Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
10/16.6T8AMR.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: PEDIDO GENÉRICO
LIQUIDAÇÃO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
NÃO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Deduzindo o Autor um pedido genérico, a coberto do preceituado art. 556º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, e não procedendo à sua liquidação no decurso da ação declarativa em momento prévio à sentença, o tribunal não pode proceder a uma condenação líquida, até por desconhecer o limite do pedido que o Autor deduziria se formulasse pedido concreto.

II - Terá, nesse caso, de remeter para posterior liquidação o valor de tal pedido, a efetuar nos termos do art. 358º, n.º 2, do Código de Processo Civil, sob pena de comissão da nulidade da sentença da alínea e) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil.

III – O não uso da servidão só a extingue quando seja reiterado e se prolongue por vinte anos, qualquer que seja o motivo (art. 1569.º, n.º 1, al. b), do Código Civil).

IV – Todavia, em conformidade com o estatuído no art. 1572º do CC, o aproveitamento de qualquer utilidade compreendida no direito de servidão corresponde ao seu exercício por inteiro.

V – Deste modo, se o titular do direito de servidão de passagem por prédio alheio, tanto a pé, como com o carro, durante vinte anos exerceu essa servidão passando apenas a pé, não circulando com o carro, esse facto não importará a extinção parcial da servidão, ou seja, a servidão não ficará restrita à passagem a pé, posto que o exercício parcial da servidão obsta à extinção (ainda que parcial) desta.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

I – CARLOS e ROSA, propuseram, na Instância Local Cível de Amares– Juiz 1 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra:

- MARIA;
- A. V.;
- A. C.;
- AURORA;
- FERNANDO;
- CÂNDIDO;
- ARTUR, todos, em representação da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de Joaquina, e
- João;
- MÁRCIA;
- PEDRO;
- PAULO;
- P. M.;
- CÉU, todos, em representação da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de I. A., na qualidade de réus, pedindo a condenação destes a:

a) Reconhecerem o direito de servidão de passagem a pé e de carro no caminho descrito nos itens 17º a 21º da pi;
b) Restituírem definitivamente a posse do referido direito de servidão de passagem;
c) Retirarem o portão que colocaram no dito caminho;
d) Absterem-se da prática de quaisquer actos que lesem ou impeçam os AA. de exercerem o seu direito de passagem pelo referido caminho, direito este legitimamente adquirido;
e) Pagarem aos AA. o montante global de € 899,04, a título de danos patrimoniais causados em virtude da conduta dos RR.;
f) A indemnizarem os AA. pelos danos não patrimoniais causados pela obstrução ao trânsito pela referida passagem, danos que se devem liquidar em execução de sentença por não ser possível determiná-los por ora.
Alegam, para tanto, factos constitutivos do instituto da usucapião, bem como da responsabilidade civil extracontratual.
Mais alegam que o seu prédio se trata de um prédio encravado, devendo ser o seu direito reconhecido de acordo, ainda, com o acordo homologado por sentença, alcançado em sede de Acção Sumária n.º 52/82, que correu termos no presente Tribunal.
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Contestaram os Réus, nos termos constantes de fls. 37 a 51, invocando a excepção de caso julgado e deduziram pedido reconvencional contra os autores, peticionando, em síntese, a:

- Condenação dos autores a pagarem à ré, a título de danos patrimoniais, o valor de € 1.755,56, acrescido de juros de mora;
- Condenação dos autores a construírem a suas expensas o muro que foi demolido, construído pela ré;
-Declarar-se extinto o direito de servidão de passagem de carro pelo prédio dos réus, pelo não uso há mais de vinte anos;
- Declarar-se que o prédio dos réus não está onerado com qualquer servidão de passagem a favor do prédio dos autores;
- A existir servidão, deve a mesma ser mudada para a faixa de terreno a que alude o art. 8.º da contestação.
Alegam, para tanto, factos constitutivos da responsabilidade civil extra-contratual, bem como os constitutivos do seu direito de extinção da mencionada servidão.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, em que se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo sido julgada improcedente a excepção de caso julgado invocada pelos Réus; foi dispensada a identificação do objeto do litígio, bem como a enunciação dos temas da prova; por fim, foram admitidos os meios de prova (fls. 133 a 135).
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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento (cfr. actas de fls. 277 a 285).
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Posteriormente, a Mmª. Julgadora “a quo” proferiu sentença, datada de 23/03/2018, (cfr. fls. 286 a 310), nos termos da qual, julgando a acção parcialmente procedente e o pedido reconvencional totalmente improcedente, decidiu:

«- Reconhecer que sobre o prédio dos réus, inscrito na matriz sob o artigo (...), e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (...) - descrito no ponto 11) dos factos provados, por usucapião, foi constituída uma servidão permanente de passagem a favor dos autores, pela faixa de terreno/caminho localizado no lado poente do seu prédio, correspondente ao antigo troço da estrada nacional N.º 205 e que se desenvolve no sentido nascente / poente do prédio dos Réus – referido em 13) dos factos provados, para, através de trânsito de pessoas a pé e carros, acederem ao seu prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...) - supra descrito em 4) dos factos provados.

- Reconhecer o direito de servidão de passagem nos termos descritos no ponto anterior e, consequentemente, condenar os réus a restituírem a posse do caminho aos autores e a retirarem o portão referido em 21) dos factos provados, colocado na faixa de terreno onerada com a servidão de passagem, e ainda, condenar os réus a absterem-se de praticar quaisquer actos perturbadores, impeditivos e/ou lesivos do livre exercício do direito de servidão de passagem descrito.
- Condenar os Réus a pagarem aos Autores o montante de € 295,20 (duzentos e noventa e cinco euros e vinte cêntimos), a título de danos patrimoniais e € 2.000,00 (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais por este sofridos, em consequência da conduta dos réus, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%, a contar da data da citação, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se os Réus do demais peticionado.
- Absolver os Autores de todos os pedidos reconvencionais contra estes formulados pelos Réus.».
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Inconformados, os réus interpuseram recurso da sentença (cfr. fls. 268 a 280) e formularam, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Os Recorrentes não se conformam com a apreciação e decisão do Tribunal "a quo" que julgou parcialmente procedente o pedido e condenou os Recorrentes:

- a reconhecer que sobre o prédio destes, por usucapião, foi constituída uma servidão permanente de passagem a favor dos autores, pela faixa de terreno/caminho localizado no lado poente do seu prédio para, através de trânsito de pessoas a pé e carros, acederem ao seu prédio;
- a reconhecer o direito de servidão de passagem e a condenaras réus a restituírem a posse do caminho aos autores e a retirarem o portão colocado na faixa de terreno onerada com a servidão de passagem e a absterem-se de praticar quaisquer actos perturbadores, impeditivos e/ou lesivos do livre exercício do direito de servidão de passagem;
- ao pagamento aos Autores e já quantia. de 295,20€, a título de danos patrimoniais e 2.000,OO€ a título de danos não patrimoniais por estes sofridos, em consequência da conduta dos réus, acrescido de juros de mora;
e absolveu os Autores de todos os pedidos reconvencionais formulados pelos Recorrentes.

I.

2. Relativamente ao. facto. assente sob. o ponto 12 deveria o tribunal recorrido ter dado como provado também que o acesso ao prédio dos Autores pode ser efectuado através de dois caminhos pedonais e de dois percursos carrais, melhores descritos no relatório pericial junto aos autos.
3. O prédio dos Recorridos embora não tenha comunicação directa com a via pública, tem-na, todavia de forma indirecta e efectiva, através daqueles acessos pedonais e carrais.
4. Deste modo, o facto dado como assente sob o n° 12 deve ser complementado com o facto de que para acesso à via pública, a pé, (à semelhança do que consta da matéria assente no ponto 28 quanto aos acessos carrais) o prédio dos Autores conta com os acessos 1 e 2, identificados no relatório pericial.
5. Aliás, se se mantivessem nos seus precisos termos os factos descritos sob os nºs 12 e 28, sem o acrescento indispensável que agora fica consignado, ocorreria uma manifesta contradição entre os esses mesmos factos.

II.

6. O Tribunal recorrido fez uma incorrecta avaliação e ponderação da prova documental constante dos autos e testemunhal produzida em julgamento, devendo ter dado como não provada a matéria constante dos pontos 13, 16, 17, 20, 21, e 29 dos factos assentes.
7. A testemunha A. T. (depoimento prestado em 21/02/18, entre 14.37h e as 15.00h) conhece os Autores há cerca de 15/16 anos e não sabe a quem estes adquiriram o prédio, desconhecendo quem eram os seus antigos proprietários, pelo que, não pode ter sido com base no depoimento desta testemunha que se deram por assentes os factos impugnados pois, por um lado, a testemunha só conheceu os Autores há 15/16 anos e por outro, nem sequer sabe quem foram os ante possuidores do prédio dos Autores.
8. Referiu ainda que caseiro deixou de residir no seu prédio há cerca de 15 anos e que enquanto ali residiu deixou de utilizar o antigo troço da EN 205, quando foi colocado o portão, que, naturalmente foi colocado há mais de 15 anos 9. Acresce que, em 1964, o antigo troço da EN 205, era já propriedade dos Réus e seus ante possuidores que se opunham à utilização, deste terreno, para passagem, em conformidade com a acção 2,164 intentada pela testemunha, tendo, as partes acordado que a passagem para o prédio dos Autores se faria através da faixa de terreno que está assinalada e descrita no relatório pericial efectuado nos. presentes autos, como acesso 1, que os Autores utilizam para passarem e acederem ao seu prédio.
10. A testemunha AUGUSTO (depoimento •• prestado em 21/02/18, entre as 14.55 e as 15.32) foi quem vendeu o prédio, propriedade dos Autores, em 1994 e referiu que, desde a data da venda da-casa deixou de frequentar o "espaço", pelo que não pode ter conhecimento do caminho que os Autores utilizam para acederem à sua propriedade.
11. Prestou um depoimento pouco claro, sem revelar qualquer conhecimento directo dos factos ocorridos desde há, pelo menos, vinte anos e só após ter sido confrontado com a transacção celebrada no processo 54/1982, em que foi Autor, é que reconheceu ter existido a mudança/de servidão de passagem a pé para a faixa de terreno referida na acção 2/64.
12. A testemunha JOSÉ (depoimento prestado em 21/02/18, entre as 15.38 e as 16.15) começa por referir que o portão foi colocado na década de 70, depois refere que o portão foi construído aquando da construção do prédio urbano e por fim, refere que o portão está colocado há cerca de 20/30 anos.
13. Acresce que, a testemunha refere ainda que desde que o portão ali existe (20/30 anos) que ele, bem como a esposa acedem ao seu prédio através da faixa de terreno descrita nas transacções transcritas nos pontos 18) e 19) dos factos assentes,
14. Sendo que, os Autores igualmente, há 20/30 anos, não passam pelo caminho correspondente ao antigo troço da EN 205, passam, sim, pela faixa de terreno cedida pelos Réus, para o efeito, identificada nas transacções celebradas nas acções 2/64 e 44/1982 e identificada no relatório pericial como acesso 1.
15. A testemunha GUILHERME (depoimento prestado em 27/02/18, entre as 11.54 e as 12.02) afirmou que no ano de 1994 o portão já existia dado que foi ele que nesse ano fez obras de reparação e que os Autores quando adquiriram o seu prédio estava já colocado o portão por onde se acede ao prédio dos Réus ou seja, ao antigo troço da EN 205,
16. A testemunha afirmou ainda que via os Autores a cederem, a pé, ao seu prédio, pela faixa de terreno (carreiro/passeio) identificada no relatório pericial como acesso 1,
17. e relativamente ao acesso de carro, pelo antigo troço da EN 205, a testemunha foi peremptória a afirmar que os únicos carros que por ali circulavam eram os pertencentes aos Réus e a sua família.
18. O depoimento prestado pela testemunha ANTÓNIO (em 27/02/18, entre as 11.54 e as 12.02) confirma as declarações da testemunha anterior, isto é que o aludido portão está alo colocado há pelo menos 22 anos e nunca viu outras pessoas, designadamente os Autores, a acederem e passarem, a pé ou de carro, pelo portão senão os Réus e os seus familiares.
19. Deste modo, não foi produzida prova adequada e suficiente para o tribunal recorrido ter dado como provados os factos insertos nos pontos 13, 16, 17, 20, 21, e 29 da matéria assente, ao invés, face à prova produzida, estes factos devem ser dados como não provados.
20. Da prova produzida não resulta que os Autores utilizassem, para acederem ao seu prédio a pé elou de carro, o caminho correspondente ao antigo troço da EN 205, nem que o faziam com a convicção de usarem um direito de passagem próprio, sem oposição de ninguém.
21. Desde há mais de 20 anos que os Autores não acedem comprovadamente ao seu prédio através desse portão, nem, por isso mesmo, através do troço antigo da EN 205,o que demonstra que os Autores dispõem de outros acessos ao seu prédio distintos daquele antigo troço e do referido portão, como de resto, resulta da prova pericial e do facto provado sob o ponto 28.
22. Assim, não pode ser dado como provado que os Autores não dispõem de qualquer outro acesso ao seu prédio: dispõem e usam-no.
23. Um que seria o utilizado até à datada transacção celebrada nos processos nºs 211964 e 54/1982, cujo teor se encontra reproduzido nos ALI pontos 18) e 19) dos factos provados, e o outro para onde foi mudada a servidão de passagem a pé - faixa de terreno na qual os Réus construíram um passeio com a largura de 1,20m conforme resulta da matéria assente no ponto 24), que sempre foi utilizada pelos Autores para acederem, a pé, ao seu prédio.
24. Acresce que, na acção sumária nº 54/1982 em que foram Autores os antigos proprietários do prédio dos ora Recorridos, e Réus os antepossuidores do prédio dos aqui Recorrentes, as partes, por acordo não reconhecem, ao contrário do que refere a decisão impugnada, que a servidão de passagem foi constituída por usucapião.
25. Essa acção findou com uma transacção judicial, isto é, pela celebração de um contrato típico - cfr 1248° do CC - através do qual as partes constituíram ex novo uma servidão de passagem, que não refere nem reporta a suposta usucapião.
26. Além disso, revertendo agora à presente acção, os Recorridos não alegaram e, consequentemente, não provaram, a constituição, por usucapião, da servidão de passagem reconhecida na transacção.
27. Alegaram tão só o título constitutivo da servidão representado nas transacções judiciais homologadas por sentença, ou seja, a constituída por contrato de transacção judicial, pelo que está vedado ao tribunal a quo, considerar que a transacção se destinou a declarar constituída a servidão de passagem por usucapião.
28. Em suma: não podem ser confundidas duas realidades distintas, qualquer uma delas, aliás, virtual, porque não verificadas: a suposta usucapião anterior às transacções judiciais acima referida (que, insiste-se, não resulta dessas transacções, nem foí sequer alegada nos presentes autos), e a também suposta usucapião posterior às transacções, .• cujos elementos constitutivos os Autores não lograram demonstrar.
29. Deste modo, deve ser revogada a decisão impugnada que reconheceu que sobre os prédios dos Réus, por usucapião foi constituída uma servidão permanente de passagem a pé e de carro a favor do prédio dos Autores e que condenou os Réus a restituir a posse do caminho aos Autores e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça essa passagem.
30. A resposta afirmativa dada à matéria ora impugnada não tem o mínimo fundamento e contraria toda a prova produzida, devendo, por isso, ser alterada e substituída por uma resposta negativa.
31. Os autos contêm todos os elementos de prova que serviram de fundamento à decisão proferida sobre a matéria de facto e que impõem a sua alteração pelo Tribunal da Relação, de modo a que se considerem não provados os factos vertidos nos pontos 13, 16, 17, 20, 21, e 29, ao abrigo do disposto no art° 6620 do CPC.
32. Ao decidir de modo diverso-contra a prova produzida - o tribunal "a quo" fez mau uso dos poderes que lhe estão confiados pelo art° 6070 do CPC, impondo-se a alteração da decisão.

III.

33. Os Réus não deduziram pedido reconvencional de mudança de servidão, de carro, tendo Alegado factos e formulado o pedido de mudança de servidão de passagem a pé para aquela faixa de terreno.
34. A servidão de passagem a pé foi mudada para a faixa de terreno identificada nas transacções, na qual os Réus construíram um passeio com a largura de 1,20m, conforme resulta da matéria assente no ponto 24), que sempre foi utilizada pelos Autores para acederem, a pé, ao seu prédio.
35. Deste modo, face à prova testemunhal produzida e documental, deve a decisão de absolvição dos Autores do pedido de mudança de servidão a pé, ser apreciada - sendo nula a sentença recorrida por omissão de pronúncia aI. d) do art° 6150 do CPC -, e reconhecido o direito de passagem, a pé, para o prédio dos Autores através daquela faixa de terreno.

IV.

36. Os Recorrentes alegaram (art° 170 e 25 da contestação/reconvenção) e lograram provar que os Autores não utilizam o prédio daqueles, para passagem de carro, há mais de 20 anos.
37. Este facto não foi apreciado pelo tribunal recorrido que não foi dado como provado ou não provado, tendo, assim, o tribunal violado o dever de pronuncia a que está obrigado, o que constitui nulidade da sentença, prevista na aI. d) do art° 6150 do CPC, que fica arguida.
38. Por outro lado, face aos depoimentos prestados por todas as testemunhas inquiridas no julgamento verifica-se, como supra já se analisou, que os Autores nunca foram vistos a circular de carro no antigo troço da EN 205 e a ultrapassar o portão ali existente, pelo que deve ser dado como provado o facto de que os Autores não utilizam o prédio dos Réus, para passagem de carro, há mais de 20 anos,
39. devendo, em consequência, ser declarado extinto o direito de servidão de passagem de carro pelo prédio dos Réus, pelo seu não uso há mais de vinte anos.
40. A sentença desconsidera as reais distinções entre o direito potestativo à constituição das servidões legais e o direito subjectivo a uma servidão legal já constituída e interpreta erradamente os nºs 1, 2 e 3 do art° 1569° CC.
41. Se e enquanto a servidão não for constituída, o dono do prédio dominante tem um direito potestativo à constituição da servidão - o que significa que pode impor a sua constituição coerciva, pela judicial ou administrativa - art° 154 r, 2, CC - e após ter sido constituída, o dono do prédio dominante passa a ter um direito subjectivo à servidão.
42. A mera constatação de que um determinado prédio é encravado, apenas nos permite concluir que o seu proprietário goza dum direito potestativo à constituição da servidão mas nada nos diz sobre a possibilidade e o modo de extinção da servidão.
43. Enquanto direito potestativo, a servidão legal apenas se extingue quando se extingue a sua causa legal (ao que agora interessa, quando deixa de ser necessária) e enquanto direito subjetivo, extingue-se por qualquer das causas comuns da extinção das servidões (art° 1569°,1, CC).
44. Isto é: o dono do prédio encravado que, durante mais de vinte anos não usou a servidão, seja qual for a razão (porque, como hoje ninguém discute, se trata duma causa objetiva de extinção das servidões) perde aquele direito subjetivo, mas continua a poder exercer o direito potestativo de constituir nova servidão, porventura com o mesmo conteúdo da extinta.
45. A douta sentença confunde e desconsidera esta dicotomia, que não pode ser desvalorizada, pela circunstância simples mas definitiva de que os Autores não pedem a constituição da servidão, nem os Réus se defenderam desse inexistente pedido.
46. O que está em causa, portanto, é apenas a questão de saber se o direito subjectivo em que os Autores foram investidos pela via contratual da transação judicial pode ou não extinguir-se - e se se extinguiu ou não - pela verificação do facto objectivo do seu não uso durante mais de vinte anos.
47. Quanto a esta questão, afigura-se manifesto que a douta sentença fez errada interpretação e aplicação dos nºs 1, 2 e 3 do art° 1569° CC, por ter considerado que as servidões legais já constituídas(ou seja, que são objecto dum direito subjetivo) só podem extinguir-se por desnecessidade.
48. Este erro de interpretação é evidentíssimo, além de implicar uma vício lógico porque confunde a premissa de que de só as servidões legais e as voluntárias constituídas por qualquer título podem extinguir-se por desnecessidade com a premissa radicalmente diferente de que essas servidões só se podem extinguir por desnecessidade.
49. Em suma: é insustentável e implica uma interpretação e aplicação errada do direito aplicável (em especial os n-s 1, 2 e 3 do art? 1569° CC), afirmar-se, como afirma e decide a douta sentença que uma servidão constituída por usucapião (ou por qualquer outro modo), corresponda ou não a uma servidão legal, não se extingue pelo não uso durante mais de vinte anos, e que apenas se extingue por desnecessidade.
50. Por último, face a tudo quanto se expôs, sendo revogada, como deverá ser, a decisão que condenou os Recorrentes:

- a reconhecer que sobre o prédio destes, por usucapião, foi constituída uma servidão permanente de passagem a favor dos autores, pela faixa de terreno/caminho localizado no lado poente do seu prédio para, através de trânsito de pessoas a pé e carros, acederem ao seu prédio; e
- a reconhecer o direito de servidão de passagem e a condenar os réus a restituírem a posse do caminho aos autores e a retirarem o portão colocado na faixa de terreno onerada com a servidão de passagem e. a absterem-se de praticar quaisquer actos perturbadores, impeditivos e/ou lesivos do livre exercício do direito de servidão de passagem,
51. terá, em consequência, de ser revogada a decisão que condena os Réus no pagamento aos Autores da quantia de 295,20€, a título de danos patrimoniais e 2.000,00€ a título de danos não patrimoniais por estes sofridos, em consequência da conduta dos réus, acrescido de juros de mora.
52. De resto, a sentença sempre padeceria da nulidade prevista na aI. e) do art° 6150 do CC, que, ora se invoca, por ter condenado os Réus no pagamento aos Autores da quantia de 2.000,00, a título de danos morais, quando estes não a peticionaram, antes relegaram a sua quantificação para execução de sentença.

TERMOS EM QUE

julgando o presente recurso procedente, farão Vossas Excelências JUSTIÇA!»
*
Contra-alegaram os Autores, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (cfr. fls. 341 a 352).
*
O recurso foi admitido por despacho de fls. 353, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

1ª – Da(s) nulidade(s) da sentença com fundamento nas als. d) e e) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
2.ª – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
3.ª – Da inverificação dos pressupostos da constituição da servidão de passagem por usucapião.
4.ª – Da apreciação do pedido de mudança de servidão a pé existente a favor do prédio dos Autores sobre o prédio dos Réus.
5.ª – Da extinção, por não uso, da servidão, relativamente à passagem de carro.
*
III. Fundamentos

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1) Em 02/10/2014, faleceu Joaquina na freguesia de Braga (...), concelho de Braga, no estado de viúva de Artur, sem deixar testamento ou outra disposição de bens de última vontade, sucedendo-lhe como seus únicos e universais herdeiros:

- MARIA;
- IZILDA ARLENE SOARES DA CRUZ;
- A. V.;
- A. C.;
- AURORA;
- FERNANDO;
- CÂNDIDO;
- ARTUR, conforme documento de fls. 46 e seguintes, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2) PAULO faleceu no dia 13 de Janeiro de 2016, sucedendo-lhe como seus únicos e universais herdeiros a sua mulher CARLA, e os seus filhos J. F. e L. M., conforme documentos de fls. 5 a 8 do apenso B, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3) Das heranças abertas por óbito de Joaquina e I. A. (ainda ilíquidas e indivisas) são herdeiros os Réus, não havendo outros que lhes prefiram ou que com eles possam concorrer.
4) Encontra-se inscrito na matriz urbana sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...), mediante a ap. 4, de 17/08/1994, a favor dos autores, o prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, para habitação, com dependência e rossio, que confronta do norte e sul com A. T., do nascente com M. G. e do poente com caminho público, sito na Praça (...), da freguesia de (...), do concelho de Amares, conforme documento de fls. 7 verso a 9 do apenso A, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5) Tal prédio adveio à titularidade dos autores por estes o haverem comprado a Augusto e mulher E. C., mediante escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Amares em 02 de Agosto de 1994, conforme documento de fls. 9 verso a 11, do apenso A, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6) Há mais de 1, 15, 20 anos que os autores habitam o prédio referido em 4), nela comendo, dormindo, recebendo família e amigos.
7) Limpando e conservando a casa.
8) Cultivando o seu logradouro, bem como colhendo os seus frutos.
9) O que tudo sempre têm feito à vista e com o conhecimento de todos,
10) Sem oposição e interrupção de ninguém, na firme convicção de que estão e sempre estiveram no exercício pleno e exclusivo do seu direito de proprietários sobre o identificado prédio.
11) Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo (...), e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º (...), mediante a ap. 1908, de 02/12/2010, a favor de Joaquina, o prédio urbano, sito na Praça (...), da freguesia de (...), do concelho de Amares, composto por casas para habitação de rés-do-chão com uma divisão e 1.º andar com 5 divisões e logradouro, a confrontar do norte e do sul com caminho de servidão, do nascente com A. V. e estrada nacional e do poente com proprietário, conforme documentos de fls. 47 verso a 48 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12) O prédio referido em 4) não tem qualquer comunicação directa e imediata com a via pública.
13) Há mais de 10, 20 e 30 anos que os Autores por si e seus antecessores, têm utilizado, para acederem àquele, o caminho localizado no lado poente do seu prédio, correspondente ao antigo troço da estrada nacional N.º 205 e que se desenvolve no sentido nascente / poente do prédio dos Réus.
14) Tal caminho está demarcado, tendo uma largura de cerca de 4 metros em toda a sua extensão.
15) O seu leito é, numa parte do percurso em terra batida, constituindo uma superfície bem compactada, dura e resistente, e noutra parte, em pedra/paralelo.
16) Os Impetrantes, por si e seus antecessores, sempre utilizaram o dito caminho, quer a pé, quer de carro, quando tinham necessidade.
17) Fazendo-o com a convicção de usarem direito de passagem próprio, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente, nomeadamente dos Réus e seus antecessores.
18) Correu termos junto deste Tribunal Judicial, acção de expropriação por utilidade particular sob o n.º 2/1964, em que foram expropriantes A. T. e J. A. e mulher, C. S., e expropriados Artur e esposa, Joaquina, que findou por transacção, que data de 24/02/1965, entre outros, com o seguinte teor:

“…a) Os réus cedem aos autores, para acesso aos seus prédios, uma faixa de terreno com a largura de um metro, que se estende desde a linha de prolongamento, para sul, da parede nascente da casa do autor A. T. até ao caminho público que fica junto à estrada Braga-Amares.
b) A largura de um metro desta faixa de terreno é medida desde a parede sul que suporta os terrenos das casas dos autores para o lado do prédio dos réus.
c) Esta cessão é feita com os seguintes encargos: … Os autores obrigam-se a construir uma vedação assente em terreno dos réus, com a altura de um metro e oitenta centímetros, …ficando esclarecido que o terreno onde assenta a vedação não é pago pelos autores e não fica incluído na faixa de um metro, cedida, ficando a vedação a pertencer aos réus;
d) Os réus reservam-se o direito de passarem através da faixa de terreno cedido, desde a via pública junto à estrada Braga-Amares, até à sua casa que fica junto à casa do autor A. T.…
f) A transmissão do terreno só se opera depois da construção da vedação acima referida;…”, conforme certidão de fls. 65 verso a 69 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19) Correu termos junto deste Tribunal Judicial, acção sumária sob o n.º 54/1982, em que foram autores Augusto e esposa E. C., e Réus Joaquina e outros, que findou por transacção, que data de 22/05/1984, entre outros, com o seguinte teor:

“ PRIMEIRA: Os réus reconhecem aos autores o direito de servidão de passagem de pé e carro pelo antigo troço da estrada nacional n.º 205, na parte que fica a norte da entrada do prédio dos autores;
SEGUNDA: Este direito não compreende o de estacionar no citado troço da antiga estrada, quaisquer veículos para além do tempo normalmente necessário para carga e descarga desses veículos…
TERCEIRO: A servidão reconhecida nos números anteriores, quanto ao trânsito de carros, cessará quando os autores procederem, digo, autores puderem dispor de outro acesso de carro ao seu prédio, descrito no n.º1.º da petição inicial, em idênticas circunstâncias de comodidade;
QUARTA: A servidão reconhecida nos números 1.º e 2.º, quanto ao trânsito de peões será mudada para a faixa de terreno com um metro de largura, referida no processo n.º 2/64, do arquivo deste tribunal e referida no n.º 5.º da contestação, logo que os réus obtenham documento idóneo dos actuais proprietários dessa faixa de terreno, para essa mudança…”, conforme certidão de fls. 49 verso a 54 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20) Não obstante o acordado, até à presente data, os autores não dispõem de qualquer outro acesso, quer de carro, quer a pé, senão o caminho referido em 13).
21) Há alguns anos, os Réus passaram a colocar entraves à passagem dos Autores pelo referido caminho referido em 13), pondo, num primeiro momento, um portão sobre o leito do mesmo, impedindo a circulação dos autores pelo referido caminho.
22) Os réus procederam à edificação de um muro, constituído por uma parte em blocos de cimento e, uma outra, por uma rede, na parte norte do seu prédio, em frente à entrada para o prédio dos autores, conforme documentos de fls. 11 verso a 13 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23) Desde a colocação, pelos réus, do portão referido em 21) que os autores se abstiveram de passar no caminho referido em 13) de carro, fazendo-o esporadicamente com autorização da falecida Joaquina.
24) Os réus construíram, na faixa de terreno, referida em 18), um passeio com largura de 1,20 m.
25) Os réus, na compra de materiais de construção, para edificação do muro referido em 21), dispenderam € 985,56, bem como dispenderam em mão de obra, o montante de € 770,00, conforme documentos constantes de fls. 60 a 62 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
26) No âmbito dos autos de providência cautelar, apensos aos presentes autos, na sequência do decidido, por sentença datada de 24/09/2015, transitada em julgado, aos autores foi restituída a posse de parte do caminho em questão com a demolição do referido muro, conforme sentença de fls. 22 a 25 do apenso A, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
27) Com tal obra de demolição do muro, despenderam os autores o montante de € 295,20 (duzentos e noventa e cinco euros e vinte cêntimos), conforme documentos constantes de fls. 9 verso e 10 dos autos, cujo teor se dá por integramente reproduzido.
28) Para acesso à via pública de carro, o prédio referido em 4) apenas conta com dois acessos:

- um com comprimento aproximado de 25,40 m, com largura aproximada de 4,70 m, em terra batida, na sua extrema sul, sendo que na extrema sul existe um portão fechado a cadeado.
- um com comprimento aproximado de 49,50 m, com pavimento misto de terra batida (1.º troço, sentido nascente/ poente), betonilha (2.º troço sentido nascente poente) e cubos de granito 10 x 10 cm (3.º troço sentido nascente poente), com largura aproximada de 5,85 m / 8,52 m, na extrema poente, que termina num portão que dá acesso a caminho, que por sua vez dá acesso à via pública – o referido em 13), conforme relatório pericial de fls. 163 a 179 e 196 a 198, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
29) Com as condutas dos réus referidas em 21) a 23), os autores sofreram um grande vexame, desgosto, desassossego, intranquilidade e incómodos, bem como se viram impedidos de aceder ao seu prédio, com os inerentes incómodos.
30) Os autores receberam uma carta datada de 07/08/2015, remetida pelo vizinho José, com o teor de fls. 271 e 272, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
*
E deu como não provado que:

a) O referido em 22) ocorreu em Julho de 2015.
b) O referido em 25) ocorreu há mais de 30 anos.
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IV. Do objecto do(s) recurso(s)

1. Nulidade(s) da sentença com fundamento nas als. d) e e) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
1.1. Como é consabido, é através da sentença, conhecendo das pretensões das partes – pedido e causa de pedir –, que o juiz diz o direito do caso concreto (arts. 152º, n.º 2 e 607º, ambos do CPC).
Pode, porém, a sentença estar viciada em termos que obstem à eficácia ou validade do pretendido dizer do direito. Assim, por um lado, nos casos em que ocorra erro no julgamento dos factos e do direito, do que decorrerá como consequência a sua revogação, e, por outro, enquanto ato jurisdicional que é, se atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou ainda contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, caso este em que se torna, então sim, passível do vício da nulidade nos termos do artigo 615.º do CPC (1).
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão (art. 613º, n.º 3 do CPC) são as que vêm taxativamente enumeradas no n.º 1 do art. 615º do CPC.

Nos termos do n.º 1 do art. 615º do CPC, a sentença é nula quando:

«d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido».

Como vício de limite, a nulidade de sentença enunciada na transcrita alínea d) do n.º 1 do art. 615º do CPC divide-se em dois segmentos, sendo o primeiro atinente à omissão de pronúncia (que é a que releva à situação dos autos) e o segundo relativo ao excesso de pronúncia (pronúncia indevida).
Como regra geral, o tribunal deve resolver todas e apenas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (cfr. art. 608.º, n.º 2, do CPC).
Verifica-se a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (2).
Doutrinária (3) e jurisprudencialmente (4) tem sido entendido de que só há nulidade quando o juiz não se pronuncia sobre verdadeiras questões não prejudicadas invocadas pelas partes, e não perante a argumentação invocada pelas partes. Por questões não se devem considerar as razões ou argumentos apresentados pelas partes, mas sim as pretensões (pedidos), causa de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer. O que “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido (…)(5).
O juiz não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (6).

Por último, sob pena de verificação da nulidade prescrita na al. e) do art.. 615º do CPC, o juiz não pode ultrapassar na sentença os limites do(s) pedido(s), em violação do princípio do dispositivo. Tal é imposto pelo n.º 1 do art. 609º do CPC, que prescreve que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

A propósito desta causa nulidade, importa especificar duas breves notas:

- Para determinar os limites da condenação o que releva é o pedido global e não as parcelas em que a mesma se desdobra;
- Apenas se verifica esta causa de nulidade quando o tribunal condena em mais do que foi pedido ou em objeto diverso do peticionado, o que não é o caso quando condena em quantidade inferior, pois neste caso, o decidido contém-se dentro do pedido formulado pelas partes.
*
1.2. Relativamente à primeira invocada nulidade dizem os recorrentes que, contrariamente ao aduzido na sentença recorrida, não deduziram pedido reconvencional de mudança de servidão, de carro, tendo, sim, alegado factos e formulado o pedido de mudança de servidão de passagem a pé para aquela faixa de terreno (conclusão 35 da apelação).

Mais referem que a servidão de passagem a pé foi mudada para a faixa de terreno identificada nas transações, na qual os Réus construíram um passeio com a largura de 1,20m, conforme resulta da matéria assente no ponto 24), que sempre foi utilizada pelos Autores para acederem, a pé, ao seu prédio, concluindo, por isso, que a decisão de absolvição dos Autores do pedido de mudança de servidão a pé deve ser apreciada - sendo nula a sentença recorrida por omissão de pronúncia aI. d) do art° 6150 do CPC -, e reconhecido o direito de passagem, a pé, para o prédio dos Autores através daquela faixa de terreno (conclusões 33 a 35 da apelação).

Pois bem, sendo correto que os RR. não formularam pedido reconvencional de mudança de servidão, de carro, mas tão só, a entender-se que existe servidão de passagem a pé pelo seu prédio, o pedido de mudança da mesma para a faixa de terreno aludida nos arts. 8º e 14º da contestação [al. e) do pedido reconvencional] e que na sentença recorrida o Tribunal “a quo” apreciou e tratou, de modo autonomizado (item IV – cfr. fls. 302), o intitulado “pedido de declaração de mudança da servidão existente, de carro, para a faixa de terreno a que alude o art. 8.º da contestação”, a verdade é que, a propósito do “pedido de declaração de extinção da servidão que onera o prédio dos réus, relativamente à passagem de carro, por não uso”, a Mmª Juíza “a quo” não deixou de se pronunciar expressamente sobre aquela concreta pretensão reconvencional (mudança de servidão, a pé) ao aduzir a seguinte fundamentação (7):

«Mas mais, analisando o teor dos acordos alcançados pelos antecessores, quer na acção de expropriação por utilidade particular sob o n.º 2/1964, em que foram expropriantes A. T. e J. A. e mulher, C. S., e expropriados Artur e esposa, Joaquina, que findou por transacção, que data de 24/02/1965, quer na acção sumária sob o n.º 54/1982, em que foram autores Augusto e esposa E. C., e Réus Joaquina e outros, que findou por transacção, que data de 22/05/1984, concluímos que nenhum dos pressupostos para mudança do lugar ou extinção da servidão ali plasmados se verificaram – o que implica reflexamente que persiste a necessidade da sua manutenção.

Desde logo, analisemos a cláusula QUARTA do acordo na acção sumária sob o n.º 54/1982: A servidão reconhecida nos números 1.º e 2.º, quanto ao trânsito de peões será mudada para a faixa de terreno com um metro de largura, referida no processo n.º 2/64, do arquivo deste tribunal e referida no n.º 5.º da contestação, logo que os réus obtenham documento idóneo dos actuais proprietários dessa faixa de terreno, para essa mudança…”.

Nada se apurou nos autos sobre a existência de documento idóneo dos actuais proprietários dessa faixa de terreno, para que essa mudança opere, razão pela qual a mudança não pode operar».

Donde se conclui que a sentença recorrida não padece da apontada omissão de pronúncia sobre a referida pretensão jurídica reconvencional, na medida em que efetivamente tomou posição expressa sobre essa concreta questão colocada à sua apreciação (mudança do lugar da servidão de passagem, a pé), tendo concluído pela sua inverificação ou improcedência.

Nesta conformidade, conclui-se pela improcedência desta nulidade da sentença arguida pelos recorrentes.
*
1.2. No que concerne à segunda nulidade da sentença invocada, com fundamento na aI. e) do n.º 1 do art. 615º do CPC, estribam os recorrentes esse vício no facto de a sentença “ter condenado os Réus no pagamento aos Autores da quantia de 2.000,00, a título de danos morais, quando estes não a peticionaram, antes relegaram a sua quantificação para execução de sentença” (conclusão 52 da apelação).

Nesta parte, resulta da petição inicial que os AA. pediram, entre o mais, a condenação dos RR. a indemnizá-los “pelos danos não patrimoniais causados pela obstrução ao trânsito pela referida passagem, danos” a “liquidar em execução de sentença por não ser possível determiná-los de momento com suficiente precisão”.

Por sua vez, sem que no decurso da ação os AA. tenham procedido à liquidação desse pedido deduzido a título de danos não patrimoniais, a Mmª Juíza “a quo”, na sentença, após reproduzir o regime prescrito nos arts. 358º e 609º, n.º 2, ambos do CPC, no caso, considerando estar perante uma compensação que é fixada com base na equidade, entendeu que nada obstava a que se fixasse, desde logo, o seu valor, já que (diz) os danos estão determinados, reputando como equitativa a fixação da compensação a pagar pelos réus, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 2.000,00, fixada já em termos actualísticos.
Com o devido respeito, não pode acompanhar-se a tese defendida na sentença, pelos motivos que seguem.

Como já se disse, a nulidade em apreço constitui sanção à violação do princípio do dispositivo, ou autonomia das partes, consagrado, entre outros, no art. 609º CPC, que estatui que «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir».
Como princípio geral, o demandante deve formular pedido líquido (arts. 296º e 297º do CPC).

Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art. 552º do C.P.C., compete ao Autor formular o pedido, que deve, em princípio ser certo e determinado no seu quantitativo ou conteúdo, admitindo-se nas situações taxativamente elencadas no art. 556º do C.P.C. a formulação de pedido genérico.
A lei não nos diz o que é um pedido genérico.

Segundo o Prof. Alberto dos Reis (8), o “pedido diz-se genérico quando é indeterminado no seu quantitativo” “e como essa indeterminação implica iliquidez” “podemos considerar expressões equivalentes as de «pedido genérico» e «pedido ilíquido» Ao pedido genérico contrapõe-se, portanto, o pedido líquido ou especifico”.
O pedido genérico ou ilíquido traduz-se num pedido respeitante a um bem não rigorosamente determinado (9).

No caso dos autos, ao formularem o aludido pedido indemnizatório de danos não patrimoniais os Autores não o quantificaram.
Ao proceder desse modo os Autores nessa parte formulam, efetivamente, um pedido genérico tal como o deixámos supra definido.

As situações em que é (excecionalmente) permitida a formulação de pedidos genéricos (ilíquidos) encontram-se previstas no art. 556º do CPC, sendo que uma delas é exatamente o caso de não ser «ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar a faculdade que lhe confere o artigo 569º do Código Civil» [alínea b) do n.º 1].

O aludido art. 569º do CC dispõe que «quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos».

Todavia, o estatuído no preceito citado, não permite, sem mais que se formule pedidos genéricos, pois que isso só poderá ocorrer nas situações a que o preceito se refere. Como se escreve no Ac. do STJ de 04.02.93 (CJ 93, T. 1, p. 128), citado no Ac. do STJ de 19/12/2006 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt., «isto não determina, porém, que para a acção de indemnização não haja de indicar-se um valor; o que se permite é que essa indicação seja feita sem carácter definitivo, que ela possa ser corrigida se o valor dos danos apurados pelo Tribunal assim o exigir (...). Poderia pensar-se que esta apontada iliquidez faculta uma plena liberdade ao demandante, no decurso da lide, elevar o montante do pedido indemnizatório, nomeadamente quando verifique que, por erro seu, pedira menos do que poderia ter reclamado. Mas não pode ser assim porque, conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao dito art. 569 CC, a indemnização ali estabelecida só será atendível quando o demandante tenha dúvidas – que deverá declarar e justificar – quanto à importância da indemnização e quando do evento lesivo surjam danos que não tenham sido previstos na petição e a cuja reparação o lesado tenha direito».

O desrespeito pelo art. 556º CPC (a formulação ilegal de pedido genérico) é, de resto, uma exceção dilatória atípica, sanável ao abrigo dos arts. 6º, n.º 2, 278º, n.º 1, al. e) e n.º 3, 576º, n.º 2, 577º, 3º, n.º 3 590º, n.º 2, al. a) do CPC, e que pode ser conhecida/declarada até à sentença (10).

Tendo-se formulado pedido genérico (ilíquido), para obter a condenação em indemnização fixa (poderá ocorrer condenação no que se vier a liquidar), haverá que previamente proceder-se à liquidação. É isso que resulta do n.º 2 do art. 556º do CPC, donde decorre que a determinação do objeto a que o pedido respeita, nos casos de universalidade e da indemnização por facto ilícito, faz-se mediante o incidente de liquidação, a deduzir na ação declarativa até ao momento do início da discussão da causa (art. 358º, n.º 1 CPC).

Assim, se, na pendência da ação de condenação, o autor não deduzir o incidente de liquidação até ao início da discussão da causa (art. 358º, n.º 1 do CPC), ou não forem apurados os elementos que permitiriam a determinação, o tribunal condenará, também genericamente, no que vier a ser liquidado (art. 609º, n.º 2 do CPC), assim remetendo para momento ulterior a determinação a efectuar (11) (12)

Do que fica referido resulta que, se é certo que a proibição contida no n.º 1 do art. 609º do CPC se afere relativamente ao pedido global, sempre terá que se atender ao pedido. E esses limites (art. 609º do CPC) reportam-se ao pedido concreto, que tendo sido inicialmente deduzido como pedido genérico, para se obter uma condenação em indemnização concreta, terá que ser previamente liquidado pelo demandante. A defender-se o contrário, teríamos que, deduzido pedido genérico, sempre poderia o tribunal condenar em qualquer valor, o que não é admissível (13).

Revertendo ao caso concreto, temos que, no tocante aos peticionados danos não patrimoniais, o pedido formulado pelos recorridos é, como vimos, um pedido genérico ou ilíquido (o que se liquidar “em execução de sentença por não ser possível determiná-los de momento com suficiente precisão”). Em momento algum do processo se vê que tenha sido requerida a liquidação quanto ao pedido ilíquido, o que a ocorrer teria que ser feito nos termos do art. 358º do CPC.

Em face dos danos alegados e provados – concorda-se com a sentença recorrida – não se justificava (à luz da economia processual) uma condenação a liquidar em posterior incidente, porém, foi isto que foi pedido (e que foi admitido como pedido) e acima de tudo – é este o grande obstáculo processual com que numa situação desta nos deparamos – sem um pedido concreto/liquidado o tribunal não conhece o seu limite para condenar (não sabe se está a respeitar ou não o princípio do pedido) (14).
Assim, não tendo o dano não patrimonial sido objecto de liquidação, o tribunal não se podia substituir aos próprios autores e fixar, sem qualquer base de referência líquida (pelos interessados), o valor da respectiva compensação.

Efectivamente, conforme resulta do disposto no n.º 2 do art. 609º do CPC, tendo o autor formulado um pedido genérico (pedindo que o seu quantum seja relegado para liquidação em execução de sentença), e inexistindo liquidação de tal pedido genérico em momento prévio à prolação da sentença na acção declarativa (liquidação esta a cargo do lesado/credor/interessado), o tribunal, por desconhecer os concretos limites da pretensão do autor (aos quais terá que se sujeitar, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo), tem de remeter para posterior liquidação o valor de tal pedido (15).

Assim é manifesto que ao condenar os réus em indemnização pelos danos não patrimoniais cuja liquidação não foi liquidada sequer pelos autores, o tribunal condenou em quantidade superior e em objecto diverso do que foi pedido (16), pelo que violou claramente o disposto no n.º 1 do art. 609º do CPC, de onde resulta que a sentença é nessa parte nula, atento o disposto no art. 615º, n.º 1, al. e) do CPC.

Em face disso, impõe-se anular a decisão respeitante à condenação dos réus no pagamento da quantia de € 2.000,00 relativa ao dano não patrimonial, havendo em sua substituição – caso se mantenha a decisão condenatória – que relegar a respectiva indemnização para liquidação em incidente de liquidação posterior ou subsequente à condenação, nos termos do art. 358º, n.º 2, do CPC.

Nesta conformidade, conclui-se, nesta parte, pela procedência da nulidade da sentença arguida pelos recorrentes.
*
2. Da impugnação da matéria de facto.

2.1. Em sede de recurso, os apelantes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que os recorrentes indicam quais os factos que pretendem que sejam decididos de modo diverso, especificando igualmente a redação que entendiam dever ser proferida quanto à factualidade que entendem estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação, procedendo à respectiva transcrição dos depoimentos testemunhais que consideraram relevantes para o efeito, julgando-se, assim, satisfeito o requisito da sua localização, pelo que podemos concluir que cumpriram suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado artigo 640.º.

Assim, no caso sub júdice, o presente Tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada, uma vez que, tendo sido gravada a prova produzida em audiência, dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre o(s) facto(s) em causa.
*
2.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se, resumidamente, de acordo com os seguintes parâmetros (17):

- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes).
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância.
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão.
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com benefício da imediação e oralidade - apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
- a demonstração da realidade de factos a que tende a prova (art. 341º do Cód. Civil) não é uma operação lógica, visando uma certeza absoluta. A prova “visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção assente na certeza relativa do facto(18). O mesmo é dizer que “não é exigível que a convicção do julgador sobre a realidade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança(19).
*
2.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que os recorrentes pretendem a alteração das respostas dos pontos n.ºs 12, 13, 16, 17, 20, 21 e 29 da matéria de facto provada da decisão recorrida.

Os referidos pontos fácticos objeto de impugnação têm o seguinte teor:

«12) O prédio referido em 4) não tem qualquer comunicação directa e imediata com a via pública.
13) Há mais de 10, 20 e 30 anos que os Autores por si e seus antecessores, têm utilizado, para acederem àquele, o caminho localizado no lado poente do seu prédio, correspondente ao antigo troço da estrada nacional N.º 205 e que se desenvolve no sentido nascente / poente do prédio dos Réus».
«16) Os Impetrantes, por si e seus antecessores, sempre utilizaram o dito caminho, quer a pé, quer de carro, quando tinham necessidade.
17) Fazendo-o com a convicção de usarem direito de passagem próprio, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente, nomeadamente dos Réus e seus antecessores».
«20) Não obstante o acordado, até à presente data, os autores não dispõem de qualquer outro acesso, quer de carro, quer a pé, senão o caminho referido em 13).
21) Há alguns anos, os Réus passaram a colocar entraves à passagem dos Autores pelo referido caminho referido em 13), pondo, num primeiro momento, um portão sobre o leito do mesmo, impedindo a circulação dos autores pelo referido caminho».
«29) Com as condutas dos réus referidas em 21) a 23), os autores sofreram um grande vexame, desgosto, desassossego, intranquilidade e incómodos, bem como se viram impedidos de aceder ao seu prédio, com os inerentes incómodos».
*
Começando a nossa análise pelo ponto 12 dos factos provados diremos, desde logo, ser de manter a resposta dada.

Como foi explicitado pelas diversas testemunhas inquiridas (por ex., A. T., Augusto e José), o prédio pertença dos AA. identificado nos itens 4 e 5 dos factos provados não tem qualquer comunicação direta e imediata com a via pública, sendo um prédio encravado. Trata-se, aliás de um encrave absoluto (art. 1550º, n.º 1, 1ª parte do Cód. Civil) dada a impossibilidade física de acesso (direto) com a via pública, pois que entre esse prédio e a via pública existem de permeio outro ou outros prédios (alheios).

Esse facto não deixou, aliás, de ser reconhecido na própria alegação de recurso, ao especificar “que o prédio dos Recorridos embora não tenha comunicação directa com a via pública, tem-na, todavia de forma indirecta e efectiva, através dos dois acessos pedonais e de dois acessos carrais, identificados no relatório pericial” (sublinhado nosso).

Malgrado resultar da prova pericial que a acessibilidade ao prédio dos Autores pode ser efectuada através de uma das vias aí descritas – a pé: a) um passeio pavimentado com aproximadamente 56,50m de comprimento e 1,28m de largura, que termina, na sua extrema nascente e tem acesso directo com a via pública (denominado acesso 1 no relatório pericial); b) um passeio com um comprimento aproximado de 20,20m e 0,82m de largura, que na sua extrema sul não tem acesso direto com a via pública, mas sim com um logradouro privativo, existindo portanto um logradouro privado entre este acesso e a via pública (denominado acesso 2 no relatório pericial); acesso carral: - c) pavimento com o comprimento aproximado de 25,40m e uma largura aproximada de 4,70m, com acesso directo à via pública através de um portão existente na sua extrema sul (denominado acesso 3); d) pavimento com o comprimento aproximado de 49,50m, cuja extrema poente termina num portão que dá acesso a um caminho que, por seu turno, dá acesso à via pública –, essa circunstância não contende com o acerto da resposta dada – que foi, aliás, objeto de perceção direta pela Mmª Juíza no local, aquando da inspeção judicial efetuada na audiência de julgamento –, até porque na perícia o perito – tal como lhe foi requerido – cuidou de indagar e indicar os vários acessos do prédio dos AA. às vias públicas, a pé ou de carro, os quais, na verdade, se reconduzem a comunicações indiretas e mediatas com a via pública.

Dessa perícia não resulta, no entanto, que o prédio dos AA. tenha alguma comunicação direta com a via pública, sendo que era esta que importava indagar nos termos e para os fins da noção legal prescrita no art. 1550º do Cód. Civil.

Se, como no caso dos autos, para alcançar a via pública os AA. carecem de atravessar outro ou outros prédios, que existem de permeio, o que importa é que fique suficientemente explicitado que o prédio dos AA. não confina (física e materialmente) diretamente com a via pública, sendo no âmbito da facticidade em discussão irrelevante – salvo sempre o devido respeito por opinião contrária – que se complemente a resposta com formas indiretas de comunicação à via pública [até porque não está em causa aferir da constituição de servidão de passagem sobre os outros prédios vizinhos, nem tão pouco determinar uma alteração ou mudança do lugar onde se mostra constituída a servidão no prédio onerado em beneficio do prédio dos AA. nos termos e para os fins do disposto no art. 1568º do Cód. Civil].

Considerando, porém, a facticidade incluída no ponto 28 dos factos provados relativa aos acessos carrais, indiretos, à via publica de que dispõe o prédio dos AA., e a fim de evitar qualquer contradição com o ponto 12 dos factos provados, admite-se que se adite à factualidade provada a seguinte (que valerá como ponto 31 dos factos provados):

31. Para acesso (físico) à via pública, a pé, o prédio referido em 4) conta com dois acessos (processados em prédios que existem de permeio):

- um passeio pavimentado com aproximadamente 56,50m de comprimento e 1,28m de largura, que termina na sua extrema nascente e tem acesso directo com a via pública (denominado acesso 1 no relatório pericial);
- um passeio com um comprimento aproximado de 20,20m e 0,82m de largura, que na sua extrema sul não tem acesso direto com a via pública, mas sim com um logradouro privativo, existindo um logradouro privado entre este acesso e a via pública (denominado acesso 2 no relatório pericial).
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< Ponto 13, 16, 17, 20, 21 e 29 dos factos não provados.

Vejamos a apreciação e valoração da prova testemunhal invocada.
A testemunha A. T. emigrou em 1951 e regressava a Portugal cada dois anos, tendo definitivamente regressado a este país há 16 anos, altura em que conheceu os Autores.

É proprietário da primeira casa do conjunto de quatro casas existentes no local (cfr. fotografias de fls. 173 a 179), que fica contígua ao prédio dos AA., tendo-a adquirido (bem como os terrenos contíguos) em 1953.

Rejeitou perentoriamente a existência de bouças nas traseiras das casas, através das quais seria feito os acessos às casas (infirmando, por completo, a versão fáctica aduzida pela declarante Maria), já que o acesso sempre se processou diretamente para a antiga estrada nacional n.º 205 (que ia para o Gerês), tendo sido por esta que os materiais foram transportados para a construção das casas.

Apesar de desconhecer as condições de permuta firmadas pelos RR. (ou antecessores) com a Junta Autónoma da Estrada para a cedência daquele terreno onde anteriormente estava implementada a estrada principal, confirmou que, após a construção da nova estrada, no espaço existente entre a casa dos RR. e a casa da testemunha (bem como da dos AA.), ou seja, no antigo troço da EN 205, continuaram a circular carros. Inclusivamente, a testemunha tinha um Opel 55 e circulou por aí diversas vezes, desconhecendo a data da colocação pelos RR. do portão referido no ponto 21 dos factos provados [retratado nas fotografias de fls. 198, 188 (Fig. 14) e 188 vº (Fig. 15)].

A testemunha nunca residiu nesse prédio, mas tinha um caseiro que o habitou durante cerca de 20 anos, tendo este falecido há, pelo menos, 15 anos, estando o prédio desde então desabitado.

Foi co-autor da ação de expropriação por utilidade particular n.º 2/64 aludida no item 18 dos factos provados, intentada no Tribunal Judicial da Comarca de Amares contra os antepossuidores do prédio dos ora Réus, por estes já então se oporem à passagem no antigo leito da estrada (Braga-Amares), tendo sido alcançado um acordo judicial para acesso ao seu prédio, mediante a cedência pelos RR. de uma faixa de terreno, com a largura de um metro, contra pagamento de uma determinada quantia pelos aí AA., nos termos estabelecidos na transação judicial outorgada em 24/02/1964 (cfr. certidão constante de fls. 65 vº a 69). A referida faixa de terreno que foi objeto de cedência para passagem a pé corresponde, grosso modo, ao local onde foi posteriormente construído o passeio correspondente ao denominado acesso 1 no relatório pericial (cfr. fls. 165).

Confirmou igualmente os inúmeros conflitos gerados pela passagem, de carro e a pé, através do prédio dos RR., aludindo ao facto da Maria e da irmã terem corrido à pedrada os AA., bem como o caseiro da testemunha (este não tinha carro), o qual, até ser colocado o portão das traseiras, também passava a pé pela dita entrada.

A testemunha Augusto, com 76 anos, antigo proprietário do prédio dos autores, que o adquiriu antes do 25 de abril (de 1974), vendeu a casa aos autores em 2/08/1994 (conforme certidão da escritura de compra e venda constante de fls. 9 verso a 11 do apenso A).

Residiu naquele prédio durante, pelo menos, 20 anos, referindo que quando o adquiriu já existia o caminho referido nos pontos 13 e 14 dos factos provados, através do qual acedia ao seu prédio.

Afirmou perentoriamente que, quando vendeu a casa aos AA., inexistia na extremidade desse caminho qualquer portão, tendo este ali sido colocado posteriormente. Referiu inclusivamente que, antes de terem adquirido o prédio e por estarem interessados na sua compra, os AA. foram diretamente falar com a dª Joaquina (“…"), o marido já tinha falecido, tendo-lhe aquela assegurado que eles tinham direito ao caminho, pois caso contrário eles nunca teriam comprado o prédio à testemunha (designadamente, dado não ter acesso direto à via pública).

Em abono da credibilidade dessa versão fáctica atinente à inexistência do portão aquando da venda do prédio aos AA. importará ter presente que, mercê dos conflitos gerados pela passagem de carro (do filho da testemunha) por esse caminho (correspondente à antiga estrada nacional n.º 205) quando vinha de França, a testemunha, juntamente com a mulher, instaurou contra os antepossuidores do prédio dos ora Réus (mais concretamente a dª Joaquina, mãe da declarante Maria), no Tribunal Judicial da Comarca de Amares, ação sumária sob o n.º 54/1982, tendente ao reconhecimento duma servidão de passagem, a pé e de carro, sobre o prédio dos RR., a qual findou por transação judicial, em 22/05/1984, na qual os réus reconheceram «aos autores o direito de servidão de passagem de pé e carro pelo antigo troço da estrada nacional n.º 205, na parte que fica a norte da entrada do prédio dos autores», com o tempo necessário para cargas e descargas (cfr. certidão de fls. 49 v.º a 54).

Considerando, pois, o reconhecimento judicial do direito de servidão de passagem, a pé e de carro, e não se mostrando verificadas as condições aí estabelecidas relativas quer à cessação da servidão quanto ao trânsito de carros, quer à mudança da servidão quanto ao trânsito de peões, admite-se como plausível que, à data da venda do prédio aos AA., o portão ainda não estivesse colocado; caso contrário, a sua instalação, sem que tivesse sido facultado uma chave ao proprietário do prédio dominante (reportando-se embora unicamente aos AA., a declarante Madalena referiu que nunca foi facultada uma chave do portão aos AA., de modo a criar a convicção de que só os RR. se serviriam dessa entrada), obstaria a que o anterior proprietário, Augusto, pudesse continuar a exercitar em benefício do seu prédio o direito de passagem, a pé e de carro, que lhe havia sido reconhecido por sentença (transação judicial). E, nessa pressuposição, é de crer que o referido Augusto não deixaria, certamente, de reagir de modo a ver reposta a não lesão desse direito de passagem por que anteriormente pugnara com êxito com vista ao reconhecimento do acesso à via pública, como igualmente é de admitir que a inviabilidade de circulação por essa passagem principal, a pé e de carro, teria certamente constituído um forte entrave ou (mesmo) impedimento à aquisição desse prédio pelos AA..

Tendo-se, pois, como credível aquele depoimento, temos como muito verosímil que a colocação do aludido portão apenas tenha ocorrido já após a venda do prédio aos AA..

Reconheceu, é certo, desconhecer em que termos continuou a processar-se a passagem naqueles prédios desde que vendeu a casa aos AA., por desde então ter deixado de frequentar aquele espaço físico.

Chegados aqui importa dizer que, contrariamente ao propugnado pelos apelantes, e não obstante o modo nervoso como prestou o seu depoimento, dada a razão de ciência invocada (anteproprietário do prédio agora pertença dos AA. e demandante na ação judicial n.º 54/1982 movida com vista ao reconhecimento do direito de passagem, a pé e de carro, onerando o prédio dos RR. e em beneficio do, então, seu prédio) revelou ser conhecedor direto de todas as vicissitudes inerentes ao modo como esse acesso foi efetivado ao longo dos anos no período antecedente à alienação do prédio aos AA., pelo que se teve o seu depoimento como credível nessa parte.

A testemunha JOSÉ, vizinho dos AA., dono da terceira casa desde 1966, confirmou na sua essencialidade o aduzido pelas testemunhas antecedentes, designadamente que a antiga EN 205 passava em frente às casas e que após a eliminação dessa estrada permaneceu o caminho de acesso aos prédios, entrando pelo lado do Troia e saiam do lado contrário (a testemunha diz que “saíamos aqui”, depreendendo-se ser a saída mais próxima do Tribunal de Amares, que dele ficará a diminuto distância).

A ação de expropriação por utilidade particular sob o n.º 2/1964 foi intentada pelo anterior proprietário do seu prédio (J. A.), dela só tendo a testemunha tido conhecimento já após a aquisição do prédio, pois de outro modo não o teria adquirido, até porque, de acordo com o acordo firmado nessa ação, os aí demandantes ficaram obrigados a edificar um muro (cfr. certidão constante de fls. 65 vº a 69). Confirmou que, anteriormente a essa ação, por circularem sobre o prédio dos RR., o pai do A. T. e o caseiro do Augusto haviam sido corridos à pedrada pelos antecessores dos RR.. Juntamente com o A. T., arrogou-se proprietário da faixa de terreno que foi objeto de cedência nessa ação de expropriação por utilidade particular (a que corresponde o denominado acesso 1 no relatório pericial), por a mesma ter sido objeto de pagamento ao proprietário do prédio onerado, tendo registado essa parcela (“isso é nosso não é de mais ninguém. Acho que é assim”). Da titularidade dessa faixa de terreno excluiu os AA. por estes se terem recusado a custear as respetivas despesas de pavimentação, já que se arrogavam o direito de passagem sobre o caminho (a que corresponde o denominado acesso 4 no relatório pericial).

Confirmou que, quando vieram morar para a casa, os AA. trouxeram os respetivos haveres pelo dito caminho, até porque não havia outro acesso, o que corrobora a versão fáctica (alegada pelos AA.) de que à data da aquisição do prédio pelos AA. os RR. ainda não haviam colocado o portão sobre o leito do caminho referido no ponto 13) dos factos provados (apelidado, também, por portão das traseiras à beira do ribeiro ou “portão do ribeiro”), pois de outro modo aqueles não teriam tido acesso ao seu prédio por essa entrada.

Relativamente à data da colocação do dito portão, dado o tempo decorrido, não logrou indicar com o mínimo de certeza esse período (ora dizendo “20-30 anos”, ora referindo 15/20 anos, mas sempre sem certeza – “não sei, mais ou menos”), acrescentando, no entanto, que inicialmente o portão estava aberto durante o dia e só era fechado à noite.

No seu caso, por não saber ler, nem estar habilitado com carta de condução, nunca se lhe colocou a questão do acesso carral ao seu prédio, pelo que a partir da colocação do “portão do ribeiro” pelos RR., e uma vez que não lhe foi facultada chave do portão – “nunca pediu, nem nunca foi falado” –, juntamente com a mulher passou a efetivar essa circulação, a pé, exclusivamente através do carreiro com cerca de 1,20 de largura (o denominado acesso 1 no relatório pericial); já relativamente aos AA., no tocante à passagem a pé, referiu que estes, após terem sido agredidos pela declarante Maria e irmã (A. V.), bem como pelo marido desta (“Gusto”), e com receio ou medo de voltarem a ser agredidos, passaram a utilizar maioritariamente o denominado acesso 2 no relatório pericial (acesso pedonal), transpondo para o efeito o logradouro do prédio dos RR. (depreendendo-se que o fazem furtivamente) e circulando pelo passeio que pertence a um prédio urbano do qual é contiguo.

Com relevância indicou que chegou a presenciar o A. a circular com um carro no caminho referido no item 13 dos factos provados, tendo deixado de o fazer pois caso contrário os RR. “desmanchavam-no”.
A testemunha Guilherme, construtor civil, cujos pais, em 1965, eram locatários do prédio que atualmente é pertença dos autores, ali residiu durante cerca de um ano, antes de ter emigrado para França.
Confirmou que já na altura acedia à casa sem necessidade de carreiro, pela EN 205, já que a antiga estrada nacional era a única entrada e na altura não existia qualquer portão no local.

Tendo (a testemunha) procedido à restauração duma casa pertença duma das irmãs dos RR. aí situada, explicitou que fazia parte da empreitada a alteração da localização do portão (referido no item 21 dos factos provados), em cerca de 1 metro, dado que o mesmo estorvava a realização daquelas obras, tendo, por conseguinte, procedido à mudança das respetivas colunas do portão.
Situou a realização de tais obras no ano de 1994.

Não obstante se reconhecer que a referida testemunha prestou um depoimento isento e credível, mostrando equidistância e imparcialidade relativamente a ambas as partes em confronto na lide, de que é sinal o facto de ter testemunhado sobre factos desfavoráveis às pretensões de cada uma delas, a verdade é que, pelas razões já supra explicitadas, admite-se que a referida testemunha tenha involuntariamente incorrido em erro relativamente à indicação da data das obras realizadas, designadamente da mudança da localização do portão, já que da globalidade da prova produzida resulta (para nós) como seguro – ao contrário do propugnado pelos RR. – que, aquando da aquisição do prédio pelos AA., os RR. não haviam ainda colocado o referido “portão do ribeiro” na entrada do caminho aludido no item 13 dos factos provados, só ulteriormente o tendo feito. Como se disse, o anterior proprietário (Augusto) do prédio dos AA. tinha a seu favor uma sentença no qual esse direito de servidão, a pé e de carro, havia sido reconhecido pela Dª Joaquina em transação, pelo que, segundo as regras da experiência comum e da lógica, estamos em crer que os actos de oposição pelos RR. (e antecessores) ao exercício dessa passagem só se terão (novamente) manifestado após o prédio ter sido adquirido pelos AA..

A testemunha ANTÓNIO, proprietário do restaurante T., que fica situado próximo do local onde foi instalado o dito portão de acesso à casa dos RR., não obstante situar a existência desse portão há, pelo menos, 22 anos (por desde então ter passado a explorar o referido estabelecimento comercial), a verdade é que a versão fáctica reproduzida nesse depoimento não pode ser erigida como segura ou suficiente de molde a dar aquele facto como demonstrado. Desde logo, porque para ter acesso ao seu restaurante a testemunha não utilizava o dito caminho onde foi colocado o dito portão, pelo que este, em bom rigor, lhe era indiferente. Acresce que, apesar da proximidade geográfica entre a localização do dito portão e o restaurante que explora, a testemunha não revelou particular atenção ao referido portão, até porque quando instado quanto ao seu funcionamento (nomeadamente se através de comando) espontaneamente referiu que “as poucas vezes que vejo”, o que reforça a conclusão antecedentemente formada; por outro lado, hesitou quanto à existência, ou não, ao lado de “alguma portazita para a pessoa passar” a pé, o que é igualmente revelador da diminuta atenção que o referido portão lhe mereceu, pelo que se afigura inverosímil que o mesmo tenha presente desde quando tal portão foi colocado.

Assim, face à enunciada prova produzida, somos levados a concordar com as respostas dadas (aos pontos de facto n.ºs 13, 16 e 17) no sentido de que, há mais de 30 anos, por si e seus antecessores, os Autores utilizavam, para acederem ao seu prédio, a pé e de carro, o caminho correspondente ao antigo troço da estrada nacional n.º 205, fazendo-o com a convicção de usarem direito de passagem próprio, estando este direito, aliás, expressamente reconhecido por sentença homologatória na acção sumária sob o n.º 54/1982, na qual foram partes os anteriores proprietários do prédio dominante, bem como os titulares do prédio onerado com a servidão – importará não poder de vista que vale aqui a regra da inalienabilidade, posto que a servidão segue o destino do prédio, beneficiando o novo adquirente do prédio dominante ou onerando o prédio serviente, entretanto transmitido –, só deixando de fazer aquele circulação/utilização quando os RR. começaram a colocar entraves a essa passagem, colocando para o efeito um portão sobre o leito do caminho, desse modo impedindo a circulação dos autores pelo referido caminho, tendo inclusivamente havido conflitos e desavenças físicas entre as partes, com recíprocas participações criminais.

De igual modo, partilhamos das mesmas dúvidas explicitadas na sentença recorrida quando à data da colocação do portão na entrada do prédio dos RR., isto é, se há mais de 20 anos – como propugnado pelos recorrentes – ou há menos de 20 anos – como defendido pelos recorridos. Como já se explicitou, os meios probatórios são insuficientes para nos habilitar a formar um juízo seguro quanto à definição dessa data, sendo certo que se nos afigura como adquirido que a colocação desse portão só ocorreu posteriormente à aquisição do prédio pelos AA. (e não, como sustentam os RR., quando o prédio ainda era pertença do sr. Augusto). De todo o modo, os meios probatórios produzidos não nos permitem concluir com segurança quanto à fixação concreta dessa data, pelo que, não podendo dar-se como provado que a colocação do portão na entrada do prédio dos Réus ocorreu há mais de 20 anos, é de rejeitar a pretendida alteração das respostas aos pontos 20 e 21 dos factos provados.

É certo que a partir da colocação de entraves à passagem dos Autores pelo referido caminho referido em 13) dos factos provados, que culminou com a instalação do dito portão sobre o leito do mesmo, impedindo a circulação daqueles pelo referido caminho, a que acrescem as contendas e os múltiplos conflitos físicos entretanto surgidos, os AA., com medo e a fim de evitarem mais conflitos físicos, passaram a recorrer a vias alternativas para acederem, a pé, ao seu prédio, como seja os denominados acessos 1 e 2 referidos no relatório pericial.

Fizeram-no, no entanto, como via de recurso, já que o seu prédio não tem comunicação direta com a via pública. E fazem-no, digamos, de um modo furtivo. Isto porque, relativamente à utilização do denominado acesso 1, os AA. foram já interpelados para deixarem de utilizar esse acesso pedonal (cfr. documento constante de fls. 273 – ponto 30 dos factos provados), visto o José se arrogar titular desse faixa de terreno (juntamente com o A. T.) na sequência da sua aquisição no âmbito do acordo estabelecido na acção de expropriação por utilidade particular n.º 2/64, destinando-se esta faixa apenas para “ser utilizada para passagem para os prédios daqueles e para casa dos herdeiros do extinto casal Artur e Joaquina”; por sua vez, no que diz respeito ao denominado acesso 2, para acederem à via pública os AA. têm de invadir, ainda que numa pequena extensão, o logradouro privativo do prédio dos RR. e, de seguida, circular por um passeio privativo de um prédio alheio.

Acresce que, afora a transação homologada na ação judicial n.º 54/1982, que contempla o denominado acesso 4 do relatório pericial, dos autos não resulta que os AA. tenham título que lhes confira o direito de circularem sobre qualquer um dos referidos acessos, nem aqueles se arrogam titulares de direitos de utilização ou de circulação relativamente a tais acessos, daí que se justifique a manutenção da resposta ao ponto 13 dos factos provados.

Por sua vez, em conformidade com a delimitação do seu objeto, a perícia limita-se a indicar, em termos físicos ou materiais, os acessos (possíveis) do prédio dos AA. às vias públicas, a pé ou de carro, mas como se disse, além de se tratar de acessos indiretos, visto não oferecer dúvidas de que o prédio dos AA. é encravado (em virtude da impossibilidade física ou material de acesso à via pública), a verdade é que a perícia não toma posição – nem podia tomar, uma vez ser uma questão excluída do seu âmbito – se os AA. detêm algum título jurídico que lhes confira o direito de utilização sobre os descritos acessos (por meio dos quais tem acesso indireto à via pública).

Ademais, a exercitabilidade dessa acessibilidade, de carro, pelos AA. em bom rigor não existe, quer por relativamente ao denominado acesso 3 do relatório pericial existir na extrema sul um portão fechado a cadeado (cujas chaves estão na possa dos RR.), quer quanto ao denominado acesso 4 do relatório pericial por os RR. terem colocado o portão do ribeiro sobre o leito do caminho referido em 13), não tendo facultado aos AA. qualquer chave desse portão [cfr. declarações de parte da Maria], com o que impedem a circulação dos autores pelo referido caminho (cfr. ponto 21 dos factos provados).

Por outro lado, da prova produzida também não se mostram verificadas todas as condições estabelecidas na transação outorgada na ação sumária o n.º 54/1982 indispensáveis à mudança da servidão de passagem, “quanto ao trânsito de peões”, para a faixa de terreno referida no processo n.º 2/64. Na verdade, apesar de estar demonstrado que os réus construíram, na faixa de terreno, referida em 18), um passeio com largura de 1,20 m (ponto 24 dos factos provados), não lograram demonstrar a obtenção de documentos idóneos “dos actuais proprietários dessa faixa de terreno, para essa mudança” (cfr. certidão de fls. 53 e 54). E, como já vimos, a utilização dessa faixa de terreno que vinha sendo feita pelos AA. mereceu já a oposição de quem se arroga titular da mesma (José), como se alcança da carta cuja cópia consta de fls. 273 e 274 (cfr. ponto 30 dos factos provados).

Julgamos, por isso, inverificada a apregoada contradição entre os pontos 20 e 28 dos factos provados, uma vez que este último, limitando-se a descrever os acessos, de carro, que podem ser estabelecidos à via pública, não exclui aqueloutro.

De qualquer modo, e à semelhança das razões que justificaram o aditamento do ponto fáctico supra enunciado [31] referente à comprovação dos acessos físicos possíveis, a pé, indiretos, ao prédio dos AA., a fim de obstar a uma eventual desarmonia ou ambiguidade entre tais factos, impõe-se proceder à retificação da resposta ao ponto 28 dos factos provados, o que se determina oficiosamente nos termos do art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC “por interpretação a contrário”, a qual passará a valer com a seguinte redação:

28) Para acesso (físico) à via pública, de carro, o prédio referido em 4) apenas conta com dois acessos (processados em prédios que existem de permeio):
- um com comprimento aproximado de 25,40 m, com largura aproximada de 4,70 m, em terra batida, na sua extrema sul, sendo que na extrema sul existe um portão fechado a cadeado.
- um com comprimento aproximado de 49,50 m, com pavimento misto de terra batida (1.º troço, sentido nascente/ poente), betonilha (2.º troço sentido nascente poente) e cubos de granito 10 x 10 cm (3.º troço sentido nascente poente), com largura aproximada de 5,85 m / 8,52 m, na extrema poente, que termina num portão que dá acesso a caminho, que por sua vez dá acesso à via pública – o referido em 13), conforme relatório pericial de fls. 163 a 179 e 196 a 198, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

No que diz respeito à facticidade do ponto 29 dos factos provados não foram aduzidas razões específicas para a alteração da resposta dada, excetuando a consideração genérica expendida para toda a matéria fáctica impugnada no sentido de que a “resposta afirmativa” “não tem o mínimo fundamento e contraria toda a prova produzida, devendo, por isso, ser alterada e substituída por uma resposta negativa”.

Face ao que antecede limitamo-nos nesta parte a remeter para a motivação da sentença recorrida, por referência ao depoimento da testemunha A. T. que “deu conta ao tribunal dos diversos conflitos entre as partes devido à passagem, o que faz intuir a veracidade do referido em 29), que por isso se deu por provado”, bem como do depoimento da testemunha Augusto, o qual confirmou o facto 29).
De facto, a testemunha A. T. confirmou os inúmeros conflitos (“problemas”) existentes entre os AA. e os RR..
Por outro lado, a testemunha José chegou a presenciar agressões físicas entre os réus e os autores, que descreveu com algum pormenor.

Assim, dados os entraves colocados à passagem dos Autores pelo caminho em causa, chegando há já alguns anos a colocar um portão sobre o leito do mesmo, impedindo a circulação dos autores pelo referido caminho e, mais recentemente, procedendo à edificação de um muro, constituído por uma parte em blocos de cimento e, uma outra, por uma rede, na parte norte do seu prédio, em frente à entrada para o prédio dos autores, conforme documentos de fls. 11 verso a 13 verso do procedimento cautelar apenso, o que obrigou os AA. a procurarem soluções alternativas ou de recurso com vista a acederem, a pé, ao seu prédio, é de admitir que estes tenham sofrido os danos descritos na resposta ao ponto 29 dos factos provados (vexame, desgosto, desassossego, intranquilidade e incómodos), pelo que a resposta em causa deve ser mantida.

Por último, impõe-se, oficiosamente (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC “por interpretação a contrario”), proceder à retificação da al. b) dos factos não provados, posto que, por referência à prova produzida e à motivação explicitada na sentença recorrida, é manifesto o lapso de escrita cometido, uma vez que a factualidade a que ali pretendia reportar-se é a respeitante ao ponto 21 dos factos provados (data da colocação, pelos RR., do portão no leito do caminho), e não ao ponto 25.

Assim, a mencionada alínea (dos factos não provados) passará a vigorar com a seguinte redação:

b) O referido em 21) ocorreu há mais de 30 anos.
*
Nesta conformidade, por referência à prova produzida nos autos, não se evidenciam razões concretas e circunstanciadas capazes de infirmar a apreciação crítica feita pelo tribunal recorrido sobre a matéria de facto impugnada.
É, por isso, de concluir não ser viável a este Tribunal superior (que não tem por missão efetuar, perante si, a repetição integral do julgamento) extrair uma qualquer conclusão que infirme ou divirja da convicção daquele tribunal quanto àqueles concretos pontos de facto.

De facto, a fundamentação que serviu de base a essas conclusões dadas pela 1.ª instância – que subscrevemos, nos termos explicitados –, baseando-se na livre convicção e sendo uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, revela-se convincente e sustentada à luz da prova auditada e não se mostra fragilizada pela argumentação probatória das impugnantes, não se impondo decisão sobre o referido ponto da matéria de facto diversa da recorrida (art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC).

Em suma, não se evidenciando dos autos qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, afora a ampliação/alteração dos factos provados nos termos supra determinados (20), resta concluir pela improcedência da pretensão dos recorrentes, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
*
3. Reapreciação de direito.

3.1. Da inverificação dos pressupostos da constituição da servidão de passagem por usucapião.

Nos termos do disposto no art. 1543º do Código Civil, “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito á servidão e dominante o que dela beneficia”.

O citado preceito legal define servidão predial pelo lado passivo, como um encargo imposto num prédio - prédio serviente - em benefício exclu­sivo de outro prédio - prédio dominante -, pertencente a dono diferente.

Trata-se, pois, de um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em benefício do aproveitamento das utilidades do primeiro (21).

Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela (22), a servidão consiste num encargo, traduzido numa restrição ou limitação ao direito de propriedade (do prédio onerado), encargo que recai sobre o prédio, de um encargo imposto num prédio, de uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício de servidão.

Desta forma, assinala a lei expressamente o carácter real da servidão, a qual é não só oponível ao proprietário do prédio onerado (por ela especialmente atingido na sua dominialidade), mas a todos os terceiros, e que ela vale tanto em relação ao primitivo proprietário, como em relação aos futuros adquirentes.

O facto de a servidão predial constituir um encargo (sobre o prédio onerado) imposto em proveito de outro prédio coloca em destaque a inerência da servidão aos prédios a que activa ou passivamente ela respeita, bem como a circunstância de não ser lícita a imposição de quaisquer encargos que não se relacionem com as necessidades próprias do prédio, como sucede com as servidões pessoais.

Uma última nota realçada no preceito supra citado prende-se com a exigência de que os dois prédios – o prédio serviente e o prédio dominante – pertençam a donos diferentes.

Reportando-nos ao conteúdo das servidões prediais, estabelece o art. 1544º do CC que “podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades susceptíveis de ser utilizadas por intermédio do prédio dominante”.

Os modos de constituição das servidões prediais estão, actualmente, enumerados no n.º 1 do art. 1547º do CC, nele se referindo a constituição por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.

As servidões legais são aquelas que, podendo constituir-se voluntariamente por algum dos modos previstos no n.º 1, têm como característica especial poderem ser constituídas, na falta de constituição voluntária, por sentença judicial ou por decisão administrativa, consoante os casos (cfr. n.º 2 do art. 1547º do Código Civil).

O que verdadeiramente caracteriza a servidão legal é o facto de, para aqueles casos especialmente previstos na lei, o proprietário do prédio dominante poder impor ao dono do prédio que virá a ser o serviente, contra a vontade deste, a servidão que a lei previu. Não que não possam as partes acordar na sua constituição.

Assim, se o titular do direito real do prédio adstrito à constituição da servidão não colaborar na sua constituição, outorgando o negócio jurídico respetivo, o beneficiário do direito à servidão pode impô-la coactivamente, com recurso à via judicial ou mediante decisão administrativa (arts. 1547º, n.º 2 do CC).

Daí que se diga que a servidão legal (também apodada por servidão coactiva ou servidão judicial) não se constitui diretamente como efeito automático da norma legal que a prevê. Limita-se esta a atribuir àquele que deve beneficiar da servidão, o proprietário do prédio dominante, um direito potestativo à constituição do direito de servidão. Esse direito deve ser exercido por via negocial (geralmente contrato) juntamente com o proprietário do prédio adstrito legalmente á constituição da servidão. Se este não colaborar na constituição negocial da servidão, o titular do direito potestativo pode exercê-lo por via judicial ou administrativa, solicitando ao tribunal ou à entidade administrativa (se for o caso) que declare constituída a servidão a seu favor (23).

A esse respeito, referem Pires de Lima e Antunes Varela (24) que a vida das servidões legais desdobra-se numa dupla fase, percorrendo dois momentos sucessivos: Num primeiro momento, trata-se de um simples direito potestativo, que confere ao respetivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio independentemente da vontade do dono deste; num segundo momento, exercido o direito potestativo e constituída assim, por acordo das partes ou, na falta de acordo, por sentença ou ato administrativo, a relação de caráter real a que tendia esse direito, a servidão legal converte-se numa verdadeira servidão, ou seja, num encargo excepcional sobre a propriedade. Quer isto dizer que, nas servidões legais, a verdadeira servidão só mediatamente é imposta por lei; a fonte imediata desta reside na vontade das partes, na sentença constitutiva ou no acto administrativo.

«Em confronto com as demais servidões, e quanto ao modo por que podem constituir-se, [as servidões legais] distinguem-se, apenas, pela possibilidade de, na falta de constituição voluntária, serem impostas coercivamente. Verificados os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, (…) a servidão que se constituir deve considerar-se sempre legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada» (25).

Como servidões legais podem enumerar-se as de passagem e as de água, reguladas, respectivamente, nos arts. 1550º, 1556º e 1557º e segs. do Código Civil.

No que concerne às servidões legais de passagem dispõe o n.º 1 do art. 1550º do CC que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos”.

A noção de prédio encravado, para efeitos de constituição de servidão legal de passagem, é ampla, abrangendo o encrave absoluto, em que inexiste, materialmente, qualquer comunicação com a via pública (26), e o encrave relativo em que existe comunicação insuficiente para o exercício das necessidades normais ou o estabelecimento da comunicação exige obras cujo custo se revela manifestamente desproporcional com as vantagens que proporciona.

Equiparam-se aos prédios encravados aqueles que apenas com excessivo dispêndio ou incómodo teriam comunicação com a via pública e aqueles que tiverem comunicação insuficiente com a via pública para as suas necessidades normais (27).

Relativamente ao lugar da constituição da servidão, prevê o art. 1553º do Código Civil que “a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconveniente para os prédios onerados”.

Tendo em conta o caso presente importa reter a constituição por contrato e por usucapião.

No que à primeira diz respeito - constituição de servidão por contrato -, dir-se-á que a lei reguladora do contrato é a lei vigente à data da sua celebração. Por isso, o referido negócio jurídico tem como direito aplicável a lei vigente à data da sua prática (tempus regit actum).

A constituição negocial do direito de servidão pode abstratamente ser feita através de qualquer tipo contratual típico (por ex., compra e venda, permuta ou doação) ou atípico, que tanto pode ser a título oneroso, como gratuito. E tanto pode constituir-se mediante a celebração de um contrato exclusiva ou especificamente destinado à sua constituição, como através de um contrato fundamentalmente dirigido a outro fim, como, por exemplo, a divisão de prédio comum efetivada pela adjudicação aos comproprietários respetivos de prédios distintos formados a partir daquele, com a simultânea estipulação do direito de passagem através de algum ou alguns desses prédios para outro ou outros deles (28).

Se o direito de servidão for constituído por meio de contrato, este deve revestir a forma de escritura pública ou de documento particular autenticado (art. 22º, al. a) do Dec. Lei n.º 116/2008, de 4/07 e anterior art. 80º, n.º 1 do Cód. do Notariado), estando essa constituição sujeita a registo, sob pena de não produzir efeitos em relação a terceiros [art. 2º, n.º 1, al. a) do Cód. Registo Predial; a menos que se trate de uma servidão aparente (art. 5.º, n.º 2, al. b) do C.R.P.), entendendo-se como tal a que se revela por obras ou sinais exteriores, desde que estes, além de visíveis, sejam permanentes (art. 1548.º, n.º 2, do CC, “a contrario”)].

No tocante à constituição por usucapião, a sua causa tem a ver com uma actuação positiva do adquirente que se realiza pela posse e os seus efeitos tendem a consolidar o estado de facto pela sua conversão num estado de direito.

Efectivamente, passando um certo decurso de tempo, a posse, que é uma situação provisória, transforma-se em favor do possuidor numa situação de direito, permanente.

Em suma, na usucapião há a consolidação do estado de facto que se converte num direito.

Segundo o disposto no art. 1287º do CC, “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

A verificação da usucapião depende de dois requisitos: da posse e do decurso de certo período de tempo fixado na lei.

Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características: ser pública (exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e cujo exercício se cumpre de acordo com as características do objeto possuído – cfr. 1262º do Código Civil) (29) e pacífica (adquirida sem violência, física ou moral, sobre as pessoas ou as coisas – cfr. artigo 1261º do Código Civil) (30).

As restantes características que a posse pode revestir - ser de boa ou má-fé (art. 1260º), titulada ou não titulada (art. 1259ª) e estar ou não inscrita no registo - apenas têm repercussão no prazo necessário à usucapião.

Perspectivando o conceito consagrado no art. 1251º do CC, “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

Depreende-se deste conceito o elemento material (corpus), que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, e o elemento subjectivo (animus), que se traduz na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.

O facto de a lei exigir o “corpus” e o “animus” para efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos para poder, por exemplo, adquirir por usucapião.

Porém, sendo necessário o “corpus” e “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste (artigo 1252º, n.º 2 Código Civil) (31).

Tomadas estas notas teóricas, de relevante para o reconhecimento da constituição da servidão de passagem em causa na acção resulta da matéria de facto o seguinte:

- Encontra-se inscrito na matriz urbana sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...), mediante a ap. 4, de 17/08/1994, a favor dos autores, o prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, para habitação, com dependência e rossio, que adveio à sua titularidade por estes o haverem comprado a Augusto e mulher E. C., mediante escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Amares em 02 de Agosto de 1994.

- O referido prédio não confina com a via pública, posto que não tem qualquer comunicação directa e imediata com a via pública.
- Há mais de 10, 20 e 30 anos que os Autores por si e seus antecessores, têm utilizado, para acederem àquele, quer a pé, quer de carro, quando tinham necessidade, o caminho localizado no lado poente do seu prédio, correspondente ao antigo troço da estrada nacional N.º 205 e que se desenvolve no sentido nascente/poente do prédio dos Réus.
- Tal caminho está demarcado, tendo uma largura de cerca de 4 metros em toda a sua extensão, sendo o seu leito, numa parte do percurso, em terra batida, constituindo uma superfície bem compactada, dura e resistente, e, noutra parte, em pedra/paralelo.

O exercício dessa utilização era feito com a convicção de usarem direito de passagem próprio, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente, nomeadamente dos Réus e seus antecessores.

Decorre destes factos que o prédio dos AA. reveste a natureza de prédio encravado – na terminologia adoptada pela doutrina trata-se dum encrave absoluto -, assistindo aos respectivos proprietários a faculdade ou o direito potestativo “de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos” (cfr. art. 1550º, n.º 1 do Código Civil), na medida em que o acesso à via pública tem de ser efectuado através de outros prédios, nomeadamente do prédio dos RR..

E, como se concluiu na sentença recorrida, dos factos provados supra enunciados resulta que «a conduta dos autores integra os dois elementos que a lei exige para a verificação da posse, isto é, o “corpus” e o “animus”».

Acresce que, para «além da posse, também se encontram verificados os restantes pressupostos de aquisição do referido direito de servidão de passagem sobre o mencionado caminho por usucapião, pois, resultou também provado que tal posse foi mantida durante um certo lapso de tempo (mais de 15, 20, e 30 anos) - art. 1287º, 1296º do Código Civil - com o conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de que não ofendiam o direito de ninguém. E não se tendo verificado qualquer causa de suspensão ou interrupção do prazo, nos termos dos artigos 318º e seguintes e 323º e seguintes ex vi artigo 1392º do Código Civil, forçoso é concluir que o prazo da usucapião se tem por preenchido».

De facto, perante o enquadramento fáctico e jurídico, não restam dúvidas de que a actividade dos AA. sobre o caminho em causa corresponde à situação jurídica possessória vocacionada à aquisição do direito de servidão de passagem e que já decorreu o prazo necessário para a constituição do direito, por usucapião.

Acresce que esse direito de servidão de passagem, quer a pé, quer de carro, sobre o caminho em causa, e de que são beneficiários os proprietários do prédio dos AA., foi expressamente reconhecido no âmbito da transação judicial datada de 22/05/1984, homologada na ação n.º 54/1982, em que foram partes, como autores, os antigos proprietários do prédio ora dos recorridos, e, como réus, os antepossuidores do prédio dos ora recorrentes, no qual estes expressamente reconheceram «aos autores o direito de servidão de passagem de pé e carro pelo antigo troço da estrada nacional n.º 205, na parte que fica a norte da entrada do prédio dos autores», direito este que não compreendia «o de estacionar no citado troço da antiga estrada, quaisquer veículos para além do tempo normalmente necessário para carga e descarga desses veículos».
Nesta parte, e contrariamente à posição acolhida na 1ª instância, é nosso entendimento que o título constitutivo do direito de servidão de passagem, consubstanciado no contrato de transação judicial (32), não permite concluir pelo reconhecimento da constituição da servidão de passagem por usucapião.

Efetivamente, ainda que na referida ação os ali AA. invocassem a usucapião como modo de constituição da servidão de passagem em causa, aquando da formalização da transação as partes nada indicaram quanto a esse específico modo de constituição, pelo que não é de acolher a conclusão firmada na sentença recorrida de que a transação destinou-se a declarar constituída servidão de passagem por usucapião (33).

De qualquer modo, no que ao caso diz respeito o que sobreleva é que a servidão predial de passagem sobre o caminho em causa mostra-se constituída quer por usucapião, quer, de modo expresso, por contrato de transação judicial.

E, como já anteriormente se aflorou, nas servidões prediais nenhuma influência tem a mudança dos respetivos proprietários dos prédios dominante e serviente, apresentando-se os prédios como se fossem eles próprios titulares das relações jurídicas. A servidão perdura enquanto perdurar a própria existência dos respetivos prédios entre os quais foi estabelecida – ou seja, como regra tem carater perpétuo (34).

Não sufragamos, por outro lado, o entendimento aduzido na apelação quando se defende que, com vista ao reconhecimento da constituição da servidão, os recorridos tão só alegaram o título constitutivo da servidão representado nas transações judiciais homologadas por sentença.

Como já vimos, para além da invocação da constituição da servidão por contrato ou transação judicial, relativamente ao qual nenhumas dúvidas podiam suscitar-se, os recorridos igualmente alegaram/invocaram os pertinentes factos constitutivos da constituição, por usucapião, da servidão (cfr. arts. 17º a 25º da p.i.), os quais lograram demonstrar (cfr. pontos 12º a 17º dos factos provados).

Resulta, por conseguinte, que entre os dois prédios se constituiu uma servidão de passagem, a pé e de carro, por usucapião e por contrato.
*
3.2. Da mudança de servidão a pé existente a favor do prédio dos Autores sobre o prédio dos Réus.

Argumentam os RR./apelantes que «a servidão de passagem a pé foi mudada para a faixa de terreno identificada nas transacções, na qual os Réus construíram um passeio com a largura de 1,20m, conforme resulta da matéria assente no ponto 24), que sempre foi utilizada pelos Autores para acederem, a pé, ao seu prédio». Mas, salvo o devido respeito, não assiste razão aos apelantes.

Vejamos.

Sob a epígrafe “Mudança de servidão”, prescreve o art. 1568.º, n.º 1, do CC que:

«O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste».

Como escreveram Pires de Lima e Antunes Varela (35), há dois aspectos novos neste n.º 1 que merecem ser destacados.

Por um lado, admite-se não só a mudança da servidão para sítio diferente do primitivamente assinado, dentro do mesmo prédio, mas também a deslocação dela para outro prédio (subentende-se do mesmo proprietário).

A mudança da servidão pode ter lugar mesmo para um prédio não contíguo ao serviente (36).

Por outro lado, o citado normativo admite mesmo a mudança da servidão para prédio de terceiro, desde que haja o consentimento deste. É uma derrogação manifesta do princípio segundo o qual as servidões são inseparáveis dos prédios, consagrado no art. 1545º.

No caso, está provado que:

- Correu termos junto do Tribunal Judicial de Amares acção de expropriação por utilidade particular sob o n.º 2/1964, em que foram expropriantes A. T. e J. A. e mulher, C. S., e expropriados Artur e esposa, Joaquina, que findou por transacção, que data de 24/02/1965, entre outros, com o seguinte teor:

“…a) Os réus cedem aos autores, para acesso aos seus prédios, uma faixa de terreno com a largura de um metro, que se estende desde a linha de prolongamento, para sul, da parede nascente da casa do autor A. T. até ao caminho público que fica junto à estrada Braga-Amares.
b) A largura de um metro desta faixa de terreno é medida desde a parede sul que suporta os terrenos das casas dos autores para o lado do prédio dos réus.
c) Esta cessão é feita com os seguintes encargos: … Os autores obrigam-se a construir uma vedação assente em terreno dos réus, com a altura de um metro e oitenta centímetros, …ficando esclarecido que o terreno onde assenta a vedação não é pago pelos autores e não fica incluído na faixa de um metro, cedida, ficando a vedação a pertencer aos réus;
d) Os réus reservam-se o direito de passarem através da faixa de terreno cedido, desde a via pública junto à estrada Braga-Amares, até à sua casa que fica junto à casa do autor A. T.…
f) A transmissão do terreno só se opera depois da construção da vedação acima referida; (ponto 18 dos factos provados).

- Correu termos junto do Tribunal Judicial de Amares acção sumária sob o n.º 54/1982, em que foram autores Augusto e esposa E. C., e Réus Joaquina e outros, que findou por transacção, que data de 22/05/1984, entre outros, com o seguinte teor:

“ PRIMEIRA: Os réus reconhecem aos autores o direito de servidão de passagem de pé e carro pelo antigo troço da estrada nacional n.º 205, na parte que fica a norte da entrada do prédio dos autores;
SEGUNDA: Este direito não compreende o de estacionar no citado troço da antiga estrada, quaisquer veículos para além do tempo normalmente necessário para carga e descarga desses veículos…
TERCEIRO: A servidão reconhecida nos números anteriores, quanto ao trânsito de carros, cessará quando os autores procederem, digo, autores puderem dispor de outro acesso de carro ao seu prédio, descrito no n.º1.º da petição inicial, em idênticas circunstâncias de comodidade;
QUARTA: A servidão reconhecida nos números 1.º e 2.º, quanto ao trânsito de peões será mudada para a faixa de terreno com um metro de largura, referida no processo n.º 2/64, do arquivo deste tribunal e referida no n.º 5.º da contestação, logo que os réus obtenham documento idóneo dos actuais proprietários dessa faixa de terreno, para essa mudança…” (ponto 19 dos factos provados).
- Os réus construíram, na faixa de terreno, referida em 18), um passeio com largura de 1,20 m.

Ora, não obstante estar provado que, tal como se vincularam no âmbito da transação judicial homologada no âmbito da acção de expropriação por utilidade particular sob o n.º 2/1964, os RR. cederam aos ali autores uma faixa de terreno com a largura de um metro, a verdade é que a mudança da servidão a pé, judicialmente acordada na ação acção sumária sob o n.º 54/1982, em que foram autores os anteproprietários do prédio dos AA., pressupunha, além do mais, que os ali réus obtivessem documento idóneo dos actuais proprietários dessa faixa de terreno, para ser efetivada essa mudança, facto este que não resultou provado.

Diga-se, aliás, em jeito de parêntesis, que foi junta aos autos uma missiva em que um dos alegados atuais proprietários dessa faixa de terreno se insurge, precisamente, contra a utilização dessa faixa de terreno feita pelos AA. (cfr. documento de fls. 273 e 274).
Assim, no que ao caso releva, conforme concluiu o tribunal da 1ª instância, importa tão só reiterar a não demonstração daquela condição necessária à acordada mudança de servidão a pé, o que nos reconduz – sem mais considerações por desnecessárias – à inviabilidade de tal fundamento da apelação.
*
3.3. Da extinção, por não uso, da servidão, relativamente à passagem de carro.

Sob a pressuposição fáctica de que os AA. não utilizam o prédio dos RR., para passagem de carro, há mais de 20 anos, pugnam os recorrentes pela declaração de extinção do direito de servidão de passagem de carro.
Segundo o art. 1569.º, n.º 1, al. b), do CC, as servidões extinguem-se pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo.

Por sua vez, nos termos do n.º 3 do art. 298º do CC, os “direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade”.

O não uso da servidão só a extingue quando seja reiterado e se prolongue por vinte anos. Trata-se, pois, de um não uso qualificado (37).

Na base desta causa extintiva da servidão está “uma atitude hostil contra os direitos reais limitados, que não estejam a desempenhar uma função socialmente útil”; ou “a ideia de que só devem ser impostos encargos, se existirem necessidades que os justifiquem(38); ou ainda “uma presunção de desnecessidade” ou de “sanção da inércia do titular (…) do direito de servidão(39).

O que fundamentalmente interessa à extinção da servidão é o facto material, a situação objetiva do não uso, “independentemente das circunstâncias pessoais (incapacidade, vínculo matrimonial, etc.) que possam estar por detrás do não uso(40).

Com atinência com a matéria em apreço importa ainda ter presente o regime do art. 1572º do CC, que prescreve:

A servidão não deixa de considerar-se exercida por inteiro, quando o proprietário do prédio dominante aproveite apenas uma parte das utilidades que lhe são inerentes”.
Significa isto que o aproveitamento de qualquer utilidade compreendida no direito de servidão corresponde ao seu exercício por inteiro.

Assim, se o titular do direito de servidão apenas aproveitar uma ou parte das utilidades compreendidas naquele direito – por exemplo, um indivíduo detém o direito de passar por prédio alheio, tanto a pé, como com o carro, mas durante vinte anos ele exerceu essa servidão, passando apenas a pé, não circulando com o carro – esse facto não importará a extinção parcial da servidão – ou seja, a servidão não ficará restrita à passagem a pé, posto que o exercício parcial da servidão obsta à extinção (ainda que parcial) desta (41).

Revertendo ao caso dos autos e não se mostrando provado que os AA. não utilizam o prédio dos RR., para passagem de carro (bem como a pé, acrescentaríamos nós, atentas as enunciadas considerações quanto ao exercício parcial da servidão - art. 1572º do CC), há mais de 20 anos – os pontos 13 e 16 dos factos provados infirmam essa factualidade, sendo certo que os AA. apenas deixaram de circular pelo caminho localizado no lado poente do seu prédio, correspondente ao antigo troço da estrada nacional N.º 205 e que se desenvolve no sentido nascente/poente do prédio dos Réus quando estes colocaram um portão sobre o leito do caminho que obstava à circulação dos AA. por esse caminho, mas não se tendo apurado há quanto tempo tal portão foi colocado –, forçoso será concluir pela não demonstração do apontado fundamento de extinção da servidão.

Termos em que também improcede este fundamento da apelação.
*
No tocante aos peticionados danos não patrimoniais, dada a anulação da sentença, ao ficarem vencidas por decaimento, as partes são responsáveis pelo pagamento das custas, provisoriamente e em partes iguais, na instância recorrida e na apelação, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC (42).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - Deduzindo o Autor um pedido genérico, a coberto do preceituado art. 556º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, e não procedendo à sua liquidação no decurso da ação declarativa em momento prévio à sentença, o tribunal não pode proceder a uma condenação líquida, até por desconhecer o limite do pedido que o Autor deduziria se formulasse pedido concreto.
II - Terá, nesse caso, de remeter para posterior liquidação o valor de tal pedido, a efetuar nos termos do art. 358º, n.º 2, do Código de Processo Civil, sob pena de comissão da nulidade da sentença da alínea e) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil.
III – O não uso da servidão só a extingue quando seja reiterado e se prolongue por vinte anos, qualquer que seja o motivo (art. 1569.º, n.º 1, al. b), do Código Civil).
IV – Todavia, em conformidade com o estatuído no art. 1572º do CC, o aproveitamento de qualquer utilidade compreendida no direito de servidão corresponde ao seu exercício por inteiro.
V – Deste modo, se o titular do direito de servidão de passagem por prédio alheio, tanto a pé, como com o carro, durante vinte anos exerceu essa servidão passando apenas a pé, não circulando com o carro, esse facto não importará a extinção parcial da servidão, ou seja, a servidão não ficará restrita à passagem a pé, posto que o exercício parcial da servidão obsta à extinção (ainda que parcial) desta.
*
V. DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação, e, em consequência, decidem:

Anular a sentença na parte em que condenou os réus a pagar aos autores, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 2.000,00, com juros desde a data da citação e, em sua substituição, condenar os réus a pagar aos autores indemnização relativa a tal dano, a liquidar em incidente de liquidação posterior ou subsequente à condenação, nos termos do art. 609º, n.º 2, do CPC.
Quanto ao mais, manter e confirmar a sentença recorrida.
*
Custas em ambas as instâncias, na parte relativa ao pedido dos danos não patrimoniais, a cargo dos apelantes e dos apelados, na proporção que, provisoriamente, se fixa em partes iguais, a corrigir em função do que resultar da posterior liquidação.
Quanto ao mais, custas a cargo dos apelantes.
*
Guimarães, 25 de outubro de 2018

Alcides Rodrigues
Joaquim Boavida
Paulo Reis


1. Cfr. Ac. da RP de 24/01/2018 (relator Nelson Fernandes), in www.dgsi.pt. e Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., 2014, Almedina, pp. 59820/601.
2. Cfr. Ac. do STJ de 28/02/2013 (relator João Bernardo), in www.dgsi.pt.
3. Cfr., entre outros, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371 e António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 364.
4. Cfr. Ac. do STJ de 8/11/2016 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt.
5. Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 713.
6. Cfr. Ac. do STJ de 30/04/2014 (relator Mário Belo Morgado), in www.dgsi.pt. e Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Coimbra Editora, pp. 69/70.
7. Cfr. fls. 301.
8. Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 1946, p. 170.
9. Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa à luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª ed., Gestlegal, p. 47.
10. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, pp. 152-158, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 2ª ed., Almedina, 1999, pp. 73/74 e Joel Timóteo Ramos Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, Vol. I, Processo Civil Declarativo, 3ª ed., Quid Iuris, 2004, p. 542 e Prontuário de Formulários e Trâmites, Vol. III, Excepções da Instância, 2007, Quid Iuris, pp.829-831.
11. Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 510 e José Lebre de Freitas, obra citada, p. 49.
12. Com a abolição do incidente de liquidação da obrigação no âmbito da ação executiva, o incidente de liquidação tem de ter sempre lugar na ação declarativa (arts. 360º, n.º 3 e 704º, n.º 6, do CPC), ainda que para tal, caso já tenha ocorrido a extinção da instância com o trânsito em julgado da decisão final, seja necessário renovar a mesma. Com efeito, o art. 358º, n.º 2, do CPC dispõe que “o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada”.
13. Cfr. Ac. do STJ de 19/12/2006 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.
14. Cfr. Ac. da RC de 16/12/2015 (relator Barateiro Martins), in www.dgsi.pt.
15. Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 19/12/2006 (relator Sebastião Póvoas), Ac. da RG de 21.01.2016 (relator Jorge Seabra) e Ac. da RE de 13/03/2014 (relator Acácio Neves), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.; Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Accção Declarativa, Lex, 1995, p. 126-127.
16. Como se explicitou no Ac. desta RG de 26/10/2017 (relator Afonso Cabral de Andrade e no qual o ora relator interveio como 1º adjunto), à questão de saber se uma condenação concreta que tenha na base apenas um pedido genérico é uma condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, dir-se-á tratar-se de «uma mistura das duas coisas: na realidade, a falta de um pedido concreto (líquido) impede a Relação de fazer a comparação entre o que é pedido e o que a sentença ordenou, e esse vício é tão grave que se compreende que gere a nulidade da peça decisória».
17. Cfr., na doutrina, Abrantes Geraldes, obra citada, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, 2017 – reimpressão, p. 384 a 396, Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, in Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, obra citada, pp. 462 a 469; na jurisprudência, Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
18. Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pp. 435/436.
19. Cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil. Conceito e princípios fundamentais à luz do código revisto, 3ª ed., Coimbra 2013, p. 200.
20. Por se tratar de uma modificação muito limitada, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada e não provada, devendo considerar-se aditado e/ou alterado aqueles pontos fácticos nos termos supra definidos.
21. Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Iuris, 1996, p. 383.
22. Cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. , Coimbra Editora, p. 614 e ss.
23. Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Almedina, 2017 – reimpressão., p. 730.
24. Cfr. obra citada, p. 636.
25. Cfr. Henrique Mesquita, RLJ, ano 129, p. 255 e Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5ª ed., Coimbra Editora, 1993, p. 260.
26. Por via pública entende-se no caso o caminho terrestre (seja estrada, rua, travessa, avenida, praça pública, etc.) que permita a circulação de pessoas e bens por terra do e para o prédio encravado. – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 636, e José Alberto Vieira, obra citada, p. 732,.
27. Cfr. Ac. da RC de 07/05/2002 (relator António Piçarra), in www.dgsi.pt/, e A. Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, p. 731.
28. Cfr. Deliberação do Conselho Técnico de 18 de Dezembro de 2007 do Instituto de Registos e do Notariado, disponível in http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2007/p-r-p-56-2007-dsj-ct/downloadFile/file/prp056-2007.pdf?nocache=1316447867.64
29. Não podem adquirir-se por usucapião as servidões prediais não aparentes (art. 1293º, alínea a) do CC).
30. Se a posse foi adquirida com violência, o prazo para a usucapião não começa a contar enquanto ela não se tornar pacífica; de igual modo, se a posse for oculta só começa a contar para a usucapião desde que se torne pública (art. 1297º do CC).
31. Cfr. Ac. do STJ de 14/04/2011 (relator Granja da Fonseca), in www.dgsi.pt.
32. O art. 1248.º, n.º 1, do CC define a transação como «o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões», acrescentando, o n.º 2, que as «concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido». Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., pág. 856, o fim do contrato é prevenir ou terminar um litígio. Na transação, nem há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito. Também não há na transação o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes; a ideia básica dos contraentes é a de concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida. Sendo um negócio formal, no âmbito do processo, a transação (judicial) pode fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo. Este termo é tomado pela secretaria a simples pedido verbal dos interessados e se, examinada pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a transação for válida, assim será declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos constantes do termo ou documento. A transação pode também fazer-se em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz, que, neste caso, se limita a homologá-la por sentença ditada para a ata, condenando nos respetivos termos (art. 290º do CPC). No que concerne aos efeitos, a transação judicial opera a modificação do pedido ou faz cessar a causa nos precisos termos em que se efetue, ao abrigo do disposto no art. 284.º do CPC, e, sendo judicialmente homologada, passa a possuir a força e eficácia de caso julgado quanto ao conteúdo do acordado, tal como uma qualquer decisão judicial sobre o mérito do litígio.
33. À situação versada nos presentes autos não é subsumível o circunstancialismo fáctico espelhado no Ac. da RC de 13/05/2014 (relator Barateiro Martins), in www.dgsi.pt., já que neste «a transacção da anterior acção limitou-se a, não ultrapassando o direito que ali estava controvertido, declarar/reconhecer a existência duma servidão de passagem já constituída por usucapião».
34. Cfr. neste sentido, Ac. da RC de 16/06/2003, CJ, Ano XXVIII – T. III/2003, pp. 30/33.
35. Cfr. obra citada, p. 671.
36. Cfr. Mário Tavarela Lobo, Mudança e alteração de servidão, Coimbra Editora, pp. 106/108.
37. Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, obra citada, 1996, p. 395.
38. Cfr. Mota Pinto, obra citada, p. 330.
39. Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, obra citada, 1996, p. 395.
40. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 675.
41. Cfr. Mota Pinto, obra citada, p. 339/340.
42. Cfr. Abrantes Geraldes, in Temas Judiciários, I Vol. (1 - Citações e notificações em processo Civil 2 – Custas judiciais e multas cíveis), Almedina, 1998, p. 238 – 242, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 419 e Ac. do STJ de 13/07/2017 (Relator Olindo Geraldes), in www.dgs.pt.