Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
587/12.5TBCBT.G1
Relator: MARGARIDA FERNANDES
Descritores: LIBERALIDADES INOFICIOSAS
ORDEM DAS REDUÇÕES
LIBERALIDADES REALIZADAS NO MESMO ACTO A UM ÚNICO INTERESSADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário da Relatora:

I – Numa acção de redução de liberalidades inoficiosas, por se tratar de factos constitutivos do seu direito, incumbe à autora o ónus de alegação e prova da sua qualidade de herdeira legitimária e dos factos pertinentes ao cálculo da legítima.

II - Num caso em que apenas há liberalidades feitas em vida e em datas distintas, a redução inicia-se pela última e assim sucessivamente (art. 2173º nº 1 do C.C.).

III – Quando as liberalidades, tidas como inoficiosas, foram realizadas no mesmo acto jurídico ou feitas na mesma data e beneficiaram um único interessado, a redução não deve ser feita rateadamente, em termos proporcionais, mas nos termos do nº 1 do artº 2174 C.C.”
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

M. T. instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra A. C. e mulher, M. C., pedindo que as liberalidades – doação a estes das fracções designadas pelas letras “O” e “P”, dinheiro, doação a uma sociedade destes de um estabelecimento comercial- sejam reduzidas pela forma estabelecida no art. 2174º do C.C. em tanto quanto for necessário para que a sua legítima seja preenchida.

Alega, em síntese, que é filha de J. F., falecido em -/-/2008. O falecido outorgou procuração a favor dos réus conferindo-lhes poderes para, nas condições que entendessem, doarem a eles próprios, para entrarem na comunhão do seu casal, as fracções autónomas designadas pelas letras “O” e “P” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na C.R.P. de X sob o nº 410 – .... No exercício desses poderes, por escritura pública outorgada no dia 28/08/2008, no C.N. de X, o réu marido doou os imóveis em causa a si próprio, para entrar na comunhão do seu casal, valendo estes, à data, respectivamente, € 50.000,00 e € 70.000,00.

O seu progenitor faleceu intestado, no estado de solteiro, sem ascendentes vivos, tendo-lhe sucedido a autora como única e universal herdeira.

Em vida J. F. havia doado aos réus todo o dinheiro que tinha depositado nas contas bancárias, abertas em seu nome no balcão de X do Banco ... nº 3666670 e ..., em montante superior a € 100.000,00, bem como doara a uma sociedade constituída pelos réus o estabelecimento de talho instalado no R/C do prédio urbano sito na Praça …, X, inscrito na matriz respectiva da freguesia de ... sob o art. 612º, que lhe pertencia e onde, no início deste milénio, fez vultuosas obras de beneficiação ao abrigo do programa PROCOM, que o valorizaram em mais de € 150.000,00.
Conclui que, à data do óbito, o património valia, pelo menos, € 370.000,00 correspondendo a sua legítima a metade.
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Os réus contestaram dizendo que a inoficiosidade terá que ser realizada com os valores dos bens doados á data do óbito e não da doação. Negaram o valor atribuído pela autora às fracções, bem como a doação do dinheiro e do estabelecimento comercial de talho, o qual pertence à sociedade “Talho Central de X, Lda.”. Referem que o falecido não realizou no imóvel obras de beneficiação.
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Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, foram seleccionados os factos assentes e controvertidos com elaboração de base instrutória, sem reclamações.
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Em sede de audiência final a autora apresentou articulado superveniente alegando que, em vida do pai, teve fugazes encontros com o mesmo devido a preocupação deste em esconder a paternidade pelo que não lhe conhecia o património. Quando procedeu a buscas, realizou-as na Conservatória do Registo Predial e nos Serviços de Finanças, apenas tendo conhecimento dos imóveis mencionados na petição inicial. Em Março de 2015, de forma acidental, tomou conhecimento que, em 27/06/2008, o progenitor fizera uma doação aos réus do prédio rústico denominado “Tapada ...”, sito no lugar de ..., freguesia de ..., inscrito na matriz sob o art. 434º, descrito na C.R.Predial de X com o nº 357 e da fracção designada pela letra “D”, correspondente no R/C esquerdo do Bloco B do prédio descrito na mesma C.R.Predial sob o nº 1490-.... Apesar da atribuição do valor de € 500,00 e € 60.000,00 respectivamente entende que o prédio rústico, pelos bons acessos, excelente localização e benfeitorias, designadamente a ampla construção de rés-do-chão, valia, pelo menos, € 20.000,00 e a fracção, integrada em prédio recente, central com activa componente comercial valia, pelo menos, € 85.000,00 sendo metade desses valores a sua legítima.
O articulado superveniente foi liminarmente admitido.
Os réus contestaram contrapondo que o recibo do Cartório está datado de Janeiro de 2015 e que as doações foram apenas uma questão formal, pois o falecido quis realizá-las aos sobrinhos, que com ele conviveram e coabitaram, filhos da irmã Ermelinda Fernandes e que, por isso, em 18/03/2009, a fracção designada pela letra “P” foi doada ao seu irmão J. M.. Negam que os imóveis tenham o valor indicado pela autora, acrescentado que o prédio rústico é terreno inculto, não apto para construção, sem acesso à via pública, apenas possuindo uma construção em blocos de cimento e uma placa em cimento, por si realizada para arrecadação e usada como depósito de lenhas.
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Após realização de julgamento foi proferida sentença, cuja parte decisória reproduzimos na íntegra:

“Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação parcialmente provada e procedente:

a) decreta a redução, por inoficiosidade, das doações identificadas no ponto 3) da fundamentação de facto;
b) determina que o preenchimento da legítima da Autora M. T., no valor de € 49.944,75, seja realizada através da fração “O”, que fica a pertencer-lhe, e pelo pagamento pelos Réus do montante de € 432,25;
c) condena os Réus na entrega da fração e do montante identificados em b).
Custas a cargo da Autora e dos Réus, na proporção 8/10 e 2/10, respetivamente.
Registe e notifique.”
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Não se conformando com esta sentença veio a autora dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“I. De acordo com a motivação vertida supra em 1º, impõe-se a alteração das respostas à matéria de facto, devendo dar-se como provado o ponto 4 da base instrutória, embora com diferente redacção: o falecido J. F. doou aos réus o estabelecimento de talho instalado no prédio urbano sito na Praça ..., nesta vila, inscrito na matriz respectiva de ... sob o art. 612 (da coeva matriz), que lhe pertencia e que valia 42.000,00€.
II. Nesta parte, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 342º e 344º, nº 2 e do C.C., conforme supra melhor exposto.
III. Também como consta da motivação, em 2º, parece evidente e manifesto que o Tribunal se equivocou ao calcular o valor da totalidade dos bens (excluído o talho) doados aos réus, em 91.889,50€.
IV. De facto, alterada a matéria de facto no sentido vindo de indicar, ou seja, incluído o talho, o valor dos bens doados ascenderá a 200.939,50€ e a legítima da recorrente a 100.196,75€.
V. Quando assim se não entenda, como está demonstrado, o conjunto destes bens ascende a 158.939,50€, pelo que a legítima da recorrente é de 79.469,75€. Nesta hipótese, o Tribunal incorreu em erro de cálculo que deverá ser rectificado nos termos do art. 614º, nº 1, do CPC, sendo que, esta rectificação deve ocorrer com precedência à subida do presente recurso ex vi nº 2 do mesmo preceito.
VI. Por fim, o preenchimento da legítima da interessada, deve processar-se de acordo com o critério que o Tribunal de 1ª instância seguiu, pelo que:
a. Para a legítima 100.196,75€, com o talho a entrar como doado, devem os réus e recorridos ser condenados a entregar à recorrente ambas as fracções “O” e “P” (no valor global de 68.887,50€) da última das doações, continuando a redução pela entrega da “Tapada ...” (no valor de 15.552,00€), devendo ainda os recorridos pagar-lhe, em dinheiro, o diferencial de 15.757,25€.
b. Quando assim se não entenda e se desconsidere a pretendida doação do talho, visto que o montante da legítima da recorrente é de 79.469,75€, deverá esta ser preenchida pela entrega à recorrente das mesmas fracções “O” e “P” (no valor global de 68.887,50€) e o remanescente, ou seja, 10.582,25€, deve ser-lhe pago em dinheiro, ao invés dos 432,25€ que resultam de b) do dispositivo da sentença.
Pugna pela revogação da sentença que deve ser substituída por outra que julgue procedente a acção nos termos expostos.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do/a recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Apurar se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;
B) E/ou na subsunção jurídica.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. Por sentença proferida em 30/03/2012, na acção declarativa de investigação de paternidade, instaurada em 02/07/2008 e que, sob o nº 303/08.6TBCBT, correu termos por este Tribunal Judicial, a autora foi reconhecida como filha de J. F. (al. A) dos factos assentes).
2. Essa paternidade e a respectiva avoenga foram averbadas no assento de nascimento da autora em -/-/2012 (al. B) dos factos assentes).
