Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
39/09.0TBMGD-M.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Na presunção judicial deve existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido.
II – É legítimo presumir o não pagamento do preço de cem mil euros estabelecido no contrato de compra e venda do único imóvel da ré/insolvente, se se alega o seu pagamento em numerário, mas sem que se junte ao processo qualquer documento contabilístico da ré compradora, ou um extracto bancário que indicie esse pagamento.
III – A resolução de actos em benefício da massa insolvente é um mecanismo que visa dar ao administrador o poder de, com celeridade e eficácia, fazer reingressar naquela bens ou direitos que tenham sido alienados por actos que prejudiquem a satisfação dos credores que vieram reclamar os respectivos créditos no processo de insolvência.
IV – A resolução prevista no artigo 120º do CIRE (resolução condicional) pode ser efectuada relativamente a actos praticados dentro dos quatro anos anteriores ao início do processo de insolvência, desde que sejam prejudiciais à massa e o terceiro neles interveniente esteja de má fé.
V- A venda do único imóvel da ré/insolvente sete meses antes do início do processo de insolvência por valor substancialmente inferior ao preço de mercado, sem que o preço tenha sido efectivamente pago e conhecendo a ré compradora a situação de insolvência da ré vendedora, preenchem os requisitos enunciados em IV.
VI – A declaração negocial recipienda ou receptícia considera-se eficaz não apenas quando é recebida pelo destinatário como ainda quando só por sua culpa exclusiva não foi oportunamente recebida (art. 224º, nº 2, do CC).
VII – Tendo a administradora da insolvência enviado a carta de resolução do contrato de compra e venda a favor da massa insolvente para a morada da compradora constante do contrato, o seu não recebimento deve-se a culpa exclusiva desta última.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO
A Massa Insolvente de E…, Lda., representada pela administradora da insolvência, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra C…, Llc, E…, Lda. e S…, pedindo que:
a) seja declarada, quer a eficácia da resolução, quer a produção dos efeitos do acto jurídico de resolução do acto notarial de compra e venda outorgada em 14.08.2008 celebrado entre a E…, Lda., e a C…, Llc, respeitante ao bem imóvel identificado enquanto "fracção autónoma designada pela letra "B", localizada no rés-do-chão esquerdo destinado a comércio do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito no lugar do Prado, freguesia e concelho de Mogadouro, descrito na CRPredial de Mogadouro sob o nº 1.142, e inscrito na matriz sob o artigo 3316 da freguesia de Mogadouro;
b) os réus sejam condenados a reconhecer a legitimidade e validade de tal declaração de resolução;
c) se declare revertido o bem imóvel em causa para a Massa Insolvente nos termos do artº 126º, nº 1 do CIRE;
d) seja fixado judicialmente um prazo para a sua restituição;
e) seja ordenada a extinção dos ónus e/ou registos que incidam sobre os bens com efeitos à data do acto resolvido.
Alegou, para tal, que por escritura de compra e venda outorgada em 14.08.2008, a 2ª ré, representada pelo aqui 3º réu, vendeu à 1ª ré, entidade de direito estrangeiro de raiz e participação desconhecidas, comummente designada por empresa offshore, a fracção autónoma acima identificada, sendo que tal alienação mais não representou do que a fórmula encontrada pelos réus para fazer deslocar do acervo patrimonial da 2ª ré o seu bem mais valioso, evitando assim que o imóvel fosse avocado para pagamento das dívidas da empresa, a qual acabou por ser declarada insolvente em Abril de 2009. O preço de € 100.000,00 declarado a pagar pela compradora à vendedora - que o 3º réu admitiu ter recebido -, não foi pago, não se encontrando sequer reflectido na contabilidade da ré insolvente, além de que esse preço não corresponde ao valor efectivo e de mercado do imóvel, à data da alienação, o qual ascende ao valor mínimo de € 500.000,00.
