Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
142/14.5JELSB-BL.G1
Relator: ANA TEIXEIRA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
PERDA DE BEM A FAVOR DO ESTADO
ONERAÇÃO COM HIPOTECA
TERCEIRO DE BOA FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Quando declarado perdido a favor do estado algum bem resultante de tráfico de estupefacientes, se este estiver onerado com direito real, no caso hipoteca de terceiro de boa fé, tal direito transfere-se com o bem para a titularidade do Estado, constituindo para este um ónus ou encargo.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Ana Teixeira
Adjunta: Maria José Nogueira

O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES – SECÇÃO CRIMINAL

-------------------------------- Acórdão
I - RELATÓRIO

1. No processo comum (tribunal colectivo) supra identificado, o tribunal proferiu a seguinte decisão:

Neste apenso n.º 142/14.5JELSB-BL, veio J. M., residente na …, Espanha, deduzir incidente de direitos de terceiro relativamente ao barco X, apreendido nos autos principais.

Pede a revogação da decisão que decretou a perda da mesma embarcação a favor do Estado.

O Ministério Público defendeu o indeferimento da pretensão do requerente.

Tendo o requerente sido ouvido, por iniciativa do Tribunal, no julgamento do processo principal, com declarações registadas em suporte áudio, procedeu-se apenas à audição da testemunha por ele indicada neste apenso.
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Resultam provados os seguintes factos:

1. No Cartório Notarial de …, Espanha, por escritura pública de .. de … de 2007, o Banco ..., S.A., concedeu à sociedade “X Portugal, Unipessoal, Lda.” um empréstimo de € 950.000,00, constituindo, como garantia do respectivo pagamento, uma hipoteca sobre a embarcação C. M., inscrita na Conservatória de Registo Comercial de … com o n.º …, a fls. 83 do livro ….
2. Tal embarcação tinha sido adquirida pela “X” a .. de … de 2007, com registo definitivo a .. de … de 2008.
3. A … de … de 2010, perante o Notário de …, foi celebrada escritura pública de novação de empréstimo, na qual foi ampliado o valor do empréstimo referido em 1. e o respectivo prazo de pagamento, aumentado o valor da hipoteca sobre o navio e foram alteradas as condições de liquidação, assumindo o aqui requerente, além de outros, a qualidade de fiador.
4. A … de … de 2011, a embarcação alterou o seu nome para X, tendo sido registada na Capitania do Porto de Viana do Castelo.
5. A .. de … de 2012, por documento particular denominado “contrato de compra e venda de embarcação, de apetrechos e artes de pesca”, a “X Portugal, Unipessoal, Lda.”, representada pelo sócio gerente C. C., declarou vender a “Y – Pescas, Unipessoal, Lda.”, representada pelo sócio gerente A. V., aquela declarou vender a esta, que a declarou comprar, a embarcação X, pelo preço de € 1,00, com a obrigação de a compradora pagar ao Banco ..., S.A., o remanescente do valor em dívida.
6. Tal transmissão de propriedade foi registada a 15 de Outubro de 2012, e deveu-se a um crescimento de dívidas a fornecedores, permitindo que o barco continuasse a laborar e a gerar receitas para fazer face àquelas dívidas.
7. A 8 de Janeiro de 2013, foi celebrada perante o Notário de Tui, Espanha, uma escritura pública de cancelamento de fiança, na qual o Banco ..., S.A., e o Banco …, S.A., mediante o empréstimo pelo ora requerente à “X”, de € 215.000,00, destinados à redução do capital pendente do empréstimo referido em 3., declararam cancelar as fianças do requerente e de sua mulher relativamente a operações do navio X, ficando ambos libertados de forma total e definitiva.
8. A 8 de Janeiro de 2013, foi celebrada no Cartório Notarial de …, Espanha, uma escritura de confissão de dívida com hipoteca naval, na qual A. V., na qualidade de representante legal de “Y – Pescas, Unipessoal, Lda.”, declarou reconhecer que esta era devedora a J. M. da quantia de € 215.000,00, relativa a uma entrada realizada no mesmo dia para amortização parcial antecipada do mútuo com o Banco ... (hoje Banco …).
9. Para garantia do empréstimo referido em 8., “Y” declarou constituir hipoteca sobre a embarcação X a favor do ora requerente, tendo acordado que a amortização do mútuo se faria ao finalizar o prazo (8 de Janeiro de 2028) ou no momento em que “o barco objecto de hipoteca seja transmitido a um terceiro”.
10. Com data de 1 de Outubro de 2014, foi celebrado, com intervenção de C. C. em representação da vendedora “Y – Pescas, Unipessoal, Lda.”, e com reconhecimento notarial de uma assinatura em Valença no dia 9 do mesmo mês, um “contrato de compra e venda de embarcação, com reserva de propriedade”, no qual aquela empresa declarou vender a embarcação X à “P. – Unipessoal, Lda.”, representada pelo seu sócio gerente J. S., pelo preço de € 1,00 e com o encargo desta de desonerar a vendedora e a “X Portugal” da obrigação do pagamento ao Banco ... do remanescente do valor em dívida das hipotecas que incidiam sobre o barco.
11. A 2 de Outubro de 2014, no Cartório Notarial de …, A. V., em representação da “Y”, revogou a procuração que tinha outorgado a 7 de Novembro de 2012 a C. C., cujo original se encontrava na posse deste, e que foi por ele usada no contrato referido em 10.
12. O requerente não teve qualquer intervenção no contrato aludido em 10. e desconhecia o destino que ia ser dado à embarcação após o mesmo.
13. A 23 de Novembro de 2014, quando se encontrava a navegar no Mediterrâneo, em águas internacionais, o X veio a ser interceptado pelas autoridades marítimas espanholas, transportando 793 fardos e 2 sacos contendo resina de cannabis, com o peso bruto global de 19899,170 kg.
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Não ficou por provar qualquer facto alegado que fosse relevante para a decisão do incidente, nem se demonstrou nenhum outro com interesse para os autos.
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A convicção do tribunal assentou, desde logo, nos documentos juntos quer a estes autos, quer aos autos de execução ordinária n.º 1477/14.2T8VCT (pendentes nos Juízos Centrais Cíveis de Viana do Castelo) e reclamação de créditos apensa.
Foi ainda relevante, para enquadrar a vida societária da “X”, o uso dado à embarcação e a necessidade de transmissão à “Y” (cujo único sócio é irmão da testemunha e não tinha intervenção activa no negócio da pesca), o depoimento sério e detalhado de P.V., que foi casada com C. C. e que, até à separação (em Janeiro de 2014), estava por dentro dos encargos assumidos por todos e também pelo requerente. Deste depoimento ficou claro que as suspeitas de uso ilícito do barco pelo seu comprador só se levantaram à testemunha – que de imediato as transmitiu ao requerente – em Outubro de 2014, face aos desentendimentos de P.V. com o marido, à vontade daquela de vender o barco e após a revogação da procuração aludida em 11.: quando, no porto de Vigo, P.V. constatou que o barco se preparava para zarpar sem aparelhos de pesca e teve conhecimento da identidade do comprador, constando-se em A Guarda, onde a testemunha mora, a existência de actividade anterior dele como traficante de estupefacientes.

