Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
622//14.2GBBCL.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ACTUAÇÃO DE MILITARES DA GNR
ARGUIDO ALGEMADO
VIOLÊNCIA EXECRCIDA SOBRE ARGUIDOS
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) O esbracejar de um detido que está prestes a ser algemado e a exaltação da sua companheira, acompanhada de empurrões e puxões, na tentativa de obstar a tal detenção, não são idóneos a atingir a liberdade de acção dos militares da GNR, nem constituem acções suficientemente constrangedoras susceptíveis de levar aqueles agentes de autoridade a deixarem de cumprirem o seu dever de agir.
II) O comportamento dos arguidos não constitui elemento objectivo integrador do ilícito do artº 347, nº 1, do CP, ou seja, não integra o conceito de violência a que se reporta o preceito incriminador por não ser idóneo a intimidar, dificultar ou impedir de forma significativa a capacidade de actuação daqueles militares na situação em causa.
III) Por conseguinte, uma vez que a violência exercida pelos arguidos não tem aptidão para integar a violência exigida para o preenchimento do citado ilícito e coacção sobre funcionário de que vinham acusados, impõe-se manter o juízo absolutório formulado na decisão recorrida.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 622/14.2GBBCL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Vila Verde – Instância Local – Secção Criminal – Juiz 1, realizado o julgamento, foi proferida a sentença de fls. 219 vº a 227 vº com o dispositivo seguinte:
«Pelo exposto, o Tribunal decide:
1.º Absolver António F. e Carla A. da prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do Código Penal;
2.º Condenar António F. pela prática de um crime de condução ilegal, previsto e punido pelos artigos 3.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de janeiro, conjugado com os artigos 121.º n.º 1, 122.º n.º 1 e 124.º n.º 1 do Código da Estrada na pena de 6 (seis) meses de prisão;
2.º Condenar o arguido António F. pela prática do crime de condução perigosa, previsto e punido pelos artigos 291.º n.º 1 b) e 69.º a) do Código Penal na pena de 7 (sete) meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir por sete meses;
3.º Em cúmulo jurídico de penas condenar o arguido António F. na pena única de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano;
4.º Condenar António F. pela prática da contraordenação prevista a punida pelo artigo 4.º n.º 1 e n.º 3, 146.º l) e 147.º n.º 1 e n.º 2 do Código da Estrada na coima de € 500,00 (quinhentos euros) e decretar a apreensão do veículo de matrícula SA-17-58 por dois meses.
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Mais se condena o Arguido, no pagamento de taxa de justiça no valor de três U.C., e dos respetivos encargos (artigo 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais).
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Após trânsito desta decisão, remeta boletim ao registo criminal.
Comunique ao I.M.T./A.N.S.R.
Solicite à Guarda Nacional Republicana que proceda à apreensão do veículo SA-17-58 que se encontra na morada do arguido, nomeando-se fiel depositário o titular do documento de identificação do veículo.
Notifique.»
2. Inconformado com a parte absolutória da sentença, relativa ao imputado crime de resistência e coacção sobre funcionário, recorreu o Ministério Público, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O presente recurso limita-se à discordância quanto ao decidido na sentença proferida nos presentes autos na parte em que absolveu a arguida Carla A. e o arguido António F., da prática, por cada um deles, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, n.º 1 do Código Penal.
2. Entendeu o Tribunal a quo que a actuação dos arguidos não atingiu o grau de violência exigido pelo legislador na previsão que faz do artigo 347º do Código Penal, fundamentando a sua conclusão no facto de a conduta dos arguidos não lograrem impedir a actuação dos militares da GNR, mais acrescentando que “a conduta dos arguidos causou embaraço na atuação dos militares, é verdade, contudo não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os atos funcionais dos mesmos, pois os militares concretizaram a detenção do arguido.”
3. Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que o Tribunal a quo incorreu em erro na subsunção jurídica que fez dos factos e das concretas circunstâncias em que os mesmos ocorreram ao direito aplicável, nomeadamente, ao conceito de violência exigido pelo artigo 347º, n.º 1 do Código Penal, violando, desta forma o artigo 347º, n.º 1 do Código Penal, ao absolver os arguidos do crime de resistência e coacção de que os mesmos vinham acusados.
4. Com a incriminação prevista no n.º 1 do artigo 347º do Código penal pretendeu o legislador proteger a autonomia intencional do Estado, pretendendo evitar que não funcionários coloquem entraves à livre execução das intenções estaduais, tornando-as ineficazes.
5. Estamos aqui, conforme a doutrina e jurisprudência têm vindo a afirmar, perante um crime de perigo o que significa que para sua consumação é tão só exigida a prática da acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação do funcionário,
6. não se exigindo, contudo, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, que o funcionário não consiga, de todo, levar a cabo a sua função, bastando que o agente do crime se oponha a que a autoridade pública exerça as suas funções, utilizando para tal violência ou ameaça grave.
7. Efectivamente, não é elemento típico do crime de resistência e coacção sobre funcionário que o arguido tenha conseguido os seus intentos, não sendo necessária a efectiva lesão do bem jurídico que lhes está subjacente, mas apenas a possibilidade ou a probabilidade da correspondente conduta típica vir a afectar os interesses protegidos.
8. Pelo que o tipo de ilícito penal em causa nos autos não se configura como um crime de resultado, mas tão só de mera actividade.
9. Um dos elementos do tipo, e aquele que nestes autos está em causa, é a actuação violenta do agente.
10. A jurisprudência e a doutrina têm entendido que a violência exigida pelo referido normativo deve ser definida nos mesmos termos em que o é no âmbito do crime de coacção, sendo que se deverá entender por violência todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, contudo, não se exige que à adequação do meio se siga um comportamento coagido,
11. pelo que se pune tanto a resistência eficaz como a ineficaz (desde que idónea).
12. De notar que, a violência não terá de ser grave nem de configurar a prática de um ilícito contra a integridade física, bastando consistir “num acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir, a impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário ou equiparado - vide Ac. R.P. de 1995/Mar./29, in CJ II/232 (JusNet 10808/1995); Ac. R. L. 1992/Fev./28 e 1991/Jun./01, in, respectivamente CJ I/188, III/186.- in Ac RP 22/2/2006 (JusNet 823/2006)” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/12/2011 (in www.dgsi.pt, processo n.º 76/11.5GCPRG.P1).
13. A violência tanto pode ser física como psicológica, importando apenas que tenha a virtualidade suficiente para intimidar o visado e limitá-lo no exercício da sua liberdade pessoal, devendo ser exercida de modo sério e com a intensidade necessária para intimidar, atendendo-se, neste contexto, claro está às “sobre-capacidades” habitual dos agentes de autoridade em comparação com as habituais “sub-capacidades” do agente do ilícito.
14. Ora, entendemos que em face do que resultou da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento encontram-se totalmente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de resistência e coacção, previsto e punido pelo artigo 347º, n.º 1 do Código Penal, sendo que, entendemos que a violência empregue pelos arguidos se mostra idónea, suficiente e adequada a dificultar, como de facto sucedeu e se deu como provado, a actuação legítima dos militares da GNR André C. e Carlos S..
15. Efectivamente, da matéria dada como provada decorre que os arguidos procuraram evitar a sua detenção, dificultando a actuação dos militares da GNR, sendo o comportamento da arguida e do arguido, conforme descrito na motivação da matéria de facto que decorre das declarações dos militares da GNR ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento, é adequado a pelo menos dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos militares da GNR.
16. Disso mesmo é evidência o facto de ter sido necessária a intervenção de ambos os militares para concretizar a detenção do arguido António, em face da actuação quer do arguido António quer da arguida Carla.
17. Ambos os militares da GNR também tiveram necessidade de intervir na tentativa de deterem e algemarem a arguida, tendo estes tentado durante largos minutos procederem à sua imobilização e algemagem sem êxito.
18. Daqui decorre que, na nossa modéstia opinião, os factos provados, e as circunstâncias e modo como os mesmos ocorreram, permitem concluir que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de resistência e coacção que foi imputado aos arguidos, mostrando-se verificado o conceito de violência legalmente exigido e que temos vindo a definir.
19. Na verdade, a violência usada pelos arguidos foi idónea a dificultar a actuação dos militares da GNR.
20. Como referimos a violência não tem de ser grave nem de consistir em agressão física, bastando que exista uma simples hostilidade, idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima das autoridades, tendo o comportamento dos arguidos sido idóneo e adequado a perturbar a liberdade de acção e actuação dos militares da GNR André C. e Carlos S..
21. Assim, e em consequência, deverá a sentença recorrida ser, na parte em que absolveu os arguidos António F. e Carla A., revogada e substituída por outra que os condene pela prática, por cada um deles, de um crime de resistência e coacção, previsto e punido pelo artigo 347, n.º 1 do Código Penal.
Termos em que deverá a sentença proferida nos autos que absolveu os arguidos António F. e Carla A. pela prática de um crime de resistência e coacção, ser revogada e substituída por outra que os condene pela prática, por cada um deles, de um crime de resistência e coacção, previsto e punido pelo artigo 347, n.º 1 do Código Penal
Assim decidindo, V. Ex.cias farão a já costumada JUSTIÇA.»
3. Os arguidos António F. e Carla A. responderam ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.
4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal( - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem. ), emitiu parecer no sentido de que, face aos destinatários da pretensa coacção – 2 militares da GNR, por norma com especiais capacidades de suportar pressões e munidos de instrumento de defesa –, o mero esbracejar de um detido prestes a ser algemado ou os empurrões e puxões da sua companheira, na vã tentativa de evitar aquela detenção, não se mostram, de facto, idóneos à compressão da capacidade daqueles militares em consumar a detenção, pelo que não merece censura o decidido.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«1. Os arguidos António F. e Carla A. vivem em união de facto há vários anos.
2. No dia 2 de julho de 2014, os guardas da GNR André F. e Carlos A. circulavam num jipe da GNR em missão de patrulha de ocorrências.
3. Cerca das 13 horas e 20 minutos, no cruzamento da E. N. n.º 205, em Cabanelas, Cervães, Vila Verde, aqueles militares da GNR aperceberam-se que por ali também seguiam os arguidos no veículo automóvel ligeiro de marca Fiat, modelo Uno, matrícula …, com o arguido António ao volante.
4. Por ser do seu conhecimento que o arguido António não possui carta de condução, tendo, de resto, corrido termos neste Tribunal o Processo n.º 208/13.9GAVVD pela prática, por tal indivíduo, de um crime de condução sem habilitação legal, o militar da GNR que conduzia o jipe, André F., acionou os sinais sonoros e luminosos da viatura, ao mesmo tempo que deu ordem gestual para parar o automóvel ligeiro.
5. Apesar de bem se ter apercebido que os sinais executados pelo guarda da GNR lhe era dirigido e de bem saber que lhes devia obediência, por se tratar de agentes de autoridade no exercício das suas funções, o arguido não acatou tais ordens e, ao invés, imprimiu velocidade ao veículo que conduzia e iniciou uma fuga em grande aceleração.
6. Os guardas da GNR seguiram no seu alcance, tendo reiterado os sinais sonoros, luminosos e gestuais para que o arguido imobilizasse o veículo.
7. Porém, o arguido António ignorou todos os sinais feitos pelos militares da GNR e imprimiu ao veículo por si conduzido uma velocidade superior a 70 km/h, manifestamente desadequada, porque excessiva, face às caraterísticas da via (no interior de uma localidade) e à intensidade do trânsito que por ali circulava, impossibilitando a imobilização do veículo no espaço livre e visível à sua frente.
