratorial e da amostra guardada em cofre. No nº. 4º o legislador refere-se a “autoridade judiciária competente” e no nº. 6 reporta-se ao “tribunal”.
Ora, não se compreenderia, a razão por que, o legislador utilizaria diferente terminologia, num e noutro dos números do mesmo preceito legal, se quisesse consagrar solução idêntica em ambos os casos, não podendo, neste âmbito, deixar de se ter presente que de harmonia com o disposto no nº. 3 do artigo 9º do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Neste quadro, encontrando-se o conceito de “autoridade judiciária competente”, como acima já o dissemos, definido no artigo 1º, al. b), do C.P.P, abrangendo «o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência», entendemos que ao utilizar a expressão “tribunal”, no nº. 6 do artigo 62º do Decreto-Lei nº. 15/93, referindo-se a «decisão definitiva» (com o sentido de que a decisão já não pode ser objeto de impugnação, pelo menos, por via ordinária), o legislador, pretende referir-se ao juiz.
Concluímos, assim, que, nos termos das disposições conjugadas do artigo 62º, nº. 6, do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 268º, nº. 1, al. e), do C.P.P., é sempre do juiz, a competência para ordenar a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, independentemente, de a decisão definitiva do processo, ter sido proferida, pelo Ministério Público, na fase de inquérito, o que acontecerá, nomeadamente, em caso de arquivamento dos autos, por decurso do prazo da suspensão provisória do processo e cumprimento pelo arguido das injunções impostas, nos termos do disposto no artigo 282º, nº. 3, do C.P.P.
Termos em que, merece provimento o recurso interposto pelo Ministério Público na primeira instância.

3 - DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público na primeira instância e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene a destruição da amostra guardada em cofre, do estupefaciente apreendido, nos termos do disposto no artigo 62º, nº. 6, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

Sem custas, por não serem devidas.

Guimarães, 20 de fevereiro de 2017