Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
603/22.2T8BGC.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: RECONHECIMENTO DO MOTIVO JUSTIFICATIVO DO DESPEDIMENTO
HONESTIDADE
COMPORTAMENTO CULPOSO
CRITÉRIO DE RAZOABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Se é certo que, como se vem defendendo, a honestidade na relação laboral é insusceptível de gradações, precisamente porque qualquer comportamento desonesto é apto a quebrar a confiança que o empregador tem no trabalhador (ou do trabalhador no empregador), não é menos acertado que o preenchimento desse conceito tem de efectuar-se com um mínimo de objectividade e segundo critérios de razoabilidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: ... Hipermercados, S.A.
Apelada: AA

I – RELATÓRIO

... Hipermercados, S.A., com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, também nos autos melhor identificada, pedindo que se reconheça a existência de motivo justificativo para o despedimento com justa causa da R.

Alega para tanto, e em síntese, que a ré é sua trabalhadora, com as funções inerentes à categoria profissional de vendedora de operador-2, reportando-se a sua antiguidade a 12.06.2019.
Sucede que a ré, entre Outubro e Dezembro de 2021, praticou factos, que descreve, que constituem justa causa para o seu despedimento, tendo-lhe movido procedimento disciplinar com esse desiderato, do qual deu conhecimento à ré, sendo que esta, na resposta ao aditamento à nota de culpa, comunicou à A. que estava grávida.
Findas as diligencias instrutórias a A. remeteu à CITE o processo disciplinar da A., vindo esta comissão a comunicar ao Instrutor do processo disciplinar o seu parecer, desfavorável ao despedimento da R.

Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a sua conciliação.

Notificada para o efeito, a ré apresentou contestação, pugnando pela inadmissibilidade, por extemporaneidade, do aditamento à nota de culpa, pelo que “encontra-se precludida a possibilidade dos mesmos [factos] serem apreciados na presente ação”, e aceitando a existência da invocada relação laboral e, grosso modu, de lhe ter sido instaurado e a tramitação do alegado procedimento disciplinar, aceitar alguma matéria da que aí lhe é imputada mas impugnando a maior parte dos factos, apresentando uma versão diferente.
Deduziu reconvenção, em que pede:
“a) Ser julgada improcedente, por não provada, a presente ação e, consequentemente, ser declarada a inexistência de motivo justificativo para despedimento da Ré e, dessa forma, declarado ilegal o despedimento da Ré;
b) Ser a Autora condenada a pagar à Ré, em alternativa à reintegração, a indemnização calculada nos termos do artigo 292.º n.º 3, por aplicação do artigo 63.º n.º 8, ambas as normas do Código de Trabalho, bem como qualquer outro crédito que assista à Ré em virtude da inexistência de motivo justificativo para o despedimento por justa causa.
c) Ser julgada procedente, por provada, a reconvenção e, consequentemente, ser a Autora condenada a pagar à Ré a quantia de € 3000,00 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais.”

A ré apresentou resposta em que, no fundamental, reafirma a posição já vertida no articulado inicial.

No âmbito da audiência prévia a que houve lugar foi, além do mais, proferido despacho de não admissão da reconvenção deduzida pela ré.

Prosseguindo os autos, veio a realizar-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo totalmente improcedente, por não provada, a presente acção e, em consequência, absolvo a Ré AA do pedido contra si formulado pela Autora ... Hipermercados S.A.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a ré interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“1. Pretende-se com este a reapreciação da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, no que à decisão da matéria de facto diz respeito, mas também quanto à solução de direito aplicada ao caso concreto.

Quanto à impugnação da matéria de facto,
2. Salvo o devido respeito, atendendo à prova documental junta aos autos, mas também à prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, o Tribunal a quo deveria ter decidido dar como não provado o ponto 77 da Contestação, e dar como provado o ponto 82 da Petição Inicial.
3. Com a Petição Inicial a aqui Recorrente juntou como doc. n.º ... os documentos que compõe o processo disciplinar que foi movido à Recorrida.
4. Assim, consta desse referido doc. n.º ... o auto de declarações da Sra. BB, cujo depoimento foi prestado em sede de instrução.
5. Nesse auto de declarações, confirmado e assinado pela referida Sra. BB, consta o seguinte:
“Segundo a depoente, a arguida sabia que os selos que lhe eram entregues tinham sido dados pela ex-colaboradora CC à depoente.”
6. Em sede de depoimento prestado em audiência de julgamento, a instâncias da advogada da Recorrente, questionada se a Recorrida sabia que os selos que lhe eram entregues provinham da colaboradora DD, acabou a testemunha por afirmar que “sim” (depoimento gravado da testemunha BB, através do sistema “H@bilus Média Studio”, prestado entre as 15:13:59h e as 15:37:14h, entre os minutos 00:18:38 a  00:20:42).
7. Foi essa a resposta da testemunha sobre esse facto e é essa resposta que o Tribunal a quo não pode desconsiderar, como fez.
8. De tal depoimento, aliás, conclui-se que: A R. sabia que os selos que lhe eram entregues pela Sra. BB provinham da colaboradora DD e, por isso; existiu, de facto, um estratagema criado entre a R. e as colegas – BB e DD - para se apropriarem dos selos da campanha S....
9. Assim, e face ao exposto, deverá ser dado como provado o ponto 82 da Petição Inicial, e ser dado como não provado o ponto 77, referente à Contestação.
Quanto à solução de direito aplicável,
10. Na sentença proferida pelo Tribunal a quo, e a propósito dos factos imputados à Recorrida na nota de culpa, julgaram-se provados descritos sob os pontos 1, 13, 23, 24, 25, 27, 55, 56, 59, 60, 61 e 62 na Sentença proferida.
Ora,
11. Conforme resultado do exposto, o Tribunal a quo deu como provado que, enquanto colaboradora da Recorrente, a Recorrida sabia e não podia desconhecer – como acontece aliás com todos os colaboradores da Recorrente – que estava proibida de receber gratificações de clientes, seja em dinheiro ou qualquer outro género, no tempo e local de trabalho.
12. Ou seja, era do perfeito conhecimento da Recorrida – trabalhadora da Recorrente – que não podia aceitar os selos.
13. Selos esses que a Recorrida não tinha direito a receber, porquanto não realizou – nem mesmo as suas colegas - compras no montante que lhe atribuía o direito a receber tais selos.
14. Atente-se que, a apropriação dos referidos selos equivale à apropriação de um crédito que a aqui Recorrente concede aos seus clientes, em função das suas compras, atribuindo-lhes um ganho.
15. Além disso, a Recorrida tinha conhecimento que tais selos que lhe eram entregues provinham da colaboradora DD,
16. Pelo que, dúvidas não subsistem que a Recorrida, juntamente com as suas colegas de trabalho (DD e BB), criou um estratagema que permitia à Recorrida locupletar-se às custas da Recorrente, apropriando-se de selos que deveriam ter sido entregues aos clientes ou, então devolvidos à loja.
17. Assim, e atendendo à matéria de facto dada como provado pelo Tribunal a quo, bem como o facto 82 da Petição Inicial que deverá ser julgado como provado, dúvidas não subsistem que o comportamento da Recorrida foi culposo,
18. Mas, mais do que isso, tratou-se de um comportamento intencional e premeditado, e não um comportamento negligente como o Tribunal a quo concluiu. Aliás,
19. É absolutamente inacreditável que, a este propósito, o Tribunal conclua que “É certo que a Ré, como qualquer colaborador da A., estava proibido de receber gratificações de clientes e que a oferta dos selos poderia incluir-se nessa categoria. Contudo, essa proibição está limitada ao tempo e local de trabalho e não consta da acusação/nota de culpa e relatório final que a R. recebesse os selos no local e tempo de trabalho”.
20. O dever de lealdade e de honestidade não se circunscreve ao horário nem ao local de trabalho.
21. A propósito da apropriação de selos, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 3481/17....: “Estamos perante justa causa de despedimento o comportamento da trabalhadora que é operadora de caixa e disso se aproveita no âmbito de uma campanha de fidelização de clientes para se apropriar de selos a entregar aos clientes da empregadora aquando o pagamento de produtos que adquiriam e os utiliza em benefício próprio.”
22. Estamos perante um comportamento que inegávelmente colocou em causa a confiança que a Recorrente vinha depositando na Recorrida e, por isso, era inexigível impor à Recorrente que mantivesse quaisquer expectativas quanto à idoneidade futura dos comportamentos da R..
Continuando,
23. A propósito dos factos imputados à Recorrida no aditamento à nota de culpa, julgou o Tribunal a quo como provados, entre outros, os seguintes factos descritos nos pontos 63, 64, 67, 68, 70 e 71 da respetiva Sentença.
24. No entanto, e apesar de ter considerado tais factos como provados, concluiu o Tribunal a quo que “…os factos revelam uma infracção de reduzida gravidade e uma culpa diminuta da trabalhadora, a par de não se ter provado qualquer prejuízo patrimonial
25. efectivo para a empregadora A.”.
Ora,
26. Salvo o devido respeito, o facto de não ter existido prejuízo patrimonial efetivo para a Recorrente, não implica que não haja justa causa para o despedimento.
27. A este propósito, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 477/11.9TTVRL.G1.S1 (in www.dgsi.pt) “a quebra da confiança entre empregador e trabalhador não se afere pela existência de prejuízos, podendo existir sem estes, bastando que o comportamento do trabalhador seja apto a gerar no empregador a dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura (…) no âmbito da sua relação laboral o trabalhador está vinculado a vários deveres, com destaque, no que aqui releva, para os deveres de lealdade, de transparência e de boa fé, como forma de garantir, proteger e conservar a situação de confiança mútua indispensável à manutenção dessa relação contratual.”
28. E ainda no mesmo acórdão “a quebra da confiança entre empregador e trabalhador não se afere pela existência de prejuízos, podendo existir sem estes, bastando que o comportamento do trabalhador seja apto a gerar no empregador a dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura”. (negrito nosso)
29. E ainda acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 23/06/2021, processo n.º 1444/20.7T8AVR.P1: “Mas para além disso, com especial relevância para o caso concreto, importa ainda assinalar, através das palavras do Senhor Conselheiro Sousa Grandão, que “A diminuição de confiança, resultante da violação do dever de lealdade não está dependente da verificação de prejuízos nem da existência de culpa grave do trabalhador, já que a simples materialidade desse comportamento, aliado a um moderado grau de culpa, pode em determinado contexto levar razoavelmente a um efeito redutor das expectativas de confiança” [Acórdão do STJ de 29.04.2009, Proc. nº 08S3081, disponível em em www.dgsi.pt/jstj].
De resto, entendimento que desde há muito vem sendo seguido pela jurisprudência dos Tribunais superiores, como o ilustra o Acórdão de 22-01-1992, Conselheiro Castelo Paulo [Nº Convencional: JSTJ00013348, disponível em www.dgsi.pt/jstj].
O que vale por dizer, que não merece qualquer acolhimento a posição do A., assente no pressuposto de que para se concluir pela existência de justa causa era também necessária a prova de prejuízos sérios.”
Ora,
30. De acordo com os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, a R. permitiu-se apropriar de um artigo que era propriedade da arguente, sem proceder ao seu devido registo e pagamento;
31. Tal artigo tinha um PVP de € 1,00;
32. E, apesar de estar no carrinho de quebras, continuava a ser propriedade da Recorrente.
33. Além disso, e conforme consta também dos factos dados como provados, nenhum produto proveniente do carrinho de quebras pode ser consumido na área social sem antes ter sido registado como quebra ou sem ter sido obtida autorização da chefia da secção respetiva.
34. Ou seja, face aos factos dados como provados, não subsistem que o comportamento da Recorrida – consumir um artigo propriedade da Recorrente sem o registar e pagar – é, de facto, culposo e constitui justa causa para o despedimento.
35. Mas, mais do que isso, tal comportamento da Recorrida atentou de forma irreversível contra a confiança necessária à manutenção do seu vínculo laboral,
36. Pois constituiu uma violação crassa dos seus deveres laborais, designadamente o dever de lealdade, que é um valor absoluto.
Aqui chegados,
37. Dúvidas não subsistem que, face aos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, existe justa causa para o despedimento da Recorrida, ao abrigo do artigo 351º nº1 e nº2 alíneas a), d) e e) do Código do Trabalho,
38. Porquanto, por tudo o que foi dito, os comportamentos da Recorrida – e recorde-se que não estamos a falar apenas de um comportamento com relevância disciplinar – consubstanciam uma violação muito grave e intolerável dos deveres de respeito, obediência, zelo, diligencia, lealdade, violando as als. a), c), e), f) do n.º 1 do art. 128.º do Código do Trabalho.
39. Devendo assim ser decidido, revogando-se a Sentença proferida pelo tribunal a quo e substituindo por outra que reconheça a existência de motivo justificativo para o despedimento com justa causa da Recorrida.”

O recorrido apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso, pois, e em suma:
“1. O Recorrente, na reapreciação da matéria de facto que pretende realizar, solicita a modificação do ponto 77 dos factos dados como provados (que pretende que seja dado como não provado) e, inversamente, dar como provado o ponto 82 da petição inicial (considerado como não provado pela Exma. Sra. Juíza a quo).
2. Interessa realçar que a Recorrente apenas pretende ver alterados os factos acima referenciados, aceitando todos os demais factos dados como provados e não provados, o que determina a consolidação dos factos em apreço.
3. Para modificar o facto referenciado em 1. o Recorrente invoca que tal facto foi confirmado pela testemunha BB, pois, no seu depoimento, prestado em audiência de julgamento, a mesma afirmou que a Ré sabia que os selos que lhe eram entregues tinham sido dados pela colaboradora DD.
4. Para contrariar tal tese, invoca-se o explanado pela Exma. Sra. Juíza a quo na sua decisão, mormente para justificar a circunstância de ter dado como não provado tal facto “Apesar da testemunha BB, no ponto 7 das declarações prestadas no processo disciplinar referir que a ora R., ali arguida, tinha conhecimento de que os selos lhe tinham sido dados pela colaboradora DD, o certo em que em juízo e sob juramento e insistentemente instada sobre a questão, manteve a versão contrária, no que foi corroborada pela testemunha DD e pela R. em depoimento de parte, o que não permite dar como provado o facto alegado pela A. de que existiu um estratagema criado entre a ora Ré e as testemunha BB e DD para se apropriarem dos selos da campanha S....”
5. Adicionalmente o Recorrente, na sua alegação, pretende que, em face de se dar como não provado o ponto 77 referente à contestação, que se dê como provado, em consequência, que existiu um estratagema entre a Ré e as suas colegas para se apropriarem dos selos da coleção S....
6. Ora, para além da Recorrente não apontar qualquer resquício de prova que pudesse comprovar tal plano, os demais factos dados como provados (que, recorde-se, a Recorrente não impugna, pelo contrário aceita-os, vide factos 72 a 79 dos factos dados como provados) permitem concluir, precisamente, o contrário.
7. Ou seja não se provou minimamente que a Ré tivesse conhecimento da proveniência dos selos e que a funcionária da caixa tivesse incumprido as ordens, indicações e regras relativamente ao destino dos selos que os clientes não quisessem.
8. E, como muito bem referiu a Exma. Sra. Juíza a quo, provou-se, precisamente o contrário, que a Recorrida, que trabalha na seção de frutas e legumes, nunca recebeu qualquer indicação, por parte da sua entidade patronal, relativamente à questão dos selos da campanha “Facas S...”, mormente da impossibilidade de usufruir da coleção.
9. Mais, provou-se, igualmente, que em nenhum momento a Recorrida, enquanto funcionária da Recorrente, foi avisada que não podia, junto de pessoas conhecidas ou amigas, que tivessem realizado compras, obter selos para concluir a sua caderneta e que a Recorrida estava, e está, convencida que nada praticava de ilegal ou indevido, tanto que colocava os selos que possuía nas respetivas cadernetas, à vista e à frente dos colegas e superiores.
10. O Recorrente, sem qualquer, elemento, de prova, alega que que a Recorrida teve um comportamento intencional e premeditado procurando locupletar-se às suas custas, olvidando-se, no entanto, de impugnar e contrariar os factos que determinam uma conclusão completamente diferente.
11. Assim, muito bem esteve a Exma. Sra. Juíza a quo em considerar que os factos praticados pela Recorrida, relativamente à coleção de selos com vista à obtenção de prémios, não constituem justa causa de despedimento.  
12. No que concerne aos factos constantes do aditamento à nota de culpa, a Exma. Sra. Juíza do tribunal de 1.ª instância deu como provado, no essencial, que no dia 20/12/2021, por volta das 22h26, a Recorrida retirou um croissant de uma embalagem de croissant’s que estava colocada no carrinho de quebras, na secção da padaria, que tinha um PVP de €1,00 enquanto esteve no expositor para venda e levou-o para a área social.
13. Ora, no que concerne aos factos dados como provados relativamente a este segundo o episódio, importa também frisar que o Recorrente não impugna nenhum dos factos dados como provados, pelo que os mesmos se encontram consolidados, vide factos 80 a 83 dos factos dados como provados.
14. Assim, provou-se que o produto consumido pela Recorrida destinava-se a ser consumido pelos funcionários da Recorrente, que a Recorrida não teve qualquer prejuízo patrimonial (porque o produto em apreço já não era vendável), que os funcionários da Recorrente estão autorizados a consumir os produtos que se encontram no carrinho de quebras (como era o caso do produto em apreço) e que a Recorrida deixou a caixa onde o croissant de encontrava, com o respetivo código de barras, para registo da quebra já consolidada.
15. Alega a Exma. Sra. Juíza a quo que a Recorrida possa ter cometido um erro, ao não ter solicitado autorização à chefia para consumir o croissant antes de registada a quebra, mas que não existe qualquer animus de apropriação de coisa alheia, mas tão só uma incorreção de uma vantagem que é concedida pela Recorrente aos seus colaboradores.
16. Pese embora se respeite tal posição, não se concorda que exista sequer tal erro da Recorrida, pois ao admitir-se que o produto era das quebras, logo não vendável e que seria para aproveitamento pelos funcionários, faz, desde logo, soçobrar qualquer ilícito disciplinar cometido pela arguida, seja, porque ao contrário do alegado, o produto em causa não tem qualquer valor, muito menos um euro, seja também porque a Recorrente legitimou os seus funcionários a consumir tais produtos.
17. Mas mesmo que se admita algum erro ou lapso de perceção da Recorrida, nunca o mesmo, como muito bem a Exma. Sra. Juíza a quo explanou, nas circunstâncias concretas, poderia redundar na sanção máxima aplicada à Recorrida, completamente desproporcional ao, putativo, erro da Recorrida.”

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:

A) Impugnação da matéria de facto;
B) Errada aplicação do Direito aos factos provados.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que na decisão recorrida se consideraram provados são os seguintes:
a) Factos provados por confissão ou admitidos por acordo nos articulados e por documento:
Da petição inicial:
1- A A. é uma sociedade comercial que, na prossecução do seu escopo social, se dedica à construção, administração e exploração de centros comerciais, de hipermercados e de outros estabelecimentos congéneres e o exercício de todas as atividades complementares direta ou indiretamente relacionadas com a sua atividade principal que é a exploração de centros comerciais e de hipermercados.
2- A R. é trabalhadora da A., exercendo na loja “...” sita em ... as funções inerentes à categoria profissional de vendedora de operador-2, reportando-se a sua antiguidade a 12.06.2019.
3- Por factos ocorridos entre outubro e novembro de 2021, a R. recebeu, em 12/01/2022, uma nota de culpa onde se articularam os factos que lhe eram imputados, tendo sido comunicado a intenção de despedimento com justa causa e concedido o prazo de dez dias úteis para apresentar a sua defesa.
4- Tendo recebido a comunicação e a nota de culpa, a R. apresentou resposta, tendo requerido a inquirição de uma testemunha, a saber: EE.
5- Foi remetida à R., em 2/2/2022, um aditamento à nota de culpa, por factos ocorridos em 20/12/2021, tendo sido comunicado a intenção de despedimento com justa causa e concedido o prazo de dez dias úteis para apresentar a sua defesa.
6- Tendo recebido a comunicação e o aditamento à nota de culpa, a R. apresentou resposta, tendo requerido a inquirição de uma testemunha, a saber: EE.
7- No dia 25.02.2022 foram realizadas as diligencias instrutórias, tendo sido recolhidas e reduzidas a escrito as declarações da testemunha indica pela R., mas também, e por se entender pertinente ao cabal apuramento da verdade dos factos, as declarações dos colaboradores FF, GG e HH.
8- Na resposta ao aditamento à nota de culpa, a R. comunicou à A. que estava grávida.
9- Findas as diligencias instrutórias, no dia 14.03.2022 a A. remeteu à CITE o processo disciplinar da A.
10- No dia 18.04.2022, tal comissão comunicou ao Instrutor do processo disciplinar o seu parecer desfavorável ao despedimento da R.
11- A A. tem em vigor desde 18.10.2021 a campanha “Facas S...”, no âmbito do qual os clientes têm direito a receber um selo por cada €20,00 em compras.
12- Tais selos devem ser colados pelos clientes numa caderneta que a A. lhes faculta para o efeito.
13- No dia 28.11.2021, a R. dirigiu-se à loja e apresentou três cadernetas completas da campanha “Facas S...” para reclamar os prémios/artigos associados.
14- No dia 20.12.2021 a R. encontrava-se a exercer funções em loja.
b) Factos provados da matéria controvertida constante dos temas da prova:

Da petição inicial:
15- No âmbito da campanha referida em 11, quando os clientes completarem 5 selos numa caderneta, a A. confere o direito a receberem, alternativamente:
a) Uma faca para vegetais de 8cm, mediante o pagamento adicional de €4,99;
b) Uma faca multiusos com serrilha de 13cm, mediante o pagamento adicional de €5,99;
c) Uma faca de carne de 15cm, mediante o pagamento adicional de €6,99;
d) Uma faca santoku de 18cm, mediante o pagamento adicional de €9,99;
e) Uma faca de pão de 19cm, mediante o pagamento adicional de €8,99;
f) Uma faca de chef de 19cm, mediante o pagamento adicional de €9,99;
16- Quando os clientes completam 10 selos numa caderneta, a A. confere o direito a receberem um bloco para facas, mediante o pagamento adicional de €39,99.
17- Quando os clientes completam 15 selos numa caderneta, a A. confere o direito a receberem uma faca para vegetais de 8cm, gratuitamente.
18- Quando os clientes completam 20 selos numa caderneta, a A. confere o direito a receberem, alternativamente;
a) uma faca multiusos com serrilha de 13cm, gratuitamente;
b) Uma faca de carne de 15cm, mediante o pagamento adicional de €0,99.
19- Quando os clientes completam 25 selos numa caderneta, a A. confere o direito a receberem, alternativamente;
a) Uma faca santoku de 18cm, mediante o pagamento adicional de €0,99;
b) Uma faca de pão de 19cm, mediante o pagamento adicional de €0,99;
c) Uma faca de chef de 19cm, mediante o pagamento adicional de €0,99;
20- Antes de iniciar o trabalho na respetiva caixa cada colaborador recebe um rolo de selos para entregar aos clientes que atende, quando aqueles adquirirem esse direito pelas compras realizadas.
21- O rolo entregue era registado num mapa próprio para o efeito do qual constava o primeiro e o último número da respetiva série de selos que era entregue ao colaborador em causa no início do turno de trabalho.
22- Nesses mesmos mapas constam as unidades que os colaboradores, findo o turno de trabalho e quando era caso disso, devolvem.
23- Os colaboradores têm de devolver os selos que não tenham sido entregues aos clientes, bem como aqueles que os clientes tivessem rejeitado (porque não quiseram ou porque, simplesmente, não aderiram à campanha).
24- Os colaboradores da A., nomeadamente os colaboradores de caixa estão proibidos de receber gratificações de clientes, seja em dinheiro ou qualquer outro género, no tempo e local de trabalho.
25- No dia 28.11.2021, a R. dirigiu-se à loja e apresentou três cadernetas completas da campanha “Facas S...” para reclamar os prémios/artigos associados.
26- A chefia de caixas II apercebeu-se que nas cadernetas entregues pela R. constavam selos sequenciais.
27- Assim, e analisada a situação, apurou-se que 55 selos constantes nas cadernetas entregues pertenciam a rolos de selos que haviam sido confiados à colaboradora CC.

Concretamente,
28- No dia 28 de outubro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...52 e, como último, o selo ...36.
29- No dia 29 de outubro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...99 e, como último, o selo ...95.
30- Das cadernetas entregues, constava o seguinte selo dos rolos dos dias 28 e 29 de outubro de 2021: ...06 (3.ª caderneta).
31- No dia 09 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...28 e, como último, o selo n.º ...93.
32- Das cadernetas entregues, constava o seguinte selo do rolo do dia 09 de novembro de 2021: ...38 (2ª caderneta).
34- No dia 12 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...18 e, como último, o selo n.º ...10.
35- Das cadernetas entregues, constava o seguinte selo do rolo do dia 12 de novembro de 2021: ...80 (2ª caderneta).
36- No dia 13 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...11 e, como último, o selo n.º ...02.
37- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 13 de novembro de 2021: ...68, ...67, ...80, ...82 e ...81 (2.ª caderneta).
38- No dia 15 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...03 e, como último, o selo n.º ...96.
39- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 15 de novembro de 2021: ...14, ...67, ...66 (2.ª caderneta).
40- No dia 16 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...97 e, como último, o selo n.º ...60.
41- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 16 de novembro de 2021: ...30, ...29, ...28, ...25, ...98, ...99, ...00 e ...35 (2.ª caderneta).
42- No dia 17 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...61 e, como último, o selo n.º ...09.
43- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 17 de novembro de 2021: ...75, ...74, ...85, ...04 e ...05 (1.ª, 2.ª e 3.ª cadernetas).
44- No dia 18 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...10 e, como último, o selo n.º ...85.
45- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 18 de novembro de 2021: ...22, ...23 e ...21 (2.ª caderneta).
46- No dia 22 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...51 e, como último, o selo n.º ...88.
47- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 22 de novembro de 2021: ...84, ...83, ...82 e ...81 (3.ª caderneta).
48- No dia 23 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC na parte da manhã tinha como primeiro o selo n.º ...85 e, como último, o selo n.º ...87.
49- No dia 23 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC na parte da tarde tinha como primeiro o selo n.º ...01 e, como último, o selo n.º ...84.
50- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos dos rolos do dia 23 de novembro de 2021: ...86, ...39, ...40, ...41, ...42, ...43, ...44, ...45, ...56 e ...55 (1.ª caderneta).
51- No dia 24 de novembro de 2021, o rolo entregue à R. tinha como primeiro o selo n.º ...85 e, como último, o selo n.º ...35.
52- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo de dia 24 de novembro de 2021: ...08 (1.ª caderneta), ...87, ...07 (3.ª caderneta).
53- No dia 25 de novembro de 2021, o rolo entregue à colaboradora CC tinha como primeiro o selo n.º ...36 e, como último, o selo n.º ...91.
54- Das cadernetas entregues, constavam os seguintes selos do rolo do dia 25 de novembro de 2021: ...76, ...77, ...78, ...80, ...79, ...68, ...69, ...70, ...62, ...61 e ...15 (3.ª caderneta).
55- No dia 30.11.2021, o diretor de loja confrontou a colaboradora CC e a colaboradora EE da empresa externa V... com os factos supra descritos.
56- Ambas as colaboradoras admitiram que a colaboradora CC entregou os referidos selos à colaboradora EE e esta admitiu que, posteriormente, entregou os selos à aqui R..
57- Na sequência, a colaboradora CC apresentou a seguinte declaração escrita:
Eu, DD, colaboradora da linha de caixas fui avisada desde o início da campanha de selos que não podia tirar selos da caixa mas eu não vi o aviso que foi publicado e fui tirando os selos para dar a JJ pensando que o podia fazer no qual foram entregues as cadernetas e fui chamada atenção, no qual os selos foram retirados dos clientes que não queriam levar e eu pensando que podia tirar eram guardados comigo.
Sou colaboradora part-time das caixas e trabalho na empresa V... part-time.
....
CC
30/11/2021
58- A colaboradora EE da empresa externa V... também apresentou a seguinte declaração escrita:
Eu BB recebi selos da CC que os clientes lhe davam que não queria e eu recebia e dava a AA para fazer a coleção, colaboradora da fruta e legumes
BB 30/11/2021
59- No dia 02.12.2021, o diretor de loja confrontou a R. com os factos supra descritos, tendo a mesma assumido que ficou com os selos que lhe foram entregues, adiantando, porém, não ter noção que tal era uma situação grave.
60- De acordo com a campanha, para ter direito a receber os 55 selos, a R. teria que ter realizado compras, no montante global de €1.100,00, na medida em que para receber cada um desses selos, teria que ter feito compras em montante igual ou superior a €20,00.
61- Compras estas que nem a R. nem qualquer uma das outras colaboradoras fez.
62- A R. sabia e não podia desconhecer que não pode receber qualquer gratificação de clientes dentro da loja e encontrando-se ao serviço.
63- No dia 20/12/2021, por volta das 22h26, a R. dirigiu-se para a área social com um croissant na sua mão direita, que consumiu.
64- A R. retirou tal croissant de uma embalagem de croissant’s que estava colocada no carrinho de quebras, na secção da padaria.
65- O vigilante de serviço, ao efetuar a ronda por volta dessa hora, deparou-se que açúcar em pó no chão da secção da padaria.
66- Mais constatou que havia de facto uma embalagem aberta de croissants no carrinho de quebra, onde faltava um croissant, mas que mantinha o respectivo código de barras com o preço do conjunto.
67- O croissant que a R. retirou do carrinho de quebras, enquanto esteve no expositor para venda, tinha um PVP de €1,00.
68- A R. não registou, nem pagou o referido artigo.
69- Os artigos, ainda que remetidos para quebra, são propriedade da A.
70- De acordo com os procedimentos da A. conhecidos dos colaboradores, em regra, no início do dia o colaborador que está ao serviço da padaria procede ao registo das quebras que são para o reaproveitamento, isto é, para consumo dos colaboradores na área social ou para doação.
71- Nenhum produto proveniente do carrinho de quebras pode ser consumido na área social sem antes ter sido registado como quebra ou sem ter sido obtida autorização da chefia da secção respectiva.
Da contestação
72- Aquando da entrega da primeira nota de culpa à Ré, ou seja em 12/01/2022, já os factos constantes no aditamento tinham ocorrido e eram do conhecimento do diretor de loja, que também é superior hierárquico da Autora, FF, a quem haviam sido participados pelo segurança KK.
73- A Ré, que trabalha na seção de frutas e legumes, nunca recebeu qualquer indicação, por parte da sua entidade patronal, relativamente à questão dos selos da campanha “Facas S...”, mormente da impossibilidade de usufruir da coleção.
74- A Ré não foi alertada, avisada ou sequer aconselhada no que concerne a tal assunto.
75- A Ré nunca solicitou qualquer selo à funcionária/colaboradora DD, funcionária da caixa, nunca tendo falado com a mesma relativamente a tal questão.
76- A Ré, no que concerne à campanha “facas S...”, falou com a sua colega, BB, questionando-a se, após as suas compras e entrega dos selos em virtude das mesmas, não quisesse tais selos, poderia ficar os mesmos.
77- A Ré, até ao dia 02/12/2021, data em que foi confrontada pelo Director de loja, desconhecia a proveniência dos selos que lhe foram entregues pela colega BB.
78- Em nenhum momento a Ré, enquanto funcionária da Autora, foi avisada que não podia, junto de pessoas conhecidas ou amigas, que tivessem realizado compras, obter selos para concluir a sua caderneta.
79- A R. estava, e está, convencida que nada praticava de ilegal ou indevido, tanto que colocava os selos que possuía nas respetivas cadernetas, à vista e à frente dos colegas e superiores.
80- Os objetos que estão no tal carrinho das quebras, identificados como tal, são produtos que são retirados dos locais de venda pelos operadores das respectivas secções, pois não foram comercializados no timing definido pela Autora, e, sendo produtos perecíveis, destinam-se a ser consumidos pelos funcionários ou a doação a instituições, ou então deitados literalmente ao lixo, pois não têm qualquer outra utilidade.
81- A partir do momento em que o produto (croissant) em apreço foi colocado no carrinho das quebras, o mesmo já não é vendável e destina-se a ser consumido pelos funcionários (que estão autorizados para tal) ou então destruído ou deitado ao lixo ou doado.
82- A Ré, à vista de todos, limitou-se a fazer o que outros funcionários da Autora fazem, consumindo algo na área social que, caso queiram, lhes está destinado, ou seja parte dos produtos remetidos para quebra.
83- A partir do momento em que tais produtos são qualificados como quebras por um colaborador e identificados como tal, são colocados num carrinho de quebras e não regressam, jamais, para venda e consumo dos clientes.”
E considerou factos controvertidos não provados:
“todos os demais alegados pelas partes que não constam do elenco dos factos provados ou se mostrem em contradição com os mesmos, designadamente, o alegado pela A. nos artigos 75º, 76º, 77º, 78º e 82º da petição inicial e o alegado pela R. no artigo 30º da contestação.
A demais matéria alegada reconduz-se a conclusões jurídicas e a juízos de valor e argumentativos.”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da impugnação da matéria de facto:

Estabelece o artigo 662.º n.º 1 do CPC, sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Dispõe, por seu lado, o artigo 640.º do CPC, cuja epígrafe é Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” (sublinhamos)

Decorre com clareza das normas citadas que ao recorrente cumpre discriminar os pontos de facto que a seu ver foram incorrectamente julgados, especificar os meios probatórios que impunham, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados, decisão diversa da recorrida, sendo que se se tratar de declarações/depoimentos gravados, incumbe ao recorrente indicar com precisão as passagens da gravação em que funda o recurso - sem prejuízo de poder, aí querendo,   proceder à transcrição   dos excertos das gravações que considere relevantes -, impondo-se-lhe ainda  que explicite a decisão que, no seu entender, deveria ter sido dada a cada um dos pontos de facto por si impugnados.

No caso em análise entendemos que, concatenando as conclusões do recurso com a sua motivação, a recorrente deu cumprimento aos assinalados ónus.

Entende a recorrente que o Tribunal a quo devia ter dado como não provado o ponto 77 do elenco dos factos provados (no recurso refere-se “ponto 77 da Contestação” mas manifestamente que se quer referir a matéria do n.º 77 dos factos provados, até porque a contestação não tem tantos artigos e a matéria em causa consta dos n.ºs 22.º e 23.º da contestação) e ter dado como provado o ponto 82 da PI, com base no depoimento da testemunha BB prestado no processo disciplinar e em julgamento, concluindo desse depoimento que a R. sabia que os selos que lhe eram entregues pela referida BB provinham da colaboradora DD e, por isso, existiu, de facto, um estratagema criado entre a R. e as colegas – BB e DD - para se apropriarem dos selos da campanha S....
Ora, do ponto 77 da matéria provada consta: “A Ré, até ao dia 02/12/2021, data em que foi confrontada pelo Director de loja, desconhecia a proveniência dos selos que lhe foram entregues pela colega BB.”
E do artigo 82 da PI, dado como não provado, consta: “A R., bem como as suas colegas de trabalho, criaram um estratagema que permitiu à R. se locupletar às custas da A., apropriando-se de selos que deveriam ter sido entregues aos clientes ou, então devolvidos à loja.”

Contendendo com a questão supra enunciada, na motivação da decisão recorrida consignou-se nomeadamente o seguinte:

“A testemunha FF declarou que exerce as funções de Director de Loja desde 11 de jan. 2021, na Loja de ... e explicou as regras da campanha de fidelização de clientes “Facas S...” (…) esclareceu que há um grupo Whatsapp das operadoras de caixa, do qual fazia parte a operadora de caixa DD, mas que a Ré não estava nesse grupo e que a Ré não teve acesso ao regulamento da campanha (…)”;

“A testemunha II, referiu que é trabalhadora da A. desde 2011, com a categoria actual de operadora principal, exercendo funções de chefe de caixas na Loja de ... da A. (…) referiu que a colaboradora da limpeza BB conhecia as regras da campanha como cliente, designadamente que só tinha direito ao selo e fizesse compras no valor de 20€ e que a Ré admitiu que era a BB que lhe dava os selos, mas nunca admitiu que era a DD que os dava à BB; mais esclareceu que fora de serviço nada impede que o cliente ofereça os selos a um colaborador, mas dentro do serviço e fardado não”;
“A testemunha BB referiu ser empregada de limpeza e exercer as suas funções na loja de ... da A.; relatou o modo como obtinha os selos da campanha S... para entregar à R., negando sempre que esta tivesse conhecimento de que era a operadora de caixa DD quem lhos dava, afirmando repetidamente que nunca disse à A. que era a DD quem dava os selos à depoente, assim como também nunca disse à DD que entregava os selos à A. [R.]”;
“A testemunha DD declarou que exerceu funções de operadora de caixa ao serviço da A. durante seis meses no ano de 2021, fazendo um part-time de 4 horas/dia, na loja de ..., sendo, simultaneamente empregada de limpeza na mesma loja ao serviço da empresa prestadora de tais serviços, realizando seis horas diárias de trabalho; afirmou que nunca tomou conhecimento das regras enunciadas na mensagem enviada via whatsapp relativamente à campanha de facas S..., que não leu tal mensagem porque chegava a casa cansada ao fim de 10 horas de trabalho e que nunca foi informada sobre o que fazer aos selos que os clientes rejeitavam ou não queriam, pelo que ficava com os selos que os clientes lhe davam, pensando que nada fazia de errado; referiu que dava os selos à sua colega BB, mas não sabia a quem esta os entregava posteriormente; afirmou que a R. nunca lhe pediu selos e apenas tomou conhecimento que a BB os entregava à Ré quando foi chamada pelo Director de Loja para a confrontar com o assunto”;
“Quanto aos factos não provados, não foi produzida prova suficientemente credível e fundada em razão de ciência bastante dos mesmos. Apesar da testemunha BB, no ponto 7 das declarações prestadas no processo disciplinar referir que a ora R., ali arguida, tinha conhecimento de que os selos lhe tinham sido dados pela colaboradora DD, o certo em que em juízo e sob juramento e insistentemente instada sobre a questão, manteve a versão contrária, no que foi corroborada pela testemunha DD e pela R. em depoimento de parte, o que não permite dar como provado o facto alegado pela A. de que existiu um estratagema criado entre a ora Ré e as testemunha BB e DD para se apropriarem dos selos da campanha S....”

A esta motivação, cujos segmentos que mais directamente implicam com a aludida matéria de facto procuramos identificar, contrapõe a recorrente, essencialmente, que:

“7. Com a Petição Inicial a aqui Recorrente juntou como doc. n.º ... os documentos que compõe o processo disciplinar que foi movido à Recorrida.
8. Consta desse referido doc. n.º ... o auto de declarações da Sra. BB que prestado em sede de instrução.
9. Nesse auto de declarações, confirmado e assinado pela referida Sra. BB, consta o seguinte:
Segundo a depoente, a arguida sabia que os selos que lhe eram entregues tinham sido dados pela ex-colaboradora CC à depoente.”
Ora,
10. Sobre estas declarações e concretamente sobre esta afirmação, a testemunha – Sra. BB - foi ouvida em sede de audiência de julgamento.
11. No seu depoimento, e quanto questionada pelo mandatário da R. sobre se a R. sabia que os selos que lhe eram entregues provinham da colaboradora DD, a testemunha BB começou por afirmar que “não” (depoimento gravado da testemunha BB, através do sistema “H@bilus Média Studio”, prestado entre as 15:13:59h e as 15:37:14h, e referente aos minutos 00:04:15 a 00:04:21):
“Adv. da Recorrida: A AA Sabia que a Dona BB tinha pedido à DD?
Testemunha BB: Não.”
12. No entanto, em instâncias da advogada da A., e após ter sido confrontada com o seu auto de declarações prestado em sede de instrução, questionada sobre a mesma questão, acabou a testemunha por afirmar que “sim”, ou seja, que a Recorrida sabia que os selos provinham da colaboradora DD (depoimento gravado da testemunha BB, através do sistema “H@bilus Média Studio”, prestado entre as 15:13:59h e as 15:37:14h, e referente aos minutos 00:18:38 a 00:20:42)
Adv. da Recorrente: Sra. LL é o que lhe digo, a Sra. AA, segundo o que disse em sede de instrução, está no seu auto, a Sra. AA sabia de si que os selos eram da DD, vinham da DD. Não estou a dizer se ela sabia ao princípio, se soube ao meio, não estou a dizer isso. Ela sabia.
A minha pergunta é: confirma isto ou vai continuar a dizer o que disse ao meu colega que ela não sabia?
Juiz: Tem de responder Senhora.
Testemunha BB: Sim sim, eu tenho que responder
Juiz: Está a ser confrontada no seu depoimento, responda à pergunta.
Testemunha BB: teve conhecimento mas não foi no princípio, teve conhecimento que a DD mos dava.
Adv. da Recorrente: Mas enquanto lhe dava os selos, ela foi tendo conhecimento que os selos vinham da DD então?
Testemunha BB: teve conhecimento mas não foi no princípio.
Adv. da Recorrente: não interessa, mas teve conhecimento não teve?
Testemunha BB: teve conhecimento que mos dava e eu dava a ela…
Adv. da Recorrente: E depois de ela ter conhecimento, continuou a dar
os selos?
Testemunha BB: Depois continuei a dar mas já não eram os da DD.
Adv. da Recorrente: Ai já não eram da DD?
Testemunha BB: Não. A DD deu alguns, mas não foram todos.
Adv. da Recorrente: Deu quantos a DD então? Quantos selos a DD deu à AA?
Testemunha BB: Não sei.
Adv. da Recorrente: Deu todos os selos da DD à AA?
Testemunha BB: Não devia ser todos.
Adv. da Recorrente: E como é que sabe quais eram os selos da AA e das outras pessoas que lhe davam? Da DD desculpe, e das outras pessoas que lhe davam?
Testemunha BB: Eu tive muitos que me davam a minha família e os que apanhava dos clientes que me davam nas caixas.
Adv. da Recorrente: Então resumidamente e para terminarmos aqui Sra. BB…
Testemunha BB: Sim
Adv. da Recorrente: A Sra. AA sabia que os selos vinham da DD, certo? Conforme disse em sede de instrução?
Testemunha BB: Sim.
Adv. da Recorrente: Senhora Doutora não tenho mais nada obrigada.”
Ou seja,
13. Num primeiro momento do seu depoimento, a testemunha BB ainda procurou tentar ludibriar o tribunal,
14. No entanto, quando confrontada, a mesma acabou por afirmar aquilo que já havia afirmado em sede de instrução: que a R. sabia que os selos que lhe eram entregues tinham sido dados pela colaboradora DD.
15. Pelo que, mal andou o Tribunal a quo quando decidiu “Apesar da testemunha BB, no ponto 7 das declarações prestadas no processo disciplinar referir que a ora R., ali arguida, tinha conhecimento de que os selos lhe tinham sido dados pela colaboradora DD, o certo em que em juízo e sob juramento e insistentemente instada sobre a questão, manteve a versão contrária, no que foi corroborada pela testemunha DD e pela R. em depoimento de parte, o que não permite dar como provado o facto alegado pela A. de que existiu um estratagema criado entre a ora Ré e as testemunha BB e DD para se apropriarem dos selos da campanha S....”
16. Na verdade, ainda que a testemunha BB tenha inicialmente começado por negar que a R. soubesse que os selos provinham da colaboradora DD, a verdade é que a mesma testemunha acabou por confirmar e admitir que a R. sabia.
17. Pelo que, e salvo o devido respeito, jamais poderá o Tribunal a quo concluir o referido no ponto 12 das presentes alegações.
18. Aliás, após ouvirmos todo o depoimento da testemunha BB, podemos retirar duas conclusões: 1.º A R. sabia que os selos que lhe eram entregues pela Sra. BB provinham da colaboradora DD e, por isso; 2.º existiu, de facto, um estratagema criado entre a R. e as colegas – BB e DD - para se apropriarem dos selos da campanha S....
19. Assim, e face ao exposto, deverá ser dado como provado o ponto 82 da Petição Inicial, e ser dado como não provado o ponto 77, referente à Contestação.”

A recorrente não tem razão na sua pretensão.
Tendo procedido à audição integral do depoimento da testemunha BB, não detectamos qualquer razão para divergir do entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido.
Aliás, nem os excertos desse depoimento trazidos à colação pela recorrente, ainda que só por si sopesados, sustentam, muito menos impõem, a pretendida alteração da matéria de facto. 
Com efeito, a testemunha disse que a Sr. AA/R. teve conhecimento que a DD lhe dava (lhe deu) os selos, “mas não foi no princípio”.
É certo que depois de colocar à testemunha várias questões sobre a matéria, a Exm.ª Advogada da recorrente rematou o interrogatório perguntando-lhe: “A Sra. AA sabia que os selos vinham da DD, certo? Conforme disse em sede de instrução?”, tendo a testemunha BB respondido, “Sim”.
Mas é igualmente certo que no decurso desse interrogatório da testemunha, a Sra. Advogada, àquela aludida primeira resposta da testemunha BB “teve conhecimento mas não foi no princípio” retorquiu, “não interessa, mas teve conhecimento não teve?”, sendo certo que no início da inquirição já tinha dito “Sra. LL é o que lhe digo, a Sra. AA, segundo o que disse em sede de instrução, está no seu auto, a Sra. AA sabia de si que os selos eram da DD, vinham da DD. Não estou a dizer se ela sabia ao princípio, se soube ao meio, não estou a dizer isso. Ela sabia.”.
E (independentemente de outras considerações, como a inexistência de contraditório) no ponto 7 das declarações da testemunha constantes do auto de fls 73 (numerada como doc. ...29) que faz parte do doc. ... da P.I. - “Segundo a depoente, a arguida sabia que os selos que lhe eram entregues tinham sido dados pela ex-colaboradora CC à depoente.” – nada de útil acrescentam ao que a testemunha declarou em audiência de julgamento, nomeadamente não esclarecem em que momento a aqui ré terá sabido que os selos, ou parte dos selos, que a colega de trabalho BB lhe deu tinham sido dados a esta pela outra colega referida, DD.
E passando-se assim as coisas – designadamente o contexto em que foi dada essa resposta afirmativa, v.g. o ter sido dito à testemunha que não interessava o momento em que a ré passou a saber que os selos que lhe eram dados pela testemunha provinham da colega de trabalho DD -, a que momento temporal se estava a testemunha BB a referir quando deu aquela resposta de “Sim”?
Não era certamente ao início da situação, quando entregou à ré o primeiro ou os primeiros selos que a colega DD lhe tinha, por sua vez, dado, pois que disse expressamente que a ré não soube disso no início (como disse, também no decurso do seu depoimento, embora não conste dos excertos transcritos no recurso, que “só soube no fim”, o que disse ter ocorrido, aliás, igualmente com a o conhecimento da DD de que a testemunha dava os selos à ré).
Em consonância com este depoimento, referiu também a testemunha DD que a AA/ré nunca lhe pediu selos, e que a BB nunca lhe disse que dava os selos, que a testemunha (DD) dava a esta, à ré, coisa que só soube na reunião que tiveram com o Director de Loja.

Assim, nenhum fundamento existe para considerar como não provado o ponto 77 da matéria provada - onde consta: “A Ré, até ao dia 02/12/2021, data em que foi confrontada pelo Director de loja, desconhecia a proveniência dos selos que lhe foram entregues pela colega BB.” – pois que, afigurando tratar-se de testemunhas idóneas, analisada a prova, de acordo com a normalidade das coisas e as regras da experiência, é legítimo formar convicção no sentido de que foi realmente isso que aconteceu.

E resulta concomitantemente do que acima se disse que nenhuma da prova que a recorrente trouxe à liça para sustentar a pedida alteração da matéria de facto logra convencer que a R. e as suas mencionadas colegas de trabalho “criaram um estratagema” que permitiu à R. se locupletar às custas da A., apropriando-se de selos que deveriam ter sido entregues aos clientes ou então devolvidos à loja.

Da errada aplicação do Direito aos factos provados:

Está em causa, em suma, saber se existe justa causa para a autora despedir a ré.

Na decisão recorrida, após se fazer o enquadramento teórico da questão, citando-se os preceitos legais pertinentes e bem assim doutrina e legislação a propósito, e equacionar os factos provados com tais normas e ensinamentos, escreveu-se a concluir “Ora, para que se considere preenchido o conceito de justa causa não basta a verificação do comportamento grave e culposo. É necessário que, pelas suas consequências, torne praticamente impossível a manutenção do vínculo. Essa impossibilidade mede-se por um padrão objectivo de não exigibilidade, isto é, a verificação da justa causa pressupõe que não seja exigível ao empregador que prossiga na relação laboral. Trata-se de um corolário do princípio constitucional da segurança e da estabilidade do emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa estabelecidos no art. 53º da Constituição. Ora, os factos apurados, numa ponderação global do contexto em que ocorreram, não justificam a conclusão de que aquele concreto comportamento da A. comprometeu irremediavelmente a relação de confiança que deve existir entre um trabalhador e a sua entidade patronal, em termos que levam a considerar inexigível a manutenção da relação de trabalho por parte desta. O princípio da proporcionalidade estabelecido no art. 330º nº 1 do Código do Trabalho impunha que a empregadora tivesse optado por aplicar uma sanção disciplinar conservadora do vínculo, que se revelaria suficiente para repor a regular execução da prestação laboral da trabalhadora e o respeito devido à disciplina do trabalho, posto em crise pela actuação da A.
Conclui-se, pois, que não estão preenchidos todos os requisitos do conceito de justa causa e, logo, pela insubsistência da pretensão da A. no sentido de proceder ao despedimento da Ré por facto imputável a esta.

Tendo em consideração o que a propósito discorreu o Tribunal recorrido, ao equacionar os factos apurados com as regras legais aplicáveis, e que que merece a nossa inteira concordância, v.g. que:
Quanto aos factos praticados pela R. relativamente à colecção de selos:
 - “(…) que a R., que trabalha na seção de frutas e legumes, nunca recebeu qualquer indicação, por parte da sua entidade patronal, relativamente à questão dos selos da campanha “Facas S...”, mormente da impossibilidade de usufruir da coleção, que em nenhum momento a Ré, enquanto funcionária da Autora, foi avisada que não podia, junto de pessoas conhecidas ou amigas, que tivessem realizado compras, obter selos para concluir a sua caderneta (…)”
- “(…) que a R. estava, e está, convencida que nada praticava de ilegal ou indevido, tanto que colocava os selos que possuía nas respetivas cadernetas, à vista e à frente dos colegas e superiores (…)”
- “É certo que a Ré, como qualquer colaborador da A., estava proibido de receber gratificações de clientes e que a oferta dos selos poderia incluir-se nessa categoria. Contudo, essa proibição está limitada ao tempo e local de trabalho e não consta da acusação/nota de culpa e relatório final que a R. recebesse os selos no local e tempo de trabalho.”
Relativamente aos factos praticados pela R. relativos à retirada e consumo de um croissant:
(…) os factos revelam uma infracção de reduzida gravidade e uma culpa diminuta da trabalhadora, a par de não se ter provado qualquer prejuízo patrimonial efectivo para a empregadora A. Com efeito, provou-se que a R. deixou o código de barras com o preço do conjunto dos croissants que estavam na embalagem, que os objetos que estão no carrinho das quebras, identificados como tal, são produtos que são retirados dos locais de venda pelos operadores das respectivas secções, pois não foram comercializados no timing definido pela Autora, e, sendo produtos perecíveis, destinam-se a ser consumidos pelos funcionários ou a doação a instituições, ou então deitados literalmente ao lixo, pois não têm qualquer outra utilidade, que a partir do momento em que o produto (croissant) em apreço foi colocado no carrinho das quebras, o mesmo já não é vendável e destina-se a ser consumido pelos funcionários (que estão autorizados para tal) ou então destruído ou deitado ao lixo ou doado, que a Ré, à vista de todos, limitou-se a fazer o que outros funcionários da Autora fazem, consumindo algo na área social que, caso queiram, lhes está destinado, ou seja parte dos produtos remetidos para quebra, que a partir do momento em que tais produtos são qualificados como quebras por um colaborador e identificados como tal, são colocados num carrinho de quebras e não regressam, jamais, para venda e consumo dos clientes. Estas circunstâncias funcionam como atenuantes da gravidade dos factos e da culpa da trabalhadora Ré.
O erro da Ré foi não ter solicitado autorização à chefia para consumir o croissant antes de ser registada a respectiva quebra. Não existe, assim, qualquer animus de apropriação de coisa alheia por parte da A., mas tão só uma incorrecção da A. no aproveitamento de uma vantagem normalmente concedida pela A. aos seus trabalhadores.
Assim sendo, punir um mero erro de procedimento da R. com a sanção máxima de despedimento, sem que outras circunstâncias agravantes se tivessem provado, mostra-se desproporcionado, já que bastaria uma sanção conservatória que inculcasse na trabalhadora a necessidade do estrito cumprimento das regras impostas pela empregadora para restabelecer a normalidade da relação laboral e a disciplina do trabalho, de modo a repor a confiança entre as partes.
Aliás, sendo este comportamento da R. do conhecimento da A. aquando envio da primeira nota de culpa, a sua não inclusão nesta peça não deixa de ser sintomática de que a empregadora A. não o considerou revestido de gravidade suficiente para sustentar o despedimento.”
a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, de que não existe justa causa para despedir a ré, é acertada.
Efectivamente, e quanto à factualidade respeitante ao recebimento de selos/apresentação de cadernetas para reclamar os prémios, afigura-se-nos também correcto o entendimento de que “não se vislumbra como possa ser assacada à Ré a prática de um comportamento culposo”, sendo que só um comportamento culposo, censurável, pode (eventualmente) constituir justa causa de despedimento – cf. n.º 1 do art. 351.º do CT.
Não tanto pela fundamentação do Tribunal recorrido ao consignar que “É certo que a Ré, como qualquer colaborador da A., estava proibido de receber gratificações de clientes e que a oferta dos selos poderia incluir-se nessa categoria. Contudo, essa proibição está limitada ao tempo e local de trabalho e não consta da acusação/nota de culpa e relatório final que a R. recebesse os selos no local e tempo de trabalho.”, como, principalmente, entendemos que, não estando a recorrida a receber qualquer prémio de algum cliente – antes, o que recebia (e não directamente deles, clientes) era um meio para reclamar da recorrente o prémio/oferta – é compreensível que a recorrida estivesse genuinamente convencida que nada de errado havia em receber os selos que os clientes (tendo a eles direito) não queriam, estado de espírito que de resto se encontra provado (cf. ponto 79 dos factos provados).
Frisa-se que a recorrida trabalhava/trabalha no sector das frutas e legumes, não nas caixas, nunca recebeu qualquer indicação, por parte da sua entidade patronal, relativamente à questão dos selos da campanha “Facas S...”, mormente da impossibilidade de usufruir da coleção, nem foi alertada, avisada ou aconselhada no que concerne a tal assunto, v.g. que não podia, junto de pessoas conhecidas ou amigas, que tivessem realizado compras, obter selos para concluir a sua caderneta (cf. factos 73, 74 e 78).
Mais cabe relembrar aqui que a recorrida, até ao dia 02.12.2021, data em que foi confrontada pelo Director de Loja, desconhecia a proveniência dos selos que lhe foram entregues pela trabalhadora da limpeza BB (facto 77).

Mas, ainda que se considere que ambos os blocos de factos (factos reportados aos selos/cadernetas e factos referentes ao consumo de um croissant) integram infracções disciplinares, sempre se trataria de infrações de escassa gravidade, tanto na sua execução como nas suas consequências.

Vejamos.
 
A ré com a apresentação das cadernetas em causa (3 cadernetas com 25 selos cada) poderia em princípio obter da autora (não constando dos factos provados que tais produtos lhe tenham sido efectivamente entregues) produtos de oferta (facas) despendendo apenas um valor de € 2,97 (€ 0,99 X 3), quando de outro modo para obter da autora os mesmos produtos, no âmbito da mesma campanha, teria de despender mais € 27,00, apresentando cadernetas com apenas 5 selos cada uma (cf. factos 13/25, 15 e 19).

O prejuízo potencial da autora era, portanto, desta ordem de grandeza, e na consideração que os clientes que tinham direito aos selos não conseguiam preencher as cadernetas com o número mínimo de selos (5) ou então prescindiam – como é inerente ao facto de os recusarem e/ou darem – de reclamar as respectivas ofertas (posto que não está em causa a utilização pela autora de selos sem a contrapartida de terem sido efectuadas as compras correspondentes).

Por outro lado, o consumo pela ré de um croissant que se encontrava no carrinho das quebras nenhum prejuízo causou à ré, pela simples razão de que não era vendável (cf. n.º 80 dos factos provados).

Donde, entendemos absolutamente infundada a afirmação da recorrente de que a recorrida com a sua actuação violou o disposto na al. e) do n.º 2 do art. 351.º do CT: Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa.

Como é temerário concluir, como faz a recorrente, que a recorrida violou os deveres previstos no artigo 128.º/, al.s a) - Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade – e c) - Realizar o trabalho com zelo e diligência.

E igualmente excessivas e destituídas de substrato factual nos parecem as conclusões da recorrente de que a recorrida desobedeceu de forma ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores - sem prejuízo de, no que tange ao consumo do croissant, admitirmos que a recorrida contrariou as regras instituídas (pontos 70 e 71 da matéria de facto), conquanto se tenha também apurado, com relevância, que nisto a recorrida “limitou-se a fazer o que outros funcionários da Autora fazem” (ponto 82 dos factos provados) - e, bem assim, de que mostrou desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afeta (cf. al.s a) e d) do mesmo número 2 do artigo 351.º, e al. e) do n.º 1 do art. 128.º, do CT, normas que a recorrente diz terem sido também violadas pela recorrida).

A recorrente, é certo, enfatiza que com o seu comportamento a recorrida violou o dever de lealdade e de honestidade para com a sua entidade empregadora (art. 128.º/1 f) do CT), colocando irremediavelmente em causa a confiança que a recorrente vinha colocando na recorrida.

Vale aqui mais uma vez recordar que a recorrida não exerce funções de chefia ou outras que pela sua natureza impliquem uma particular relação de confiança.

E se é certo que se vem defendendo que a honestidade na relação laboral é insusceptível de gradações, precisamente porque qualquer comportamento desonesto é apto a quebrar a confiança que o empregador tem no trabalhador (ou do trabalhador no empregador), não menos acertado se afigura que o preenchimento desse conceito tem de efectuar-se com um mínimo de objectividade e segundo critérios de razoabilidade.
No caso, e reportando aos factos efectivamente apurados, não nos parece de reputar o comportamento da recorrida – na situação respeitante aos selos, que é a que aqui importa considerar - como desonesto ou desleal.
A recorrida actuou no convencimento de que estava a agir correctamente.

Note-se que mesmo que se tivesse provado que a recorrida sabia que os selos, ou alguns deles, que a dita BB lhe deu provinham da outra falada trabalhadora da recorrente, DD (operadora de caixa), isso de maneira nenhuma permitiria concluir que as três se conluiaram, urdindo um estratagema para a recorrida se locupletar à custa da recorrente. 

Ora, e repetindo o que se disse supra, mesmo que se aceitasse que ambos os blocos de factos (factos reportados aos selos/cadernetas e factos referentes ao consumo de um croissant) integram infracções disciplinares (e não apenas o segundo grupo de factos como, corroborando a posição da 1.ª instância, entendemos), nenhuma delas, nem sequer olhadas no seu conjunto, pela sua gravidade e consequências, tornam imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

Quanto ao consumo do croissant, afora a recorrida ter quebrado o procedimento instituído pela recorrente ao não solicitar autorização à chefia para consumir o croissant antes de ser registada a respectiva quebra, não fez nada que outros colegas de trabalho não fizessem (“limitou-se a fazer o que outros funcionários da Autora fazem”), e não causou qualquer prejuízo à recorrente.

Aliás – e como se notou na decisão recorrida, quanto aos factos atinentes ao consumo de um croissant pela recorrida -, “sendo este comportamento da R. do conhecimento da A. aquando envio da primeira nota de culpa, a sua não inclusão nesta peça não deixa de ser sintomática de que a empregadora A. não o considerou revestido de gravidade suficiente para sustentar o despedimento.” [veja-se que a NC se encontra assinada pelo Director de Loja FF, precisamente a mesma pessoa que tomou conhecimentos dos factos – cf. número 72 dos factos provados].

Se alguma sanção se justificava aplicar à recorrida, seguramente que seria uma sanção muito menos grave, desde logo conservatória do vínculo contratual.

Como doutamente se escreveu no sumário do Ac. do STJ de 12.10.2022,[1]- «(…) O n.º 1 do art.º 351º do CT, no segmento: “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”, tem de ser interpretado em conformidade com o princípio constitucional da proporcionalidade pelo que só pode considerar-se justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que não deva ser punido com sanção menos grave.»

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 11 de Maio de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor


[1] Proc. 766/20.1T8BRR.L1.S1, Francisco Marcolino, www.dgsi.pt