Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
544/13.4TBGMR.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: ENTREGA DE RENDIMENTOS AO FIDUCIÁRIO
MOMENTO DA ENTREGA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA DA EXONERAÇÃO
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
DEVERES DE ENTREGA DE RENDIMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A entrega dos rendimentos ao fiduciário que excedem o rendimento indisponível deve ser feita de imediato, ou seja, mensalmente, logo após o seu recebimento, e não num momento posterior, nomeadamente no final da cessão, dando-se ao devedor uma última oportunidade para liquidar valores em dívida que acumulou ao longo dos 5 anos que durou a cessão.

2. O parecer do fiduciário, no sentido de que deveria ser concedido ao devedor a exoneração do passivo restante, não vincula o juiz, que tem o poder decisório de recusar a concessão.

3. Na falta de qualquer justificação do devedor para a falta de cumprimento do seu dever de entregar ao fiduciário a quantia excedente ao rendimento indisponível, concluiu o tribunal recorrido e bem, por presunção judicial, que houve da sua parte “grave negligência” no incumprimento, uma vez que tinha meios para o fazer.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas
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Na sequência da sua apresentação à insolvência, por sentença datada de 29.04.2013, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de J. M.. Ao apresentar-se à insolvência o insolvente requereu ainda a exoneração do passivo restante.

Por despacho de 18.09.2013, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado o rendimento indisponível do requerente, o qual, após interposto recurso para esta Relação, foi fixado em € 650,00 /mês (impondo-se ao insolvente a entrega ao fiduciário das quantias por ele auferidas mensalmente que excedessem aquele valor).
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O Fiduciário remeteu aos autos os relatórios a que alude o art. 61.º nº 1 do CIRE (aplicável ex vi do art. 240.º/2 CIRE).
Decorridos 5 anos após o encerramento do processo de insolvência, e a fim de proferir decisão sobre a exoneração, foram ouvidos o insolvente, o fiduciário e os credores reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244.º/1 CIRE.
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Foi então proferida nos autos a seguinte decisão:

“…Terminado o período de cessão, o juiz deve recusar a exoneração quando (art. 243.º/1 CIRE ex vi art. 244.º/2 CIRE), (…) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência, violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência (…).
Uma das obrigações previstas no referido art. 239.º do CIRE é precisamente a de entrega ao fiduciário de parte dos rendimentos objecto de cessão, quando por si (insolvente) recebida (cfr. art. 239.º/4/al. c) CIRE).
Pois bem.
Dos factos dados como provados resulta inequívoco que essa obrigação não foi integralmente cumprida.

Com efeito, tendo-se o período de cessão iniciado em Setembro de 2013, constata-se que durante a integralidade do período de cessão o insolvente auferiu quantias superiores a € 650/mês (valor do rendimento indisponível fixado pelo Tribunal da Relação de Guimarães) em Dezembro de 2013 e em Agosto e Dezembro dos anos subsequentes, em virtude do pagamento dos subsídios de férias e de natal.

Contudo, apenas em Março de 2018 efectuou uma entrega à fidúcia, no valor de €300,29 e sem que a mesma ascendesse ao valor total que, até tal data, deveria ter sido entregue.

Com efeito, por conta do mês de Dezembro de 2013 o insolvente deveria ter entregue à Fidúcia €302,97, por conta do mês de Agosto de 2014 €213,30, por conta do mês de Dezembro de 2014 €338,57, por conta do mês de Agosto de 2015 €248,98, por conta do mês de Dezembro de 2015 €338,57, por conta do mês de Agosto de 2016 €344,66, por conta do mês de Dezembro de 2016 €338,57, por conta do mês de Agosto de 2017 €341,46 e por conta do mês de Dezembro de 2017 €422,82 - ou seja, em Março de 2018 encontrava-se em dívida para com a fidúcia a quantia global de €2.889,90.
A tal valor acrescem os €382,40 referentes ao vencimento do mês de Agosto de 2018 que igualmente deveria ter sido objecto de cessão.
Ou seja, o total que deveria ter sido cedido à fidúcia durante o período de cessão ascende a €3.272,30, tendo sido cedidos somente €650,78 (…).
Daqui se retira que se o insolvente não procedeu ao pagamento de quaisquer quantias (mormente daquelas definidas pelo Tribunal da Relação) nomeadamente nos meses de Agosto e Dezembro dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 foi porque não quis, já que teria meios para o fazer.
Estas não entregas consubstanciam violação da obrigação que o art. 239.º/4/al. c) CIRE faz recair sobre o insolvente, sem que tenha sido dada qualquer justificação para o efeito.
Daqui resulta a existência de, pelo menos, negligência grave na violação dessa obrigação de entrega.

