Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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Relator: | ANA CRISTINA DUARTE | ||
Descritores: | NEGÓCIO JURÍDICO NULIDADE OBRA PÚBLICA INTANGIBILIDADE OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/25/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | 1 – Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil. 2 - O princípio da intangibilidade da obra pública traduz-se na manutenção da posse por parte da administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público. 3 - Segundo este princípio, devido à importância que apresenta a obra pública para o interesse geral, nem o juiz do tribunal comum, nem o juiz do tribunal administrativo podem ordenar a destruição da obra pública, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização. 3 – Quando um particular, que cedeu uma parcela de terreno a um município para alargamento de um caminho público, através de uma doação nula por falta de forma, vem reivindicar a sua restituição, por o município não ter ocupado a totalidade dessa parcela na realização da obra pública, apenas deve ser restituída a parte não utilizada no alargamento do caminho público, por aplicação do referido princípio da intangibilidade da obra pública. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO M. D. intentou ação declarativa contra Município A pedindo que se decrete a revogação da doação do autor ao réu da parcela identificada no artigo 2.º da petição, revertendo a mesma à esfera jurídica do autor ou, subsidiariamente, que se decrete a revogação da doação do autor ao réu da parcela identificada no artigo 2.º da petição, mantendo-se a parte utilizada para alargamento do caminho municipal na esfera do réu e revertendo a restante área à esfera jurídica do autor. Alegou que cedeu uma parcela de terreno ao domínio público para alargamento do caminho municipal, sendo que o réu apenas ocupou, para esse efeito, uma pequena parte da referida parcela. O réu foi citado e não contestou. Consideraram-se confessados os factos alegados pelo autor na petição inicial. O autor alegou, pugnando pela procedência da ação. Foi proferido despacho a convidar o autor a proceder à junção do documento que comprove a alegada doação da parcela de terreno que pretende ver revogada, sem resposta por parte do autor. Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo o réu do pedido. O autor interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes Conclusões: a) o tribunal a quo decidiu incorrectamente, padecendo a decisão de diversos vícios, de entre os quais a não especificação de todos os fundamentos de facto, a oposição daqueles que deu como assentes com a decisão e, ainda, a falta de pronúncia sobre questão que devia apreciar; b) a decisão a proferir, atenta a prova produzida, não podia ser outra que não a de procedência total do pedido; c) não era possível ao recorrente fazer a junção de qualquer escritura ou documento que pudesse titular tal doação, porquanto não existe semelhante; d) no primeiro processo judicial (Proc. n.º 214/03.1TBBCL, do extinto 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos),foi decidido, por sentença transitada em julgado, que o aqui recorrente cedera ao domínio público uma parcela de terreno sua propriedade, pelo que não era necessária outra prova da doação; e) essa mesma parcela, entendeu então o tribunal, fora cedida na sua totalidade pelo recorrente ao domínio público para alargamento do caminho municipal n.º 1074; f) a cedência para alargamento do dito caminho era a única e real intenção do recorrente e que, por isso, apenas o seria na medida do estritamente necessário para tanto, e não na sua totalidade; g) como consta daquela fundamentação: “Mas, sabemos também que logo no pedido de licenciamento identificado com o nº de processo ..., o A. cedeu exactamente essa parcela de terreno em litígio nos autos ao domínio público para alargamento do caminho municipal. Essa doação ocorreu já em 1982, obviamente antes da construção da casa e do coberto”; h) tendo-se verificado tal cedência (como decidido no primeiro processo), não cabia ao tribunal outra decisão que não fosse a de decretar a revogação daquela cedência; i) não tendo havido contestação e tendo-se os factos como confessados, verifica-se uma desconformidade entre a factualidade provada e a decisão proferida; j) não podia o tribunal a quo exigir “prova da doação da parcela”, quando isso havia sido declarado anteriormente em processo anterior e agora reafirmado; k) resultante da falta de contestação, verificou-se o efeito cominatório da revelia operante, tendo, por via de tal, sido dados como provados todos os factos alegados pelo recorrente; l) a decisão proferida violou o disposto no Art. 619º, n.º 1 CPC, relativo ao valor de sentença transitada em julgado, porquanto não a considerou na decisão agora em crise; m) com a improcedência do pedido, o tribunal não aplicou devidamente a lei, como, ao fazê-lo, está a subtrair ao recorrente o único meio de que este dispõe para fazer valer os seus direitos, neste particular, negando-lhe o exercício legítimo de direitos, o que configura inconstitucionalidades. Foram violados o Art. 615º, n.º 1, als. b), c) e d) do CPC, os Arts. 567º, n.º 1, 568º, al. d), 619º, n.º 1, todos também do CPC e os Arts. 20º, n.ºs 1, 2 e 5 e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, e mais de Direito que V. Excias. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, 1) revogando-se a decisão proferida, substituindo-a por outra que decrete a revogação da cedência operada, na sua totalidade; ou, subsidiariamente; 2) decretando-se a revogação da cedência operada, com excepção à parte cedida para alargamento do caminho público, mas mantendo-se quanto à restante parcela; Será, assim, feita JUSTIÇA. Não foram oferecidas contra alegações. O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Foram colhidos os vistos legais. A questão a resolver consiste em saber se, apesar da doação em causa ser nula por falta de forma, poderá haver lugar à restituição do terreno cedido. II. FUNDAMENTAÇÃO Na sentença foram considerados os seguintes factos: “Atento o disposto no artigo 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, julgam-se assentes os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa: 1 - Em 15 de Junho de 2005, foi decidido no processo n.º 214/03.1TBBCL, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos, por sentença transitada em julgado, que o aqui Autor cedeu ao domínio público uma parcela de terreno de sua propriedade, parcela essa de configuração aproximadamente triangular, confrontando a norte com o próprio, a sul e nascente com caminho público e a poente com Manuel. 2 – A referida parcela fazia parte do prédio urbano, pertencente ao Autor, sito no Lugar de ..., freguesia de ..., do concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º ... da mesma freguesia de ..., e tinha as seguintes confrontações: norte - Manuel e João; sul - caminho de servidão (actualmente caminho público); nascente - caminho público e João; poente - Manuel. 3 – A mesma parcela, entendeu então o tribunal, fora cedida na sua totalidade pelo Autor ao domínio público para alargamento do caminho municipal n.º ..., sendo a cedência para alargamento daquela via a real intenção do Autor, mas na medida do estritamente necessário para tanto, e não na sua totalidade. 4 – O que ficou decidido, com trânsito em julgado, é que o Autor cedeu ao domínio público a totalidade da parcela para alargamento do caminho municipal, tendo-a o Réu ocupado. 5 – O referido alargamento do caminho municipal, efectuado pelo Réu, apenas ocupou uma pequena parte da parcela em questão. 6 - Tendo a cedência efectuada pelo Autor sido feita com a intenção expressa e única de que seria “para alargamento do C.M. 1074”, era condição essencial que a parcela doada fosse utilizada, na sua totalidade, para esse fim. 7 - A destinação ou finalidade dada à parcela cedida foi, exclusivamente, a de alargamento do caminho municipal existente, tendo sido executadas obras para esse fim pelo Réu apenas numa pequena parte. 8 - A restante área nunca foi, nem é, utilizada como caminho público ou com outro fim público, não tendo sido sujeita a obras para esse efeito. A sentença recorrida considerou improcedente a ação – apesar da falta de contestação e o seu respetivo efeito cominatório de confissão dos factos alegados na petição inicial – por entender que, sustentando-se os pedidos, principal e subsidiário, na doação de uma parcela de terreno ao réu e só podendo a prova da mesma ser feita através de documento – escritura pública – que a ateste, em face da falta de junção de tal documento, imperiosamente o tribunal teria que concluir pela improcedência da ação. Concluiu que só pode ser decretada a revogação de um acto que se consegue provar, o que “in casu”, não sucedeu. Vejamos se é assim. As questões suscitadas pelo apelante, salvo o devido respeito, não seriam susceptíveis de conduzir à alteração do decidido. Não há, na sentença, qualquer desconformidade entre os factos confessados e a decisão, uma vez que, tendo-se considerado que era essencial a junção da escritura pública para prova da doação, e não estando ela junta, não poderia a ação proceder. Veja-se, aliás, que na ação que correu termos no extinto 1.º juízo cível de Barcelos, já havia sido decidido que a doação havia sido nula por falta de forma. Contudo, decidiu-se aí que, apesar da nulidade da doação, o acto jurídico, embora nulo, tem o valor de imprimir à posse o seu caráter e é por ele que se há-de averiguar qual o animus do alienante, para se concluir pela inexistência de animus por parte do autor, a partir do momento em que cedeu a parcela ali reivindicada ao domínio público. Também não foi violado o efeito cominatório pleno resultante da falta de contestação, uma vez que, conforme resulta do disposto no artigo 568.º, alínea d) do Código de Processo Civil, não se aplicam os efeitos da revelia, quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito, como é o caso da doação – artigos 947.º, n.º 1 e 393.º, n.º 1, ambos do Código Civil. Finalmente, como já vimos, não há qualquer ofensa de caso julgado, pois a primeira sentença, tendo dado como provada a cedência de terreno ao domínio público, concluiu que a mesma foi nula por falta de forma, tal como na sentença ora recorrida. Pensamos, no entanto, que o apelante terá razão, ainda que por outros motivos, ao pretender a revogação da sentença com a procedência do seu pedido. Vejamos. Conforme se decidiu no Assento n.º 4/95, publicado no DR n.º 114/1995, Série I-A de 17/05/1995: “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil” Aí se considerou que no nosso ordenamento jurídico está consagrado o princípio da substanciação (contraposto ao da individualização), segundo o qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, mas antes será necessária a indicação especificada do facto constitutivo desse direito e com assento nesses princípios sempre ficará salva ao tribunal a possibilidade de qualificar juridicamente a situação que lhe é posta à consideração, embora alicerçada nos factos articulados, como decorre do artigo 664.º do Código de Processo Civil (actual artigo 5.º), o que conduz, no caso concreto, à possibilidade de fazer reconverter um contrato supostamente válido em contrato nulo (por falha dos devidos requisitos formais). “Mas cabe perguntar se tal se reconduzirá ao resultado de a acção respectiva, cuja causa petendi assentava no pressuposto da validade do negócio, ficar sem suporte quanto ao alicerce em que se baseou (validade do negócio) ou se antes, e atenta a possível reconversão da causa de pedir que passaria a assentar na nulidade do negócio, ficaria viável solucionar o pleito ao abrigo do estatuído no artigo 289.º do Código Civil, segundo o qual, em caso de nulidade (ou anulação) do negócio jurídico, deverão ser repostas as coisas no estado anterior, com restituição do que houver sido prestado”. A conclusão a que ali se chegou, na esteira do ensinamento do Professor Vaz Serra, exposto na RLJ n.º 109, págs. 308 e seguintes, foi a de que a conversão da causa de pedir (inicialmente na pressuposição de contrato válido), pode fazer-se ao abrigo do artigo 293.º do Código Civil, “pelo menos em causa assente na nulidade do negócio (como foi decretada jurisdicionalmente), já que razoável é pensar que esta última seria invocada pelo peticionante se houvesse previsto a nulidade do contrato em cuja pretensa validade se escudara para demandar. Com tal em nada se agrava a posição do demandado, já que, válido ou nulo o negócio, sempre ele seria obrigado ao que lhe é pedido, além de se evitar ao peticionante o ónus de propor nova acção (com acento na nulidade) e cujos efeitos e fins seriam os mesmos, evitar esse que o princípio da economia processual aconselharia”. Pode ainda ler-se no Assento em questão que, “como adianta o dito professor no comentário e artigo citado, o contrato nulo (ao contrário do expendido no acórdão fundamento) não é um nada jurídico, mas algo de existente (embora de errada perfeição, diremos nós), já que tal realidade existencial é revelada pelo instituto da conversão a que respeita o artigo 293.º do Código Civil”. Isso mesmo, como já vimos, foi decidido na sentença proferida nos autos que correram termos no 1.º juízo cível de Barcelos, onde se considerou que, embora a doação fosse nula, ela não deixaria de revelar para efeitos de aferir da existência do animus da posse. Nem se diga que tal solução contraria o disposto no artigo 609.º do CPC, que proíbe a condenação em quantidade superior ou em coisa diversa da pedida, já que, o que se pretende, seja válido ou nulo o negócio, é precisamente a restituição do que havia sido prestado. Assim, como se concluiu no Assento que vimos citando, do exposto resulta, por virtude do instituto da conversão, a reposição das coisas no estado anterior, como determina o artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, reposição a fazer nos precisos termos deste preceito, e não por recurso ao princípio do enriquecimento sem causa, já que este assume carácter subsidiário a advir de falta de causa numa deslocação patrimonial, enquanto no caso em apreço isso se não verifica, antes estando patente uma nulidade de acto alicerçador do pedido de restituição. Assente assim que haverá lugar, no caso dos autos, à reposição das coisas no estado anterior ao da doação – acto nulo alicerçador do pedido de restituição – teremos, no caso em concreto, que averiguar se é possível a procedência do pedido principal ou se a mesma há-de reconduzir-se ao pedido subsidiário. Está provado nos autos que o autor cedeu ao domínio público uma parcela de terreno de sua propriedade para alargamento de um caminho municipal e que o réu procedeu ao alargamento desse caminho municipal ocupando apenas uma pequena parte da parcela em questão e que a restante área nunca foi, nem é, utilizada como caminho público ou com outro fim público, não tendo sido sujeita a obras para esse efeito. Poderá, então, ser restituída ao autor toda a parcela cedida ao réu, ou tal restituição apenas poderá proceder relativamente à parte não ocupada pelo Município para alargamento do caminho público? A resposta a esta questão há-de encontrar-se no princípio da intangibilidade da obra pública. O princípio da intangibilidade da obra pública constitui, conceitualmente, a ponderação das consequências da violação do princípio da legalidade da Administração Pública quando, apesar da sua actuação à margem da lei, redunda na prossecução do interesse público – Acórdão do STJ de 11/09/2018, processo n.º 342/12.4TBFAF.G2.S2 (Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt De igual modo, pode ler-se no Acórdão do STJ de 5.2.21015, processo n.º 742/10.2TBSJM.P1.S1 (Granja da Fonseca): “É da consideração deste interesse público, ponderado e valorado na expropriação indirecta, que a jurisprudência francesa criou o princípio tradicional da intangibilidade da obra pública. O princípio da intangibilidade da obra pública – princípio geral do direito das expropriações – traduz-se na manutenção da posse por parte da administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público - [Neste sentido ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.04.2010, Processo n.º1857/05.4TBMAI.S1, Relator Cons. Alves Velho]”. Ora, segundo este princípio, devido à importância que apresenta a obra pública para o interesse geral, nem o juiz do tribunal comum, nem o juiz do tribunal administrativo podem ordenar a destruição da obra pública, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização. O particular fica, assim, impedido de intentar uma acção de restituição da posse do seu bem, tendo de contentar-se com uma indemnização a arbitrar pelo tribunal comum – cfr. o Acórdão do STJ de 11/09/2018 já citado. É claro que esta figura conflitua com o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido e, por isso mesmo, apenas pela expropriação se pode sacrificar o direito de propriedade em termos de se alterar a titularidade do mesmo, de uma forma impositiva, autoritária, e sempre mediante o pagamento de uma indemnização. E é por se reconhecer um fim social à propriedade que a expropriação está constitucional e legalmente prevista, tendo as restrições ao direito de propriedade que encontrar apoio na previsão legal e na legalidade do seu procedimento. A via de facto – como forma de expropriar “de facto” sem processo de expropriação – não é um dos casos fixados na lei e que permitem, de acordo com o artigo 1308º do Código Civil, que alguém seja privado, no todo ou em parte, da sua propriedade. No caso dos autos, contudo, já vimos que a ocupação efetuada pelo Município, a fim de proceder ao alargamento de um caminho público, teve origem numa doação de uma parcela de terreno efetuada pelo autor (ainda que formalmente inválida), precisamente para esse fim. Ou seja, atuou o Município de boa-fé, com conhecimento de que estava a ocupar uma parcela que era pertença do autor, mas que o mesmo lhe havia cedido para o fim em causa. No Acórdão do STJ de 29.4.2010, processo n.º 1857/05.4TBMAI.S1 (Alves Velho), in www.dgsi.pt. pode ler-se: “O denominado princípio da “intangibilidade da obra pública”, princípio geral do direito das expropriações, a operar, nomeadamente, quando tendo havido um princípio de actuação legal expropriativa não ocorra um atentado grosseiro ao direito de propriedade, conduz a que o julgador já não deverá colocar a Administração numa posição idêntica à de um qualquer particular, determinando a restituição do bem ou demolição da obra como meios de fazer cessar uma “via de facto”, mas, atendendo ao interesse geral que a obra pública representa, abster-se de ordenar a restituição e limitar-se a conceder ao proprietário uma indemnização pela privação do gozo da coisa, enquanto ela se verificar.” Do mesmo modo, no Acórdão do STJ, de 15.4.2015, processo n.º 100/10.0TBVCD.P1.S1 (Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt, lê-se: “Já num outro aresto deste Supremo Tribunal de Justiça, de 5-2-2015 (Rel. Abrantes Geraldes), proferido no âmbito da revista nº 2125/10 (acessível através de www.dgsi.pt), se deixou expresso, em torno do referido princípio, o seguinte: “A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objectiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou é traduzida em situações que se manifestam através da violação dos limites objectivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do acto expropriativo. Enfim, casos existem em que a violação objectiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respectivos contornos legais. Em determinadas circunstâncias que se pautam pela verificação de culpa leve ou mesmo pela ausência de culpa, a aplicação dos efeitos típicos da acção de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos. Em tais situações, o reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas. Para situações como esta tem sido desenvolvida uma tese intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do Código Civil. Princípio que conquanto não esteja expressamente consagrado pode encontrar sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, normas que permitem afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público. Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado. Ainda que não esteja expressamente consagrado tal princípio, e embora também não seja pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico (negada, por exemplo, no Ac. do STA, de 6.2.01, in www.dgsi.pt), o certo é que a sua intervenção é limitada a casos que verdadeiramente o justifiquem e que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve.” Este é exactamente o caso de que nos ocupamos, em que não há um desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública, mas sim uma violação objectiva do direito de propriedade precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respectivos contornos legais – cedência voluntária de terreno para alargamento de caminho público, que se veio a verificar constituir uma doação nula por falta da forma legal exigida para tal acto. Uma vez que o autor não pede qualquer indemnização pela ocupação de parte do seu terreno, a solução passará pela procedência do seu pedido subsidiário, ou seja, pela restituição ao autor da parte do terreno que havia cedido que não foi utilizada pelo réu para alargamento do caminho municipal. E, nestes termos, procede a apelação. III. DECISÃO Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se a restituição ao autor da parcela de terreno de sua propriedade, que havia cedido ao réu e que não foi utilizada por este para alargamento do caminho municipal, assim indo o réu condenado no pedido subsidiário formulado pelo autor. Sem custas. *** Guimarães, 25 de outubro de 2018 Ana Cristina Duarte Fernando Fernandes Freitas Alexandra Rolim Mendes |