Todos estes elementos confirmaram o teor do depoimento prestado pelo requerente no julgamento dos autos principais, quer relativamente ao seu envolvimento com a sociedade proprietária da embarcação, quer por referência ao seu desconhecimento, antes de meados de Outubro de 2014, do uso que veio a ser dado à mesma.
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Cumpre decidir.

Nos termos do art. 36.º-A, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, “O terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no presente diploma pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa-fé, indicando logo todos os elementos de prova.”

Estabelecendo aquele diploma o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, nele se encontra previsto, como regra, no art. 35.º, n.º 1, a perda a favor do Estado dos “objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma”.

Ora, não há dúvida de que o X foi usado para o tráfico de estupefacientes, mais concretamente de haxixe, e por isso se declarou, no acórdão dos autos principais, a sua perda a favor do Estado.

Porém, tem o requerente, como titular de um direito sobre a embarcação – mais concretamente, uma hipoteca, embora com um credor graduado antes de si – legitimidade para o defender, desde que demonstre a sua boa-fé na aquisição desse direito.

Esclarece o n.º 2 daquele art. 36.º-A que tal boa-fé consiste na “ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no n.º 1 do artigo 35.º”.
É evidente que esta ignorância deve ser avaliada tendo por referência o momento da constituição do direito, ou seja, neste caso a data em que foi constituída hipoteca sobre o X a favor do requerente.

Ora, o requerente já era fiador do empréstimo que um banco tinha concedido à sociedade proprietária da embarcação ao menos desde 2010 (3.), acabando por obter o cancelamento dessa fiança mediante empréstimo à “X” de € 215.000,00. E foi precisamente como garantia do pagamento deste valor e seus acréscimos que, no mesmo dia desse cancelamento, em Janeiro de 2013, foi constituída a hipoteca sobre a embarcação a favor do requerente (8.).

Assim, já desde esta última data que o requerente dispunha não só de um direito de crédito sobre a embarcação, como de um instrumento escrito com virtualidade de se tornar num título executivo, caso se verificasse alguma das condições ali previstas: o decurso do prazo (em Janeiro de 2028) ou quando o barco fosse transmitido a um terceiro.

No momento da constituição da hipoteca, nem sequer faz sentido falar de ignorância desculpável, porque não está demonstrando o uso ilícito, para tráfico de estupefacientes, da embarcação em Janeiro de 2013.

No início de Outubro de 2014, quando se concretiza uma das condições que daria força executiva à confissão de dívida com hipoteca naval – a transmissão do barco a terceiro, por parte da “Y” – não só o requerente careceu de qualquer intervenção nesse negócio, como desconhecia o destino que ia ser dado à embarcação após o mesmo.

Portanto, não restam dúvidas da boa-fé do requerente à data da constituição da hipoteca, boa fé que se manteve mesmo no momento em que o barco foi objecto de transmissão para a “P.”.

Tal significa, reunidos que estão os requisitos para reconhecer a validade do direito de crédito do requerente e da hipoteca naval sobre o X constituída a seu favor, que a embarcação não pode ser declarada perdida a favor do Estado, sob pena de ficarem prejudicados direitos de terceiro de boa-fé, no caso o requerente.

Pelo exposto, e sem prejuízo do decidido em sede de reclamação de créditos na execução ordinária n.º 1477/14.2T8VCT, pendente no Juízo Central Cível de Viana do Castelo, reconhece-se ao requerente J. M. a qualidade de terceiro de boa-fé no que respeita à embarcação X apreendida nos autos principais, dando sem efeito a decisão do respectivo perdimento a favor do Estado.
Sem custas.
Notifique.
(…)»

2. Inconformado, o Ministério Público recorre, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [fls. ]:

1. Foi declarado no acórdão condenatório no processo principal, o perdimento da embarcação X.
2. Após requerimento efectuado por terceiro e ao abrigo do disposto no artº 36º nº 2 e 36º-A do D.L. 15/93 de 22.1, foi alegado e provado em audiência o interesse legítimo do mesmo em ver garantido e assegurado um direito a ser pago da importância que se computou em € 215.000,00
3. A embarcação X tem um valor venal superior a tal montante.
4. A anulação do perdimento de tal embarcação, tal como decidida nos presentes autos, determinará a ineficácia de tal perda a favor do Estado, em valor superior ao computado para aquele direito do terceiro de boa-fé.
5. Tal significa um perdimento efectivo para o Estado de uma vantagem a que tem direito em função da lei da droga e que assim fica prejudicada.
6. Tal perdimento a favor do Estado não prejudica, por outro lado e por força dessa circunstância a garantia oportuna do pagamento desse valor ao terceiro de boa-fé.
Em conformidade, ao decidir de outro modo, foi violado o comando ínsito naquelas disposições legais- artº 35º 36º nº 2 e 36-A do D.L. 15/93 de 22.1
Pelo que V.ªs Ex.ªs, dando provimento a este recurso, mandando substituir a decisão por outra que atenda aos critérios indicados, farão a devida
JUSTIÇA
(…)»
3. Na resposta, o visado terceiro de boa-fé refuta todos os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido, passando-se a transcrever as suas conclusões;
A sentença do Tribunal "a quo" julgou provada, formando a sua convicção nomeadamente na prova documental junta aos autos pelo requerente a existência crédito do requerente, bem como este, nos termos do artigo 36.°-A, n.°1, do Dec. Lei 15/96, de 23 de Janeiro, o ali requerente é terceiro e está de boa-fé.
2- A matéria dada como provada na sentença, da qual ora se recorre, não foi impugnada pelo presente recurso, constituindo, por isso, caso julgado.
3- Enquanto terceiro de boa-fé, o Apelado deve ver garantido o seu crédito, bem como o seu pagamento.
4- Caso seja revogada a decisão recorrida, de acordo com as conclusões de recurso, deverá o Estado Português, antes de fazer seu o bem, expurgar o ónus hipotecário, nos termos dos artigos 721.° e segts., pagando ao Apelado o valor de €255.750,00 (duzentos e cinquenta e cinco mil e setecentos e cinquenta euros).
NESTES TERMOS E com o douto suprimento de Vs. Exs.a não deverá ser dado provimento ao recurso no sentido das presentes conclusões, assim se fazendo JUSTIÇA
4. Nesta instância, o Exmo. procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso [fls. ].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
(…)»

II – FUNDAMENTAÇÃO

6. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso,

· importa analisar o enquadramento legal pertinente à apreensão de objectos do crime ou com ele relacionados, sua perda e protecção de direitos de terceiros.
· A propósito diremos que a perda de objectos que tiverem servido ou se destinassem a servir a prática de infracções previstas no Dec-Lei nº 15/93 de 22/1 – como sucede no caso sub judice -, bem como a de objectos ou direitos com elas relacionados, é regulada pelo disposto nos arts. 35º e 36 º daquele diploma, normas especiais que prevalecem sobre o regime geral instituído nesta matéria no Cód. Penal.

Na sua primitiva redacção, o nº 1 do citado art. 35º dispunha que “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos quando, pela natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.

Com a alteração introduzida a esta norma pela Lei nº 45/96 de 3/9, que eliminou a sua parte final, a perda de objectos, que tenham servido ou estejam destinados a servir para a prática de infracções previstas no Dec-Lei nº 15/93 ou que por esta tiverem sido produzidos, deixou de depender do perigo que deles possa resultar para a segurança das pessoas ou para a ordem pública ou do risco sério de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Tem-se entendido que o legislador, com esta alteração, pretendeu ampliar as situações em que a declaração de perda dos objectos deverá ocorrer. Assim, na criminalidade prevista no Dec-Lei nº 15/93, tal perda passou a depender apenas, quando se trate de instrumentos do crime (“instrumenta sceleris”), da verificação de um requisito em alternativa – o de que tenham servido, ou que estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma -, e quando se trate de produtos do mesmo (“producta sceleris”), tão só da circunstância de serem um resultado da infracção.

No entanto, e com vista a evitar excessos que poderiam decorrer de uma interpretação que conduza a uma aplicação automática do perdimento dos veículos ou embarcações utilizados na prática de infracções daquela natureza, tem vindo a jurisprudência a temperá-la com alguns elementos moderadores, nomeadamente a noção de instrumentalidade, esclarecida pela invocação da causalidade adequada, e o princípio da proporcionalidade (consagrado no nº 2 do art. 18º da CRP) Cfr. Neste sentido o Ac. do STJ de 21.10.04, de que foi relator o Cons. Simas Santos, (CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 205, disponível também em www.dgsi.pt) e Ac. do STJ de 28.05.2008, relatado pelo Cons. Raul Borges (disponível em www.dgsi.pt)-. Em consonância, vem-se exigindo que “do factualismo provado resulte que entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista um relação de causalidade adequada, por forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada”, e que a perda dos instrumentos do crime, medida preventiva que não está submetida ao princípio da culpa, seja equacionada com o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da actividade levada a cabo e a serventia que ao objecto foi dada na sua execução, de forma a não se ultrapassar na sua ã “justa medida”. - cfr., neste sentido, Acs. do STJ 02.06.99 nº281/99 e de 24.03.04, processo. nº 04P270. No mesmo sentido, pronunciaram-se ainda em Acórdãos da Relação do Porto, com referência entre outros à relatora Ana Paramés .

Por outro lado, não é condição do decretamento da perda de bens que o agente do facto ilícito típico seja o titular do respectivo direito de propriedade, podendo a mesma ocorrer ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser por ele punida (cfr. nº 3 do referido art. 35º) e, portanto, mesmo que eles pertençam a terceiros.

Para esta última situação, a lei criou um mecanismo destinado a dar alguma protecção a direitos legítimos de terceiros, conferindo a estes a faculdade de os virem defender através do incidente regulado no art. 36º-A, aditado ao Dec-Lei nº 15/93 pela Lei nº 45/96, de 03.09.

Deste modo, nos termos do nº 1, do citado art.36-A “o terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no presente diploma, pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa-fé, indicando logo todos os elementos de prova”, esclarecendo o seu nº 2 que “entende-se por boa-fé a ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no n.º 1 do artigo 35º”.

O terceiro que se pretenda prevalecer de um direito sobre determinado bem que haja sido sujeito a uma daquelas medidas terá, assim, de fazer a prova da titularidade do direito que se arroga, e de que desconhecia, sem culpa (aferida por um critério de razoabilidade, no sentido de, nas concretas circunstâncias verificadas, não lhe ser razoavelmente exigível que do facto tivesse conhecimento), que o dito bem havia sido, ou estivesse destinado a ser, utilizado na prática de factos ilícitos tipificados na citada Lei nº15/93, que prevê e pune as condutas de Tráfico e consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, ou havia sido por ela produzido.

É forçoso concluir que a embarcação X apreendida foi instrumento do crime e que entre a sua utilização e a prática do facto ilícito típico existiu uma relação de causalidade adequada, por forma a que, sem tal utilização, o crime em concreto não teria sido cometido ou, pelo menos, não teria sido cometido nas circunstâncias de acção em que o foi (facilidade, rapidez, maior eficiência na execução dos factos e maior dificuldade para a descoberta do crime.)

Resultam, assim, dos autos prova da instrumentalidade supra referida e do concreto relevo do papel que a embarcação assumiu no desenvolvimento da indiciada actividade delituosa do arguido, o que permite concluir que, tendo sido feita prova dos factos, o decretamento da sua perda, e que não se mostrou, como foi inicialmente, ao tempo da prolação do acórdão, ofensivo do princípio da proporcionalidade.

Deste modo e existindo o decretamento da perda da referida embarcação apreendida, a procedência da pretensão de terceiro de boa-fé em que aquela lhe fosse restituída depende da prova da titularidade do direito que sobre ela se arrogou bem como da prova de que ignorava, sem culpa, que ela vinha sendo utilizada no tráfico de estupefacientes.

O terceiro que se pretenda prevalecer de um direito sobre determinado bem que haja sido sujeito a uma daquelas medidas terá, assim, de fazer a prova da titularidade do direito que se arroga, e de que desconhecia, sem culpa (aferida por um critério de razoabilidade, no sentido de, nas concretas circunstâncias verificadas, não lhe ser razoavelmente exigível que do facto tivesse conhecimento), que o dito bem havia sido, ou estivesse destinado a ser, utilizado na prática de factos ilícitos tipificados na citada Lei nº15/93, que prevê e pune as condutas de Tráfico e consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, ou havia sido por ela produzido.

Considerando o conjunto dos factos supra referidos há que concluir que o requerente logrou demonstrar os requisitos legais previstos no nº 1 do art. 36º-A do Dec-Lei nº 15/93, para que possa ser considerado como terceiro de boa-fé.cresce que nem o recorrente MP colocou tal situação em crise.

O que importa agora é valorar as consequências de tal situação.

Enquanto terceiro de boa-fé, o requerente deve ver garantido o seu crédito, bem como o seu pagamento.
Mas tem de se manter em nosso entender a declaração de perdimento a favor do estado da embarcação em causa

O confisco implica a perda para o Estado, com eficácia real para a esfera patrimonial do Estado, ficando este onerado com todos os ónus e encargos, neste caso o crédito hipotecário.

Consequentemente a hipoteca transfere-se para o estado,

O direito de terceiro de boa-fé, credor hipotecário, mantém-se continuando a onerar o estado, O estado passa a ter esse encargo.

Consequência da declaração de perdimento a favor do Estado terá de se manter e assume as consequências que descrevemos

Com a transferência da propriedade se transferem todos esses direitos e por isso o encargo, melhor dizendo, a hipoteca como direito real de garantia, acresce ao estado. A hipoteca não obsta á transferência da propriedade e, uma vez que não está em causa a boa fé, é transferida para o estado.

Resulta do exposto que a decisão recorrida é de manter na parte em que reconhece ao requerente J. M. a qualidade de terceiro de boa-fé no que respeita à embarcação X apreendida nos autos principais mas não poderá dar sem efeito a decisão do respectivo perdimento a favor do Estado que se impõe ter de manter.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, os juízes acordam em:

· Conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente Ministério Público, mantendo-se a decisão de perda a favor do Estado da embarcação X, onerada com o direito de J. M. de terceiro de boa-fé nos termos supra descritos.
· Não é devida tributação

[Elaborado e revisto pela relatora]