Essa não entrega impossibilitou o Exmo. Sr. Fiduciário de dar cumprimento ao disposto no art. 241.º/1 CIRE, mormente de distribuir pelos credores esses valores, com evidente prejuízo para estes.

Consequentemente, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a), ex vi art. 244.º/2, ambos do CIRE, recuso a exoneração do passivo restante requerida por J. M.…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o insolvente interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

a) Insurge-se o Recorrente com o despacho em causa porquanto o mesmo "recusou a exoneração do passivo restante requerida por J. M.".
b) Decidiu a douta decisão que, tendo-se iniciado em setembro de 2013, constata-se, durante a integralidade do período de cessão, que o insolvente auferiu quantias superiores a €650/mês, em dezembro de 2013 e em agosto e dezembro dos anos subsequentes, em virtude do pagamento dos subsídios de férias e de natal.
c) o Tribunal a quo simplesmente, fez "tábua rasa" do dever de igualdade das partes, e do princípio do contraditório, art. 243.° nº 3 do CIRE, pois antes do despacho proferido, não foi ouvido o Insolvente dos valores que o Tribunal entendeu se encontrarem em falta, já que os valores diferiam dos valores apresentados pelo Fiduciário.
d) Porquanto, segundo os relatórios apresentados pelo Fiduciário, e de acordo com o relatório do 5.° ano de cessão, este menciona: "Segundo as contas agora apuradas pelo signatário o insolvente, desde o inicio do período de cessão de rendimentos no âmbito de exoneração do passivo restante, deveria ter entregue ao fiduciário o montante de 650.78€, quando assim o fez, não existindo qualquer valor em dívida à fidúcia." (sublinhado nosso).
e) Tendo no presente caso em análise decorrido já o período de cessão, vejamos se o recorrente violou com grave negligencia alguma das obrigações impostas pelo art. 239.° do ClRE e nomeadamente as que a decisão sob recurso teve por violada, artº 239.° nº 4 al, c) do CIRE - Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
1) Dos valores em dívida à fidúcia apurados pelo Fiduciário, o Insolvente deveria ter entregue, ao abrigo da exoneração de passivo, o montante de 650,78€, o que assim o fez.
g) No concernente aos montantes em dívida considerados pelo Tribunal a quo, o insolvente não procedeu ao pagamento de tais quantias, não como considerou o douto despacho, porque não quis porque tinha meios para o fazer, mas porque simplesmente não tinha meios para tal.
h) Pois, se o rendimento disponível já compreende algum sacrifício pelo insolvente, o recorrente estava a receber mensalmente abaixo desse limiar, pelo que urge questionar o que deve ser entendido como rendimentos auferidos com exclusão de 650,00 €.
i) O dever de igualdade das partes, entende o Insolvente não permitirá como pretende o despacho recorrido, retirar os subsídios de natal e de férias.
j) Mas fará valer que se atenda aos valores médios, como fez e bem o Fiduciário.
k) Ademais, se o Insolvente não estivesse de boa fé, optaria pelos pagamentos dos subsídios de férias e de natal fracionados, sempre levaria aos valores apresentados pelo fiduciário.
I) Razão pela qual, entendemos ser o valor mais acertado com o caso em apreço.
m) Até porque, depois de apresentados os relatórios pelo Fiduciário, nenhum credor reconhecido demonstrou o seu desagrado ou discordância com os valores apresentados, nos termos do art. 243.° nº 1 do CIRE.
n) Nem nunca nenhum credor veio requerer a cessação antecipada da exoneração, nem se manifestaram contra a reabilitação do insolvente.
o) Deduzindo do relatório final (5.° ano cessão) apresentado pelo Exmo. Fiduciário, não existe qualquer valor em dívida à fidúcia.
p) Pelas razões que se deixam deduzidas, in casu, em relação ao comportamento do devedor, não se verifica em concreto uma violação dolosa ou com grave negligência dos seus deveres de entrega de rendimentos objeto de cessão.
q) O despacho ora recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 243.° nº 1, aliena a) do CIRE e artigo 18.° nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
r) Nos termos do art. 243.°, nº 1, alínea a) do CIRE, é necessário verificarem-se dois pressupostos cumulativos, para que seja recusada a exoneração por violação das obrigações impostas pelo art. 239.° do CIRE: a) que o devedor tenha atuado com dolo ou negligencia grave; b) que a sua atuação cause um prejuízo para os credores.
s) A atuação do Insolvente e como decorre dos autos, em termos concretos, o insolvente sempre que foi notificado, prestou os esclarecimentos requeridos, as informações solicitadas, juntou os documentos pedidos, sem que alguma vez se tivesse considerado injustificada a utilização desses valores e se tivesse determinado a sua entrega ao Fiduciário, como tal, tem de se entender ressalvada essa entrega.
t) A existir um incumprimento por parte do devedor, nunca ao mesmo foi dada a possibilidade de cumprir em determinado prazo, e mesmo, previamente, poder exercer o seu direito ao contraditório (artº 3.°, nº 3 do Código Processo Civil)
u) Pois só com a prolação do despacho recorrido é que teve conhecimento dos valores que o Tribunal considerava estarem em falta.
v) Ademais, previamente, o Insolvente foi aos autos defender que, ao longo dos 5 anos, cumpriu na íntegra os deveres a que estava obrigado, nos termos e para os efeitos do art. 239.° nº 4 do CIRE.
w) E que, a libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante, deveria ser concedida.
x) Sem que tivesse sido notificado pelo douto Tribunal de que não era assim e que incorria em erro, fundamentando o entendimento de que estava em incumprimento.
y) Entende o Recorrente, que o seu comportamento perante o exposto, e mesmo mencionado pelo Fiduciário, não reveste uma violação, com grave negligencia, das obrigações que lhe foram impostas, e em consequência prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
z) A decisão de que ora se recorre, não pode merecer como não merece a concordância do Insolvente, uma vez que se afasta claramente do cumprimento da Lei e da realização da Justiça, pelo que deve ser concedida a exoneração do passivo restante ao Recorrente…”

Pede, a final, que seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que conceda ao insolvente a exoneração do passivo restante.
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- a de saber se foi violado o princípio do contraditório consagrado no artº 3º nº3 do CPC;
- se deveria ter sido concedido ao recorrente a exoneração do passivo restante.
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A factualidade relevante para a decisão das questões colocadas é a constante do relatório deste acórdão e da decisão recorrida (acima transcrita), e que não ofereceu ao recorrente qualquer reparo.
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Da violação, por parte do tribunal recorrido, do princípio do contraditório:

Insurge-se o Recorrente desde logo contra o despacho recorrido, dizendo que o mesmo violou o princípio do contraditório, pois antes de ele ser proferido não foi ouvido o Insolvente quanto aos valores que o tribunal entendeu que se encontravam em falta, já que os mesmos diferiam dos apresentados pelo Fiduciário.

Mas sem razão, como é bom de ver, pois como resulta dos autos, por despacho de 18.10.2018, foi notificado o devedor nos termos do artº 244º nº1 do CIRE, notificação que se destina precisamente a garantir o cumprimento do princípio do contraditório, princípio previsto naquele artigo em particular e no artº 3º nº3 do CPC em geral, e que se destina a dar ao insolvente, antes da decisão proferida sobre a exoneração do passivo restante, a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma.

E o devedor, no uso da faculdade que lhe foi concedida, pronunciou-se no sentido de que deveria ser-lhe concedida a exoneração solicitada.

