Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
733/18.5T8GMR.G1
Relator: RAQUEL TAVARES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO N.º 1215/2012
COMPRA E VENDA
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL TÁCITA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário da relatora:

I - O Regulamento n.º 1215/2012 adoptou um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço).

II - Tendo a Autora, empresa com sede em Portugal, contratado com uma
empresa comercial, ora Ré, com sede em Espanha, o fornecimento de tecido e a confecção de camisas segundo modelos criados pela Ré, a entregar em Espanha, e sendo a causa de pedir o incumprimento pela Ré do pagamento do preço, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente acção uma vez que quer o domicilio da Ré, quer o local de cumprimento relevante (lugar da entrega dos bens) se situam em Espanha.


III - O artigo 26° do Regulamento (CE) n° 1215/2012 prevê a chamada competência convencional tácita, abarcando aquelas situações em que, apesar de uma acção ter sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro para a qual, em princípio, o mesmo não era competente, a comparência do demandado torna-o competente, a não
ser que a compar
ência tenha como único objectivo invocar a incompetência.

IV - A comparência do réu não fundamenta a competência do tribunal se o
mesmo, além de contestar a competência, apresentar a sua defesa quanto ao mérito
da causa, desde que a “contestação da competência seja prévia a toda a defesa de
mérito ou, quando menos, tenha lugar o mais tardar até ao momento da tomada de
posição considerada pelo direito processual do foro como o primeiro acto de defesa
formulado no processo”.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

X CONFEÇÃO DE VESTUÁRIO, LDA, com sede em Guimarães intentou a presente acção de processo comum contra Y, SL com sede em …, Espanha, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe o montante de €149.687,07 acrescido de juros moratórios, vencidos e vincendos.

Alega, para o efeito e em síntese, que a Ré lhe solicitou o fabrico de camisas de modelos e marcas por si criados e comercializados, que a Autora fabricou.

Que Autora e Ré estabeleciam o preço da camisa a pagar pela Ré, o qual englobava tecido, o preço da transformação e dos acessórios e que a Ré encomendava ainda à Autora tecidos iguais aos das camisas produzidas.

A Ré apresentou nos autos requerimento solicitando que o tribunal a quo declarasse não ter competência para conhecer do litigio em face do disposto no artigo 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 pois que a mercadoria foi entregue em Espanha e o acordo estabelecido com a Autora foi de compra venda de camisas.

Foi proferida decisão que julgando verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses absolveu a Ré da instância.

Não se conformando com a decisão proferida veio a Autora recorrer concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1- O contrato celebrado entre A. e R. constitui um verdadeiro contrato de empreitada, na modalidade de prestação de serviços, e não um contrato de compra e venda.
II- A R./Recorrida é uma sociedade que se dedica com o intuito lucrativo ao comércio por grosso de todos os tipos de produtos têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro, colocando encomendas para o fabrico dos produtos com as especificidades e marcas dos seus clientes, nomeadamente quanto a prazos de entrega, na fábrica da A./Recorrente.
III- No âmbito das relações comerciais entre A. e R., a recorrente obrigou-se a produzir/fabricar vários artigos de vestuário, com as marcas e especificidades definidas no âmbito das encomendas previamente negociadas e acordadas com a R.
IV - Era também a R. quem dava as instruções à A. sobre as características do produto, modelo, tabela de medidas e materiais necessários à sua confecção.
V - A. A. não vende peças de vestuário a retalho, apenas as produz, ficando a R. obrigada a pagar-lhe uma retribuição em resultado do trabalho manual daquela.
VI- Parecem não existir dúvidas que estamos perante um contrato de empreitada previsto no artigo 1207.° e seguintes do Código Civil.
VII- Contrato de empreitada na modalidade de prestação de serviços, que nos termos do artigo 1154.° do Código Civil, "é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual".
VIII- Estamos, sem margem para dúvidas, no âmbito dum contrato de prestação de serviços.
IX- Nos termos do artigo 7°, n.º 1, alínea b) do Regulamento (EU) n° 1215/2012, de 12 de Dezembro, que entrou em vigor em 10/01/2015, uma pessoa com domicílio no território de um Estado Membro pode ser demandada noutro Estado Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
X- Nos termos daquela alínea b), do n.º 1 do artigo 7.° do Regulamento 1215/2012, o lugar do cumprimento da obrigação no contrato de prestação de serviços corresponde ao local onde os serviços foram ou devam ser prestados.
XI- No caso, a A. produziu peças de vestuário encomendadas nos termos supra expostos pela R. , na sua sede sita na freguesia de Moreira de Cónegos, concelho de Guimarães, não restando dúvidas que o tribunal competente para presente demanda é o Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Central Cível de Guimarães, pois é o local do cumprimento e da execução da obra.
XII- O Tribunal internacionalmente competente para dirimir a questão do eventual incumprimento decorrente de um contrato de empreitada celebrado em Portugal, é o Tribunal Português.
XIII- Também não se pode ser alheio a que a atribuição de jurisdição a um Tribunal em função de uma certa área territorial, tem em vista facilitar o exercício da sua atividade, com o mínimo de custos materiais e humanos, sendo que o propósito das Convenções e Regulamentos Comunitários é, pois, o de tutelar o interesse da justiça, eximindo as partes ao ónus de superar dificuldades práticas à condução de uma lide em país estrangeiro.
XIV- Da leitura do requerimento apresentado pela R. aquando da citação efectuada nos termos do artigo 10° do Regulamento (CE) n° 1393/2007, de 13 de Novembro de 2007, aquela não se limitou a invocar a incompetência do Tribunal a quo, tendo sustentado ainda a sua defesa em questões substanciais como demonstra o facto de ter alegado a existência de defeitos nas mercadorias entregues pela A., querendo em consequência, ver os alegados prejuízos que essa situação lhe causou reflectidos nas facturas emitidas pela Recorrente.
XV- Diz-nos o artigo 26°, n.º 1 do Regulamento (EU) n° 1215/2012 que "para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.°."
XVI- A comparência da R. não teve como único objectivo arguir a incompetência dos tribunais portugueses, nem se está perante uma situação de competência exclusiva nos termos do artigo 24° do Regulamento 1215/2012, pelo que, também por aqui, serão os tribunais portugueses internacionalmente competentes para dirimir o presente litígio.
XVII- Se dúvidas ainda existirem quanto à qualificação do contrato celebrado entre A. e R. como sendo um contrato de empreitada (prestação de serviços), veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo n.º 143378/15.0YIPRT.G1, datado de 08/06/2017 e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
XVIII- Diz-nos o supra mencionado acórdão que: "1- O critério-regra adotado pelo Regulamento (UE) n. °1215/2012, é o de que as pessoas domiciliadas num Estado- membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.
2- Mas este critério comporta exceções. E entre elas, encontram-se os litígios nos quais se discuta o cumprimento de contratos de prestação de serviços, caso em que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado- Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
3- Assim, sendo alegado que uma sociedade comercial Portuguesa forneceu a outra Espanhola, no âmbito de um contrato que é de qualificar como de empreitada, determinados produtos de vestuário fabricados pela primeira em Portugal, são os tribunais portugueses internacionalmente competentes para julgar o litígio no qual se discuta o alegado incumprimento desse contrato".
XIX- Deixou-se ainda referido naquela Acórdão, quanto à distinção entre o contrato de prestação de serviços e o contrato de compra e venda que: "Começando pelo contrato de compra e venda, verificamos que o mesmo é legalmente definido como o convénio através do "qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço" - artigo 8 7 4.º, do Código Civil.

Já no contrato de empreitada, uma das partes obriga-se "em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço" - artigo 1207.º do Código Civil. Ou seja, a produzir certo resultado, como é típico dos contratos de prestação de serviços (artigo 1155.º do Código Civil),

Ambos são, pois, contratos nominados, onerosos, sinalagmáticos, mas, enquanto no contrato de compra e venda, o vendedor está adstrito a prestar uma coisa (prestação de dare), no contrato de empreitada, o empreiteiro está vinculado a uma prestação de facto, ou seja, a uma prestação de facere.

Por outro lado, a compra e venda tem efeitos reais (quoad effectum), ao passo que a empreitada tem sempre efeitos obrigacionais, se bem que, nos termos do artigo 1212.º do Código Civil, possa ter também efeitos reais, ainda que enquadrados por um regime legal especifico.

Por fim, "há que ter em conta que, na compra e venda, a iniciativa e o plano do objeto a executar cabem ao que constrói ou fabrica a coisa, ao passo que o empreiteiro realiza uma obra que lhe é encomendada, devendo executá-la segundo as directrizes e fiscalização daquele que lha encarregou".

XX- Entende assim a Recorrente/A. que os tribunais portugueses são competentes para apreciar a presente acção, quer por aplicação do artigo 7.°, n.º 1, alínea b), quer por via do disposto no artigo 26.°, n." 1 do Regulamento (EU) n." 1215/2012”.

Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, sendo substituída por outra que declare o tribunal a quo competente para dirimir o presente litígio, ordenando o prosseguimento dos autos até ao julgamento.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente é a de saber se o tribunal recorrido é internacionalmente competente para dirimir o presente litígio.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

A Recorrente veio interpor o presente recurso por se não conformar com a decisão proferida pelo tribunal a quo que, julgando verificada a excepção da incompetência internacional, decidiu absolver a Ré da instância, argumentando no essencial que estando em causa um contrato de prestação de serviços (concretamente de empreitada) o tribunal competente é o do Estado-membro onde se prestou ou devesse ter prestado o serviço, mas que sempre os tribunais nacionais seriam internacionalmente competentes por força do disposto no artigo 26º do Regulamento 1215/2012 uma vez que a comparência da Ré não teve como único objectivo arguir a incompetência dos tribunais portugueses tendo alegado a existência de defeitos nas mercadorias entregues pela Ré, querendo ver os alegados prejuízos reflectidos nas facturas emitidas pela Recorrente.
Apreciemos então a questão sendo que as incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório.

Como é consabido um dos pressupostos mais importantes, relativo aos tribunais, é o da sua competência, isto é “a medida da sua jurisdição” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo civil, página 88), sendo a competência internacional, a “fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras” (Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição revista e Actualizada, página 198).

No caso concreto a relação jurídico-contratual estabelecida entre as partes tem sem dúvida conexão com a ordem jurídica portuguesa e com a ordem jurídica Espanhola: estamos perante um contrato celebrado em Portugal para fornecimento de peças de vestuário e tecidos mediante encomenda da Ré, sociedade comercial com sede em Espanha.

O legislador nacional estabeleceu no Código de Processo Civil regras delimitadoras da competência internacional, consagrando no artigo 59º que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º (factores de atribuição da competência internacional) e 63.º (competência exclusiva dos tribunais portugueses) ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º, mas ressalvando “o que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”.

Assim, uma vez que Portugal e a Espanha fazem ambos parte da União Europeia, importa fazer apelo às normas de direito comunitário, concretamente ao Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial este em vigor desde Janeiro de 2015 (e revogou o Regulamento (CE) n.º44/2001).

A aplicação no caso concreto do referido Regulamento para determinar a competência internacional tal como o entendeu o tribunal a quo parece-nos aliás ser incontroverso, não tendo sido questionado pela Recorrente tal como resulta das suas conclusões.

O referido Regulamento (UE) n.º 1215/2012 aplica-se em matéria civil e comercial (artigo 1º n.º 1), estabelecendo o artigo 4º nº 1 que, “sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse estado”.

Este regime regra que dá prevalência ao domicílio do réu, independentemente da sua nacionalidade, deve ser conjugado com os critérios especiais de competência previstos nas secções 2 a 7 do capítulo II (conforme previsto no artigo 5º n.º 1) podendo o réu ser demandado nos tribunais de um outro Estado–Membro (que não o do seu domicilio) se se verificar algum desses critérios especiais de competência; nestes casos o autor tem a possibilidade de optar entre propor a acção nos tribunais do Estado-Membro do domicílio do réu ou nos tribunais do Estado-Membro competentes à luz dos critérios especiais (a não ser que se verifique alguma situação de competência exclusiva (art. 24.º) ou convencional (25.°).

Os critérios especiais de competência são alternativos em relação ao critério geral.

Um desses critérios especiais de competência, e que releva para o nosso caso, é o que decorre do artigo 7º n.º 1 alínea a): as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

A alínea b) daquele preceito vem concretizar que, salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

a) no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
b) no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a).

Ora, não decorrendo dos autos que as partes tenham celebrado qualquer convenção sobre o foro competente, e estando em causa (face ao alegado pela Autora, sendo certo que a questão deve ser apreciada à luz da relação material controvertida tal como a Autora a configura logo no seu articulado inicial) a responsabilidade contratual da Ré, o critério determinante para aferir a competência será necessariamente o do lugar do cumprimento.
O legislador comunitário visou estabelecer aqui um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação nos contratos mais frequentes (que são o de compra e venda e o de prestação de serviços), por via de um critério factual.

De facto, e em matéria contratual o contrato de compra e venda e o de prestação de serviços serão os contratos mais frequentes; considerando que o critério difere consoante o contrato em causa é essencial perceber, em primeiro lugar, que tipo de contrato foi celebrado entre as partes: se um contrato de compra e venda ou um contrato de prestação de serviços.

Assim, não existindo dúvida de que estamos perante matéria contratual e tendo a Ré domicílio em Espanha, um Estado membro, a presente acção tanto poderia ter sido proposta nesse Estado como no “tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, definida pelas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do referido artigo 7º.

A questão coloca-se exactamente neste ponto: para determinar qual é o “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, deve relevar o local da entrega dos bens (Espanha) ou do respectivo fabrico (Portugal).

A Autora defende ter sido celebrado um contrato de prestação de serviços (concretamente de empreitada) devendo atender-se ao lugar do fabrico enquanto a Ré entende que foi celebrado um contrato de compra e venda, pelo deve ser considerado o local da entrega; este entendimento veio a ser perfilhado pelo tribunal a quo que, considerando que “da actividade desenvolvida pela autora – fabrico de camisas, bem assim da quantidade de mercadoria fornecida pela autora à ré e ainda o facto de ser a autora a fornecedora de tecido afasta-nos do conceito de prestação de serviços, residindo a essencialidade do negocia gizado entre as partes o fornecimento e entrega de camisas pela autora à ré em Espanha” concluiu estar em causa um contrato de compra e venda bens.

Quid iuris?

O contrato de empreitada (modalidade do contrato de prestação de serviços) tal como é definido no artigo 1207º do Código Civil, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra mediante um preço, enquanto a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito mediante um preço (artigo 874º do Código Civil).

A propósito da distinção entre os contratos de empreitada e de compra e venda pode ler-se no Acórdão desta Relação de 27/04/2017 (disponível em www.dgsi.pt) que, “embora o elemento nuclear típico da empreitada consista na realização de uma obra (artigo 1207º do Código Civil), ao passo que o objecto essencial da compra e venda reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza (artigo 874º do mesmo Código), o acento tónico da distinção entre as duas espécies de contratos, como se refere entre outros em Acórdão do S.T.J. de 22/9/05, localizável em www.dgsi.pt, vem sintetizado pela doutrina e jurisprudência comparada nos tópicos seguintes:

- prevalência da obrigação de dare ou da de facere (naquele caso, tratar-se-á de compra e venda, e neste, de empreitada);
- na empreitada, ao contrário da compra e venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio;
- na empreitada, o bem produzido representa um quid novi relativamente à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais respeitantes à forma, à medida ou à qualidade do objecto fornecido”.

No caso concreto a Recorrente ter-se-á obrigado mediante solicitação e encomenda da Ré a fornecer-lhe diversas peças de vestuário e tecidos sendo de atender à seguinte factualidade nos termos por si alegados:

- A Recorrente dedica-se com carácter habitual e fim lucrativo à actividade de confecção de artigos de vestuário, em especial camisas e blusas, tendo a sua sede em Moreira de Cónegos, Guimarães, Portugal;
- A Ré solicitou à Recorrente o fabrico de camisas dos modelos e marcas por si criados e comercializados, adquirindo-lhe também tecido que destinava a ser transformado noutras peças de vestuário fabricadas por outros produtores;
- O preço de cada camisa englobava o tecido, a transformação e os acessórios;
- O local de descarga das encomendas era em Alicante, Espanha.

Estava assim a Autora adstrita a produzir as peças de vestuário correspondentes aos modelos pretendidos pela Ré, fornecendo o tecido necessário para o efeito, e sendo a mercadoria entregue na sede da Ré, em Alicante, Espanha; e estava também adstrita a fornecer tecido à Ré nos termos em que esta lho solicitasse.

Quanto ao fornecimento de tecido (ainda que a Recorrente o não mencione nas suas alegações a verdade é que as facturas por si juntas a fls. 6 vº, 7 vº, 8 e 10 vº e cujo valor também é reclamado nos presentes autos respeitam a tecido e não a camisas) parece-nos linear a qualificação do acordo como contrato de compra e venda.
A questão coloca-se (e assim é colocada pela Recorrente) quanto às peças de vestuário fabricadas pela Recorrente, com tecido seu mas segundo modelos criados pela Ré.

Conforme refere a Ré no requerimento por si apresentado nos autos, o Tribunal de Justiça da União Europeia teve já de se pronunciar sobre casos em que no mesmo contrato se combinam o fornecimento de bens com prestação de serviços pelo fornecedor (cfr. a título de exemplo os acórdãos de 25 de Fevereiro de 2010, processo C-381/08, caso Car Trim GmbH contra JeySafety Systems Srl, e de 23 de Abril de 2009, processo C-533/07, caso Falco Privatstiftung).

No referido acórdão Car Trim, no qual estava em causa um contrato mediante o qual “a Key Safety, estabelecida em Itália, fornece sistemas de airbags a fabricantes italianos e automóveis e comprou, à Car Trim, componentes que entram no fabrico desses sistemas, de acordo com cinco contratos de fornecimento celebrados entre Julho de 2001 e Dezembro de 2003” o Tribunal de Justiça entendeu que “1) O artigo 5.°, n.º 1, alínea b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que os contratos cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, mesmo que o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, sem que os materiais tenham sido por ele fornecidos, e mesmo que o fornecedor seja responsável pela qualidade e pela conformidade do bem com o contrato, devem ser qualificados de «venda de bens», na acepção do artigo 5.°, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento.

A este respeito, dado que o Regulamento n.º 44/2001 prevê, para os contratos de venda de bens e para os contratos de prestação de serviços, a obrigação característica desses contratos como critério de conexão ao tribunal competente, os referidos contratos serão qualificados respectivamente de «venda de bens», na acepção do artigo 5.°, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento quando a obrigação característica for a entrega de um bem e de «prestação de serviços», na acepção do referido artigo 5.°, n.º 1, alínea b), segundo travessão, quando a obrigação característica for uma prestação de serviços.

Para determinar a obrigação característica de um contrato cujo objecto é a entrega de bens a fabricar ou a produzir, quando o comprador tenha formulado determinadas exigências a respeito da obtenção, da transformação e da entrega dos bens, o facto de o bem a entregar ter de ser fabricado ou produzido previamente não altera a qualificação do contrato em causa como contrato de compra e venda. Além disso, outros elementos como, por um lado, o não fornecimento de materiais pelo comprador, e, por outro, a responsabilidade do fornecedor pela qualidade e pela conformidade do bem constituem indícios a favor de uma qualificação desse contrato como «contrato de venda de bens” (disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:62008CJ0381).

No caso Falco Privatstiftung pode ler-se no acórdão Tribunal de Justiça da União Europeia que “há que interpretar o artigo 5.°, n.º 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.° 44/2001 à luz da génese, dos objectivos e da sistemática do referido regulamento (v., neste sentido, acórdãos de 13 de Julho de 2006, Reisch Montage, C-103/05, Colect., p. I-6827, n.° 29; de 14 de Dezembro de 2006, ASML, C-283/05, Colect., p. I-12041, n.os 16 e 22, e de 3 de Maio de 2007, Color Drack, C-386/05, Colect., p. I-3699, n.° 18)” (ponto 20) e que “foi apenas em relação aos contratos de venda de mercadorias e de prestação de serviços que o legislador comunitário pretendeu, por um lado, deixar de ter em conta a obrigação controvertida, atendo-se à obrigação característica dos contratos, e, por outro, definir autonomamente o lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual” (ponto 54; disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:62007CJ0533).

Pensamos que esta jurisprudência que se pronunciou no âmbito do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 mantém plena actualidade para o Regulamento nº 1215/2002 e, aplicada ao caso, impõe a qualificação dos contratos em discussão como contratos de compra e venda.

No caso concreto, ainda que esteja em causa nos autos não só o fornecimento de tecido mas também a confecção de artigos de vestuário (camisas), com tecido da Autora e segundo modelos apresentados criados pela Ré, a verdade é que não resulta alegado que a confecção desses artigos implicasse uma efectiva novidade na produção normal da Autora ou que implicasse a introdução de alterações substanciais, de forma, medida ou qualidade pois que, convém lembrar, a Autora se dedica com intuito lucrativo à confecção de artigos de vestuário em especial camisas e blusas.

O elemento prevalente do acordo celebrado entre as partes não é o da prestação de serviços pois embora estejamos perante mercadoria, peças de vestuário, produzidas pela Autora segundo modelos criados pela Ré, o núcleo essencial do negócio radica no fornecimento e entrega da mercadoria, tanto assim que a Autora facturou à Ré as diversas unidades de peças de vestuário por si fabricadas.

Temos pois como acertada a afirmação do tribunal a quo de que o contrato em causa tem mais afinidade com um contrato de compra e venda e que o “lugar do cumprimento da obrigação”, no caso sub iudice, não pode deixar de ser o local efectivo da entrega dos bens, isto é a sede da Ré em Espanha, sendo a jurisdição deste país (Estado-Membro), nos termos do artigo 7º n.º 1 alínea a) do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, a competente internacionalmente para apreciar e decidir o incumprimento do preço alegado pela Autora nos presentes autos, sendo por isso internacionalmente incompetente o tribunal recorrido (neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2017, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que “Estando em causa nos autos contratos que têm como objecto a venda de bens a produzir ou fabricar pelo vendedor, segundo modelos ou protótipos, definidos pela ré, que os encomendou à autora para vender a terceiros, a entregar em Espanha, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente acção pois, quer o domicílio (sede) da ré, quer o local de cumprimento relevante – lugar da entrega dos bens – se situam em Espanha”).

A Recorrente veio ainda alegar que, independentemente da questão da qualificação do contrato para efeitos de determinar o “lugar do cumprimento da obrigação”, o tribunal a quo seria sempre o internacionalmente competente para julgar os presentes autos por força do disposto no artigo 26º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 pois a Ré veio aos autos invocar não só a incompetência internacional dos tribunais nacionais, mas também e em primeira linha a excepção de não cumprimento por alegado cumprimento defeituoso do contrato por parte da Autora.

Prevê o referido artigo 26º a chamada competência convencional tácita preceituando que “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24º”.

Estão aqui abrangidas as situações em que, apesar de uma acção ter sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro para a qual, em princípio, o mesmo não era competente, a comparência do demandado torna-o competente, a não ser que a comparência tenha como único objectivo invocar a incompetência.

Tal não significa, no entanto, que o demandado não possa, para além de invocar a incompetência internacional, apresentar também a sua defesa quanto ao mérito da causa.

Como se pode ler no sumário do Acórdão desta Relação de 09/06/2016 (também disponível em www.dgsi.pt) “a comparência do réu não fundamenta a competência do tribunal se o mesmo, além de contestar a competência, apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa. Ponto é que essa contestação da competência seja prévia a toda a defesa de mérito ou, quando menos, tenha lugar o mais tardar até ao momento da tomada de posição considerada pelo direito processual do foro como o primeiro acto de defesa formulado no processo”.

Neste acórdão é ainda citado Luís de Lima Pinheiro (Direito Internacional Privado, Volume III, página 147) que se pronuncia também no sentido de que a jurisprudência comunitária (Tribunal de Justiça das Comunidades) vem entendendo que a comparência do réu não fundamenta a competência do tribunal se o mesmo, além de contestar a competência, apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa.

No caso concreto, e ao contrário do que pretende a Recorrente, parece-nos manifesto que a Ré veio aos autos contestar a competência do tribunal recorrido e não apresentar a sua defesa de mérito.

A Ré apresentou efectivamente nos autos requerimento mas nele solicitou expressamente ao tribunal a quo que não conhecesse do processo por não ter competência para conhecer do litígio em face do disposto no artigo 7º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 pois que a mercadoria foi entregue em Espanha e está em causa contrato de compra e venda; e se é certo que referiu a existência de material defeituoso, fê-lo para explicar que não recusa o pagamento apenas impõe condições em face do alegado prejuízo, não nos oferecendo dúvidas de que o requerimento apresentado pela Ré destina-se por isso a contestar a competência internacional do tribunal a quo e não a apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa.

De todo o modo, conforme se escreve no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2017 “a jurisprudência europeia tem entendido que o artigo 18º da Convenção (“Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições da presente Convenção, é competente o tribunal de um Estado Contratante perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 16º”), ao qual correspondem os artigos 24º do Regulamento nº 44/2201 e 26º do Regulamento nº 1215/2002, “tem de ser entendido no sentido de que permite ao réu não contestar apenas a jurisdição mas também, em alternativa, apresentar defesa relativa à substância da causa, sem perder o direito de suscitar a excepção de incompetência” (tradução de parte da decisão de 14 de Julho de 1983 do Tribunal de Justiça, Caso 201/82, Gerling Konzern Speziale Kreditversicherungs-AV e outros contra Amministrazione del tesoro dello Stato, e jurisprudência ali citada), in InfoCuria – Case Law of The Court os Justice, disponível em curia.europa.eu. Não sendo diferente o regime constante dos Regulamentos nº 44/2001 e 1215/2002, mantém actualidade a jurisprudência firmada a propósito da Convenção (cfr., expressamente, o acórdão Falco Privatstiftung, ponto 52).

E da interpretação do requerimento da Ré sempre resultaria que a primeira defesa é a invocação da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

A sua intervenção nos autos não pode ser por isso considerada como aceitação tácita da competência do Juízo Central Cível de Guimarães, Comarca de Braga, por força do disposto no citado artigo 26º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012.
Improcede, assim, integralmente o recurso da Autora.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 21 de Junho de 2018
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária


(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)