3. No dia 27/06/2008 aquele J. F. outorgou uma procuração pela qual constituiu seus bastantes procuradores os réus, conferindo-lhes, entre outros, poderes para, em conjunto ou separadamente, nos termos e condições que entendessem, com ou sem ónus ou encargos, doarem a eles próprios procuradores, para entrarem na comunhão do seu casal, os seguintes bens imóveis, sitos à Rua ..., na freguesia de ..., concelho de X:
Um - Fracção “O” - No terceiro andar, com entrada pela Rua ..., sala ampla e instalações sanitárias, destinada a escritório, inscrita na respectiva matriz sob o art. 965 - O;
Dois - Fracção “P” - No terceiro andar, com entrada pela Rua ..., duas salas amplas e instalações sanitárias, destinada a escritório, inscrita na respectiva matriz sob o art. 965 – P (al. C) dos factos assentes).
4. Ambas as fracções identificadas estão integradas no prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., da freguesia de ..., deste concelho, descrito na C.R.Predial de X sob o nº 410 – ... (al. D) dos factos assentes).
5. Por escritura pública celebrada a 27/06/2008, no Hospital de … em Fafe, na presença da Notária Dr.ª S. M., J. F. declarou doar ao réu, para entrar na comunhão do seu casal, que declarou aceitar, os seguintes imóveis:
- prédio rústico denominado “Tapada ...”, sito no lugar de ..., freguesia de ..., X, descrito na C.R.Predial de X com o nº 357-..., inscrito na matriz sob o art. 434º, com o valor atribuído de € 500,00;
- fracção “D” no rés-do-chão esquerdo, Bloco B – destinado a comércio, inscrita na matriz sob o art. 1694-D, situada no prédio urbano situado no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de X, descrita na C.R.Predial sob o nº 1409-..., afecto ao regime da propriedade horizontal, com o valor atribuído de € 60.000,00 (al. G) dos factos assentes e doc. de fls. 220 a 223).
6. No prédio rústico identificado em 5 existe uma construção de rés-do-chão (al. H) dos factos assentes).
7. J. F. faleceu em -/-/2008, intestado, no estado de solteiro, sem ascendentes vivos, sucedendo-lhe a autora como única e universal herdeira (al. F) dos factos assentes).
8. No exercício dos poderes conferidos pela sobredita procuração, por escritura pública outorgada no dia 28/08/2008, no Cartório Notarial de X, o réu A. C. doou a si próprio, mas para entrar na comunhão do seu casal, os imóveis identificados (al. E) dos factos assentes).
9. No ano de 2008 a fracção “O” valia € 45.512,50 e a fracção “P” € 23.375,00 (resposta ao art. 1º da B.I.).
10. Em 25/01/2007 a conta nº 366670, aberta no balcão de X do Banco ... em nome de J. F., foi saldada com a transferência do montante de € 2.810,36 para a conta nº ..., titulada pelo réu A. C., não havendo, à data de 10/07/2008, qualquer título na conta nº ... (resposta ao art. 2º da B.I.).
11. No ano de 2008 o prédio rústico identificado em 5 valia cerca de € 15.552,00 (resposta ao art. 7º da B.I.).
12. A fracção identificada em 5 está integrada num prédio inscrito na matriz no ano de 2006 e encontra-se próxima do centro da Vila de X (resposta ao art. 8º da B.I.).
13. As fracções situadas no rés-do-chão do prédio em causa correspondem a lojas destinadas a comércio e serviços (resposta ao art. 9º da B.I.).
14. No ano de 2008 a fracção identificada em 5 valia cerca de € 74.500,00 (resposta ao art. 10º da B.I.).
15. O prédio rústico referido em 5 deixou de ser cultivado em data que não foi possível apurar (resposta ao art. 12º da B.I.).
16. A construção referida em 6 é feita em blocos de cimento, com uma placa de cimento (resposta ao art. 14º da B.I.).
17. Tem 5,60 metros de largura, 10,60 metros de comprimento e 3 metros de altura (resposta ao art. 15º da B.I.).
18. A construção referida em 6, 16 e 17 tem sido usada pelos réus para depósito de lenha (resposta ao art. 16º da B.I.).
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Não se provaram os factos vertidos nos art. 3º a 6º, 11º e 13º da Base Instrutória.
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A) Reapreciação da matéria de facto