Mais alega ter a administradora da insolvência procedido à resolução do acto danoso e prejudicial para a massa, através de carta registadas enviadas a todos os intervenientes no negócio, do qual apenas teve conhecimento no início do mês de Maio de 2009, na sequência das averiguações realizadas para a busca e apreensão do património da 2ª ré, sendo que a 1ª ré, atento o valor real do imóvel em causa, ficou claramente beneficiada em detrimento dos interesses dos credores da empresa vendedora, não ignorando esta ré, tal como os demais réus, que em Agosto de 2008, o imóvel representava um essencial meio garantístico para a solvência das dívidas da insolvente, bem como a situação de insolvência da 2ª ré, dado que tal facto era do conhecimento público, sendo o seu objectivo prejudicar os credores, tendo, pois, todos os réus agido com perfeita consciência do alcance dos seus actos, visando unicamente evitar a avocação do imóvel pela massa insolvente e, assim, prejudicar os seus credores.
Contestou apenas a 1ª ré, excepcionando e impugnando.
Por excepção, invocou a prescrição do direito da autora, afirmando nunca ter recebido nenhuma comunicação de resolução do negócio, sendo apenas com a citação para a presente acção que teve conhecimento de tal pretensão.
Por impugnação, diz que o preço de € 100.000,00 da compra do imóvel à 1ª ré foi pago em numerário, por exigência da insolvente, sendo completamente fantasioso o valor de € 500.000,00 indicado pela autora como correspondente ao valor de mercado do imóvel, sendo que de acordo com a avaliação realizada pela Autoridade Tributária, à fracção em causa foi atribuído o valor patrimonial de € 98.501,94€, pelo que o preço pelo qual foi realizado o negócio de compra e venda da referida fracção não foi prejudicial para a 2ª Ré.
Foi proferido despacho saneador e organizada a matéria de facto assente e a base instrutória, sem reclamação.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar a acção procedente e, em consequência, condenou os réus no pedido.
Inconformada, apelou a ré, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
(…)

A autora contra-alegou, batendo-se pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Como emerge do conteúdo das conclusões da alegação da recorrente que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, as questões cuja resolução vêm propostas consistem em saber:
- se deve ser alterada a matéria de facto nos concretos pontos indicados pela recorrente;
- se assiste à autora o direito de resolver o contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª e a 2ª ré a favor da massa insolvente desta última;
- se caducou o direito de proceder à resolução do negócio.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[1]:
1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Mogadouro sob o n.º 1142/199661220 o prédio urbano, sito em Prado, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3316, constituído em propriedade horizontal, composto pelas fracções A e B [al. A].
2) A sociedade “E…, Lda.” foi declarada insolvente por sentença de 2 de Abril de 2009, proferida no âmbito dos Autos Principais, tendo sido nomeada como Administradora de Insolvência (AI) a Sra. Dra. P…, com escritório na Rua Padre Américo, Edifício Marialva, 1.º J, em Anadia [al. B)].
3) Por escritura de compra e venda outorgada em 14.08.2008 no Cartório Notarial do Ex.mo Sr. Dr. António Gonçalves de Sousa, sito na Rua Gomes de Amorim, 36, 1º, cidade da Póvoa de Varzim, a 2.ª R. vendeu à 1.ª R., C…, Llc, com sede em Suite 808, 1220 N. Market Street, Wilmington, New Castle, Delaware 19801, Estados Unidos da América, o seguinte bem imóvel: fracção autónoma designada pela letra “B”, localizada no rés-do-chão esquerdo destinado a comércio do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito no lugar do Prado, freguesia e concelho de Mogadouro, descrito na CRPredial de Mogadouro sob o n.º 1142, inscrito na matriz sob o artigo 3316 da citada freguesia de Mogadouro e com Alvará de Licença de Utilização atribuído pela Câmara Municipal de Mogadouro em 04.12.2006 [al. C)].
4) No acto notarial em causa a 2.ª R./proprietária e vendedora foi representada pelo 3º R., seu sócio-gerente, Sr. S…, residente na Avenida Calouste Gulbenkian, 5200, em Mogadouro, e a 1.ª R./alegada compradora foi representada pelo Exm.º Sr. Dr. J…, com domicílio na Rua Gomes de Amorim, 36, 3º, 4490-641 Póvoa de Varzim [al. D)].
5) No ano de 2012, o valor patrimonial do prédio identificado em C) dos factos assentes era de € 98.501,94 e no ano de 2006 era de € 91.510,00 [al. E)].
