Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
79/14.8TAEPS.G1
Relator: MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: DIFAMAÇÃO AGRAVADA
JUÍZOS DE VALOR
ABSOLVIÇÃO
CRITICA À ACTUAÇÃO DE FUNCIONÁRIA JUDICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Decorre do preceituado nos artº 180º, do CP, que o legislador entendeu criminalizar quem atentar contra a honra e a consideração que a cada um é devida.
II) Todavia, não se pode equivaler o ataque à honra de uma pessoa ou à sua consideração, com falta de educação ou grosseria, com faltas de cortesia ou gentileza. Porque a sociedade em que vivemos não é habitada apenas por pessoas perfeitas, existe um espetro alargado de situações com as quais nos podemos ver confrontados, que podendo não ser as mais corretas, adequadas e ajustadas não têm de ser necessariamente criminosas.
III) É o que sucede, no caso dos autos em que estão em causa juízos valorativos emitidos pelo arguido relativos à atuação de uma funcionária judicial, que mais não traduzem do que a mera expressão de uma opinião pessoal verbalizados em termos que se atêm claramente no direito à crítica que a todos assiste
IV) Por isso, não configurando os factos assentes, o crime de difamação agravado pelo qual foi o arguido condenado, impõe-se a sua absolvição.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I) Relatório

Vem o arguido José C. interpor recurso da decisão proferida nos autos de processo abreviado com o número acima identificado que correram termos pela Instância Local de Esposende, comarca de Braga, e pela qual foi condenado, pela prática de um crime de difamação agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180º nº 1 e 184º por referência ao artigo 132º nº 2 alínea l), todos do Código Penal.
Para tanto alega o que consta da sua motivação a qual sintetiza nas conclusões seguintes: (transcrição)
«I - Da matéria de facto dada como provada e com relevância para a decisão final resulta que o arguido/recorrente dirigiu um requerimento ao Juiz titular de um processo em que era parte principal (arguido) que, na sequência de uma multa aplicada às suas testemunhas de defesa que faltaram à audiência de julgamento, pediu absolvição daquelas do seu pagamento, por considerar que" Por lapso ou falta de profissionalismo" da ofendida não foram devidamente feitas notificações.
II - No contexto em que a expressão "Por lapso ou falta de profissionalismo" foi utilizada, não reveste cariz difamatório nem objectivamente ofensiva, o que se repercute ao nível do elemento subjectivo, bem como da ilicitude.
III - A conduta do arguido/recorrente, analisada à luz do contexto em que foi proferida - formulada no âmbito de um requerimento/pedido dirigido ao tribunal -, muito embora possa ser considerada como indelicada ou acintosa para a senhora oficial de justiça (ofendida), não tem o propósito nem é apta a vexá-Ia ou humilhá-Ia;
IV- Trata-se de uma crítica objectiva, devendo esta entender-se como valoração e censura crítica, enquanto se refere, exclusivamente, às funções da ofendida, não se dirigindo directamente à sua pessoa, não a atingindo a sua honra e consideração pessoal, com tal sem dignidade penal.
v - Ao afirmar que "Por lapso ou falta de profissionalismo", o arguido/recorrente expressou uma ideia de alternância, admitindo em primeiro lugar a possibilidade da existência de um "lapso", o que exclui a "forma inequívoca , . . em insinuar que a ofendida .. , evidencia falta da profissionalismo.." (sentença pág. 9)',
Ou seja,
VI - Aquela afirmação não é suficiente para abalar moralmente a ofendida, nem prejudica a sua liberdade de determinação, pelo que não se encontrando preenchida, objectivamente, a previsão dos artºs 180º, n° 1, e 184º, do Código Penal, deveria o Mª Juiz a quo ao aplicar aquelas normas excluir a sua punibilidade, absolvendo o arguido.
Por outro lado,
VI - Tal expressão foi formulada, num manifesto e claro exercício ao direito de reclamação do serviço público efectuado pela ofendida, de um modo formal, mediante requerimento dirigido ao Juiz do processo, entidade com poder/dever funcional de atender e decidir as petições dos intervenientes processuais;
VII - O arguido/recorrente agiu, assim, no exercício de um direito, nos termos previstos no art. 31.°, nº1, al. b}, do Código Penal, pelo que a expressão "Por lapso ou falta de profissionalismo" da ofendida, não tem a virtualidade objectiva de ofender a sua honra e consideração pessoal, não preenchendo os elementos típicos do crime de difamação.
VIII - A conduta do arguido/recorrente é atípica, para efeitos do disposto no art. 180º do Código Penal, porquanto o mesmo actuou no exercício de um direito de liberdade de expressão, de crítica e de reclamação.
IX - Assim sendo, ° tribunal a quo errou na aplicação do direito, uma vez que a factual idade provada não integra a prática do crime de difamação pelo qual foi o arguido I recorrente condenado, devendo por isso absolver o arguido. »

A este recurso respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnando pela manutenção da decisão proferida.

Neste Tribunal da Relação a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu o seu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o preceituado no artigo 417º do Código de Processo Penal nada veio a ser acrescentado no processo.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II) - Fundamentação

Tem o seguinte teor a decisão recorrida: (transcrição)

1. A ofendida Sandra R. é oficial de justiça desde 1998.
2. À data dos factos sob discussão exercia funções como escrivã auxiliar do extinto 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Esposende.
3. Em Setembro de 2013, no extinto Tribunal e Juízo, corria termos, sob o nº367/12.8TAEPS, um processo-crime em que era arguido o, aqui, arguido José C..
4. No dia 25 desse mesmo mês estava agendada audiência de julgamento nesse processo, competindo à ofendida acompanhar a diligência.
5. Assim, efectuou a chamada, tendo constatado que estavam presentes todas as pessoas convocadas para o acto – demandante, defensora oficiosa do arguido, testemunhas de acusação e de defesa e o próprio arguido.
6. Face ao facto de ter sido determinado o adiamento da audiência de julgamento e agendada para sua realização o dia 04 de Novembro de 2013, a ofendida comunicou essa mesma situação a todos os presentes.
7. No dia 04 de Novembro de 2013 todos compareceram à audiência de julgamento, incluindo o arguido, excepto as testemunhas de defesa.
8. No dia 05 de Março de 2014 a ofendida tomou conhecimento de que o arguido José P. havia apresentado um requerimento, no dia 25 de Fevereiro de 2014, junto a fls.481, daquele processo-crime, com o seguinte teor: (…) Tendo conhecimento da multa que foi aplicada às testemunhas, Nuno S., Cândida . e Belmira G., por estes não comparecerem na audiência marcada, para o dia 04-11-2013. No dia 25-09-2013, todas as testemunhas estiveram presentes, nessa mesma data não foi ninguém notificado, de nova data para audiência, nem pessoalmente, nem pelo correio. Depois de consultado o processo, constatei que no dia 25-09-2013, a Srª Auxiliar de Justiça que estava presente foi, Srª Sandra A.. Por lapso ou falta de profissionalismo, deste Auxiliar de Justiça não fez as notificações, e assim foi aplicada a multa, a pessoa que se disponibilizam a ajudar o Tribunal na descoberta da verdade. Já à um ano atrás, num outro processo, esta Srª Auxiliar de Justiça, Sandra A., cometeu o mesmo erro, por lapso não notificou, uma testemunha que era importante para a realização da audiência. Como tenho vindo a consultar outros processos, e tenho conhecimento da falta de profissionalismo, por parte de alguns Auxiliares de Justiça e que assim tem levado á condenação de inocentes. Por esta razão peço que estas testemunhas sejam absolvidas, da multa que lhe foi aplicada (…).
9. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito, concretizado, de atingir a ofendida Sandra R. na sua dignidade e idoneidade profissional, enquanto oficial de justiça, bem sabendo que ao fazê-lo do modo constante do requerimento que apresentou no Processo nº367/12.8TAEPS, a fls.481, publicitava o conteúdo desse requerimento que subscreveu, dando dele conhecimento a outros oficiais de justiça, magistrados e terceiros que entrassem em contacto com o identificado processo-crime, pondo, assim, em causa o cumprimento das suas funções.
10. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11. O arguido foi já condenado:
a) em 07 de Dezembro de 2007, por sentença transitada em julgado em 09 de Janeiro de 2008, pela prática, em 02 de Fevereiro de 2006, de um crime de maus tratos a cônjuge ou análogo, no âmbito do Processo Comum Singular nº…, do (extinto) 1º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Esposende, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período; posteriormente, foi tal pena declarada extinta;
b) em 20 de Outubro de 2014, por sentença transitada em julgado em 03 de Novembro de 2014, pela prática, em 25 de Outubro de 2012, de um crime de injúria agravada e de um crime de difamação agravada, no âmbito do Processo Comum Singular nº…, do (extinto)21º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Esposende, na pena única de 285 (duzentos e oitenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o total de €1.425,00 (mil quatrocentos e vinte e cinco euros).
Provou-se, também, que:
12. O arguido José C. é divorciado.
13. Exerce a actividade de …, fazendo biscates, de onde retira, por mês, um rendimento que varia entre €400,00 (quatrocentos euros) e €500,00 (quinhentos euros).
14. Tem dois filhos, sendo um deles menor de idade.
15. Reside em casa arrendada, ascendendo o valor da renda à quantia mensal de €180,00 (cento e oitenta euros).
16. Possui como habilitações literárias a 4ª classe.

II.2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos alegados nos autos ou em audiência de julgamento com interesse para a decisão da causa. »

A matéria assente encontra-se fundamentada pela forma seguinte: (transcrição)
«A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do Código de Processo Penal), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Antes de mais, importa sublinhar que quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência das mesmas declarações e depoimentos (para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal, vide RICCI BITTI/BRUNA ZANI, A comunicação como processo social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997).
O juiz deve ter uma atitude crítica de avaliação da credibilidade do depoimento não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso saber (vide Acórdão de 17 de Janeiro de 1994, publicado na revista Sub Judice, nº6-91).
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal.
Obviamente que essa apreciação de prova está sujeita ao dever de fundamentação, desde logo, como decorrência do disposto no artigo 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que o princípio da livre apreciação das provas, previsto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado.
Cumpre, ainda, salientar, na sequência do que vem de expor-se, que a tarefa do julgador na decisão da matéria de facto está necessariamente condicionada pelos limites do conhecimento humano.
A vivência social e conhecimento da realidade, ainda que consubstanciando sempre uma certa margem de risco relativamente ao apuramento da verdade, mas com o qual se deve conviver, sempre temperam a decisão sem excessivos dramatismos e sem descurar os cuidados que necessariamente se impõem.
Outro sistema, que não este, que tem consagração no já referido princípio da livre apreciação e convicção do julgador, que não admitisse este risco conflituaria com direitos fundamentais ou poderia conduzir a situações de verdadeira denegação de justiça.
Deste modo, a matéria de facto tida como provada pelo tribunal resultou da análise da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta os parâmetros vindos de referir.
De fulcral relevância assumiu-se o requerimento que o arguido José C. dirigiu no dia 25 de Fevereiro de 2014 ao Processo Comum Singular nº…, que correu termos pelo extinto 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de Esposende, dele retirando-se, com relevo, o seguinte trecho: (…) Depois de consultado o processo, constatei que no dia 25-09-2013, a Srª Auxiliar de Justiça que estava presente foi, Srª Sandra A.. Por lapso ou falta de profissionalismo, deste Auxiliar de Justiça não fez as notificações, e assim foi aplicada a multa, a pessoa que se disponibilizam a ajudar o Tribunal na descoberta da verdade. Já à um ano atrás, num outro processo, esta Srª Auxiliar de Justiça, Sandra A., cometeu o mesmo erro, por lapso não notificou, uma testemunha que era importante para a realização da audiência. Como tenho vindo a consultar outros processos, e tenho conhecimento da falta de profissionalismo, por parte de alguns Auxiliares de Justiça e que assim tem levado á condenação de inocentes (cfr. fls.7).
Uma vez que nesse requerimento era pedido que fosse dada sem efeito a condenação em multa das testemunhas faltosas, a titular do processo despachou-o no dia 27 de Fevereiro de 2014 (cfr. fls.8), sendo que, após inteirar-se do seu teor, escreveu que (…) porque o condenado faz imputações que entendemos serem atentatórias da dignidade profissional da funcionária D. Sandra A., deve o presente requerimento ser notificado à mesma para que proceda nos termos que entender por convenientes (…).
Não cuidaremos, aqui, de apurar se as testemunhas de defesa do arguido naquele processo-crime foram ou não devidamente notificadas, sendo certo que na acta em que foi efectuado o adiamento e designada nova data (cfr. fls.34-35), não se dá como presente a testemunha de defesa Cândida C., mas apenas, nessa qualidade, o filho do arguido – Nuno S. – e Belmira G..
Ora o primeiro não logrou esclarecer como se processou esse adiamento, já que não guarda qualquer recordação.
A segunda afiança não ter sido notificada.
Já a ofendida Sandra A. garante que avisou todos os presentes do adiamento e da nova data.
De todo o modo, como ficou sobredito, não entraremos na discussão de apurar se a notificação da nova data foi ou não devidamente comunicada a todos os presentes naquele dia 25 de Setembro de 2013, por entendermos não ser esse o cerne dos presentes autos, mas antes o teor do requerimento de fls.7.
A este propósito permitimo-nos, aqui, citar, com as necessárias adaptações, a motivação da matéria de facto que consta da sentença proferida no Processo Comum Singular nº…, por nos revermos integralmente nela.
Escreve-se ali, entre o mais, que: (…) Ademais é de assinalar que o arguido confessou toda a factualidade lhe era imputada na acusação pública, salvo obviamente no que concerne à intenção/desiderato que pretendeu atingir com a sua conduta. Sucede que neste particular as declarações do arguido – quando afirmou que não pretendia com a conduta adoptada ofender ou prejudicar o ofendido – não mereceram qualquer credibilidade, desde logo porque se afiguram completamente desajustadas em relação ao que resulta das regras da experiência comum. Com efeito, as expressões utilizadas pelo arguido são comummente entendidas pela sociedade como ofensivas da honra e do bom nome, não é socialmente tolerável que as pessoas se tratem adjectivando-se entre elas de «incompetentes, desonestas, mentirosas, ardilosas, falsificadoras de documentos, profissional da mentira, cobarde, ladrão». Quem usa este tipo de expressões pretende claramente ser ofensivo. No entanto, ainda que assim se não entendesse, sempre teríamos que considerar que a lei não exige, como elemento do tipo, que haja um dano efectivo do sentimento da honra e da consideração. Basta, para a sua existência, o perigo de que aquele dano possa verificar-se. Não exige igualmente a lei um dolo específico, um propósito de ofender a honra e a consideração de alguém- animus diffamandi – bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e da consideração de alguém. E face à factualidade provada facilmente se concluiu que, ao contrário do declarado, o arguido tinha consciência de que a conduta adoptada era apta a ofender, como ofendeu, o ofendido e tinha obrigação de saber, como sabia, que a conduta perpetrada não idónea a defender os seus direitos nos processos aos quais dirigiu a carta em causa nos autos. Tanto mais que já depois de proferida a acusação nestes autos e de ter sido designada data para a audiência de julgamento o arguido, em 3 de Outubro de 2013, juntou o requerimento de fls. 240 e ss., no qual reitera algumas das expressões e dos factos imputados ao ofendido na cata, persistindo assim na sua intenção criminosa. Posto isto temos por certo e seguro que o arguido tinha a perfeita consciência de que o seu comportamento produziria, como produziu, a ofensa da honra e da consideração do ofendido, o que efectivamente quis (…).
Esta argumentação é, em nosso entender, plenamente válida no que concerne aos presentes autos.
Na verdade, o arguido, no mencionado requerimento, não se limita a afirmar que a oficial de justiça, a, aqui, ofendida Sandra R. cometeu um lapso.
Se o fizesse, até se compreenderia alguma indignação e justificar-se-ia o comportamento do arguido, na medida em que teve como consequência a condenação em multa das testemunhas de defesa que, certamente, o abordaram por causa do sucedido.
No entanto, o aludido José P. decidiu ir mais longe, acusando a ofendida de falta de profissionalismo e acrescentando (…) Já à um ano atrás, num outro processo, esta Srª Auxiliar de Justiça, Sandra A., cometeu o mesmo erro, por lapso não notificou, uma testemunha que era importante para a realização da audiência (…).
E remata: (…) Como tenho vindo a consultar outros processos, e tenho conhecimento da falta de profissionalismo, por parte de alguns Auxiliares de Justiça e que assim tem levado á condenação de inocentes.
Do exposto conclui-se, de forma inequívoca, que o arguido não hesitou em insinuar que a ofendida, tal como outros auxiliares de justiça, evidencia falta de profissionalismo e que esse facto tem levado à condenação de inocentes.
Diz o adágio popular que pela boca morre o peixe.
Tal expressão tem aqui plena aplicação pois que o arguido é conhecido nesta Instância Local pelos inúmeros requerimentos que dirige aos autos onde é visado, sendo notória a sua indignação, o que o faz usar de linguagem muito acintosa, tecendo inúmeras considerações acerca de todos quantos nela trabalham, algumas delas atentatórias da dignidade profissional dos visados.
No caso vertente, cremos que o arguido excedeu-se no que fez constar do requerimento de fls.7, quanto à dignidade e idoneidade profissional da ofendida, ultrapassando, em muito, o limite do que é razoável.
Acresce, ainda, que persistiu nessa sua atitude ofensiva, como se extrai da contestação que apresentou, aí escrevendo, entre o mais, que: (…) Requer que esta auxiliar de Justiça, Srª. Sandra A., seja condenada, por litigância de má-fé (…).
Este comportamento é bem revelador de que o arguido não interiorizou a gravidade da sua conduta, continuando a entender que tudo o que acontece a seu lado tem a finalidade de o prejudicar.
Com efeito, é o que se extrai do requerimento de fls.120ss – cujo original foi mandado desentranhar –, onde escreve, além do mais, que: (…) precisava juntar ao processo vários documentos, alguns desses documentos falsificados por auxiliares de justiça desse Tribunal. Documentos estes que podem ajudar na descoberta da verdade, a assim acabar com as injustiças e descriminação, que vem acontecendo no, Ministério Público e no Tribunal de Esposende (…) Tinha uma pequena empresa de construção, por culpa dos erros deste Tribunal e Ministério Público, aceitarem mentiras e falsificação de documentos, tudo me foi retirado (…) Hoje não tenho nada, apenas dois filhos maravilhosos que me tem ajudado a suportar tanto sofrimento, causado por erros do Ministério Público e auxiliares de Justiça deste Tribunal (…).
O mesmo sucede com o requerimento junto a fls.152, onde escreve, entre o mais, que: (…) Por essa razão venho contestar a multa que me foi aplicada, e lembrar ao Ministério Público, que tudo farei, para repor a verdade e para que não se continue a cometer as injustiças e descriminação, como vem acontecendo á vários anos e em vários processos (…) Paguei com o valor de todo o meu património, os erros cometidos pelo Ministério Público e auxiliares de justiça deste Tribunal (…).
Em face do exposto, é altura de o arguido pensar de outra forma e deixar de “meter todos no mesmo saco”, mesmo que no seu entendimento tenha alguma razão para estar magoado e desiludido com a “justiça”.
No que concerne às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais do arguido, face à ausência de outros elementos, o tribunal fundou-se nas declarações do próprio que, nesta parte, se afiguraram dotadas de suficiente consistência e credibilidade.
Os antecedentes criminais resultam do respectivo Certificado de Registo Criminal, junto a fls.29-31 e 96-97.
*
A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal. »

Importa agora conhecer.
São as conclusões de recurso que limita e balizam as questões que temos de apreciar, sem prejuízo de outras que a lei nos imponha conhecer oficiosamente.
No caso sub judice a que nos vem colocada pelo recorrente atem-se somente com a circunstância de, em sua opinião, os factos dados como assentes não integram o cometimento do crime de difamação agravada pelo qual o arguido foi condenado.
Vejamos então se lhe assiste razão.
Antes do mais quedemo-nos na formulação legal do crime constante do artigo 180º do Código Penal:
1 — Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 — A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 — Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 — A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
A agravação encontra-se prevista no artigo 184º do mesmo diploma legal, nos termos do qual ocorrerá quando a pessoa ofendida (caluniada) for uma das que se encontram referidas na alínea l) do número 2 do artigo 132º e se encontre no exercício das suas funções ou (tenha sido injuriada) por causa delas.
Decorre do que se acaba de transcrever que o legislador entendeu criminalizar quem atentar contra a honra e a consideração que a cada um é devida. Mas emerge igualmente, com lapidar evidencia que, em situações concretas, mesmo provando-se que o agente imputou a outra pessoa factos ofensivos da sua honra e consideração, essa conduta pode não ser punida. Di-lo expressamente o nº 2 do primeiro preceito legal citado, consagrando que assim sucede quando a imputação de factos ou formulação de juízos tenha advindo da necessidade de realizar interesses legítimos ou quando, mesmo sendo atentatórios da honra e consideração de determinada pessoa, sejam provadamente verdadeiros ou, pelo menos, quando se provar que quem os proferiu [o agente] tinha fundamento para, em boa-fé, assim os considerar.
Advém-nos por isso sido alguma perplexidade quando nos deparamos, na parte da fundamentação da decisão, com o seguinte segmento argumentativo: « (…) não entraremos na discussão de apurar se a notificação da nova data foi ou não devidamente comunicada a todos os presentes naquele dia 25 de Setembro de 2013, por entendermos não ser esse o cerne dos presentes autos, mas antes o teor do requerimento de fls.7.»
O apuramento da verdade da imputação é essencial para quem entenda que os factos imputados ou os juízos formulados têm cariz – do ponto de vista objetivo – difamatório, importando ainda apurar, caso não sejam verdadeiros, se o arguido tinha razões para em boa-fé assim os considerar, pois se assim for existe uma causa de justificação, deixando a conduta de ser punida. O mesmo sucede quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos.
Donde, era também o cerne da questão (essencial para saber se tinha ou não havido crime e se deveria existir punição) apurar devidamente se o que o arguido afirmava tinha ou não acontecido; se as testemunhas tinham ou não sido devidamente notificadas da nova data de julgamento.
Mas que factos ou que juízos podem ser considerados difamatórios? Apenas os que atentem contra a honra ou a consideração da pessoa com eles visados.
Respigando estes conceitos, que não obstante serem por todos compreensíveis, são por vezes, de difícil concretização, temos que, por honra se tem entendido aquele reduto essencial de respeitabilidade de que a cada pessoa é tributária pela “simples” circunstância de o ser e que se associa de modo indelével à sua dignidade – algo que é próprio do ser em si -; enquanto a consideração que a cada um é devida reporta-se mais à sua circunstância e condição social – algo que se reporta mais ao ser em relação –. Estes valores (honra e a consideração) são, aliás, constitucionalmente tutelados – cfr. número 1 do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
Mas porque assim é não se pode equivaler o ataque à honra de uma pessoa ou à sua consideração, com falta de educação ou grosseria, com faltas de cortesia ou gentileza. Porque a sociedade em que vivemos não é habitada apenas por pessoas perfeitas, existe um espetro alargado de situações com as quais nos podemos ver confrontados, que podendo não ser as mais corretas, adequadas e ajustadas não têm de ser necessariamente criminosas.
Infelizmente cada vez com mais frequência, somos bombardeados com críticas à atuação da justiça e dos seus agentes. Algumas vezes com razão, outras sem ela. Isto fica a dever-se por um lado, à crescente tomada de consciência por parte da generalidade das pessoas dos seus direitos, da possibilidade de os fazer valer, do direito que lhes assiste de criticarem as instituições sem temores reverenciais, o que constituiu sem dúvida uma conquista com significado positivo, mas que comporta uma outra vertente, esta menos positiva, de muitas vezes ser injusta, precipitada, injustificada a avaliação que é feita.
Ora sendo os tribunais locais onde os utentes só vão obrigados (seja qual for a veste em que se apresentem não estarão nunca por gaudio mas por necessidade) existe uma propensão para quem ali esteja se comporte de modo “crítico”; o arguido tenderá a entender que foi mal tratado, o queixoso propenderá para o entendimento de que o arguido foi tratado bem demais, as testemunhas que demorou muito o tempo de inquirição, outras que tinham mais que dizer que pouco lhes foi perguntado e assim por diante.
No caso que apreciamos o arguido fez um requerimento ao processo, “queixando-se” de uma situação que, para quem anda nos tribunais, nem sequer é nova ou particularmente surpreendente; testemunhas “suas” foram condenadas por não terem comparecido como deveriam a uma audiência de julgamento. O arguido pretexta que elas não foram notificadas, provavelmente requerendo que fosse considerada justificada a ausência e dado sem efeito a condenação em multa e, para sustentar o seu pedido, diz que tal se ficou a dever à circunstância de uma senhora funcionária, aqui ofendida, que concretamente identifica, não o ter feito ”por lapso ou por falta de profissionalismo”, acrescentando ainda que já num outro processo aquela senhora teria cometido o mesmo erro, por lapso não teria notificado uma testemunha. Ora estas afirmações, que concedemos podem não corresponder à verdade, não são mais que a expressão do direito de reclamação, de crítica que a todos os utentes dos serviços públicos e assiste.
No entanto na decisão proferida deu-se como provado que:
O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito, concretizado, de atingir a ofendida Sandra R. na sua dignidade e idoneidade profissional, enquanto oficial de justiça, bem sabendo que ao fazê-lo do modo constante do requerimento que apresentou no Processo nº…, a fls.481, publicitava o conteúdo desse requerimento que subscreveu, dando dele conhecimento a outros oficiais de justiça, magistrados e terceiros que entrassem em contacto com o identificado processo-crime, pondo, assim, em causa o cumprimento das suas funções.
Ora que expressão ou que expressões atentaria contra a dignidade e idoneidade profissional da ofendida?
Certamente que se colocou o enfoque na afirmação de falta de profissionalismo, já que ter cometido um o lapso ou erro, que todos cometemos e que até se diz ser próprio de quem é humano, não pode ter virtualidade para tal. Mas mesmo assim, dizer-se que alguém atuou com falta de profissionalismo ademais no contexto em que essa afirmação foi proferida, sendo que o contexto e as razões determinantes da afirmação não podem ser desconsiderados, não tem qualquer virtualidade para atentar contra a dignidade da senhora funcionária judicial «Para a interpretação de um juízo de valor desonroso atender-se-á ao respetivo sentido objetivo (na perspetiva de um observador sensato) e ao correspondente contexto, se, levar em conta as intenções do agente ou o sentir próprio do ofendido.» Vidé comentário a este artigo in Código Penal, Parte Geral e Especial de M- Miguez Garcia e J.M. Castela Rio. Nem sequer com a sua consideração profissional. Quem conhece os tribunais e as pessoas que neles trabalham sabe muito bem da dedicação, do empenho, da competência, da capacidade de trabalho da maior parte dos funcionários judiciais, sem o empenho dos quais, seguramente, mais críticas se ouviriam ainda ao seu funcionamento. Por isso, a consideração profissional para ser abalada e atingida de modo sério de forma a poder integrar-se na provisão da norma legal a que nos vimos referindo, teria de se consubstanciar na imputação de um facto concreto e grave cometido pela senhora funcionária no exercício das suas funções, não bastando, como é bom de ver, esta asserção que traduz, apenas e tão só, uma opinião. Mesmo que errada por parte de quem a emite, mesmo imerecida por parte de quem com ela é visada, não passa de uma opinião, cujo direito a expressá-la não pode ser negado.
Percebe-se, do teor da decisão e dos fundamentos nela aduzidos, que o arguido é uma pessoa dada a fazer exposições e reclamações espúrias, algo impertinente talvez, mas uma decisão judicial não pode ser um meio de silenciar as pessoas, de evitar que elas sejam insistentes ou desrazoáveis.
Não se pode punir alguém apenas porque importuna, porque reclama, sem razão, de tudo e de todos [como se nota fazer este arguido (reclamante) que chega a pedir, na contestação crime a condenação por litigância de má fé (!)] demonstrando uma clamorosa, porém atrevida, impreparação.
Ademais para a existência do crime importaria ainda que ele fosse imputado ao arguido a título de dolo; ou seja, ter-se-ia de concluir que o arguido quis, de facto, difamar a senhora funcionária, propalando juízos de valor que sabiam serem atentatórios da sua honra pessoal ou da sua consideração profissional.
Ora do que se retira dos factos apurados é que o arguido contesta a condenação em multa de testemunhas que não estiveram presentes em audiência diz que estas não foram notificadas da nova data designada – e quanto a este aspeto pelo menos uma das testemunhas assevera não o ter sido, sendo que a outra refere não ter já recordação do facto – e imputa a responsabilidade de tal omissão à senhora funcionária. É evidente que as suas declarações são todas feitas no sentido de eximir de responsabilidade as testemunhas faltosas. Nada mais. Donde a matéria dada como assente que acima se transcreveu, porque se refere ao dolo, à intenção com que o arguido teria atuado, tem de resultar, pelas razões aduzidas, não provada. Na verdade os juízos valorativos emitidos pelo arguido relativos à atuação da senhora funcionária são, como afirmamos, a mera expressão de uma opinião pessoal verbalizados em termos que se atêm claramente no direito à crítica que a todos assiste, não configurando assim, os factos assentes, o crime de difamação agravado pelo qual foi condenado, impondo-se a sua absolvição.

III)
Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder total provimento ao recurso interposto pelo arguido José C., absolvendo-o do crime de difamação agravada pelo qual havia sido condenado.

Sem tributação
(elaborado pela relatora e revisto por ambas as subscritoras)
19 de outubro de 2015