Considera no entanto o recorrente – aqui residindo o fundamento da sua alegação de que aquele princípio não foi integralmente cumprido –, que lhe deveria ter sido notificado também quais os valores que o Tribunal recorrido entendeu que se encontravam em falta, já que havia divergência entre os valores considerados em falta pelo tribunal e os valores apresentados pelo Fiduciário, segundo o qual, não existia qualquer valor em dívida à fidúcia.

Não vemos, no entanto, qualquer consagração legal – nem justificação de outra ordem -, para a pretensão do recorrente, que se traduz, no fundo, em dever ser “advertido” pelo tribunal para os valores em falta – e que eram diferentes dos mencionados no relatório final do Sr. Fiduciário.

O recorrente foi advertido, aquando da decisão final, sobre o montante do rendimento que deveria ceder ao fiduciário, ou seja, da sua obrigação de lhe entregar mensalmente as quantias que excedessem o montante de € 650,00, pelo que era sua obrigação, nos termos do artº 239º nº 4, alínea c) do CIRE, durante o período da cessão, “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto da cessão”.

Realça-se que a entrega dos rendimentos que excedessem o rendimento indisponível deveria ser feita de imediato, ou seja, mensalmente, logo após o seu recebimento, e não, como pretende o recorrente, num momento posterior, o qual poderia ser, na sua otica, no final da cessão, dando-se-lhe uma última oportunidade para liquidar valores em dívida que acumulou ao longo dos 5 anos que durou a cessão.

Como tem sido entendido de forma pacífica, na doutrina e na jurisprudência, o período de cessão – com a duração máxima de 5 anos –, destina-se a possibilitar a reabilitação do insolvente, sujeitando-o como que a um “regime de prova” durante o qual ele vai ter de demonstrar ao tribunal que está empenhado na sua recuperação, gerindo de forma mais cautelosa as suas finanças e controlando os gastos “excessivos”, que o terão levado à situação de insolvência, contribuindo ainda, na medida do possível, para atenuar o prejuízo por si causado aos credores, que terão de contentar-se com o pagamento que lhe for sendo efectuado durante os 5 anos da cessão.

No fundo, espera-se do insolvente uma mudança de vida, que lhe permita começar de novo, com novos hábitos e novas posturas na sua vida financeira, começando desde logo por cumprir, de forma escrupulosa, com as obrigações que lhe foram impostas pelo tribunal.

Não faria sentido, nem seria coerente com o espírito da exoneração, que se desse oportunidade ao insolvente, ao fim de 5 anos – durante os quais não cumpriu com as suas obrigações –, de liquidar nessa altura, as dívidas que voltou a contrair ao longo desses 5 anos, quiçá com recurso a um novo empréstimo, iniciando dessa forma um novo endividamento. Tal oportunidade seria desvirtuar completamente o espírito do instituto da exoneração, e pactuar, uma vez mais, com o incumprimento do devedor, que se comprometeu a combater o seu incumprimento passado, pedindo ele próprio a exoneração.

Como dissemos, não encontramos, nem na letra, nem no espírito da lei, fundamento legal para a pretensão do recorrente – de ser notificado pelo tribunal, findo o período da cessão, para a existência dos valores em dívida, dando-se-lhe ainda a oportunidade de os poder liquidar nessa altura, a fim de lhe ser concedida a exoneração.
Não há aqui qualquer violação do princípio do contraditório.
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Da não concessão ao devedor da exoneração do pedido restante:

Mesmo assim defende o recorrente que não violou com grave negligência nenhuma das obrigações impostas pelo art. 239.° do ClRE, nomeadamente, a que a decisão sob recurso teve por violada - o artº 239.° nº 4 al. c) do CIRE, que manda entregar imediatamente ao fiduciário, quando por ele recebida, a parte dos rendimentos do devedor objeto de cessão.

Na otica do recorrente, que é também a do fiduciário, ele cumpriu integralmente com a sua obrigação, nada devendo à fidúcia.

Mas também aqui sem razão, adiantamos já.

Começamos por dizer que o facto de o fiduciário emitir parecer no sentido de que deveria ser concedido ao devedor a exoneração do passivo restante, na pressuposição – errada – de que se encontravam liquidadas todas as quantias devidas, nenhum preceito legal impõe ao juiz seguir essa orientação.

Como consta do artº 244º do CIRE “Não tendo havido lugar a cessão antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência”.

Ou seja, a lei confere plenos poderes decisórios ao juiz, que é o titular e o condutor do processo, embora deva ser dado ao devedor e aos demais intervenientes processuais – no âmbito do exercício do contraditório -, a possibilidade de se pronunciarem sobre a decisão a tomar, o que foi feito.

E também aqui concordamos com a decisão tomada pelo sr. juiz do processo, que se demarcou do parecer emitido pelo fiduciário, pois que o mesmo baseou a sua posição em cálculos errados, considerando que o rendimento a tomar em conta para efeitos de cessão deveria ser o rendimento médio anual do devedor, e não o seu rendimento mensal - o rendimento que mensalmente excedesse o valor de € 650,00.

Ora, não foi ao valor médio anual dos rendimentos auferido pelo devedor que a decisão proferida se referiu – ao fixar o valor do rendimento indisponível do devedor no valor mensal de € 650,00 -, nem é também ao valor médio anual dos rendimentos que se refere o artº 239º do CIRE. Pelo contrário, consta daquele preceito legal que o devedor deve proceder à entrega “imediata” dos rendimentos ao fiduciário, logo que eles sejam por ele auferidos, referindo-se essa expressão adverbial, como é evidente, à entrega do excedente ao fiduciário no mais curto espaço de tempo possível a seguir ao seu recebimento.

Ora, no caso dos autos, se o devedor auferiu rendimentos mensais, ao longo dos anos e durante 10 meses em cada um, inferiores àquele valor, ficou desobrigado de entregar qualquer quantia ao fiduciário naqueles períodos; se em dois meses do ano auferiu rendimentos superiores àquele valor (correspondentes aos subsídios de férias e de Natal), deveria ter entregue a quantia excedente àquele valor, naqueles dois meses, conforme decisão desta Relação.

Ou seja, o valor de referência para a entrega do excedente era o valor mensal e não o valor anual, pelo que, baseando o fiduciário a sua posição nesse raciocínio – errado como dissemos e como deu conta o sr. juiz do processo -, não era o mesmo de seguir.

O que resulta dos autos é que o recorrente deveria ter entregue ao fiduciário, ao longo dos 5 anos da cessão, a quantia global de € 3.272,30, tendo apenas entregue € 650,78, daí se concluindo que a sua obrigação não foi integralmente cumprida, como bem se decidiu na sentença recorrida.

Com efeito, tendo-se o período da cessão iniciado em Setembro de 2013, constata-se que durante todo esse período o insolvente auferiu quantias superiores a € 650/mês em Dezembro de 2013 e em Agosto e Dezembro dos anos subsequentes, em virtude do pagamento dos subsídios de férias e de natal.

Contudo, apenas em Março de 2018 efectuou uma entrega à fidúcia, no valor de € 300,29, e sem que a mesma ascendesse ao valor total que, até tal data, deveria ter sido entregue.

Com efeito, por conta do mês de Dezembro de 2013 o insolvente deveria ter entregue à Fidúcia, € 302,97; por conta do mês de Agosto de 2014, € 213,30; por conta do mês de Dezembro de 2014, € 338,57; por conta do mês de Agosto de 2015, € 248,98; por conta do mês de Dezembro de 2015, € 338,57; por conta do mês de Agosto de 2016, € 344,66; por conta do mês de Dezembro de 2016, € 338,57; por conta do mês de Agosto de 2017, € 341,46; e por conta do mês de Dezembro de 2017, € 422,82.
Ou seja, em Março de 2018 encontrava-se em dívida a quantia global de € 2.889,90. A tal valor acrescem os € 382,40 referentes ao vencimento do mês de Agosto de 2018, que igualmente deveria ter sido objecto de cessão.

Ou seja, o total que deveria ter sido cedido pelo devedor à fidúcia durante o período de cessão ascende a € 3.272,30, tendo sido cedidos somente € 650,78, pelo que houve incumprimento da sua parte.
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Insiste ainda assim o recorrente que não se verifica, em concreto, uma violação dolosa ou com grave negligência dos seus deveres de entrega dos rendimentos objeto de cessão.

Mas sem razão, uma vez mais.

A lei exige, é certo, para que o juiz recuse a exoneração, que o devedor tenha incumprido, com grave negligência, as obrigações que lhe são impostas pelo artº 239º do CIRE, sendo uma delas a da cessão ao fiduciário da quantia que exceda a do rendimento indisponível fixado pelo tribunal, prejudicando, por esse facto, a satisfação dos créditos da insolvência.

Esse incumprimento culposo – pelo menos com grave negligência – pode ser demonstrado com factos dos quais se retire essa culpa, como fez o tribunal recorrido, ou seja, a partir de alguns factos provados, como sejam a prova irrefutável – que o recorrente não questiona –, de que ao longo dos 5 anos da cessão o recorrente auferiu rendimentos, em dois meses no ano, que ultrapassavam o valor que foi considerado indispensável para o seu sustento e do seu agregado familiar.

Ora, se o devedor recebeu acima daquele valor e não entregou o excedente ao fiduciário, ficou com ele para si, incumprindo dessa forma, pelo menos com culpa gravemente negligente, a obrigação que sobre si impendia, que era a de entregar essa quantia.

O prejuízo dos credores é também evidente, pois que sem aquela entrega ficaram prejudicados na exata medida da retenção, ou seja, no valor que ficou no património do devedor.

Ora, na falta de qualquer justificação para a falta de cumprimento do seu dever – pelo menos nos meses em que auferiu rendimentos acima dos € 650,00 e não entregou o excedente ao fiduciário –, concluiu o tribunal recorrido e bem, por presunção judicial, que houve da sua parte “grave negligência” no incumprimento, uma vez que tinha meios para o fazer.

Há aqui uma presunção de culpa da parte do devedor – por presunção judicial –, no sentido de que auferiu rendimentos acima dos indispensáveis à sua sobrevivência, e não entregou essa parte ao fiduciário, para satisfazer, ainda que em parte, as dívidas dos credores.

Sobre a prova por presunção judicial, o art.º 349º do Código Civil prevê expressamente a possibilidade do juiz estabelecer presunções judiciais, ou seja, usando das regras da experiência, tirando ilações de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

E a correspondência adjectiva dessa norma encontrámo-la no art.º 607º nº 4 do CPC, relacionado com a elaboração da sentença, no qual se estipula que ao proferir a sentença o juiz deve tomar em consideração os factos admitidos por acordo, os provados por documento ou confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência

Trata-se de uma forma lícita do julgador extrair conclusões e proferir uma decisão de mérito que salvaguarde a verdade material e a justiça do caso concreto, pois a presunção judicial, à semelhança da prova testemunhal (cfr. art.º 351.º do Código Civil), depende apenas da convicção do julgador, porque extraída dos demais factos provados, notórios ou de conhecimento oficioso.

Ou seja, é lícita a utilização da presunção judicial para concluir pela verificação de um facto desconhecido (presumido), a partir de um facto conhecido, servindo-se o julgador, para esse fim, de regras da experiência da vida, segundo o padrão do "homem médio".

As presunções judiciais representam processos mentais do julgador, numa dedução decorrente de factos conhecidos e "são afinal o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denuncia a existência doutro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro" (A. Lopes Cardoso, in Revista dos Tribunais, 86.º-112). Sem a utilização dessas presunções seria impossível, em muitos casos concretos, fazer justiça, na sua asserção de efectivação da verdade material (ac STJ, de 7 de Dezembro de 2005, disponível em www.dgsi.pt).
Trata-se de situações em que, num quadro de conexão entre factos, uns provados e outros não provados, a existência dos primeiros, com considerável grau de probabilidade, segundo a experiência comum, juízos correntes de probabilidade, princípios de lógica corrente e os dados da intuição humana, fazem admitir a existência dos últimos.

Ora, nada temos a objectar à forma como o tribunal recorrido concluiu pela culpa gravemente negligente do recorrente no incumprimento do seu dever, baseando essa conclusão no facto – provado – de que ele recebeu acima da quantia que lhe era destinada e não entregou esse excedente à fidúcia, como lhe tinha sido ordenado pelo tribunal.

Nenhum reparo temos pois a fazer à decisão recorrida, que fez uma correta análise da matéria de facto e a sua subsunção às normas legais aplicáveis.

Improcedem, assim, todas as conclusões de recurso do apelante
*
DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) a cargo do recorrente.
Notifique.
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Sumário do acórdão:

I. A entrega dos rendimentos ao fiduciário que excedem o rendimento indisponível deve ser feita de imediato, ou seja, mensalmente, logo após o seu recebimento, e não num momento posterior, nomeadamente no final da cessão, dando-se ao devedor uma última oportunidade para liquidar valores em dívida que acumulou ao longo dos 5 anos que durou a cessão.
II. O parecer do fiduciário, no sentido de que deveria ser concedido ao devedor a exoneração do passivo restante, não vincula o juiz, que tem o poder decisório de recusar a concessão.
III. Na falta de qualquer justificação do devedor para a falta de cumprimento do seu dever de entregar ao fiduciário a quantia excedente ao rendimento indisponível, concluiu o tribunal recorrido e bem, por presunção judicial, que houve da sua parte “grave negligência” no incumprimento, uma vez que tinha meios para o fazer.
*
Guimarães, 28.2.2019

VOTO DE VENCIDA

Voto vencida, pois considero que a apelação deveria ter sido julgada procedente, revogando-se a decisão recorrida e, em sua substituição, concedendo-se a exoneração do passivo restante do devedor.
Com efeito, tendo sido fixado pelo tribunal como rendimento indisponível, a quantia de € 650,00/mês, só estando o devedor obrigado a entregar ao fiduciário o rendimento que ultrapassasse tal montante, e auferindo o devedor um valor mensal inferior àquele, só nos meses em que lhe eram pagos os subsídios de férias e de natal, poderia cumprir com a entrega ao fiduciário. Contudo, entendo que os valores aqui a ter em conta devem ser valores médios, pois o tribunal considerou que o devedor necessitava de € 650,00/mês para o seu sustento minimamente digno (cfr. artigo 239.º, n.ºs 2 e 3, b) (i) do CIRE) e, não auferindo tal valor mensal, necessitaria de utilizar os subsídios para fazer face aos seus encargos (naquele valor de € 650,00/mês). Daí que só estivesse obrigado a ceder ao fiduciário o que excedesse o valor de € 650,00 x 12. À mesma conclusão se chegaria caso os subsídios tivessem sido pagos de forma fraccionada, ao longo do ano.
Esse mesmo foi o entendimento do fiduciário. Veja-se que, ao longo do período de cessão, elaborou os relatórios informativos a que fazem alusão os artigos 61.º, n.º 1 e 240.º, n.º 2 ‘in fine’ do CIRE, sem nunca dar conta de qualquer problema e que, no final do período de cessão, apresentou relatório em que refere "Segundo as contas agora apuradas pelo signatário o insolvente, desde o inicio do período de cessão de rendimentos no âmbito de exoneração do passivo restante, deveria ter entregue ao fiduciário o montante de 650.78€, quando assim o fez, não existindo qualquer valor em dívida à fidúcia." (relatório que não foi contestado por qualquer credor).
Tal comportamento do fiduciário sempre faria o devedor pensar que estava a agir dentro da lei, afastando qualquer comportamento doloso ou com grave negligência da sua parte quanto aos seus deveres de entrega de rendimentos objeto de cessão. A sua atitude leal perante o tribunal, ficou, aliás, demonstrada pelo facto de ter sempre junto as informações e documentos que lhe foram solicitados.
Entendo, assim, que não ocorrem os pressupostos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração – artigo 243.º do CIRE – que constituem o fundamento da recusa da exoneração – artigo 244.º, n.º 2 do CIRE – motivo pelo qual teria julgado procedente a apelação e teria concedido a exoneração do passivo restante do devedor.
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Guimarães, 28 de fevereiro de 2019

Ana Cristina Duarte