Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
41/21.4YRGMR
Relator: SANDRA MELO
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE LITÍGIOS DE CONSUMO
REGIME DA ARBITRAGEM POTESTATIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A Lei n.º 144/2015, ao transpor a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, não veio excluir do âmbito da arbitragem necessária os litígios que já haviam sido abrangidos pela Lei dos serviços essenciais, por não ter sido esse o seu escopo.
2- Assim, estão submetidas ao regime da arbitragem potestativa as relações dos consumidores com as entidades que prestem serviços aos consumidores, enquanto tais, no âmbito da atividade de prestação de um serviço público essencial, mesmo que a responsabilização em causa seja pré-contratual ou para-contratual.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Identificação do processo:
Autora: X – Distribuição de Eletricidade S.A (anteriormente designada Y Distribuição – Energia, S.A.)
Réu: C. M.

- Ação de anulação de sentença arbitral-

I. Relatório

A Autora pediu que fosse anulada a sentença arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do …/Tribunal Arbitral, cuja cópia juntou, invocando, em súmula, que:
-- esta sentença pronunciou-se sobre um litígio não abrangido pelo artigo 15.º da Lei 23/96 de 26 de julho, por versar sobre contrato de fornecimento de painéis solares que não se enquadra em qualquer fornecimento de serviço público essencial, ao qual a autora é alheia, pelo que é anulável nos termos do artigo 46.º n.º 3 al. a) subalínea iii) da Lei de Arbitragem Voluntária;
-- não está em causa um litígio submetido a arbitragem necessária, pelo que o mesmo só poderia ser decidido por convenção arbitral entre as partes, o que também não aconteceu, fundamentando por isso a anulação nos termos artigo 46.º n.º 3 al. a) subalínea i) da LAV;
-- Porque a sentença alterou o pedido formulado pelo reclamante e não foi garantida a observância do contraditório, exigida pelo artigo 30.º n.º 1 al. c) da LAV, foram conhecidas questões de que se não podia tomar conhecimento e a Autora foi condenada em objeto diverso do pedido, o que conduz à anulação de sentença nos termos do artigo 46.º n.º 3 al. a) subalíneas ii), iii) e v) da LAV);
-- porque a sentença não se pronunciou quanto ao contrato de fornecimento de energia, o estado de conservação e manutenção da rede pública de distribuição, nem se foram cumpridos os deveres de assegurar a continuidade da prestação desse serviço com qualidade e em condições de segurança para pessoas e bens, ocorreu falta de pronúncia sobre todas as questões colocadas pelas partes,
-- porque a sentença analisou a falta de causa de força maior relacionada com interrupção de fornecimento de energia elétrica, ocorreu excesso de pronúncia;
-- porque as omissões e excessos de pronúncia prolatados na sentença, acabam por criar uma oposição entre os fundamentos e a decisão, esta é ambígua, obscura e ininteligível, o que conduz, à nulidade de sentença nos termos do artigo 615.º n.º 1 alíneas c) e d) do Código de Processo Civil, sendo igualmente um fundamento para anulação desta decisão arbitral nos termos artigo 46.º n.º 3 alínea. a) subalínea v) da Lei de arbitragem voluntária.
Termina afirmando que dos argumentos expostos resulta que a decisão coloca em causa a ordem pública do Estado Português, nos termos do artigo 46.º n.º 1 al. b) subalínea ii) da LAV.
O Réu contestou, invocando, em súmula, que o requerido, é uma pessoa singular (consumidor) que contratou com a Y Comercial, que lhe fornece energia elétrica, na sua habitação e com quem, adicionalmente, celebrou um contrato de fornecimento de painéis solares; pelo que se trata de um litígio de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais; o processo iniciou-se com a reclamação a uma fatura de eletricidade; para o requerido, trata-se da Y, não distinguindo, nem tendo que distinguir se se trata de Y Comercial, se de Y Distribuição; o tribunal tinha competência para decidir e a sentença não enferma de qualquer vício que possa levar à sua anulação, nos termos do artigo 46º, da Lei nº 63/2011, de 14/12.
A reclamação que deu origem à sentença cuja anulação é peticionada foi inicialmente apresentada contra a Y Comercial-Comercialização de Energia, S.A., pedindo que esta reconhecesse que o reclamante não é devedor da quantia de 105,69Euros + 24,31Euros (23% IVA), o que totaliza o valor de 130,00 euros, porquanto, em súmula, este corresponde ao valor da reparação dos painéis solares que lhe esta lhe forneceu no âmbito do contrato para fornecimento do produto Soluções de Energia Solar que celebrou com esta e que sofreram avaria não imputável ao reclamante.
O reclamante procedeu ainda a aditamento à reclamação inicial, peticionando que haja a intervenção, como parte, de Y, Distribuição (operador da rede de distribuição).
Esta contestou, arguindo, em súmula, a sua ilegitimidade, afirmando que a onda de tensão servida aos clientes na área da instalação do reclamante se encontra dentro dos padrões de qualidade de serviços exigível.
Veio a ser proferida sentença, cuja anulação é pretendida, a qual julgou totalmente improcedentes as exceções de ilegitimidade passiva, condenou a ali Ré "Y Distribuição" a pagar, no prazo máximo de 10 (dez) dias, ao ali demandante, a quantia de €130,00 (cento e trinta euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais causados nos painéis solares e bem assim declarou que o demandante é devedor da quantia de €130,00 à demandada "Y Comercial" por conta dos serviços de assistência técnica de reparação dos danos causados nos painéis solares pela demandada "Y Distribuição".