6) Por contrato de promessa de compra e venda datado de 06.06.2006 secundado por Acordo Parassocial outorgado em 20.03.2007, S… e C… criaram a propriedade horizontal do imóvel, sede da empresa, dividindo-o em duas parcelas autónomas que partilharam entre si [art. 1º].
7) Permanecendo a sociedade insolvente e igualmente 2.ª R. com a fracção “B” entretanto constituída [art. 2º].
8) O preço declarado pago pela 1.ª R. à 2.ª R. e que o 3.º R. admitiu ter recebido, ou seja, € 100.000,00 (cem mil euros) não foi pago pela 1.ª Ré à 2.ª R. [art. 3º].
9) Assim como não se encontra reflectido na contabilidade da E…, Lda. [art. 4º].
10) O valor de € 100.000,00 (cem mil euros) não corresponde, por defeito, ao valor efectivo e de mercado do imóvel, sequer à data da alienação [art. 5º].
11) O qual ascende, levando em linha de conta a área, a disponibilidade de utilização, o seu licenciamento e a sua capacidade de implantação industrial ao valor mínimo de € 240.339,60 [art. 6º].
12) Por cartas enviadas às partes intervenientes no negócio ao abrigo do disposto no art.º 123.º do CIRE, datadas de 27 Julho de 2009 e formuladas nos termos do disposto nos art.ºs 120.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, alíneas a) e b) e 121.º, n.º 1, alíneas b) e h), ambos do C.I.R.E. (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto) a Administradora da Insolvência procedeu à resolução do acto danoso e prejudicial para a massa [art. 8º].
13) Para tal alegou, "(...) registada com aviso de recepção. Assunto: Resolução de acto jurídico Aplicação do artigo 120.º, nºs 1, 2, 4 e 5, alíneas a) e b) e 121.º, n.º 1, alíneas b) e h) do C.I.R.E. (DL n.º 53/2004, de 18 de Março alterado pelo DL n.º 200/2004, de 18 de Agosto) M/ Refª: Processo de Insolvência de Pessoa Colectiva n.º 39/09.0 TBMGD, Secção Única do Tribunal Judicial da Comarca de Mogadouro. Insolvente: E…, Lda. Porto, 27 de Julho de 2009.Ex.mo Senhor, Enquanto Administradora de Insolvência da massa insolvente supra identificada e nos termos do disposto nos artigos 120.º, nº.s 1, 2, 4 e 5, alíneas a) e b) e 121.º, n.º 1, alíneas b) e h), ambos do CIRE (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto) sou a declarar-lhe que procedo à RESOLUÇÃO do acto jurídico consubstanciado na transmissão/compra e venda na sequência da qual V. Exª., na qualidade de representante legal da C…, Llc, sociedade de direito estrangeiro com sede na Suite 808, 1220 N. Market Street, Wilmington, New Castle, Delaware, 19801 EUAmérica adquiriu à E…, Lda., NIPC 500 982 058, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Mogadouro sob o n.º 500982058 e com sede na Recta do Vale da Madre/Posto Shell, 5200-216 MOGADOURO, freguesia, concelho e comarca de Mogadouro, por escritura pública de compra e venda outorgada em 14.08.2008 no Cartório Notarial do Ex.mo Sr. Dr. António Gonçalves de Sousa, sito na Rua Gomes de Amorim, 36, 1.º, cidade da Póvoa de Varzim, o seguinte bem imóvel: fracção autónoma designada pela letra "B", localizada no rés-do-chão esquerdo destinado a comércio do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito no lugar do Prado, freguesia e concelho de Mogadouro, descrito na CRPredial de Mogadouro sob o n.º 1142, inscrito na matriz sob o artigo 3316 da citada freguesia de Mogadouro e com Alvará de Licença de Utilização atribuído pela Câmara Municipal de Mogadouro em 04.12.2006; A Administradora da Insolvência teve conhecimento destes factos no início do mês de Maio de 2009 na sequência das averiguações realizadas para a busca e apreensão do património da E…, Lda. enquanto garante do ressarcimento dos seus credores.
Porém, o património transmitido em benefício da representada de V. Exª, em momento imediatamente anterior ao decretar da insolvência por sentença datada de 02.04.2009 não só detém um valor manifestamente superior ao do escriturado o qual ascende, no mínimo, a 500.000,00€ (quinhentos mil euros), razão pela qual a compradora ficou claramente beneficiada com o acto em detrimento directo dos interesses dos credores da empresa vendedora, como sequer foi recebido, por parte da vendedora, qualquer preço pago pela C…, Llc. Por outro lado, a C…, Llc, não ignorava, em Agosto de 2008, a subsistência dos factores-índices da insolvência da vendedora, quer por tal ser voz corrente na área de intervenção da E…, Lda. quer por tal se revelar em função da inexistência de actividade da empresa em causa e o já volumoso volume de débitos que esta apresentava perante os seus fornecedores. Logo, o acto resolvido consubstancia actividade prejudicial aos interesses da massa, mormente, por força da impossibilidade de apreensão e alienação do património objecto da compra e venda o que diminui substancialmente o valor em massa em detrimento dos interesses dos credores da insolvência. Sendo o que se me oferece comunicar-lhe de momento, sou, com os meus respeitosos cumprimentos e atentamente, A Administradora da Insolvência, (...)”[art. 9º].
14) Os Réus sabiam que, na altura, a insolvente encontrava-se devedora a valores que substanciavam a sua insolvência, designadamente e à data da declaração da insolvência: à A…., SA, a quantia de 1.819,33€, 144,07€ de juros, num total de 1.963,40€; ao B…, SA, a quantia de 71.947,47€; ao B…, SA a quantia de 26.700,00€, 949,44€ de juros, num total de 27.649,44€; à C…, CRL a quantia de 595.095,37€, 80.671,90€ de juros, num total de 675.767,27€; à C…, SA, a quantia de 121.823,21€, 4.014,73€ de juros de mora, num total de 125.837, 94€; à C…, SA, a quantia de 9.344,09 €, 1.347,75€ de juros, num total de 10.691,84€; à E…, Lda., a quantia de 1.595,17€; à E…, Lda., a quantia de 18.818,03€; à E…, Lda., a quantia de 13.066,06€; ao I…, a quantia de 1.875,50€; ao J…, a quantia de 3.306,00€; ao J… e L…, a quantia de 12.500,00€; à M.. Lda., a quantia de 710,88€; ao Ministério Público/ Fazenda Nacional a quantia de 40.156,23€ e 2.358,72€ de juros, num total de 42.514,95€; à P… SA, a quantia de 2.129,44€; à P…, SA, a quantia de 452,47€; à S…, SA, a quantia de 12.340,27€ e 1.510,68€ de juros, num total de 13.850,95€; à S…, a quantia de 5.000,00€ e 221,40€ de juros, num total de 5.221,40€; à S…, SA, a quantia de 1.611,71€ e 185,79€ de juros, num total de 1.797,50€; à T…, a quantia de 3.788,79€, sendo os totais: de 944.080,02€ e 91.404,48€ de juros, sendo a quantia global de 1.035.484,50€ [art. 10º].
15) Todos os intervenientes no negócio mencionado em C) dos factos assentes tinham conhecimento de que o bem imóvel supostamente vendido representava um essencial meio garantístico para a solvência das dívidas da insolvente [art. 11º].

E foram dados como não provados os seguintes factos:
- O valor do imóvel ascende, levando em linha de conta a área, a disponibilidade de utilização, o seu licenciamento e a sua capacidade de implantação industrial ao valor mínimo de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) [art. 6º].
- À data em que a administradora da insolvência confrontou o sócio-gerente da 2.ª ré e aqui 3.º réu sobre o pagamento do preço da transmissão este confessou que, na realidade, a 1.ª ré não lhe havia pago qualquer valor, tendo o negócio/transmissão sido realizado com a intenção única de evitar que o bem imóvel fosse avocado para pagamento das dívidas da empresa [art. 7º].
- A ré C… LLC não recebeu a comunicação mencionada em 8) e 9) da base instrutória [art. 12º].
- Apenas com a citação na presente acção teve aquela ré conhecimento de tal pretensão [art. 13º].

Da alteração da matéria de facto
(…)
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correcta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC.

Do direito de resolução do contrato de compra e venda a favor da massa insolvente.
A pretensão da recorrente de ver revogada a sentença radicava, essencialmente, na alteração da matéria de facto, pretensão que este Tribunal não acolheu, pelo que permanecem inalterados os fundamentos que determinaram a procedência da acção, pelo que poço mais haverá a acrescentar ao que se escreveu na sentença recorrida.
Sempre se dirá, em resumo, que a resolução em benefício da massa insolvente é um mecanismo que visa dar ao administrador o poder de, com alguma eficácia, fazer reingressar naquela bens ou direitos que possam ter sido alienados por actos praticados no intuito de os furtar à garantia da satisfação dos credores que vierem reclamar os seus créditos na insolvência.
Como se esclarece no preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18 de Março, diploma que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na sua nota 41 – “prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico - a «resolução em benefício da massa insolvente» -, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património”. O que se justifica na medida em que “a finalidade precípua do processo de insolvência - o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente”. Posto o que “importa apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa”[10].
Tal faculdade de resolução foi concedida, de forma incondicional, relativamente aos actos taxativamente apontados no artigo 121º do CIRE[11], desde que praticados dentro de certo prazo que anteceda o início do processo de insolvência, que varia, conforme o tipo de acto, entre seis meses e dois anos.
Pode ainda ser actuada, o que é regulado no artigo 120º, relativamente a actos praticados dentro dos quatro anos anteriores a essa data, desde que sejam prejudiciais à massa e o terceiro neles interveniente esteja de má-fé. Por depender da verificação de requisitos, vem-se chamando a esta, por contraposição aquela outra, resolução condicional.
O legislador fez questão de delinear o alcance desses pressupostos. No nº 2 daquele artigo, o de actos prejudiciais à massa, que são «os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência». No nº 5, fez corresponder a má-fé ao «conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias; de que o devedor se encontrava em situação de insolvência; do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; do início do processo de insolvência».
No apuramento desses dois requisitos, foram contempladas presunções.
No nº 3, presumiram-se prejudiciais à massa, juris et de jure, os actos dos tipos referidos no artigo 121º. O que só interessará, como é óbvio, para os que foram praticados para lá do prazo estabelecido para a resolução incondicional e até aos 4 anos anteriores ao início do processo de insolvência.
No nº 4, estabeleceu-se a presunção, juris tantum, da má-fé do terceiro, «quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data».
No caso em apreço, a administradora da insolvência declarou resolvido em benefício da massa o contrato de compra e venda a que se vem aludindo, com fundamento que reportou aos arts. 120º e 121º, alíneas b) e h).
No que especificamente respeita à alínea b) do artigo 121º, porque se teria tratado de um negócio gratuito camuflado e, quanto à alínea h), porque face ao não pagamento do preço haveria desproporção entre as obrigações assumidas pela insolvente e pela compradora.
Começaremos por confirmar que, nas cartas de resolução enviadas aos réus, a administradora da insolvência deu cumprimento ao dever de nelas enunciar os fundamentos de facto e de direito em que se apoiou. O que é requisito essencial da validade da mesma, só assim possibilitando ao impugnante do acto resolutivo contrariar os factos em que ela se estriba[12], se bem que as cartas resolutivas apenas careçam da indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução[13].
Uma vez que a sentença recorrida reconduziu a situação a um caso de resolução condicional, não se cuidará ora dos fundamentos a que alude o art. 121º, que foram afastados na sentença recorrida. Por sua vez, apenas utilizaremos os factos em que esta se apoiou, para concluir que o acto em análise teria consubstanciado a prática de negócio simulado, enquanto também relevantes para a aceitação da resolução com fundamento no artigo 120º.
Como refere Fernando Gravato Morais[14], «os actos resolúveis não se configuram, nem são havidos, como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja sob o prisma substancial, atendendo, naturalmente, à inexistência de vícios que os afectem».
Acrescentando que «do que se trata aqui é de, em razão dos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contratam com o devedor insolvente e, eventualmente, os de que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência». Pois «a finalidade é a da reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito de satisfazer os direitos do credor».
Assim, nesta acção não se cuida de apurar eventual nulidade da compra e venda, por simulação, mas tão só de indagar a existência dos pressupostos que permitissem à administradora da insolvência resolvê-lo em benefício da massa insolvente.
Vejamos, pois, se se verificam os mencionados requisitos.
Quanto à temporalidade, o acto resolvido foi praticado 7 meses antes do início do processo de insolvência, portanto dentro dos 4 anos que o precederam – nº 1 do referido artigo 120º.
De seguida há que questionar da sua prejudicialidade para a massa, diminuindo, frustrando, dificultando, pondo em perigo ou retardando a satisfação dos credores da insolvência (nº 2 do mesmo preceito), frisando-se que, na senda do que se considerou na sentença recorrida e não foi posto em causa pela recorrente, temos por afastada a presunção do nº 3, que remete para os actos do artigo 121º.
E aqui retomaremos as considerações acima expendidas relativas às presunções judiciais. Para considerar que, à luz dos parâmetros de uma normalidade que não pode ser ignorada, a venda do seu único imóvel por parte do insolvente poucos meses antes de se apresentar à insolvência é, salvo circunstancialismo excepcional, um acto que prejudica a satisfação dos credores da massa.
Com efeito, «a venda de um imóvel é à partida um acto prejudicial à massa insolvente atenta a natureza volátil da contrapartida». O que será todavia de afastar se se demonstrar que «essa contrapartida foi empregue noutros bens que sejam apreendidos nos autos, ou que a mesma proporcionou um aumento do activo»[15].
Ora, os réus nada alegaram no sentido de abalar aquela presunção, limitando-se a buscar refúgio no argumento de que era à massa insolvente que incumbia o ónus da prova do prejuízo.
Cabe, por último, analisar o requisito da má-fé.
Qual seja, nos termos das alíneas a) ou b) do nº 5 do referido artigo 120º, se a recorrente conhecia, à data das compras, que o vendedor se encontrava em situação de insolvência ou do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência eminente.
Está provado, nos pontos 14 e 15 do elenco dos factos provados, que «os réus sabiam que, na altura, a insolvente encontrava-se devedora a valores que substanciavam a sua insolvência» e que «todos os intervenientes no negócio mencionado em C) dos factos assentes tinham conhecimento de que o bem imóvel supostamente vendido representava um essencial meio garantístico para a solvência das dívidas da insolvente».
Esta matéria de facto, apesar de impugnada no recurso, manteve-se inalterada pelas razões acima expostas, pelo que nenhuma dúvida pode haver quanto à verificação in casu do requisito da má fé.
Em suma, considera-se válido o fundamento da resolução em benefício da massa insolvente levada a cabo pela administradora da insolvência, por assentar em factos que caracterizam as previsões do art. 120º, nºs 1, 2, 4 e 5.

Da caducidade do direito de resolução
A resolução em benefício da massa insolvente dos actos prejudiciais à massa concretiza-se por declaração emitida pelo administrador da insolvência, nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de dois anos sobre a data da declaração da insolvência (art. 123º, nº 1).
Tais prazos concretizam-se numa verdadeira “caducidade” do direito potestativo de impugnação, que não numa prescrição do direito, como poderia inculcar a epígrafe do art. 123º[16].
No caso concreto, resultou provado que «[p]or cartas enviadas às partes intervenientes no negócio ao abrigo do disposto no art.º 123.º do ClRE, datadas de 27 Julho de 2009 e formuladas nos termos do disposto nos art.ºs 120.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, alíneas a) e b) e 121.º, n.º 1, alíneas b) e h), ambos do C.I.R.E. (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto) a Administradora da Insolvência procedeu à resolução do acto danoso e prejudicial para a massa» - ponto 12 do elenco dos factos provados.
É indiscutível que a resolução, como declaração de vontade, a operar, no caso, mediante comunicação legalmente tarifada, é uma declaração receptícia, isto é, a respectiva eficácia depende do conhecimento do destinatário.
A recorrente põe em causa a validade, quanto a si, da resolução operada pela administradora da insolvência, por a mesma ter sido efectuada na pessoa do respectivo procurador no negócio, o Dr. João Pedro de Abreu Moreira, que segundo ela, uma vez que «não detinha poderes para receber a citação nos presentes autos, pela mesma ordem de ideias não detinha poderes para receber a comunicação da resolução nos termos do art. 123.º do CIRE.»
Mas não tem razão.
Nos termos do art. 224º do Código Civil:
«1- A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida (…);
2 – É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida;
3 – (…).”
O transcrito preceito consagra uma teoria mista: O declaratário fica vinculado logo que conheça o conteúdo da declaração, ainda que o texto ou o documento não lhe tenham sido entregues.
Mas fica igualmente vinculado nos termos da teoria da recepção, isto é, logo que a declaração chegue ao seu poder, à sua esfera pessoal, ainda que não tome conhecimento dela.
O que releva é que a declaração seja colocada ao alcance do destinatário, que este seja posto em condições de, só com a sua actividade, conhecer o seu conteúdo.
A solução legal visa, naturalmente, evitar fraudes e intencionais alheamentos por banda do destinatário: é por isso que se considera eficaz a declaração que não foi recebida por culpa do destinatário, como sucede quando ele se ausenta para parte incerta, se recusa a receber a carta negocial ou não a levante em eventual apartado que possua.
O mencionado preceito consagra a regra geral no domínio da eficácia da declaração negocial[17].
Como se escreveu no acórdão do STJ de 09.02.2012 (Abrantes Geraldes)[18], «[a] dificuldade está na apreciação dos comportamentos (acções ou omissões) do destinatário susceptíveis de integrar a situação prevista no nº 2 do art. 224º do CC. Lidando com conceitos indeterminados conexos com elementos subjectivos da responsabilidade contratual (a culpa e a exclusividade da culpa), a apreciação deve ser feita casuisticamente, ponderando designadamente o específico contexto contratual.
Deste modo, será diferente o juízo formulado no âmbito de um contrato em que nada tenha sido acautelado a respeito da forma das comunicações ou do seu destino, em comparação com outro em que as partes tenham estabelecido endereços para onde deveriam remeter as comunicações relevantes em termos contratuais.
Na ausência de outro critério delimitador do conceito de culpa para este efeito, teremos de nos socorrer do disposto no art. 799º, nº 2, do CC, sobre a culpa no âmbito da responsabilidade contratual e, por via remissiva, do art. 487º, nº 2, do CC, nos termos da qual esse elemento subjectivo deve ser concretamente aferido através do critério de um devedor criterioso e diligente.»
É também este o sentido interpretativo para que aponta Pais de Vasconcelos quando refere que o nº 2 do art. 224º do CC se destina a contrariar «as práticas relativamente vulgares, por parte dos destinatários de declarações negociais e não negociais, de se furtarem à recepção das comunicações que lhe são dirigidas”, para concluir que “ser necessário demonstrar que, sem acção ou abstenção culposas do declaratário, a declaração teria sido recebido. A concretização deste regime não dispensa um juízo cuidadoso sobre a culpa, por parte do declaratário, no atraso ou não recepção da declaração».[19]
No caso em apreço, a administradora da insolvência enviou as cartas de resolução para as moradas dos réus e dos respectivos representantes, constantes da escritura de compra e venda, únicas existentes no processo, até porque do contrato de compra e venda não constavam outras moradas, sendo que não foi sequer alegado que tenha sido transmitido à senhora administradora uma outra morada da recorrente para lhe serem efectuadas eventuais comunicações relativas ao contrato em causa.
Ademais, a notificação da resolução foi recebida pelo Dr. João Pedro de Abreu Moreira, procurador da recorrente que teve intervenção na escritura de compra e venda, o qual, por isso, tinha poderes para ser abordado relativamente à resolução operada, ou pelo menos para suscitar junto da administradora da insolvência a sua ilegitimidade para tal, o que não fez.
Assim, mesmo a admitir-se que a recorrente não tenha recebido a carta de resolução, o que não está sequer demonstrado, pode concluir-se, com elevado padrão de certeza, que a declaração de resolução apenas não foi do conhecimento efectivo da recorrente … porque esta não quis. E se não quis nem fez nada para inverter o rumo dos acontecimentos, não é legítimo que venha agora questionar a actuação da administradora da insolvência.
Não caducou, portanto, o direito de resolução do negócio em benefício da massa insolvente.
Improcedem deste modo todas as conclusões do recurso, o que implica o total inêxito do mesmo e a manutenção da decisão recorrida.

Sumário:
I – Na presunção judicial deve existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido.
II – É legítimo presumir o não pagamento do preço de cem mil euros estabelecido no contrato de compra e venda do único imóvel da ré/insolvente, se se alega o seu pagamento em numerário, mas sem que se junte ao processo qualquer documento contabilístico da ré compradora, ou um extracto bancário que indicie esse pagamento.
III – A resolução de actos em benefício da massa insolvente é um mecanismo que visa dar ao administrador o poder de, com celeridade e eficácia, fazer reingressar naquela bens ou direitos que tenham sido alienados por actos que prejudiquem a satisfação dos credores que vieram reclamar os respectivos créditos no processo de insolvência.
IV – A resolução prevista no artigo 120º do CIRE (resolução condicional) pode ser efectuada relativamente a actos praticados dentro dos quatro anos anteriores ao início do processo de insolvência, desde que sejam prejudiciais à massa e o terceiro neles interveniente esteja de má fé.
V- A venda do único imóvel da ré/insolvente sete meses antes do início do processo de insolvência por valor substancialmente inferior ao preço de mercado, sem que o preço tenha sido efectivamente pago e conhecendo a ré compradora a situação de insolvência da ré vendedora, preenchem os requisitos enunciados em IV.
VI – A declaração negocial recipienda ou receptícia considera-se eficaz não apenas quando é recebida pelo destinatário como ainda quando só por sua culpa exclusiva não foi oportunamente recebida (art. 224º, nº 2, do CC).
VII – Tendo a administradora da insolvência enviado a carta de resolução do contrato de compra e venda a favor da massa insolvente para a morada da compradora constante do contrato, o seu não recebimento deve-se a culpa exclusiva desta última.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Guimarães, 6 de Novembro de 2014
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
_________________________________________
[1] Mantém-se a sequência dos factos constantes da sentença, mas na parte final de cada um dos pontos, indicar-se-á entre parêntesis a alínea e o número correspondente aos “factos assentes” e à base instrutória, respectivamente.
(…)
[10] Aspecto realçado no Ac. do STJ de 12.07.2011 (Gabriel Catarino), proc. 509/08.8TBSCB-K.C1.S1, in www.dgsi.pt: “o instituto da resolução em benefício da massa insolvente consagrado, de forma indelével e impressiva, no CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas), visou conferir uma maior eficácia e celeridade aos actos de recuperação de bens que estivessem no património do devedor insolvente e que tivessem sido desviados do fim a que se destina o processo de insolvência, qual seja o de dar satisfação, na medida das forças do património, dos créditos existentes à data da declaração da insolvência”.
[11] São deste Código todos os artigos adiante citados sem menção de origem.
[12] Neste sentido, inter alia, os Acórdãos do STJ de 17.09.2009 (Mário Cruz), proc. 307/09.1YFLSB e da RP de 07.10.2013 (Abílio Costa), proc. 251/09.2TYVNG-I.P1, ambos in www.dgsi.pt.
[13] Ac. da RP de 24.11.2011 (Deolinda Varão), proc. 297/09.0TBCPV-E.P1, in www.dgsi.pt.
[14] In Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, 2008, p. 47.
[15] Cfr., inter alia o Ac. da RP de 05.12.2013 (José Manuel de Araújo Barros), proc. 2041/10.0TJPRT-C.P1, in www.dgsi.pt, que vimos seguindo de perto.
[16] Cfr., por todos, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, Quid Juris, 2009, p. 438.
[17] Ac. do STJ de 18.02.2009 (Sousa Grandão), proc. 08S2577, in www.dgsi.pt.
[18] Proc. 3792/08.5TBMAI-A.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[19] Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed., pp. 457 e 458.