Insurge-se a apelante contra o facto não provado sob o art. 4º da B.I. defendendo que o mesmo deve ser considerado provado, mas com uma redacção diferente.

Vejamos.

O Tribunal da 1ª Instância, ao proferir sentença, deve, em sede de fundamentação “(…) declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” (art. 607º nº 4 do C.P.C.) e “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (art. 607º nº 5 do C.P.C.).
Sendo certo que o julgador aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção, salvo algumas limitações, a análise crítica da prova é da maior importância do ponto de vista da fundamentação de facto da decisão. Com efeito, esta deve ser elaborada por forma a que, através da sua leitura, qualquer pessoa possa perceber quais os concretos meios de prova em que o Tribunal se baseou para considerar determinado facto provado ou não provado e a razão pela qual tais meios de prova foram considerados credíveis e idóneos para sustentar tal facto. Esta justificação terá de obedecer a critérios de racionalidade, de lógica, objectivos e assentes nas regras da experiência.
A exigência de análise crítica da prova nos termos supra referidos permite à parte não convencida quanto à bondade da decisão de facto tomada pelo tribunal da 1ª instância interpor recurso contrapondo os seus argumentos e justificar as razões da sua discordância.
Caso seja requerida a reapreciação da matéria de facto incumbe, desde logo, ao Tribunal da Relação verificar se os ónus previstos no acima art. 640º do C.P.C. se mostram cumpridos, sob pena de rejeição do recurso.
Não havendo motivo de rejeição procede este tribunal à reapreciação da prova nos exactos termos requeridos. Incumbe a este Tribunal controlar a convicção do julgador da primeira instância verificando se esta se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos e sindicar a formação da sua convicção. i.e., o processo lógico. Assim sendo, nada impede que, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, o tribunal superior conclua de forma diversa da do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.
Uma vez que a apelante assinala o ponto da matéria de facto que considera incorrectamente julgado, a decisão que deve ser proferida e indica os concretos meios probatórios em que se baseia inexiste fundamento de rejeição de recurso nesta parte.
Tendo por base estas considerações e depois de ouvir na íntegra a prova produzida importa analisar o facto acerca do qual o apelante discorda.
- facto não provado correspondente ao art. 4º da B.I.
Do conjunto da prova documental resulta que o falecido era dono de um primeiro talho e barbearia, que adquiriu por trespasse em 26/01/82 e que, em 19/12/97, adquiriu um segundo talho, denominado “Talho do ...”, situado ao lado do primeiro. Mais resulta que, em Novembro de 1999, o senhorio dos espaços comerciais autorizou o falecido a aí fazer obras de molde a unir os mesmos, que nessa altura este requereu o licenciamento da obra, a qual foi estimada pela Câmara Municipal em € 2.891.000$00, e que, em Maio de 2000, por ter sido solicitado, o falecido entregou um projecto de redes interiores de água e esgotos.