II. Questões a decidir

Importa decidir se a sentença proferida deve ser anulada e em caso afirmativo as suas consequências, devendo verificar-se se:
1-- o litígio está sujeito a arbitragem potestativa ou se foram sido conhecidas questões que ultrapassam o âmbito desta,
2- se o tribunal conheceu questões de que não podia tomar conhecimento;
3- se, no processo, ocorreu violação, de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º (igualdade e contraditório), com influência decisiva na resolução do litígio ou se o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido
4- se o tribunal não se pronunciou sobre questões que devia apreciar;
5- se o conteúdo da sentença ofendeu os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

III. Fundamentação de Facto

A ação vem com a seguinte matéria de facto provada:
“1. O demandante e a demandada "Y Comercial" celebraram em 06-09-2019um contrato de fornecimento do produto "Soluções de Energia Solar" com o número ………66;
2. Este contrato incluía o fornecimento pela demandada em causa de um conjunto de painéis solares ao demandante;
3. As condições gerais do contrato consagram um período de garantia contratual de dez anos para os módulos fotovoltaicos e para os microinversores no caso de defeitos de fabrico;
4. As condições gerais do contrato consagram a exclusão da garantia contratual para anomalias que não resultem de defeitos de fabrico e erros de conceção, desenho e instalação;
5. Os painéis solares do demandante foram danificados em dois dos seus microinversores;
6. A demandada "Y Comercial" prestou assistência aos painéis solares, substitui os microinversores e debitou ao demandante a quantia de €130,00 na fatura relativa ao fornecimento de energia elétrica emitida em 20-04-2020;
7. O demandante não pagou esta quantia à demandada "Y Comercial";
8. Os painéis solares encontram-se instalados na cobertura da habitação do demandante;
9. Verificam-se variações de tensão na energia elétrica fornecida à habitação do demandante;
10. Os danos nos microinversores dos painéis solares foram causados pelas variações na energia elétrica fornecida à habitação do demandante;
11. A demandada "Y Distribuição" recusou assumir a responsabilidade pelos danos causados e, consequentemente, pela sua indemnização.”
Mais ali se definiu que “Não existem outros factos, provados ou não provados, com relevância para esta sentença arbitral.”

IV. Fundamentação de Direito

Está em causa a impugnação de uma sentença arbitral proferida no âmbito de uma arbitragem potestativa, tendo sido pedida a sua anulação.
O tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões decididas na arbitragem: tais questões, se alguma das partes o pretender, devem ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas, por força do nº 9 do artigo 46º da Lei da arbitragem voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro).
Também os fundamentos da anulação das sentenças arbitrais estão taxativamente estabelecidos, no nº 3 do artigo 46º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro.