8. No decurso da perseguição o arguido António efetuou as seguintes manobras:
- Na Rua do Rio, ao chegar ao entroncamento da Estrada Nacional n.º 205, o arguido não obedeceu ao STOP (sinal de trânsito B2) ali existente, e atravessou aquela via prioritária sem ter imobilizado o veículo nem tão pouco abrandado a marcha;
- Entrou na Avenida … em sentido oposto ao legalmente estabelecido e efetuou uma manobra de ultrapassagem a um veículo numa passadeira assinalada para a travessia de peões;
- Iniciou uma manobra de ultrapassagem a outro veículo antes de uma curva, sem se ter assegurado dos veículos que circulavam em sentido oposto, obrigando alguns deles a travar bruscamente para evitar a colisão com a sua viatura;
- Ainda na mesma Avenida, iniciou uma nova manobra de ultrapassagem a um veículo imediatamente antes de uma curva, sem se ter assegurado dos veículos que circulavam em sentido oposto, obrigando uma viatura a travar bruscamente e a desviar-se para a berma direita como manobra de recurso para evitar a colisão com a sua viatura;
- Ainda na Avenida .., efetuou uma manobra de ultrapassagem a um veículo numa passadeira assinalada para a travessia de peões;
- Mudou de direção à sua direita, entrando na Rua … sem sinalizar a manobra;
-mudou de direção à sua esquerda, entrando na Rua S… sem sinalizar a manobra.
9. A perseguição manteve-se durante cerca de 4 Km, não tendo o arguido logrado despistar o veículo conduzido pelos Guardas da GNR, como era seu intento.
10. Ao chegar à Rua … Vila Verde, o arguido imobilizou o veículo na berma da estrada, tendo o Guarda André C. .“atravessado” o jipe lateralmente em relação ao veículo conduzido pelo arguido António.
11. Prontamente, o Guarda André C. abeirou-se do Fiat Uno e abriu a porta do condutor, no sentido de deter o arguido.
12. Nessa altura, aquele agente de autoridade puxou o arguido para o exterior do Fiat e imobilizou-o no solo, questionando-o sobre a razão do seu comportamento.
13. O arguido respondeu que tinha encetado a fuga por não possuir carta de condução, tendo-lhe sido dada voz de detenção.
14. Porém, o arguido António resistiu à detenção, esbracejando, razão pela qual o Guarda André C. teve necessidade de o algemar.
15. Nessa altura, a arguida Carla saiu do Fiat aos gritos, dizendo que ninguém levava o companheiro preso.
16. De imediato, a arguida abeirou-se do Guarda André C., empurrou-o e puxou-lhe os braços, tentando impedi-lo de consumar a detenção do arguido António.
17. Foi, então, a arguida informada que o companheiro iria ser conduzido ao posto da GNR e que se a mesma persistisse em tal comportamento seria detida.
18. Porém, a arguida continuou a empurrar os militares da GNR.
19. Nessa altura, o Guarda Carlso S. deu voz de detenção à arguida Carla, ao mesmo tempo que procurava manietá-la.
20. Acontece que, nessa altura, acorreram ao local os pais do arguido António acompanhados da neta ainda menor que começou a chorar, tendo os militares da GNR optado por não deter a arguida.
21. Os arguidos bem se aperceberam que estavam perante militares da Guarda Nacional Republicana, devidamente fardados, cuja intervenção se processou no exercício das suas funções.
22. Ao agirem da forma descrita, atuaram os arguidos com o propósito de constrangerem aqueles militares, de molde a evitar que eles os detivessem e identificassem e, concomitantemente, evitar que lhes viesse a ser instaurado o respetivo procedimento criminal e contraordenacional.
23. Sabia ainda o arguido António que não lhe era permitido conduzir veículos automóveis na via pública em tais circunstâncias, por não ser possuidor de carta de condução que legitimasse tal conduta.
24. Sabia igualmente que a condução por si imprimida ao veículo durante a fuga era apta a causar lesões corporais graves aos restantes utentes da via.
25. Na verdade, a velocidade que imprimiu à viatura – muito superior ao limite máximo legalmente permitido – o modo como ultrapassou alguns veículos – em curvas e em passadeiras para peões – e a forma como mudou de direção – desrespeitando um sinal de paragem obrigatória e não assinalando a manobra com o respetivo sinal – colocaram em perigo os condutores e passageiros dos veículos que ultrapassou e com que se cruzou, bem como os peões que por ali caminhavam.
26. Sabia igualmente o arguido que devia obediência à ordem de paragem que lhe foi sucessivamente dada pelos agentes de autoridade.
27. Ambos os arguidos agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, não obstante saberem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
28.Os arguidos residem, com uma filha menor, em casa arrendada pela qual pagam € 300,00 de renda, os arguidos auferem mensalmente cerca de € 530,00. Possuem o veículo identificado nos autos, bem como duas motas, mas não circulam habitualmente e um outro veículo ligeiro de marca … modelo Escort de 1996. Pagam mensalmente cerca de € 65,00 de prestação ao banco e o arguido deve cerca de € 3 000,00 às Finanças. A arguida tem o 9.º ano de escolaridade e o arguido o 7.º ano.»

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):
«1. Obrigando os veículos que seguiam nessa estrada nacional a travar bruscamente para evitarem colidir com o veículo por si conduzido;
2. Todavia, o arguido António destravou o veículo e fê-lo “descair” para a retaguarda, obrigando o Guarda André C. a desviar-se para evitar ficar encurralado entre as duas viaturas;
3. E tentando colocar-se em fuga;
4. Impedindo que estes conseguissem fazer entrar o arguido António no jipe.»

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto apurada, fundamentou-se nas declarações das testemunhas ouvidas e na análise dos documentos de folhas 2 a 5, 138 a 142, 154 e 156.
André C., militar da Guarda Nacional Republicana que estava em patrulha na freguesia da …, estava fora do jipe e viu o arguido a conduzir o Fiat, sendo que já sabia que o arguido não possui carta de condução por ter trabalhado no Posto da Guarda Nacional Republicana de Prado. Como tinha o vidro do jipe aberto apitou e fez-lhe sinal com a mão para parar, contudo, apesar de o ter visto, o arguido imprimiu maior velocidade e atravessou a estrada nacional sem se certificar se nela circulavam outros veículos e entrou na estrada Couto Sobral, mas em sentido contrário ao do trânsito, ou seja entrando pelo lado esquerdo do ilhéu, sendo que circulavam pessoas na berma. Nessa estrada circularam cerca de 1 ou 2 quilómetros, tendo o arguido ultrapassou carros em locais de passadeira. Alguns carros que circulavam em sentido contrário tiveram que se desviar e travar para evitar colisões com o veículo conduzido pelo arguido. O militar acionou os sinais luminosos do jipe. A perseguição durou cerca de 3 ou 4 quilómetros, tendo o arguido mudado de direção à direita e à esquerda, sem sinalizar as manobras. Quando o arguido parou o seu veículo, a testemunha colocou o jipe ao lado e dirigiu-se apeado ao lugar do condutor, circulando por trás do jipe quando o arguido deixou descair o carro e a testemunha teve que se desviar para não ser entalado entre o jipe e o carro. Abriu a porta do carro e tirou o arguido de lá deitando-o no chão e perguntando-lhe o motivo da sua conduta, tendo o arguido respondido que não tinha carta de condução, pelo que lhe deu voz de detenção. Ao tentar algemá-lo ele resistiu, estava sempre a esbracejar, tentando libertar-se e o colega foi ajudá-lo, altura em que a arguida saiu do carro e começou a empurrá-los, dizendo que ninguém levava o marido. Quando conseguiram algemar o arguido e enquanto a testemunha o revistava, o colega tentou evitar a ação da arguida sobre os militares. A arguida dava empurrões nos militares, mesmo quando já levavam o arguido para o jipe. Nessa altura o seu colega deu voz de detenção à arguida, contudo antes de a algemarem chegaram os pais do arguido e a filha menor dos arguidos. A criança começou a chorar e não quiseram levar a mãe detida frente à criança, nem usar de maior força para a deter, como por exemplo o bastão.
Instado esclareceu que circularam sempre a velocidade superior a 50km/hora.
Carlso S., é o militar da Guarda Nacional Republicana que fazia parte da patrulha que deteve os arguidos, relatando que o arguido, quando se apercebeu que iria ser fiscalizado, imprimiu maior velocidade ao veículo e pôs-se em fuga, entrando numa estrada em sentido contrário ao trânsito, efetuando ultrapassagens em curva, obrigando outros condutores a encostar à berma para evitar o embate. Circularam a cerca de 80 a 100 km/hora e não conseguiam ganhar terreno em relação ao veículo ligeiro. Descreveu o percurso feito na perseguição. Quando pararam a testemunha comunicou com as outras patrulhas a informar que já não havia necessidade de intervenção, pois o veículo já estava imobilizado. Viu o carro conduzido pelo arguido a descair e o colega a saltar para evitar ficar preso entre os dois veículos. O colega puxou o arguido para o exterior e tentou algemá-lo, pelo que saiu do jipe para o ir ajudar, altura em que saiu também do carro a arguida, a gritar que ninguém levava o companheiro, sempre a esbracejar. Alertou-a que seria detida por resistência e coação sobre funcionário e deu-lhe voz de detenção, mas ela continuou sempre a resistir à detenção, pelo que nem depois de o arguido estar já no jipe conseguiram algemá-la. Entretanto chegaram ao local os pais do arguido, acompanhados da filha menor dos arguidos, que chorava, pelo que resolveram não concretizar a detenção, assim evitando o uso de maior força.
A arguida disse que se apercebeu, olhando pelo espelho retrovisor lateral, que o jipe da Guarda Nacional Republicana os seguia, o que sucedeu durante cerca de 5 minutos, sendo que seguiam a cerca de 50km/hora, tendo dito ao arguido que seria melhor parar para verificar se os militares queriam alguma coisa da sua parte.
Após pararem o veículo, este descaiu porque o travão não funciona bem. O militar Coelho tirou o arguido do carro e deu-lhe murros e pontapés e algemou-o. A arguida tentava tirar fotografias, sendo que «o agente Senra usou a força» (expressão utilizada pela arguida), tentando retirar-lhe o telemóvel. Quando já estava tudo calmo e o seu companheiro detido, o militar André C. disse-lhe que estava detida, contudo a arguida não soube explicar por que motivo tal sucedeu.
Instada disse que tinham ido falar com um senhor, depois iam trabalhar e no fim do dia voltariam a levar o carro para casa, sendo certo que nenhum deles tinha carta de condução.
A arguida não logrou explicar por que motivo seguiam a sua viagem por um caminho que não é o habitual, para se dirigirem ao trabalho, designadamente um caminho estreito como aquele onde acabaram por parar.
A arguida disse que só no dia seguinte percebeu que tinha sido constituída arguida, o que, não obstante se considere estranho, pode ser explicado pelo facto de ela se ter recusado a assinar o expediente, conforme consta no auto de denúncia.
Ora, a versão da arguida é destituída de sentido, pois não faz sentido que sabendo que estavam em infração e seguindo a 50km/hora fossem parar o veículo só para ver se os militares da Guarda Nacional Republicana lhes queriam qualquer coisa… Se fossem efetivamente a 50 km/hora, facilmente teriam sido intercetados pela Guarda Nacional Republicana, como é bom de ver! Por outro lado, é óbvio o motivo pelo qual enveredaram por um caminho estreito, tinham clara intenção de tentar despistar os militares que os seguiam! Instada a arguida disse que não conheciam os militares, pelo que nem sequer haveria qualquer motivo para os factos ocorrerem tal como a arguida relatou, ou seja, as alegadas agressões que relata. Por outro lado, nem se afigura plausível que tivesse a preocupação de estar a tirar fotografias quando o seu companheiro era agredido, verbalizando não ter defendido o companheiro porque estava perante agentes de autoridade. Naturalmente que não é credível que uma pessoa vendo o seu companheiro ser agredido sem qualquer motivo, tivesse sangue frio suficiente para ponderar estar perante agentes de autoridade e por isso nem sequer defender a vítima, preocupando-se somente com as alegadas fotografias. Não faz sentido que fosse detida quando nada fazia e já tudo estava terminado.
Os militares, não obstante utilizassem um discurso algo padronizado, o que é comum em agentes de autoridade, depuseram de modo objetivo, isento, coerente e espontâneo, cada um relatando os factos por si vividos. Os militares não conheciam os arguidos antes destes factos e nada os movia contra eles, nem fazia qualquer sentido que tivessem inventado algo tão elaborado e pormenorizado, só para ter mais trabalho…
No que toca ao facto de deixar descair o carro, atendendo a que os militares não foram perentórios em dizer que tal movimento foi propositado e ao facto de a arguida ter adiantado uma explicação de ordem técnica, em face do princípio in dúbio pro reo, considerou-se tal matéria não aprovada.
Os factos relatados pelas testemunhas são consentâneos com as regras da experiência e da normalidade, são coerentes entre si, e relatam toda a dinâmica dos acontecimentos de modo lógico, merecendo total credibilidade.
O relato dos militares confirma o teor do auto de denúncia e o relatório de folhas 154 a 156.
O Tribunal atendeu ainda a teor de folhas 138 a 142.
O elemento subjetivo decorre dos factos objetivos que resultaram provados, designadamente por ser do conhecimento geral a necessidade de habilitação legal para conduzir veículos motorizados na via pública, bem como a obrigatoriedade de obediência às ordens dos militares da Guarda Nacional Republicana e proibição de obstruir a ação desses miliares.
Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal teve em consideração o certificado do registo criminal junto aos autos.
Relativamente às condições pessoais dos arguidos, o Tribunal atentou nas próprias declarações prestadas pela arguida e confirmadas pelo arguido, por ser o único elemento disponível.»

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2. Apreciando
Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, a questão objecto do presente recurso consiste em saber se a matéria de facto provada integra a prática, por cada um dos arguidos, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal, como defende o recorrente.
Dispõe o artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal:
«Quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até 5 anos»
No crime de resistência e coacção sobre funcionário, como resulta da sua própria inserção sistemática, o bem jurídico que a lei quis especialmente proteger é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e a liberdade de actuação do seu funcionário ou membro de força armada, posta em causa pelo emprego de violência ou resistência do agente, não abrangendo, por isso, a tutela da integridade dos mesmos, como bem pessoal( - Neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28/4/1999, de 25/9/2002 e de 18/2/2004, in CJ, ACSTJ, Ano VII, tomo II, pág. 193, Ano X, tomo II, pág. 202 e Ano XII, tomo I, pág. 205; No mesmo sentido, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo III, pág. 339.).
A protecção do funcionário que no exercício das suas funções executa as tarefas que lhe são cometidas é um meio para permitir essa actuação, tratando-se tão só de uma protecção funcional ou reflexa, pois a liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado.
Constitui elemento essencial do tipo a utilização de violência ou ameaça grave contra funcionário, ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções.
A violência exigida pelo tipo legal de crime em causa tanto pode ser física como psicológica, importando apenas que a mesma tenha a virtualidade suficiente para intimidar o visado e limitá-lo no exercício da sua liberdade pessoal.
Por isso, para que a violência se tenha por verificada, não é necessário que exista lesão ou contacto físico com o ofendido. O que importa é que ela se revele de tal forma que se possa dizer que atingiu a liberdade de determinação do visado.
De todo o modo, a violência terá de ser exercida de modo sério e com a intensidade necessária para intimidar.
O critério de avaliação do grau de violência relevante para se considerar preenchido o tipo em causa há-de assentar na idoneidade dessa violência para perturbar a liberdade de acção do funcionário, sendo natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando o visado é, por exemplo, um militar.
A este respeito salienta Cristina Líbano Monteiro que «[o]s meios utilizados – violência ou ameaça grave – devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coacção (…). Há-de considerar-se, em todo o caso, que os destinatários da coacção possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual (...) há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário. Assim, será natural que uma mesma ação integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar ou um membro das forças de segurança. Ou seja: nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas “sobre-capacidades”.»( - Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 341.).
A violência ou ameaça devem surgir como pré-ordenadas e idóneas, nos termos supra expostos, como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade, devendo a adequação do meio ser aferida por um critério objectivo, tendo sempre em conta as específicas circunstâncias de cada caso.
O que não significa que o tipo de crime exija que o agente impeça, de facto, o exercício do acto de função pública que estiver em causa, sendo bastante que o agente se oponha com violência a esse exercício.
Como adverte expressamente Cristina Líbano Monteiro «diferentemente do que acontece no crime de coacção do artigo 154.º, não se torna necessário que à adequação do meio, no sentido atrás considerado, se siga um comportamento coagido. Tanto a resistência eficaz como a ineficaz estão compreendidas na ofensa típica. Trata-se, contudo, de um crime material, uma vez que deve exigir-se, para a consumação, um resultado intermédio: que a acção violenta ou ameaçadora tenham atingido, de facto, o seu destinatário.»( - Obra citada, pág. 342.).
A violência ou a ameaça grave de que fala o preceito têm, portanto, de ser contextualizadas e apuradas em concreto para se poder aferir se uma ou outra, ou ambas, são idóneas ao ponto de perturbar a liberdade de acção do funcionário, não esquecendo que este é, em princípio, possuidor de qualidades especiais de ordem psicológica e física, e bem assim que, na maior parte das situações, está armado, como é o caso, por exemplo, dos militares e das forças policiais em geral, quando no cumprimento dos seus deveres funcionais.
Se não houver o emprego de violência ou de ameaça limitando-se o agente da acção, à fuga ou tentativa de fuga, à imprecação verbal contra o acto de que está a ser alvo, à gesticulação mais ou menos efusiva, sempre presente em tais situações, ou quaisquer outras atitudes e comportamentos que não sejam adequados a anular ou dificultar significativamente a capacidade de actuação do funcionário ou afim, não há resistência e, como tal, não há crime.
No caso em apreço, ficou provado que, já imobilizado no solo, quando lhe foi dada voz de detenção, o arguido António resistiu à detenção, esbracejando, razão pela qual o Guarda André C. teve necessidade de o algemar, tendo, nessa altura, a arguida Carla saído da viatura aos gritos, dizendo que ninguém levava o companheiro preso, após o que se abeirou do Guarda André C., empurrou-o e puxou-lhe os braços, tentando impedi-lo de consumar a detenção do arguido António.
A arguida foi, então, informada que o companheiro iria ser conduzido ao posto da GNR e que se a mesma persistisse em tal comportamento seria detida, apesar do que a arguida continuou a empurrar os militares da GNR, tendo, nessa altura, o Guarda Carlso S. dado voz de detenção à arguida Carla, ao mesmo tempo que procurava manietá-la.
Nessa altura, acorreram ao local os pais do arguido António acompanhados da neta ainda menor que começou a chorar, tendo os militares da GNR optado por não deter a arguida.
Ora, se é certo que o esbracejar do arguido António, quando estava prestes a ser algemado, após lhe ter sido dada voz de detenção, e a exaltação da arguida Carla, sua companheira, acompanhada de empurrões e puxões, visando obstar a tal detenção, causaram perturbação à acção dos militares, não menos certo é que se trata de destinatários que possuem especiais qualidades no que concerne à capacidade para suportar pressões e que estão munidos de instrumentos de defesa e dispõem de conhecimento de técnicas de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum.
O esbracejar de um detido que está prestes a ser algemado e a exaltação da sua companheira, acompanhada de empurrões e puxões, na tentativa de obstar a tal detenção, de algum modo habitual nestas situações, não são idóneos a atingir, de facto, a liberdade de acção dos militares da GNR em causa, nem constituíram acções suficientemente constrangedoras que pudessem (como não puderam) levar aqueles agentes de autoridade a deixarem de agir quando o seu dever era actuar.
O comportamento dos arguidos não constitui elemento objectivo integrador do ilícito imputado, ou seja, não integra o conceito de violência a que se reporta o preceito incriminador por não ser idóneo a intimidar, dificultar ou impedir de forma significativa a capacidade de actuação daqueles militares na situação em causa.
Por conseguinte, uma vez que a violência exercida pelos arguidos não tem aptidão para integrar a violência exigida para o preenchimento do crime de resistência e coacção sobre funcionário de que vinham acusados, não merece censura a sua absolvição.
Improcede, portanto, o interposto recurso.

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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Sem custas por o recorrente delas estar isento – artigo 4.º, n.º 1, a) do Regulamento das Custas Processuais.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães, 9 de Janeiro de 2017