Face a estes factos dúvidas não existem que, em 2000, o falecido era o dono do talho existente naquele local. Da prova testemunhal produzida, não obstante resultar que o réu aí sempre trabalhou, não resulta a que título o fazia e que tipo de acordo é que o mesmo tinha com o tio.
Apurou-se igualmente que, em 31/05/2005, o senhorio daquele espaço (representado pelo falecido) celebrou um contrato de arrendamento com “Talho Central de X, Lda”, sociedade constituída dois meses antes, que tem como sócios o réu e a mulher e que tem sede no mesmo local.
Assim, por inexistirem outros documentos, conclui-se que até fim de 2005 o falecido foi o dono do estabelecimento tendo nesta altura diligenciado para que o mesmo tivesse sido “transmitido” para a mencionada sociedade.
Da conjugação destes factos resulta, quanto a nós, que, de facto, o falecido, à semelhança dos seus demais bens, “deu” em 2005 o estabelecimento comercial de talho ao sobrinho e mulher, através da sociedade que estes entretanto constituíram. Mais se apurou que o mesmo tinha o valor de € 42.000,00.
A este propósito importa referir que o ónus de alegação e prova da referida liberalidade cabia à autora e que a mesma logrou fazer esta prova (art. 342º nº1 do C.C.). Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 24/01/1994 (Raul Mateus) e de 27/06/2019 (Fernando Samões), in www.dgsi.pt.
Em contrapartida incumbia ao réu a prova, designadamente que a referida transmissão do estabelecimento comercial tinha sido onerosa, o que nem sequer alegou.
Se é verdade que as pessoas colectivas são centros autónomos de relações jurídicas, autónomos em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos (art. 5º C.S.C.), e que o princípio da separação de patrimónios e a atribuição da personalidade jurídica é o ponto de equilíbrio entre os interesses do sócio e de terceiros, é igualmente verdade que, por vezes, como no caso em apreço, a personalidade colectiva é usada de modo a confundir esferas jurídicas e assim prejudicar terceiros, pelo que é susceptível de ser aplicado o instituto da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica da pessoa colectiva.
Pelo exposto, há que eliminar dos factos não provados a referência aos art. 4º e 5º da base instrutória e aditar à matéria de facto um facto sob o ponto 19 com a seguinte redacção:
“19. O falecido J. F. deu aos réus, através de uma sociedade por eles constituída e denominada Talho Central de X, Lda., o estabelecimento de talho instalado no R/C do prédio sito na Praça ..., X, que lhe pertencia, e que valia a quantia de € 42.000,00”.
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Por uma questão metodológica passar-se-á a descrever a matéria de facto apurada de acordo com o decidido nesta instância:

1. Por sentença proferida em 30/03/2012, na acção declarativa de investigação de paternidade, instaurada em 02/07/2008 e que, sob o nº 303/08.6TBCBT, correu termos por este Tribunal Judicial, a autora foi reconhecida como filha de J. F. (al. A) dos factos assentes).
2. Essa paternidade e a respectiva avoenga foram averbadas no assento de nascimento da autora em 01/06/2012 (al. B) dos factos assentes).
3. No dia 27/06/2008 aquele J. F. outorgou uma procuração pela qual constituiu seus bastantes procuradores os réus, conferindo-lhes, entre outros, poderes para, em conjunto ou separadamente, nos termos e condições que entendessem, com ou sem ónus ou encargos, doarem a eles próprios procuradores, para entrarem na comunhão do seu casal, os seguintes bens imóveis, sitos à Rua ..., na freguesia de ..., concelho de X:
Um - Fracção “O” - No terceiro andar, com entrada pela Rua ..., sala ampla e instalações sanitárias, destinada a escritório, inscrita na respectiva matriz sob o art. 965 - O;
Dois - Fracção “P” - No terceiro andar, com entrada pela Rua ..., duas salas amplas e instalações sanitárias, destinada a escritório, inscrita na respectiva matriz sob o art. 965 – P (al. C) dos factos assentes).
4. Ambas as fracções identificadas estão integradas no prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., da freguesia de ..., deste concelho, descrito na C.R.Predial de X sob o nº 410 – ... (al. D) dos factos assentes).
5. Por escritura pública celebrada a 27/06/2008, no Hospital de … em …, na presença da Notária Dr.ª S. M., J. F. declarou doar ao réu, para entrar na comunhão do seu casal, que declarou aceitar, os seguintes imóveis:
- prédio rústico denominado “Tapada ...”, sito no lugar de ..., freguesia de ..., X, descrito na C.R.Predial de X com o nº 357-..., inscrito na matriz sob o art. 434º, com o valor atribuído de € 500,00;
- fracção “D” no rés-do-chão esquerdo, Bloco B – destinado a comércio, inscrita na matriz sob o art. 1694-D, situada no prédio urbano situado no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de X, descrita na C.R.Predial sob o nº 1409-..., afecto ao regime da propriedade horizontal, com o valor atribuído de € 60.000,00 (al. G) dos factos assentes e doc. de fls. 220 a 223).
6. No prédio rústico identificado em 5 existe uma construção de rés-do-chão (al. H) dos factos assentes).
7. J. F. faleceu em -/-/2008, intestado, no estado de solteiro, sem ascendentes vivos, sucedendo-lhe a autora como única e universal herdeira (al. F) dos factos assentes).
8. No exercício dos poderes conferidos pela sobredita procuração, por escritura pública outorgada no dia 28/08/2008, no Cartório Notarial de X, o réu A. C. doou a si próprio, mas para entrar na comunhão do seu casal, os imóveis identificados (al. E) dos factos assentes).
9. No ano de 2008 a fracção “O” valia € 45.512,50 e a fracção “P” € 23.375,00 (resposta ao art. 1º da B.I.).
10. Em 25/01/2007 a conta nº 366670, aberta no balcão de X do Banco ... em nome de J. F., foi saldada com a transferência do montante de € 2.810,36 para a conta nº ..., titulada pelo réu A. C., não havendo, à data de 10/07/2008, qualquer título na conta nº ... (resposta ao art. 2º da B.I.).
11. No ano de 2008 o prédio rústico identificado em 5 valia cerca de € 15.552,00 (resposta ao art. 7º da B.I.).
12. A fracção identificada em 5 está integrada num prédio inscrito na matriz no ano de 2006 e encontra-se próxima do centro da Vila de X (resposta ao art. 8º da B.I.).
13. As fracções situadas no rés-do-chão do prédio em causa correspondem a lojas destinadas a comércio e serviços (resposta ao art. 9º da B.I.).
14. No ano de 2008 a fracção identificada em 5 valia cerca de € 74.500,00 (resposta ao art. 10º da B.I.).
15. O prédio rústico referido em 5 deixou de ser cultivado em data que não foi possível apurar (resposta ao art. 12º da B.I.).
16. A construção referida em 6 é feita em blocos de cimento, com uma placa de cimento (resposta ao art. 14º da B.I.).
17. Tem 5,60 metros de largura, 10,60 metros de comprimento e 3 metros de altura (resposta ao art. 15º da B.I.).
18. A construção referida em 6, 16 e 17 tem sido usada pelos réus para depósito de lenha (resposta ao art. 16º da B.I.).
19. O falecido J. F. deu aos réus, através de uma sociedade por eles constituída e denominada Talho Central de X, Lda., o estabelecimento de talho instalado no R/C do prédio sito na Praça ..., X, que lhe pertencia, e que valia a quantia de € 42.000,00.
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Não se provaram os factos vertidos nos art. 3º, 6º, 11º e 13º da Base Instrutória.
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B) Subsunção jurídica