Salientam-se aqueles a que se refere o Autor, previstos na alínea a) deste preceito:
-- ii) ter ocorrido violação, no processo, mas com influência decisiva na resolução do litígio, de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º (igualdade e contraditório);
-- iii) A sentença ter-se pronunciado sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou conter decisões que ultrapassam o âmbito desta;
-- v) O tribunal arbitral ter condenado em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, de questões de que não podia tomar conhecimento ou não se ter pronunciado sobre questões que devia apreciar;
Também a alínea b) deste número enuncia casos em que a sentença deve ser anulada, desta feita, oficiosamente: i) O objeto do litígio não ser suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português e o conteúdo da sentença ofender os princípios da ordem pública internacional do Estado português, referindo também o Autor a violação desses princípios.
1—o âmbito da arbitragem potestativa
Em primeiro lugar a Autora defende que o litígio em apreço não se encontra submetido à arbitragem potestativa (ou necessária, na terminologia tradicional), por força da imposição estabelecida na Lei dos Serviços Públicos Essenciais, por não ter existido a celebração de um contrato direto entre o Réu e a Autora, o que determinaria a incompetência do tribunal arbitral.
Vejamos se tem razão.
Com a instituição de uma forma de resolução alternativa de litígios de consumo pretendeu-se proporcionar aos consumidores o acesso à justiça por um processo extrajudicial que se projetou simples, rápido e pouco oneroso.
Em 2011, com a alteração do artigo 15º da Lei 23/96, de 26 de julho (Lei dos serviços públicos), através da Lei 6/2011, de 10 de março, decidiu-se que todos os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais passariam a estar sujeitos a arbitragem, quando os utentes que sejam pessoas singulares optem expressamente nesse sentido, podendo submete-los à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
Esta norma dispõe que “os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.”
Tem sido entendido que “não é fundamental que exista um contrato entre as partes, para que o art. 15.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96 seja aplicável, podendo o litígio de consumo resultar de uma relação pré-contratual ou até mesmo não contratual”. Neste sentido cf Joana Campos Carvalho e Jorge Morais Carvalho, “Problemas Jurídicos da Arbitragem e da Mediação de Consumo”, in RED – Revista Electrónica de Direito, n.º 1, 2016, p. 11, que também entendem que se deve recorrer à Lei de defesa do consumidor para integrar o conceito de consumidor também neste campo, com enfase no artigo 2º nº 1 da Lei 24/96.
Ora, como é já doutrina dominante (cf. Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, p. 29) são quatro os elementos que este normativo exige para se encontrar a relação de consumo: o elemento subjetivo, elemento objetivo (“que tenham sido fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos bens), elemento relacional (no âmbito do exercício de uma atividade profissional) e teleológico (com uma finalidade essencialmente pessoal por parte de quem recebe os bens ou serviços).
A Lei 144/2005, reguladora dos “mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo”, define consumidor no artigo 3.º, alínea d) (na redação dada pela Lei n.º 14/2019, de 12/02), como “uma pessoa singular quando atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”, resultando da alínea e) que o profissional, neste diploma designado “fornecedor de bens ou prestador de serviços”, é “uma pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, quando atue, nomeadamente por intermédio de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, com fins que se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
Ora, o Réu é pessoa singular e submeteu o litígio à apreciação de um tribunal arbitral de um centro de arbitragem de conflito de consumo legalmente autorizado. O mesmo é consumidor, tendo-lhe sido prestados bens e serviços, quer pela Autora, como distribuidora, quer pela comercializadora, exercendo cada uma delas com carácter profissional uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios.
É certo que não foi diretamente celebrado um contrato entre a Autora e o Réu: a relação contratual entre ambos resulta, por via do regime legal, como veremos, como que introduzida pela celebração do contrato com o comercializador.
Como se diz na obra que citámos: “Assim, por exemplo, no caso do fornecimento de energia elétrica, o art. 15.º-1 da Lei n.º 23/96 permite ao consumidor resolver por via arbitral os litígios que tenha quer com o comercializador (com quem celebrou um contrato) quer com o distribuidor (com quem não celebrou qualquer contrato, mas com quem tem uma relação reconhecida como tal por via legal e regulamentar).”
Com efeito, “sendo um bem essencial, a energia elétrica está sujeita a obrigações de serviço público, da responsabilidade de todos os intervenientes do setor elétrico, de que se destacam a segurança, a regularidade e a qualidade do seu abastecimento”.
A este propósito é expresso o artigo 10º nº1 do Regulamento de Qualidade de Serviço do Setor Elétrico (Regulamento n.º 455/2013, de 30 de outubro de 2013, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos), que estabelece que “os operadores das redes são responsáveis pela qualidade de serviço técnica, perante os clientes ligados às redes independentemente do comercializador com quem o cliente contratou o fornecimento”.
Ideia espelhada também no Regulamento 406/2021, que foi ainda mais longe, fixando a partilha de responsabilidades e um direito de regresso, sem diferenciar a responsabilidade extracontratual (mas, obviamente, admitindo-a): “1 - Os comercializadores respondem pelos diversos aspetos da qualidade de serviço junto dos clientes com quem celebrem um contrato de fornecimento, sem prejuízo da responsabilidade dos operadores de redes ou das infraestruturas com quem estabeleceram contratos de uso das redes e do direito de regresso sobre estes.
2 - Os comercializadores devem informar os seus clientes dos direitos e das obrigações que lhes são conferidos pelo presente regulamento, bem como dos níveis de qualidade de serviço contratados, nos termos previstos no RRC.
3 - O operador de rede responde pelo incumprimento de padrões, designadamente individuais, relativos a instalações ligadas às suas redes, sem prejuízo da responsabilidade de outros operadores de redes ou infraestruturas e do direito de regresso sobre estes.”
Ao transpor a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, a Lei n.º 144/2015 veio estabelecer que esta é aplicável aos procedimentos de resolução extrajudicial de litígios nacionais e transfronteiriços promovidos por uma entidade de resolução alternativa de litígios (RAL), quando os mesmos sejam iniciados por um consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, celebrados entre fornecedor de bens ou prestador de serviços estabelecidos e consumidores residentes em Portugal e na União Europeia. Este diploma não veio de forma alguma excluir do âmbito da arbitragem necessária o que já havia sido incluído pela Lei dos serviços essenciais, tanto mais que não foi esse o seu objeto.
Veio, sim, estabelecer “os princípios e as regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução alternativa de litígios de consumo e o enquadramento jurídico das entidades de resolução extrajudicial de litígios de consumo em Portugal que funcionam em rede”: esta é a forma como a mesma define no seu objeto, especificado no artigo 1º. Toda a sua interpretação tem que ter em conta este escopo normativo, não sendo, pois, por aí que se pode limitar o âmbito dos conflitos em sede de serviços essenciais que estão sujeitos à arbitragem potestativa.
E assim, a análise do artigo 1º da Lei destinada a proteger o utente de serviços públicos essenciais não vai no sentido da restrição colocada pelo autor: a lei refere “Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2 (no caso o serviço de fornecimento de energia elétrica), independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.”
É a especialidade deste serviço público (na linguagem utilizada pela lei) desenhado no regime do setor elétrico, mesmo posteriormente à sua liberalização, que determina que os litígios de consumo no seu âmbito, não só com a comercialização, mas também com a distribuição, estejam sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
Não se pode, pois, afirmar que só o titular do contrato de prestação de serviços é que se encontra submetido à arbitragem potestativa imposta pela Lei dos Serviços Públicos Essenciais e não já os operadores da rede que em momento anterior ao comercializador integraram tal prestação, numa relação comercial que envolve a intervenção de várias entidades, complementares e cuja organização faz parte do Sistema Elétrico Nacional, mantendo-se a responsabilidade de cada uma perante o consumidor no âmbito da sua atividade (aliás, em conformidade com as missivas enviadas ao Réu pela Autora, juntas com a petição inicial, em que o denomina “caro cliente”).
Acresce que “III - A Lei dos Serviços Públicos Essenciais não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador dos mesmos, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento.” como se escreveu no acórdão nº 204/18.0YRPRT em 07/01/2019, na sequência do que já havia sido afirmado no acórdão 87/15.1YRCBR em 11/17/2015 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano).
A reclamação em causa versa, além do mais, sobre as consequências, não só, das “avarias no fornecimento do serviço”, como “dos picos de corrente”, pretendendo que se reconheça que o Reclamante não é devedor da quantia de 130,00 €, centrando-se no âmbito do serviço de fornecimento de energia elétrica quanto à autora e quanto à comercializadora e vendedora dos bens também no âmbito das simples relações de consumo, cujo valor admite o recurso, pelo consumidor, ao tribunal arbitral necessário.
O litígio engloba a prestação de serviço público essencial (embora seja invocado o fornecimento de um painel solar, invoca a relação fundamental relacionada com a forma como foi prestado o serviço público de fornecimento de energia elétrica). Esse fornecimento insere-se na relação jurídica, mais vasta, de prestação do serviço (público e essencial) de fornecimento de energia elétrica.
Assim, o tribunal arbitral tinha competência para decidir sobre os litígios relacionado com o serviço público de fornecimento de eletricidade em que se enquadra todo este litígio e nele também a Autora tem intervenção, enquanto Operador de Rede de Distribuição, como parte da rede fornecedora.
2- se o tribunal ou conheceu questões de que não podia tomar conhecimento ou não se pronunciou sobre questões que devia apreciar;
Entende ainda a Autora que não foi formulado qualquer pedido contra si, pelo que nunca poderia ter sido condenada no pagamento das quantias necessárias para efetuar a reparação do equipamento, o que consubstanciaria o conhecimento de questões que não podiam ser conhecidas.
Ora, no aditamento efetuado pelo ora Réu, este escreveu: “Apesar da reclamação ter sido iniciada apenas contra a Reclamada Y Comercial, SA, a mesma levanta a questão que a referida queixa só pode ser do conhecimento e responsabilidade da Y Distribuição (operador de Rede de Distribuição). Assim, verifica-se essencial à apreciação da reclamação e dos pedidos que haja a intervenção, como parte, de uma segunda entidade reclamada, expressamente, a entidade operadora de rede de distribuição da eletricidade”.
Podia afirmar-se que não é totalmente isento de dúvidas se o ora Réu, por esta via, adicionou a ora Autora também como sujeito passivo do seu pedido.
No entanto, se dúvidas houvesse, a Autora não só não as apresentou na contestação que juntou após a sua citação, como confirmou o entendimento que passava a ser objeto do pedido, pedindo a sua absolvição da instância, afirmando ser “parte ilegítima do pedido”, por não se dedicar à compra e venda de painéis solares (artigo 4º), ou, assim não ocorrendo, pedindo que que a reclamação seja julgada improcedente por falta de prova e fundamento para a condenação da Autora.
A interpretação das peças apresentadas pelos reclamantes junto das entidades que promovem através da mediação, conciliação e arbitragem a resolução do conflito de consumo tem que ser interpretada tendo em conta os seus autores, de forma hábil, tendo-se em conta todas as circunstâncias inerentes a essa apresentação: são, em regra, os próprios consumidores, não técnicos em direito, que as redigem.
Há que atender que para a interpretação desta peça processual, são aplicáveis os princípios mencionados no artigo 236º do Código Civil (ex vi artigo 295.º do mesmo diploma), assim como, por afloramento de normas gerais de interpretação a constante do artigo 9º do mesmo diploma.
Ambos remetem para a vontade real do emissor da declaração, caso esta esteja consentida pela letra da declaração e seja percetível para o seu destinatário.
Da mesma forma, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa impõe o afastamento da aplicação do direito de uma forma cega e puramente formalista.
O artigo 186º nº 3 do Código de Processo Civil também realça a importância, na interpretação da petição inicial, que se deve dar à forma como o Réu a interpreta, como sinal da intenção legal de viabilizar a petição inicial quando tal ainda se mostra possível e a adequação da sua interpretação de forma hábil, desde que alicerçada ainda no seu teor e conduza a resultados a que a contraparte podia aceder e acedeu, requisito este também imposto pelo princípio do contraditório, tanto mais que decorre da contestação que a mesma interpretou o aditamento no mesmo sentido que foi acolhido pela sentença.
Desta forma, não foi alterado nem o pedido formulado pelo aqui Réu (condenação da Autora nas consequências dos picos de energia, isentando-o do pagamento das reparações), nem tão pouco a sua causa de pedir, tudo se situando no círculo da responsabilidade civil inerente à atividade exercida pela Autora no âmbito da sua prestação no serviço essencial de fornecimento de eletricidade, submetido, como vimos, por força do contrato celebrado com outro operador dessa rede, à arbitragem potestativa.
Não foi conhecida qualquer questão que não pudesse ser conhecida, nem condenada a Autora em objeto diferente do pedido.
3- se, no processo, ocorreu violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º (igualdade e contraditório), com influência decisiva na resolução do litígio ou se o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido
Assim, não foi, por essa via, no processo, violado o princípio do contraditório (visto que na sentença não ocorreu qualquer alteração do pedido), nem decididas questões de que a sentença não podia tomar conhecimento; tão pouco ocorreu condenação em objeto diverso do pedido.
4- se o tribunal não se pronunciou sobre questões que devia apreciar;
Entende ainda a Autora que não foram apreciadas todas as questões colocadas pelas partes, remetendo para o facto da mesma não se ter debruçado especificamente sobre o contrato de fornecimento de energia, estado de conservação e manutenção da rede pública de distribuição, cumprimento dos padrões de qualidade de serviço exigidos pelo Regulamento de Qualidade de Serviço.
Ora, sendo certo que na sentença se devem conhecer todas as questões que as partes tenham submetido à apreciação do tribunal, deve ter-se em atenção que tais questões são os assuntos de fundo, que integram a matéria decisória, como o pedido e as exceções, não cada um dos factos ou argumentos invocados pelas partes.
As questões, cuja omissão de pronúncia determina a nulidade da sentença, são aquelas a que se refere o artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil e não são os simples argumentos, razões ou elementos parciais trazidos à liça: identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir e com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
É, pois, pacífico que não há que confundir as “questões a conhecer”, com argumentos ou factos: aquelas são as mencionadas no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, relacionadas com as pretensões das partes, não o conjunto de alicerces (e cada um deles) em que as partes fundam tais “questões”, traduzidas nos factos (preteridos ou mal considerados) ou na aplicação do direito (normas ou princípios que não terão sido atendidas ou terão sido erroneamente empregados).
Há que saber distinguir as causas de nulidade da sentença dos erros de julgamento, sendo que é neste último campo que caem a deficiente ou insuficiente seleção dos factos provados ou não provados, a imperfeita valoração dos meios de prova ou mesmo a existência de desacertada aplicação do direito ou raciocínios menos perfeitos. Todos estes últimos não cabem no âmbito das causas de anulação da sentença, pelo que não há que a analisar sobre qualquer um destes primas.
Deste modo, o facto do tribunal arbitral não se ter eventualmente pronunciado sobre todos os factos invocados pela Autora para se defender não permite que se classifique a decisão arbitral como nula, por omissão de pronúncia. Aliás, o tribunal conheceu das causas que, no seu entender, poderiam levar ao afastamento da responsabilidade da Autora e rejeitou-as, conhecendo, assim, a questão que a Autora havia levantado, do afastamento da sua responsabilidade.
Aliás, como decorre do artigo 46º, nºs 3 e 9 da Lei 63/2011, na ação especial de anulação de decisão arbitral não é possível reapreciar a prova produzida ou conhecer de erro de julgamento e na aplicação do direito, sendo que todos ou qualquer um dos múltiplos vícios na aplicação do mesmo imputadas pela Autora à sentença arbitral não a fazem incompreensível, dúbia, omissiva ou excessiva ou criam oposição entre os fundamentos e a decisão.
Por outro lado, como se viu, não encontrámos nenhum excesso, nem omissão de pronúncia na sentença e não se vê, nem tal é sequer aflorado pela Autora, qualquer dificuldade de interpretação no seu teor.
5- se o conteúdo da sentença ofendeu os princípios da ordem pública internacional do Estado português
Conclui a Autora que todos os vícios que aponta à sentença conduzem a que se considere que a decisão em causa põe em causa “a ordem pública do Estado Português”.
Ora, desde logo faleceria este argumento porque, como se acabou de concluir, se não verificam tais vícios imputados à sentença.
Por outro lado, há que distinguir a ordem pública interna (como o conjunto de normas imperativas do nosso ordenamento consideradas essenciais ao interesse e ordem pública) da “ordem pública internacional”, cuja violação é fundamento da anulação de sentença arbitral e se reporta a situações em que há conflito com lei estrangeira normalmente competente para regular a relação jurídica, que aqui não tem qualquer aplicação.
Também por aqui falece fundamento para anular a sentença.

V. Decisão:

Por todo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente ação de anulação de sentença arbitral que, em consequência, se mantém.
Condena-se a Autora nas custas da ação (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Guimarães, 23 de setembro de 2021

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves