Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3546/11.1TBGMR-H.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRESSUPOSTOS
DEVER DE INFORMAR
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
DOAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. . Se os fundamentos invocados para o indeferimento da exoneração com base na alínea e) do nº 1 do artº 238º são os mesmos que poderiam servir para fundamentar a qualificação da insolvência como culposa - existirem nos autos elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º - tendo a insolvência sido qualificada como fortuita, não pode indeferir-se a exoneração com base em tais fundamentos.
2. . Os deveres de informação e colaboração, no âmbito do incidente de exoneração do passivo, revestem uma importância particular, na medida em que o seu cumprimento constitui indício da rectidão da conduta do devedor, rectidão que não pode deixar de lhe ser exigida tendo em conta que pretende ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante permite.
3. . Ao omitirem no requerimento de apresentação à insolvência a doação a uma filha, não podiam os requerentes desconhecer que este bem estava a ser alvo de impugnação pauliana, pois que o requerente marido foi citado para a referida acção dias antes da apresentação à insolvência.
4. . O homem médio não deixaria de, ao apresentar-se à insolvência, informar a existência da doação efectuada e da sua impugnação, pois que não podia deixar de ter a noção que a doação de bens a um filho, sempre seria um acto a qualificar como de grave deslealdade perante os credores, não podendo deixar de se exigir ao devedor que pretende ver-se exonerado do passivo restante que espontaneamente traga aos autos essas informações, sob pena de se ter de concluir que deliberadamente não as quis prestar.
5. .Pelo que os requerentes da insolvência e da exoneração do passivo restante ao não revelarem espontaneamente o negócio de doação, violaram com culpa grave os deveres de informação e colaboração a que a boa fé os obrigava, incumprindo os deveres consignados no nº 1 do artº 238º.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

AA… e BB…, vieram, em 23.09.2011, requerer a sua declaração de insolvência e requereram, simultaneamente, a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 235°, e ss. do CIRE, declarando preencher os requisitos necessários.
Houve dedução de oposição por parte do Banco…, SA, que sustentou a prática de actos pelos insolventes susceptíveis de causar prejuízo para os interesses da massa, estando preenchidos os pressupostos da sua resolução; da Caixa … CRL, com fundamento na violação do dever de apresentação à insolvência e na doação de prédio imóvel à filha dos apresentantes, CC…, em 08.04.2011; e do ISS, IP e do Banco DD…, SA, embora estes credores não tenham fundamentado a sua posição De acordo com o relatório da sentença recorrida, não fornecendo estes autos tais informações por se tratarem de recurso processado em separado..
O Sr. AI pronunciou-se, a fls. 119, no sentido do deferimento do pedido de exoneração.
Por despacho de 24.01.2012, proferido no incidente de qualificação de insolvência, foi qualificada como fortuita a insolvência dos requerentes AA e BB.
Foi proferido despacho, em 26.01.2015 que, por considerar verificadas as previsões das alíneas e) e g) do artº 238º do CIRE, indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Os requerentes não se conformaram com o indeferimento liminar e interpuseram o presente recurso de apelação, onde formularam as seguintes conclusões:

1. O que está em causa saber com o presente recurso é se o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelos aqui apelantes, foi bem ou mal indeferido;

2. No caso em apreço, o indeferimento liminar dos pedidos de exoneração do passivo restante formulados pelos insolventes, fundou-se, além de outro, na verificação da previsão da alínea e) do nº 1 do art.º 238º do CIRE, que dispõe o seguinte: “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:... Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou peto administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artº 186º”.

3. O artº 186º, integrado nas normas que regulamentam o incidente de qualificação da insolvência, prescreve que a insolvência é culposa, quando a situação seja criada ou agravada em consequência de actuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito e de facto, nos três anos anteriores ao início do processo.

4. Antes de se apreciar o pedido de exoneração do passivo restante, decidiu-se por decisão transitada, qualificar a insolvência dos ora insolventes como fortuita, o que significa que não se indiciou sequer qualquer comportamento culposo por nexo de causalidade à criação ou agravamento da situação de insolvência,

5. Na posterior decisão ora em causa, entendeu-se o contrário, ou seja, que se verificava tal comportamento culposo, aduzindo-se o seguinte fundamento: "ao celebrar a doação a favor de descendente, os insolventes agravaram a situação de insolvência pessoal".

6. Os apelantes consideram que existem duas decisões contraditórias, sendo que a que está em causa é posterior à outra que já tinha transitado em julgado.

7. Esta problemática já foi analisado no Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 03/04/2014, proferido no âmbito do processo nº 1084/13.TBFAFH.Bl. Seguindo de perto tal Acórdão, dir-se-á que tendo sido proferida decisão judicial a declarar fortuita a insolvência dos recorrentes, o incidente de exoneração do passivo restante não pode ser indeferido liminarmente com base no disposto no artº 238º, nº 1, alínea e), do CIRE.

8. O artº185º do ClRE estabelece que a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa nem para efeitos da decisão de causas penais, nem nas acções a que se reporta o nº 2 do artº 82º.

9. Resulta desta norma. a contrario sensu, que nas demais acções, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação de insolvência,

10. No caso concreto, os factos que fundamentaram a decisão de indeferimento em causa, ocorreram antes da decisão de declaração de Insolvência e antes da decisão da qualificação da insolvência.

11. A doação do imóvel dos autos já era do conhecimento do Sr. Administrador de Insolvência, previamente à decisão do incidente de qualificação.

12. A decisão ora em crise contrária a que qualificou a Insolvência como fortuita (artº 620º do CPC).

13. O fundamento invocado para o indeferimento da exoneração é o mesmo que poderia servir para fundamentar a qualificação da insolvência como culposa e que in casu, não o foi.

14. Perfilha-se também o entendimento plasmado no Acórdão do TRP de 03.12.2012, Processo nº1462/11.6TJVNF-D.P1, "tendo sido proferida decisão a qualificar a insolvência como fortuita, por não se ter apurado "nenhum comportamento do devedor integrador da qualificação da insolvência como culposa", essa decisão é vinculativa, impondo-se no processo (artº 672º do CPC), obstando a que se indefira o pedido de exoneração, justamente com o fundamento (para poder considerar-se a insolvência culposa) que, no apenso próprio, se julgou inexistir".

15. E ainda no mesmo sentido vejam-se os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 29.02.2012, Proc. nº 170/11.2TMGR-C.C1 e de 24.04.2012, Proc.nº 399/11.3TBSEI.-E.C1).

16. De acordo com o exposto, inexiste qualquer fundamento de direito para que a exoneração do passivo restante dos aqui recorrentes seja indeferida.

17. Por outro lado, ao longo de todo o processo de insolvência, inexistiu da parte dos ora recorrentes qualquer violação dos deveres aos mesmos adstritos.

18. Em momento algum existe registo ou alusão, designadamente, por porte do Sr. Administrador de Insolvência, a qualquer dificuldade em obter informações ou colaboração por parte dos insolventes, por forma a reunir os elementos necessários ao exercício das suas funções.

19. Pelo contrário, os insolventes desde o primeiro momento se apresentaram junto do Sr. AI e se prestaram a colaborar com o mesmo no que quer que fosse, quer facultando-lhe documentos, quer informações.

20. Menos verdade ainda, é que possam ter agido com dolo ou culpa grave, se a nada se negaram e sempre se dispuseram a ajudar, não bastasse já a situação financeira que os assolou.

21. Foram os próprios insolventes que, logo que tomaram conhecimento da possibilidade que a massa insolvente tinha em resolver a doação dos autos, se apressaram a ir junto do Sr. Administrador de Insolvência de modo a evitarem essa situação e a entregarem o imóvel que haviam doado à sua filha, o que acabou por ser feito.

22. Inexistiu da parte dos insolventes qualquer intuito de prejudicar os seus credores, sendo que o acto de doação que fizeram, teve como único propósito ajudar a filha de ambos no início da sua actividade laboral, tendo esta chegado mesmo a constituir uma empresa de acessórios de moda sediada no referido imóvel.

23. Os conceitos determinantes da norma prevista na alínea g) do nº 1 do artº 238º do CIRE, ou seja, "agir com dolo ou culpa grave", não são conceitos abstractos ou genéricos, tendo que estar consubstanciados em factos, o que, in casu, se não verifica na decisão em crise.

24. Também no que concerne à hipótese constante da previsão da alínea g) do n.º 1 do artº 238º do CIRE, a mesmo não se verifica, devendo, pois, improceder com o subsequente alteração da decisão proferida, pela qual aqui igualmente se propugna.

25. A douto decisão impugnada não pode manter-se, pois violou o disposto nos artºs 238º do CIRE e artº 620º do CPC.

II – Objecto do recurso

Considerando que:

. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão a decidir é a seguinte:

. se, tendo a insolvência sido declarada fortuita, pode ser indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento no disposto nas alíneas e) e g) do nº 1 do artº 238º do CIRE.

III – Fundamentação

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1.Os requerentes apresentaram-se à insolvência por petição apresentada a 23 .09.2011;
2.Os requerentes foram declarados insolvente por sentença proferida a 26.09.2011;
3.Do CRC relativo aos insolventes nada consta (cfr. fls. 266 a 267);
4.O Sr. AI resolveu três contratos celebrados pelos insolventes, sendo que esses actos resolutivos foram impugnados através das acções apensas sob as letras «C» e «E», tendo, na primeira, havido homologação da confissão do pedido pela massa insolvente (não se mantendo, na ordem jurídica, a resolução promovida) e, na segunda, sido julgada procedente a acção de impugnação da resolução (cfr. fls. 31, do apenso «C», e fls. 264 a 271, do apenso «E»);
5. CC…, donatária do prédio descrito na CRP sob o 11.° 21/19850114-AA, e destinatária da resolução por parte do Sr. AI, declarou aceitar esse acto resolutivo (cfr. fls. 89, do apenso «F»);
6. A doação resolvida foi celebrada pelos insolventes no dia 08.04.2011 (cfr. certidão de fls. 43 a 45 do apenso «F»).
7. CC… como sendo filha dos insolventes (cfr. fls. 299).
8. A Caixa …, CRL, intentou contra os insolventes e outros a acção com o n. 295/11.4TCGMR, relativa à fracção autónoma designada pelas letras AA, loja 11.° 24, descrita na CRP sob o n.º … (cfr. certidão de fls. 274 e ss.).
9. O insolvente marido foi citado em 05.09.2011, no âmbito da acção identificada em 8.
10. O insolvente marido e a insolvente mulher apresentaram contestação em 06.10.2011 na acção identificada em 8.
11. A assembleia de apreciação do relatório realizou-se a 28.11.2011 (cfr. fls. 123 a 124).

Nos termos do disposto no art.º 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março (diploma a que se referem todas as disposições que venham a ser citadas sem expressa menção da fonte), se o devedor for uma pessoa singular, pode lhe ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste…”.

A exoneração do passivo restante é uma medida nova, introduzida no ordenamento jurídico pelo actual Código da Insolvência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março. O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. O procedimento para obtenção, pelo devedor, desta libertação definitiva do passivo, está regulado nos art.ºs 235º a 248º.

Dispõe o nº 1 do artº 236º que o pedido de exoneração do passivo restante pode ser feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência, como sucedeu no caso dos autos, ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório do Administrador da Insolvência.

E estatui o art.º 237º alínea a) que a concessão efectiva da exoneração pressupõe, para além do mais, que não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido nos termos do disposto no art.º 238º.

A decisão recorrida indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante por entender que, no caso concreto, se verificavam os fundamentos previstos nas alíneas e) e g) do nº 1 do artº 238º.

Dispõem os referidos preceitos legais que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

.Al. e) constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor;

.Al. g) o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação apresentação e colaboração que para eles resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

Por sua vez dispõe o nº 1 do artº 186º que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Os recorrentes insurgem-se contra o despacho recorrido por, no seu entender, um dos fundamentos invocado para o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante – a alínea e) - ser o mesmo que poderia servir para motivar a qualificação da insolvência culposa – haver nos autos elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.

E, tendo sido proferida já decisão, transitada em julgado, a qualificar a insolvência como fortuita, essa decisão é vinculativa, impondo-se no processo (artº 672º, do CPC), o que obstará a que se indefira liminarmente o pedido de exoneração com o mesmo fundamento.

O artº 185º estabelece que a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o nº 2 do art. 82º. Tem-se entendido que resulta desta norma, a contrario sensu, que nas demais acções a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação de insolvência.

O Mmo Juiz no despacho recorrido fundamenta o indeferimento com base na alínea e) do nº 1 do artº 238º por os insolventes terem celebrado o contrato de doação do imóvel descrito na CRP sob o artº …/19850114-AA com a sua filha CC…, poucos meses antes de se apresentarem à insolvência, agravando assim a sua situação de insolvência pessoal.

Efectivamente os AA. procederam a esta doação, a qual foi impugnada por um dos credores e foi objecto da decisão de resolução em benefício da massa.

Este facto, no entanto, já era do conhecimento do administrador da insolvência e do tribunal antes da prolação da decisão no incidente de qualificação da insolvência.

Com efeito, no relatório do sr. AI, de 21.11.2011, é referida a mencionada doação, realizada em Abril de 2011, assim como a venda de dois imóveis em Abril e Maio do mesmo ano, mencionando-se ainda que foi intentada uma acção de impugnação pauliana a correr termos sob o artº 295/11.4TCGMR da 1ª vara mista do TRG.

No entanto, o Sr. AI conclui ao apreciar o pedido de exoneração do passivo restante que nada obstava à sua concessão por não existirem elementos que indiciassem com toda a probabilidade a existência de culpa ou agravamento da situação de insolvência.

Também na assembleia de apreciação do relatório, realizada em 28.11.2011, o sr. AI pediu a palavra e requereu o prazo de 30 dias, em aditamento ao relatório junto aos autos, para se inteirar do estado e dos fundamentos defendidos no âmbito da referida acção 295/11 com vista a tomar posição acerca da eventual resolução dos contratos cuja validade estava a ser apreciada na mencionada acção. O requerido prazo foi concedido e o sr. AI foi advertido de que, findo o mesmo, deveria pronunciar-se quanto às diligências efectuadas e manifestar a sua posição quanto ao prosseguimento do processo.

Assim, já antes da prolação do despacho que qualificou a insolvência como fortuita era conhecido nos autos que os requerentes tinham efectuado uma doação à filha em Abril do ano em que se apresentaram à insolvência e, não obstante, não foi dada relevância a tais factos em sede de decisão no incidente de qualificação, pois que como resulta da sentença de qualificação de insolvência, tanto o AI como o MP emitiram parecer no sentido de que a insolvência era fortuita, pelo que ao Mmº Juiz a quo não restava outra alternativa, senão proferir decisão no sentido de que a insolvência era fortuita, no pressuposto de que os pareceres não enfermavam de vício de que o tribunal devesse conhecer Cfr. defendem Luís A.Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, Quid Iuris, 2009, p. 619..

Os fundamentos invocados para o indeferimento da exoneração com base na alínea e) do nº 1 do artº 238º são os mesmos que poderiam servir para fundamentar a qualificação da insolvência como culposa – existirem nos autos elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.

Assim, como tem sido repetidamente entendido, “tendo sido proferida decisão a qualificar a insolvência como fortuita, por não se ter apurado "nenhum comportamento do devedor integrador da qualificação da insolvência como culposa", essa decisão é vinculativa, impondo-se no processo (art. 672º do CPC), obstando a que se indefira o pedido de exoneração, justamente com o fundamento (para poder considerar-se a insolvência culposa) que, no apenso próprio, se julgou inexistir Cfr. se defende nos Acs. do TRP de 03.12.2012, proc. 1462/11.6TJVNF-D.P1 e de 04.03.2013, proc. 1043/12, Ac. do TRC de , proc. nº 170/11 e Ac. do TRG de , proc. 1084/13, todos acessíveis em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação de outra fonte..

No entanto, além do fundamento que preenche simultaneamente a alínea e) do nº 1 do artº 238º e o nº 1 do artº 186º, a Mma. Juíza a quo indeferiu ainda liminarmente o pedido de exoneração do passivo por ter considerado que os apelantes, ao não terem feito referência na petição inicial à doação efectuada à filha, violaram com dolo ou culpa grave os deveres de informação, apresentação e colaboração, pelo que se verificava a previsão da alínea g) do nº 1 do artº 238º.

Defendem os apelantes que não violaram a alínea g) do nº 1 do artº 238º pois que foram os próprios que, logo que tomaram conhecimento da possibilidade que a massa insolvente tinha em resolver a doação dos autos (são resolúveis em benefício da massa insolvente sem dependência de quaisquer outros requisitos os actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro de dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência -artº 121º nº 1 al. b.), se apressaram a ir junto do AI de modo a evitarem a resolução e entregaram o imóvel que haviam doado à filha, o que acabou por ser feito e que a doação teve como propósito ajudar a filha no início da sua actividade laboral, tendo esta chegado a constituir uma empresa de acessórios de moda sediada no referido imóvel.

Contudo estes factos não foram dados como provados e nenhuma documentação foi junta a estes autos em separado nem foi referida qualquer documentação, que permita concluir no sentido alegado pelos apelantes. Pelo contrário, foi dado como provado que a doação foi objecto de declaração de resolução (factos provados 4 e 5) que a filha dos requerentes aceitou.

A alínea g) do nº 1 do artº 238º não exige, como o faz a alínea d) da mesma disposição legal, que a violação destes deveres cause prejuízo aos credores, bastando ao legislador, como indicador da falta de confiança a depositar na conduta do devedor, a simples violação dos deveres em causa, desde que com dolo, ou com culpa grave Cfr. se defende no Ac. do TRL de 20.02.2014, proferido no proc. 757/13..

Os deveres de informação, apresentação e colaboração são exigidos pelo artº 83º no interesse dos credores, na pendência do processo de insolvência e abrange as situações em que o devedor, apesar de não ter sido interpelado nessa pendência a prestar informações que se tenham por “relevantes para o processo”, opta ab initio e na respectiva pendência por as não fornecer, omitindo-as. Além dos específicos deveres previstos no artº 83º, as partes e em especial o devedor, estão obrigadas aos deveres gerais de cooperação e de actuação com boa-fé processual, por força do disposto nos artigos 7º e 8º do CPC , aplicáveis por via do artigo 17º.

Os deveres de informação e colaboração, no âmbito do incidente de exoneração do passivo, revestem uma importância particular, na medida em que o seu cumprimento constitui indício da rectidão da conduta do devedor, rectidão que não pode deixar de ser exigida tendo em conta que pretende ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante permite.

No caso, os apelantes omitiram a doação no requerimento inicial, sendo que não podiam desconhecer que este bem estava a ser alvo de impugnação pauliana, pois que o apelante marido foi citado para a referida acção dias antes da apresentação à insolvência.

O homem médio não deixaria de, ao apresentar-se à insolvência, informar a existência da doação efectuada e da sua impugnação, pois que não podia deixar de ter a noção que a doação de bens a um filho, sempre seria um acto a qualificar como de grave deslealdade perante os credores, não podendo deixar de se exigir ao devedor que pretende ver-se exonerado do passivo restante que espontaneamente traga aos autos essas informações, sob pena de se ter de concluir que deliberadamente não as quis prestar.

Pelo que os apelantes, ao não revelarem espontaneamente o negócio de doação, violaram com culpa grave os deveres de informação e colaboração a que a boa fé os obrigava, incumprindo os deveres consignados na alínea g) do nº 1 do artº 238º Cfr. se defende no Ac. do TRL de 06.06.2013, proferido no proc. 1048/12..

A culpa dos insolventes não pode deixar de ser afirmada, pois que os mais elementares deveres de probidade, cooperação, transparência e lealdade lhes impunham que dessem notícia da sua real situação patrimonial, pois que quem decide apresentar-se à insolvência e se dirige a juízo para tanto, não pode deixar de fornecer a informação de que escassos meses antes doou um bem e que esse acto foi objecto de impugnação judicial, violação que lhes deve ser imputada, pelo menos a título de culpa grave.

Impõe-se assim a manutenção do despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por se mostrar preenchido o fundamento previsto na alínea g) do nº 1 do artº 238º.

Sumário:

. Se os fundamentos invocados para o indeferimento da exoneração com base na alínea e) do nº 1 do artº 238º são os mesmos que poderiam servir para fundamentar a qualificação da insolvência como culposa - existirem nos autos elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º - tendo a insolvência sido qualificada como fortuita, não pode indeferir-se a exoneração com base em tais fundamentos.

. Os deveres de informação e colaboração, no âmbito do incidente de exoneração do passivo, revestem uma importância particular, na medida em que o seu cumprimento constitui indício da rectidão da conduta do devedor, rectidão que não pode deixar de lhe ser exigida tendo em conta que pretende ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante permite.

. No caso, os apelantes omitiram no requerimento de apresentação à insolvência a doação à uma filha, sendo que não podiam desconhecer que este bem estava a ser alvo de impugnação pauliana, pois que o apelante marido foi citado para a referida acção dias antes da apresentação à insolvência.

. O homem médio não deixaria de, ao apresentar-se à insolvência, informar a existência da doação efectuada e da sua impugnação, pois que não podia deixar de ter a noção que a doação de bens a um filho, sempre seria um acto a qualificar como de grave deslealdade perante os credores, não podendo deixar de se exigir ao devedor que pretende ver-se exonerado do passivo restante que espontaneamente traga aos autos essas informações, sob pena de se ter de concluir que deliberadamente não as quis prestar.

.Pelo que os apelantes, ao não revelarem espontaneamente o negócio de doação, violaram com culpa grave os deveres de informação e colaboração a que a boa fé os obrigava, incumprindo os deveres consignados no nº 1 do artº 238º.

IV – Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Notifique.

Guimarães, 11 de Junho de 2015s

Helena Melo

Heitor Gonçalves

Manso Rainho