Nesta sede a apelante refere que, por um lado, ocorreu erro de cálculo por parte do tribunal recorrido no que concerne ao valor da legítima e, por outro, erro no preenchimento desta.

Vejamos.

1.
O poder que os proprietários de bens têm de dispor gratuitamente destes é limitado no interesse dos herdeiros legitimários. Entende-se por legítima a porção de bens que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinadas aos herdeiros legitimários (art. 2156º do C.C.).
A autora é herdeira legitimária de J. F. (art. 2157º do C.C.) pelo que, em defesa da sua legítima, que corresponde a metade da herança (art. 2159º nº 2 do C.C.), assiste-lhe o direito de pedir a redução das liberalidades que a ofendam e que, por isso, se devem ter por inoficiosas (art. 2168º, 2169º do C.C.).
O art. 2178º do CC, ao referir-se à caducidade da acção de redução de liberalidades inoficiosas, permite concluir que este pedido pode ser deduzido em acção comum e/ou em processo de inventário.

Segundo algumas correntes jurisprudenciais a utilização daquela acção comum está reservada:

- aos sujeitos que não têm legitimidade para instaurar o processo de inventário e que podem ter interesse em ver reconhecida a redução por inoficiosidade, como acontecerá relativamente aos credores de algum herdeiro legitimário, quando se coloca a questão da legítima deste ser afectada pela liberalidade;
- aos herdeiros legitimários quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume aquela qualidade;
- quando já tenha sido concluído o inventário e efectuada a partilha dos bens do doador sem que aí tenha sido considerada a redução (neste último sentido Ac. da R.P. de 26/03/2009 (Teixeira Ribeiro).
Neste sentido vide Ac. desta Relação de 20/04/2017 (Helena Melo), in www.dgsi.pt.
Segundo o art. 2162º nº 1 do C.C. Para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança.
Atenta a matéria de facto dada como provada e o disposto neste preceito, no caso em apreço, para o cálculo da legítima da autora, há que atender aos valores dos seguintes bens doados: € 42.000,00 (estabelecimento comercial) + € 15.552,00 (prédio rústico) + € 74.500,00 (fracção “P”) + € 45.512,50 (fracção “O”) + € 23.375,00 (fracção “P”), o que perfaz um total de € 200.939,50. Assim, a legítima da autora é de € 100.469,75.

2.
No que concerne ao preenchimento da legítima, num caso em que apenas temos liberalidades feitas em vida, é em primeira linha aplicável o art. 2173º do C.C. que dispõe o seguinte:

1.Se for necessário recorrer às liberalidades feitas em vida, começar-se-á pela última, no todo ou em parte; se isso não bastar, passar-se-á à imediata; e assim sucessivamente.
2. Havendo diversas liberalidades feitas no mesmo acto ou na mesma data, a redução será feita entre elas rateadamente, salvo se alguma delas for remuneratória, porque a essa é aplicável o disposto nº 3 do artigo anterior.

Em anotação a este preceito escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Ed., p. 279-280:

“São (…) três as regras que este preceito manda observar quando (…) se torne necessário chegar à redução das liberalidades feitas em vida do autor da herança, para preenchimento do direito á legítima que o artigo 2169º pretende colocar ao alcance de cada herdeiro legitimário.
A primeira dessas regras é de ordem cronológica das liberalidades, a começar pela última, até seu completo esgotamento, e seguindo sempre pela via da maior antiguidade acima.
Este princípio de redução sucessiva e integral de cada uma das doações (lato sensu) inoficiosas, ditado em termos imperativos pelo nº 1 do art. 2173º, (…) explica-se fundamentalmente pelo distanciamento jurídico existente entre as doações, em princípios irrevogáveis e cada uma delas com o seu momento cronológico próprio (…).
A segunda regra, posterior ao critério cronológico, restritamente aplicável às doações (lato sensu) realizadas no mesmo acto jurídico (colectivo ou global) ou feitas na mesma data, é a da redução rateada, em termos proporcionais, na falta de elementos que racionalmente imponham outro critério distributivo da limitação.
4. A terceira regra, com um alcance prático bastante reduzido, refere-se apenas às doações remuneratórias. (…)”

Quanto aos termos em que se efectua a redução dispõe o art. 2174º do C.C.:

1.Quando os bens legados ou doados são divisíveis, a redução faz-se separando deles a parte necessária para preencher a legítima.
2. Sendo os bens indivisíveis, se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente ao herdeiro legitimário, e o legatário ou donatário haverá o resto em dinheiro; no caso contrário, os bens pertencem integralmente ao legatário ou donatário, tendo este de pagar em dinheiro ao herdeiro legitimário a importância da redução.
3. A reposição de aquilo que se despendeu gratuitamente a favor dos herdeiros legitimários, em consequência da redução, é feita igualmente em dinheiro.

Em anotação a este artigo Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 281, referem:

“O direito à legítima é, em larga medida, no direito sucessório português: a) um direito sobre bens – e não um puro direito de crédito; b)um direito sobre bens da herança, e não um puro direito, de expressão quantitativa, relativamente ao activo líquido do património hereditário; c) um verdadeiro direito real em espécie, de comparticipação qualitativa no património que integra a herança”.
(…)
A regra fundamental aplicável a esse caso é a de que os bens (indivisíveis) ficarão, quando assim seja, na exclusiva titularidade do herdeiro legitimário, quando a importância da redução exceda metade do valor dos bens, ficando o (…) donatário com o direito a haver em dinheiro o valor correspondente à parte restante da coisa indivisível.
No caso contrário, em obediência ao mesmo princípio de equidade, as coisas indivisíveis ficarão em propriedade exclusiva ou integral ao (…) donatário, cabendo ao herdeiro legitimário o direito de crédito correspondente à parte do menor valor da coisa.”

Tal como o tribunal recorrido, subscrevemos a tese defendida pelo invocado Ac. do S.T.J. de 06/12/2001 (Duarte Soares), in www.dgsi.pt, onde se lê:

“I - A legítima é um direito sobre os bens da herança, e não um simples direito de crédito.
II - O rateio tem em vista distribuir por vários sujeitos, de modo equitativo, o cumprimento duma obrigação plural.
III - Assim, não há lugar a rateio se as liberalidades, tidas como inoficiosas, beneficiaram um único interessado.
IV - Neste caso, nada impede que seja observada a regra do n.º 1 do artº 2174 CC.”

Revertendo ao caso em apreço, importa relembrar que a doação do estabelecimento comercial ocorreu em 2005, que a doação do prédio rústico e da fracção “D” ocorreu em 27/06/2008 e que a doação das fracções “O” e “P” ocorreu em 28/08/2008. E que, atento o doc. de fls. 236 a 238, esta última fracção foi posteriormente doada pelo réu a J. C..
Assim sendo, tendo em atenção que a legítima da autora é de € 100.469,75 e o disposto nos art. 2173º nº 1 e 2175º do C.C., desde logo, aquela é preenchida pela fracção “O” (€ 45.512,50) e pelo valor da fracção “P” de € 23.375,00, num total de € 68.887,50 pelo que é de condenar os réus nestas entregas.
Uma vez que fica por preencher a legitima no valor de € 31.582,25 há que passar, atento o disposto no art. 2173º nº 1 do C.C., para as doações de 27/06/2008.
Nos termos do art. 2174º nº 1 e 2 do C.C. aquele remanescente da legítima é preenchido, primeiro pelo prédio rústico (€ 15.552,00), e no remanescente de € 16.030,25 em dinheiro pelo que é de condenar os réus nestes termos.
Procede, assim, a apelação.
*
Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Numa acção de redução de liberalidades inoficiosas, por se tratar de factos constitutivos do seu direito, incumbe à autora o ónus de alegação e prova da sua qualidade de herdeira legitimária e dos factos pertinentes ao cálculo da legítima.
II - Num caso em que apenas há liberalidades feitas em vida e em datas distintas, a redução inicia-se pela última e assim sucessivamente (art. 2173º nº 1 do C.C.).
III – Quando as liberalidades, tidas como inoficiosas, foram realizadas no mesmo acto jurídico ou feitas na mesma data e beneficiaram um único interessado, a redução não deve ser feita rateadamente, em termos proporcionais, mas nos termos do nº 1 do artº 2174 C.C.”
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida e,

Julgam parcialmente procedente a acção,

a) Decretando a redução por inoficiosidade das doações identificadas nos pontos 3 e 5 da fundamentação de facto;
b) Determinam que o preenchimento da legítima da autora, no valor de € 100.469,75, seja realizado através da fracção “O” e do prédio rústico, que ficam a pertencer-lhe, e pelo pagamento da quantia de € 39.405,25;
c) Condenam os réus na entrega destes bens e montante.
Custas da apelação pelos apelados.
Custas da acção na proporção no decaimento.
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Guimarães, 19/09/2019

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade