Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
116/19.0T8PTB-A.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
DOMÍNIO PÚBLICO
PROPRIEDADE DE OUTREM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

A improcedência do pedido de verem declarada a existência de um direito de servidão de passagem, onerando um prédio que integra o domínio público de uma autarquia local em beneficio do prédio de que os autores são proprietários, não acarreta “inelutavelmente” a procedência do pedido reconvencional de que seja declarada a não existência de qualquer direito de passagem, na medida em que se trata de questões diversas.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I RELATÓRIO.

C. C. e M. C. intentaram contra Junta de Freguesia de ... a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.

Os pedidos formulados são a condenação da ré a:

.reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio id em 1.º da p.i.;
.reconhecer que os autores apenas podem aceder à sua casa de morada de automóvel, pelo caminho devidamente demarcado com um empedrado diferente que se situa, a partir da estrada municipal entre o edifício denominado Portas ... e o Largo ...;
.reconhecer que esse caminho de servidão para acesso às propriedades rústicas e prédio dos autores existe, pelo menos, há mais de 50 anos;
.reconhecer que por esse caminho passam pessoas, carros de bois, tractores e automóveis;
.a abster-se da prática de quaisquer actos que impeçam a passagem a pé e de carro dos autores para o seu prédio urbano pelo caminho de servidão, como tem vindo a ser definido;
.a demolir o muro existente que impede o acesso à casa de morada dos autores.

Alegam, a propriedade do prédio que descrevem, e que “10.º Para aceder à casa de morada e aos prédios rústicos vizinhos, os Autores e os proprietários desses prédios fazem-no por um caminho que parte da estrada camarária, atravessa o Largo ... e desemboca na entrada do prédio dos Autores e dos prédios vizinhos. 11.º Este caminho, em terra batida, com uma largura de cerca de 2,5 metros, que vai desde o caminho público até à casa de morada dos Autores ladeado pelo muro da antiga Escola Primária e pelo muro do Largo ... situava-se, à data, a uma cota mais baixa que este largo.”
De seguida caracterizam atos relativos à utilização do caminho.
Mais referem que em 2013 pediram autorização para a construção de uma garagem e anexo no seu prédio, o que levaram a cabo. E mais à frente que “37.º Durante as obras de requalificação foi demolida a antiga Escola Primária e foi elevada a cota quer do terreno onde esta se encontrava implantada quer a do caminho de servidão que existia entre o muro dessa escola e o muro do Largo .... 38.º Com essa elevação da cota desapareceu a demarcação do caminho aí existente, e, 39.º A casa dos Autores ficou a uma cota mais baixa que o largo e o edifico das Portas .... 40.º O que originou a criação de uma rampa com inicio no final do Largo ... a norte até à casa dos Autores. 41.º Pelo que, o caminho desde a estrada municipal até à casa dos Autores teve de ser refeito. 42.º Como o anterior caminho estava quase à mesma cota que a casa de morada dos Autores era fácil o trânsito pelo mesmo, 43.º E tal como caminho de ligação à estrada municipal era em terra batida. 44.º Com as obras do Largo o antigo caminho subiu e o acesso à casa dos Autores passou a ser ter um declive acentuado tornando muito dificil o trânsito automóvel. 45.º Por isso, a Ré mandou proceder a suas expensas, durante a requalificação do Largo ao calcetamento do referido caminho até à casa de morada dos Autores, aliás como tinha sido projectado. – Doc. n.º 4 e 8-A. 46.º No entanto, houve o cuidado de o dotar de um calcetamento diferente do calcetamento do Largo .... 47.º Para que o caminho ficasse devida e claramente demarcado.” A ré sempre reconheceu este caminho e os autores não têm outro acesso automóvel ao seu prédio.
Em julho de 2017 a ré construiu um muro que impede a utilização do caminho.
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A ré contestou e apresentou reconvenção, pedindo:
.que se julgue improcedente, por não provada, a presente acção, sendo a R. absolvida do pedido, com todas as legais consequências;
.que se julgue a reconvenção provada e, em consequência:
a) se condenem os autores ao pagamento da quantia de 3.971,29 euros, acrescida dos respectivos juros, à taxa moratória para as dividas civis, desde a notificação desta reconvenção aos autores até integral pagamento.
b) seja declarada a não existência de qualquer direito de passagem, seja a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do edificio “Portas ...”
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Os autores apresentaram réplica impugnando a nova factualidade alegada. Reiteram que “…têm, então, toda a razão os Autores/Reconvindos a peticionar o acesso à sua casa de morada pelo caminho de servidão aí existente e segundo a Ré, público há mais de 40 anos.”
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Foi proferido despacho onde se refere que os autores alegam que o caminho descrito nos artigos 10.º e ss. da p.i. é um caminho de servidão que beneficia o prédio de que são proprietários (prédio dominante). Todavia, não identificam os prédios onerados com tal servidão (prédios servientes). Por isso ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.ºs 1 e 4, do CPC, foram os autores convidados a suprir a insuficiência de alegação verificada, identificando os prédios servientes e respectivos proprietários.
Nessa sequência vieram os autores dizer que “O prédio onerado com a servidão (prédio serviente) é o espaço junto às Portas ..., pavimentado em cubo de granito, sito no Largo ..., freguesia de ..., propriedade da Ré.” E apresentaram petição corrigida, constando “10.º Para aceder à casa de morada e aos prédios rústicos vizinhos, os Autores e os proprietários desses prédios fazem-no por um caminho que parte da estrada camarária, atravessa o Largo ..., junto às Portas ..., diferenciado por se encontrar pavimentado em cubo de granito e desemboca na entrada do prédio dos Autores e dos prédios vizinhos, propriedade da Ré. 11.º Este caminho, anteriormente em terra batida, e actualmente com a configuração descrita em 10.º, com uma largura de cerca de 2,5 metros, que vai desde o caminho público até à casa de morada dos Autores era ladeado pelo muro da antiga Escola Primária e pelo muro do Largo ... e situava-se, à data, ou seja, antes das obras de requalificação, a uma cota mais baixa que este largo,”.
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A ré respondeu dizendo que “Já se aceitou noutros processos e aceita-se aqui que, efectivamente, tal “espaço” é da Ré, e pertence ao domínio publico da freguesia de .... Sendo que, parte desse espaço integra o domínio público da Ré desde os anos 70 e outra parte, desde que ocorreu a expropriação e o domínio inerente lhe foi entregue (é que a declaração de utilidade pública, com se sabe, mesmo que seja para se entregar as áreas expropriadas às freguesias, tem de ser tramitada pelos municípios, pois as freguesias não têm competência legal para tal.) 8. Sendo esse “espaço”, integrante do domínio público da freguesia de ... – até porque se extrai da própria alegação dos AA que, parte desses espaços foram expropriados ( cfr o dito em 23 da p.i.), prejudicada está a viabilidade da pretensão dos AA. 9. É por isso que os AA não conseguem indicar prédio algum, pois toda aquele “espaço” integra e é pertença do domínio público da freguesia aqui Ré– sendo que a grande parte dessa área está integrada no domínio publico da freguesia desde o inicio da década de 70 e os demais espaços integraram esse mesmo domínio público entre 2010 e 2014, à medida que foram sendo concluídos os vários processos de expropriação.
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Designada tentativa de conciliação o Meritíssimo Juiz de Direito interpelou a Ilustre mandatária dos autores para esclarecer de forma expressa, na esteira do convite ao aperfeiçoamento da p.i. que oportunamente lhe foi dirigido, se o terreno por onde reclama a existência de um direito de passagem integra o domínio publico, o que a mesma confirmou, afirmando que tal terreno é propriedade da R. Junta de Freguesia de ....

De seguida, proferiu a seguinte decisão:
“Porque a questão de mérito é, em parte, exclusivamente de direito, passamos a conhecer directamente do pedido, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
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C. C. e M. C. intentaram contra Junta de Freguesia de ... a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Alegam, em síntese, que são proprietários do prédio melhor identificado no artigo 1.º da p.i. e que, para acederem à casa de morada nele existente, percorrem um caminho em terra batida que parte da estrada camarária ali existente e desemboca na entrada do seu prédio e das dos prédios vizinhos, pretendendo por isso, entre o mais, que o Tribunal condene a R. a reconhecer que aquela parcela de terreno se encontra onerada com um caminho de servidão que beneficia o prédio de que são donos.
A R., válida e regularmente citada, veio contestar a acção alegando, para o efeito, que o acesso ao prédio dos AA. sempre foi feito única e exclusivamente através do caminho público que com ele confronta do lado Norte e não por aquele que identificam na p.i., sendo que pelo lado Nascente – onde aqueles invocam existir o caminho supra identificado – o seu prédio confronta com um prédio rústico pertencente a S. R. e que este, pelo mesmo vento Nascente, confrontava por sua vez com o logradouro de recreio da Escola Primária da Freguesia de ..., e que aí nunca existiu qualquer caminho porque era fisicamente impossível passar uma vez que aquela escola primária se encontrava delimitada por muros de vedação (sendo que o edifício dessa escola foi demolido no ano de 2009 e no seu espaço foi erigido um novo espaço público).
Concluiu pela improcedência da acção e deduziu reconvenção pedindo, entre o mais, que se declare a inexistência de qualquer direito de passagem, seja a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do edifício “Portas ...”.
Os AA. replicaram, mantendo, no essencial, o alegado na p.i.
Mantêm-se inalterados os pressupostos de facto e de direito que presidiram à prolação do despacho saneador, pelo que cumpre decidir.
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No decurso dos autos, o Tribunal convidou os AA. a aperfeiçoarem a p.i. dado não terem identificado – pelo menos de forma expressa – os prédios onerados com a servidão de passagem que alegam existir em beneficio do prédio de que são proprietários (identificado no artigo 1.º da p.i.).
Em resposta a tal convite, os AA. vieram alegar que o prédio onerado com a dita servidão é o espaço junto às Portas ..., pavimentado em cubo de granito, sito no Largo ..., freguesia de ..., propriedade da R.
Por outro lado, os AA. não impugnaram a factualidade alinhada, designadamente, nos artigos 16.º, 19.º a 25.º e 27.º (no que tange com o contrato-promessa aí referido, cuja cópia se encontra junta a fls. 55, reverso, e 56) da contestação.
E na tentativa de conciliação realizada no passado dia 27 de Janeiro de 2020, os AA. reafirmaram a posição vertida na resposta ao convite ao aperfeiçoamento supra mencionado, referindo que o terreno por onde reclamam a existência de um direito de passagem integra o domínio público da R. Junta de Freguesia de ... (maxime da freguesia, dado que a junta de freguesia é um órgão representativo da freguesia e o seu órgão executivo – cfr. artigos 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico).
Assim sendo, é no contexto supra assinalado que o Tribunal irá apreciar as pretensões formuladas pelas partes, ou seja, considerando que os AA. alegam que o terreno onerado com a servidão de passagem descrita na p.i. integra o domínio público da Freguesia de ....
Pergunta-se: pode constituir-se a favor de um particular, por usucapião, um direito de servidão de passagem onerando um terreno que integra o domínio público duma autarquia local, como é o caso?
A resposta é negativa.

Vejamos.

Como se sabe, a causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na acção. Considerando o teor da teoria da substanciação acolhida pelo direito processual civil português vigente, o preenchimento da causa de pedir, independentemente da qualificação jurídica apresentada, supõe a alegação de factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca.
Pois bem, a lei define a servidão predial como o encargo imposto num prédio, chamado dominante, em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente, designado por serviente (artigo 1543.º do Código Civil). Trata-se, pois, de uma restrição ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente, isto é, ao direito de gozo do respectivo proprietário, ou seja, um ius in re aliena (um direito real limitado).
Por outro lado, os AA.. alegam como forma de aquisição de tal direito a usucapião, sendo que segundo o disposto no artigo 1287.º do Código Civil “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”. A posse caracteriza-se pelo poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real e adquire-se, designadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito e pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta. (cfr. artigos 1251.º, 1256.º, 1257.º, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º, alínea a), 1287.º e 1296.º, todos do Código Civil).
Acontece que a posse é uma instituição do comércio jurídico privado. Como explica Manuel Rodrigues (in A Posse, 3.ª edição, Almedina, 1981, págs. 120 e 121), “Este principio deduz-se com a maior nitidez do artigo 479.º do Código Civil, que determinando o objecto da posse diz: “Só podem ser objecto da posse coisas e direitos certos e determinados que sejam susceptíveis de apropriação”; e do artigo 482.º, n.º 3, que indica como um dos casos de perda da posse o facto de a coisa “ser posta fora do comércio”…”.
E quais são as coisas que a lei coloca fora do comércio? São todas as “que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual” – artigo 202.º, n.º 2, do Código Civil (veja-se ainda o disposto no artigo 1304.º do mesmo diploma legal, onde se dispõe que “O domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas colectivas públicas está igualmente sujeito às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio”).
Também o Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto (que aprova o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público), chamado à colação pela R../reconvinte na contestação, no seu artigo 18.º estabelece que “Os imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado”. E o seu artigo 19.º acrescenta que “Os imóveis do domínio público não são susceptíveis de aquisição por usucapião”
As coisas do domínio público podem ingressar no comércio jurídico desde que sejam desafectadas desse domínio, o que pode acontecer por forma expressa ou tácita (neste sentido, veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 1967, pág. 129).
No caso concreto os AA. não fundam o direito reclamado na desafectação do domínio público da parcela de terreno em questão.
Como ensina Manuel Rodrigues (ob. cit., pág. 124), “Os direitos gerais que os particulares podem ter sobre as coisas públicas são aqueles que estão de harmonia com o uso colectivo do domínio público, e são a realização do fim para quer foi criada a coisa pública: caminhar pelas ruas, pelas praças, navegar nos rios, etc.” (aqui vai implícita a noção de “afectação” como o acto ou a prática que consagra a coisa á produção efectiva de utilidade pública – cfr. Marcello Caetano, in Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9.ª edição, pág. 921). Por conseguinte, tais direitos não são susceptíveis de posse.
A explanação doutrinária e legal que antecede, se necessário fosse referi-lo, aplica-se, a maiori ad minus, aos direitos reais menores – como as servidões prediais – e não apenas ao direito de propriedade.
Em suma, mesmo que os AA. lograssem fazer prova de toda a factualidade alegada na p.i. – e dando como assente, nos termos do disposto no artigo 587., n.º 1, do CPC, aqueloutra que a R. alegou na contestação –, a acção nunca poderia ser declarada procedente quanto ao pedido nuclear que nela formularam, qual seja o de verem declarada a existência de um direito de servidão de passagem onerando um prédio que integra o domínio publico de uma autarquia local em beneficio do prédio de que são proprietários.
Pelos mesmos motivos, a improcedência da acção não pode deixar de acarretar, inelutavelmente, a procedência da reconvenção na parte em que a R./reconvinte pede que se declare a inexistência daquele direito.
Uma vez que a R. não questiona o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio identificado no artigo 1.º da p.i. – aliás, aqueles beneficiam da presunção de titularidade desse direito constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, considerando a certidão predial junta a fls. 9, reverso –, o primeiro pedido formulado naquele articulado será julgado procedente.
A apreciação dos restantes pedidos reconvencionais carece de produção de prova.

Pelo exposto, este Tribunal decide:
A) Na procedência parcial da acção,
- Declarar que os AA. C. C. e M. C. são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da p.i., descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …;
- Absolver a R. Junta de Freguesia de ... do mais peticionado.
B) Na procedência parcial da reconvenção,
- Declarar que a favor dos AA./reconvindos não existe qualquer direito de passagem, seja a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do edifício “Portas ...”.
Custas da acção cargo dos AA., sendo que as custas da reconvenção serão fixadas oportunamente uma vez que foram formulados outros pedidos reconvencionais cuja apreciação carece de produção de prova.
Registe e notifique. (…)”.
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Inconformados os autores apresentaram recurso tendo terminado as suas alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-

1.º O caminho de servidão de acesso à casa de morada dos Autores parte da Estrada Camarária, atravessa o Largo ... e desemboca na entrada do prédio dos Autores e dos prédios vizinhos.
2.º Esse caminho era em terra batida com a largura de 2,5 metros, devidamente definido e demarcado, e era utilizado para a circulação a pé, de carro de gado, de tractor e alfaias agrícolas e automóveis.
3.º Esse caminho é utilizado à vista de toda a gente há mais de 50 anos.
4.º O caminho existe, pelo menos, desde data anterior a 1970.
5.º Nos anos anteriores a 1970 naquele local não havia qualquer edificação.
6.º Era preenchido apenas por prédios rústicos privados.
7.º Foi nesses prédios rústicos privados que foi constituída a servidão de acesso à casa de morada dos Autores.
8.º A casa de morada dos Autores foi construída cerca dos anos 30 do século passado.
9.º E foi objecto de melhoramento no inicio do presente século.
10.º As obras de melhoramento foram participadas às Finanças em 2007.
11.º Cerca dos anos 70 alguns proprietários dos prédios rústicos existentes no local cederam-nos para que fosse possível edificar a escola primária.
12.º Mas a servidão continuou a exercer-se tal como vinha sendo feito desde o seu inicio.
13.º A Escola Primária foi demolida em 2009.
14.º Em seu lugar foi construído o Edifício Portas ....
15.º Mas a servidão continuou a exercer-se tal como sempre aconteceu desde os tempos em que foi constituída, sempre antes de 1970 e não foi objecto extinção por utilidade pública ou qualquer outra figura jurídica, nomeadamente as elencadas no artigo 1569.º do Código Civil.
16.º Os recorrentes nunca pretenderam constituir uma servidão sobre terreno do domínio público.
17.º Apenas pretende que a Ré reconheça que antes do terreno em causa passar do domínio privado para o domínio público já existia a servidão de passagem.
18.º E que não obstaculize o seu exercício.
19.º Servidão essa que os Autores adquiriram por usucapião sobre terreno do domínio privado.
20.º É matéria controvertida:
Saber se a servidão foi constituída sobre terreno do domínio privado e não sobre terreno de domínio público.
21.º Apurar se foi constituída antes da construção da Escola Primária de ....
22.º E sempre foi exercida nos termos alegados na petição inicial.
23.º O Tribunal “a quo” não estava na posse de todos esses elementos para lhe permitir decidir de direito com o fez no Douto Saneador/Sentença.
24.º Este matéria deveria ter sido considerada “objecto de litígio”.
25.º Ao decidir como o fez o Douto Despacho Saneador/Sentença violou o disposto nos artigos 595.º e 596.º do Código de Processo Civil e 1251.º, 1256.º, 1257.º, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1263.º, 1287.º e 1296.º todos do Código Civil
26.º Deve, por isso, o presente recurso ser julgado procedente por provado revogando-se o Douto Despacho Saneador/Sentença, substituindo-se por outro que ordene o prosseguimento dos Autos para se apurar se a servidão, em crise, foi ou não constituída em data anterior a 1970 e onerando, apenas terreno do domínio privado.”
Pedem que se julgue procedente o presente recurso, com a consequente revogação do Douto Despacho Saneador/Sentença recorrido e prolação, em sua substituição, de Douto Acórdão que ordene o prosseguimento dos autos de acordo com as conclusões “supra”.
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A ré apresentou contra-alegações, dizendo em síntese que:
-o recurso não tem objeto dado que a parte de que se recorre é o corolário lógico das restantes partes decisórias, as quais transitaram; e os recorrentes produzem alegações sobre as partes que transitaram;
-a ação tal como estruturada sempre teria de improceder; os recorrentes não podem alterar o pedido e a causa de pedir;
-a matéria que os recorrentes pretendem se conheça é irrelevante.
E por isso dizem que deve ser negado provimento ao recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se deve ser revogado o segmento do saneador/sentença que declara que a favor dos AA./reconvindos não existe qualquer direito de passagem, seja a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do edifício “Portas ...”, prosseguindo os autos com a apreciação da factualidade alegada pelos autores relativa à constituição da alegada servidão.
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III MATÉRIA DE FACTO.

A matéria a considerar é o que resulta do relatório “supra”, designadamente o alegado pelas partes nos respetivos articulados.
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IV O MÉRITO DO RECURSO.

A análise dos argumentos apresentados no recurso parte da prévia caraterização da ação proposta pelos autores, matéria que se afigura pertinente para que se perceba melhor a sua posição/versão apresentada nos autos.
E para tal importa reter algumas noções gerais, seguindo de perto o Ac. desta Relação de 1/2/2018 (www.dgsi.pt).
Ao autor, na petição inicial, terá de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e formular o pedido correspondente –artºs. 5º, nº. 1, e 552º, nº. 1, d) e e), C.P.C..
Nas ações reais a causa de pedir é “o facto jurídico de que deriva o direito real”, nas ações constitutivas é o “facto concreto” “que se invoca para obter o efeito pretendido” –artº. 581º nº. 4 do C.P.C.- que consagra a teoria da substanciação.
A acção real é a que visa obter tutela para a ofensa de um direito dessa natureza –caso da servidão.
Passamos a citar o Ac.: “Pressupõe a existência na ordem jurídica do direito respectivo e a sua titularidade pelo autor. No conceito se inclui geralmente, não obstante, aquela que, ao invés, visa apenas constitui-lo. Não existindo ainda, tal como está ordenado juridicamente o domínio dos bens, o direito real almejado, o autor é titular apenas do direito potestativo a que o tribunal o declare e a obtê-lo.
A diferença espelha-se no tipo de acção adequada: a declarativa de condenação ou a constitutiva – artºs 2º, nº 2, e 10º, nº 2, alíneas b) e c).
E reflecte-se precisamente na causa de pedir: como se viu, na primeira, é o facto jurídico de que deriva o direito real (v. g., contrato, usucapião); na segunda, é o facto concreto invocado para se obter o efeito pretendido (v. g., o encravamento).
No que tange às servidões prediais (que não são propriamente um direito mas um encargo imposto sobre um prédio em proveito de outro e, por isso, inseparáveis deste e não tituladas autonomamente pelo respectivo dono nem por ele negociáveis), a Doutrina costuma distinguir entre as voluntárias e as legais, a partir do modo como elas se constituem.”
Conforme decorre do artº. 1547º, nº. 1, do C.C. as servidões podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família. Usualmente a doutrina refere-se a estas como as “voluntárias, como no Ac. melhor se desenvolve, embora as adquiridas por usucapião dependam, além da posse, de ser invocadas judicial ou extrajudicialmente.
As servidões legais, conforme decorre do artº 1547º, nº. 2, C.C., na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa –é o caso da servidão legal de passagem –artº. 1550º, nº. 2, do C.C.. Os proprietários de prédios encravados têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
Estabelecidas as diferenças, continua o Ac.: “Assim, ante a acima referida dicotomia acções declarativas/acções constitutivas especificada no artº 10º, do CPC, se, por um dos modos admissíveis, o autor alega estar já constituída a seu favor, ou melhor, em benefício de prédio dominante de que é dono, uma servidão de passagem e o dono do prédio serviente não a respeita nem reconhece e se opõe mesmo ao respectivo exercício, a acção é de mera declaração ou apreciação e condenatória. Se, diferentemente, apenas invoca os factos concretos justificativos do seu direito potestativo a constituir tal servidão e pretende que o tribunal, julgando-os procedentes, a declare constituída, assim provocando através da sentença uma alteração na ordem jurídica pré-existente com a criação ex novo de tal encargo sobre o prédio vizinho em proveito do seu, a acção é constitutiva.
Até aí, apesar da situação de encravamento existente, ela “não constitui ainda verdadeira servidão”, pois, como dizem aqueles autores, “trata-se, em bom rigor, de direitos potestativos, que têm de característico o facto de facultarem ao respectivo titular a constituição de um direito real de servidão, independentemente da vontade do dono do prédio serviente”.
“A vida das servidões legais desdobra-se, como é sabido, numa dupla fase, percorrendo dois momentos sucessivos. Num primeiro momento, trata-se de um simples direito potestativo, que confere ao respectivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste” e “Num segundo momento, exercido o direito potestativo e constituída assim, por acordo das partes, ou, na falta de acordo, por sentença ou acto administrativo, a relação de carácter real a que tendia esse direito, a servidão legal converte-se numa verdadeira servidão, ou seja, num encargo excepcional sobre a propriedade. Quer isto dizer que, nas servidões legais, a verdadeira servidão só mediatamente é imposta por lei; a fonte imediata desta reside na vontade das partes, na sentença constitutiva ou no acto administrativo”. Ob. citada, página 636.
A esta luz, a causa de pedir na acção real de condenação que tenha por objecto servidão de passagem consiste na factualidade relativa ao contrato, à disposição testamentária, ao exercício da posse ou à destinação por pai de família, que tenha concretamente sido alegada, enquanto facto jurídico de que deriva o direito real existente mas ofendido cuja tutela jurisdicional se requer.
Ao passo que, na acção real constitutiva baseada, apenas, no direito potestativo pressuposto destinada a obter do tribunal a constituição ex novo do direito, a causa de pedir consiste no facto concreto invocado (v.g., encravamento, necessidade de aproveitar águas para gastos domésticos) que faculta a obtenção do direito mediante sentença judicial.”
No caso dos autos, parece-nos que a ação encerra as duas vertentes, já que os autores tanto alegam o encravamento, como a usucapião, como pedem a condenação no reconhecimento do encravamento, como no reconhecimento de que o caminho existe há mais de 50 anos, e que é utilizado do modo descrito, como pedem a abstenção de impedimentos a que assim seja.
Essa configuração da ação, e a estrutura e correspondência entre pedidos e causas de pedir, está porem ultrapassada na medida em que a mesma foi já decidida. O pedido formulado pelos autores relativo ao reconhecimento da propriedade do prédio foi julgado procedente e todos os restantes foram julgados improcedentes, sendo deles absolvida a ré.
Os autores apenas recorrem da procedência do pedido reconvencional. A sustentar esta afirmação temos a delimitação objetiva do recurso tal como é apresentada pelos autores (artº. 635º, nº. 2, C.P.C.): “O presente Recurso vem interposto do Douto Despacho Saneador/Sentença na parte que foi desfavorável aos recorrentes, que se transcreve:
“Declarar que a favor dos AA/Reconvindos não existe qualquer direito de passagem, ou seja, a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do Edifício “Portas ...”.”
Portanto, em causa já não está o reconhecimento ou a constituição da servidão.
O pedido reconvencional que foi julgado procedente não é exatamente o inverso do pedido inicial dos autores que foi julgado improcedente, como veremos.
Foi no entanto nesse sentido que se concluiu na decisão sob recurso: “Pelos mesmos motivos, a improcedência da acção não pode deixar de acarretar, inelutavelmente, a procedência da reconvenção na parte em que a R./reconvinte pede que se declare a inexistência daquele direito.” O direito a que se refere é o de ver declarada a existência de um direito de servidão de passagem onerando um prédio que integra o domínio publico de uma autarquia local em beneficio do prédio de que são proprietários. E o fundamento é que, em síntese, as coisas do domínio púbico estão fora do comércio jurídico.
O que fica em aberto e não foi explorado é se, a provar-se a factualidade alegada pelos autores, a mesma tem a virtualidade de levar à improcedência do pedido reconvencional, sendo demonstrativa de existência de algum direito dos autores a passar pelo espaço que é do domínio público para acederem ao seu prédio.
Parece-nos que falta alguma clareza aos autores quando referem neste recurso que o que pretendem é o reconhecimento que a servidão já existia (naquele preciso espaço) e foi constituída no comércio privado –tal como não era isso “apenas” que decorria ser o que pretendiam com a procedência dos pedidos formulados na p.i.. Essa falta de clareza constata-se nas conclusões 16, 17 e 18, e até da parte final das mesmas.
Porém, quanto aos pedidos que formularam e de que a ré foi absolvida formou-se caso julgado formal a partir do momento que este recurso não os abrange (-repete-se que a ré foi absolvida de todos os pedidos com exceção do reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio, os autores não reagem quanto a esse segmento expressamente, sequer se pode considerar a aplicação dos nºs. 3 e 4 do artº. 635º, primeiro porque há especificação, segundo porque não se tratai de restringir mas de ampliar).
Faremos aqui um parêntesis para dizer que entendemos que não cometemos qualquer nulidade por excesso de pronúncia (artº. 615º, nº. 1, d), do C.P.C.) ao interpretar as alegações de recurso do modo como o fazemos. A nossa interpretação decorre da conjugação da delimitação do objeto do recurso com as conclusões 23, 24 e 26.
Assim, o que ainda podem pretender é que o reconhecimento daquela factualidade que alegaram na p.i. acarrete a improcedência do pedido reconvencional. Parece-nos que de modo não totalmente claro, mas limitando o âmbito do recurso ao possível face ao seu objeto, é apenas esta pretensão que pode prosseguir.
Este pedido, inserindo-se numa instância reconvencional de simples apreciação negativa (obtenção da declaração da inexistência de um direito –artº. 10º, nº. 3, a), do C.P.C.), acarreta a inversão do ónus da prova conforme decorre do disposto no artº. 343º, nº. 1, do C.C.. No caso, a ré alega que o acesso ao prédio sempre se fez pelo seu lado Norte, e que pelo lado Nascente nunca existiu qualquer acesso nem tal era fisicamente possível até 2009. Os autores alegam (logo na p.i.) a sua existência em data anterior e o reconhecimento por parte da ré. O que se terá de apurar é se os factos alegados pelos autores são verdadeiros e se tal lhes confere direito de acesso à via pública por um espaço que reconhecidamente (por ambas as partes) integra o domínio público, de modo a conduzir à improcedência da pretensão da ré de que se declare que os autores não têm esse direito de passagem. Este direito de acesso à via pública é algo diverso de um direito civil de servidão.

O Ac. do TCAN de 5/11/2010 (www.dgsi.pt) pronunciou-se sobre essa matéria nos seguintes termos:
A questão a dirimir reporta-se “ao acesso ao prédio a partir da via pública, que é um direito de diferente natureza do direito de propriedade. Como as estradas são bens do domínio comum (al. d) do nº 1 do art. 84º da CRP), o acesso a elas constitui uma das possíveis formas e modalidades do uso comum que tais bens proporcionam. Assim sendo, é no regime jurídico da utilização do domínio público que tem que se encontrar a resposta para a natureza jurídica do direito de acesso à via pública.
A dogmática jurídica portuguesa, dentro das várias teses sobre a juridicidade do uso comum do domínio público, enquadra o direito de uso comum como um direito subjectivo público que se caracteriza, como escreve Freitas do Amaral, por ser «um direito dirigido contra a Administração; que tem por objecto a afectação aos fins dos particulares de um conjunto de prestações de pati realizadas pela Administração, com referência ao complexo de coisas que compõem o domínio público; que tem por conteúdo um poder de uso dessas coisas ou um poder de apropriação de quantidades limitadas de algumas delas; e cuja finalidade se cifra na protecção do valor que para o público em geral representa a utilização directa e imediata dos bens dominiais» (cfr. A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, pág. 158).
E quanto ao direito de acesso à via pública, o Professor Afonso Queirós, depois de criticar a doutrina que o qualifica como direito real de servidão, diz que hoje se entende geralmente que o direito de acesso é um direito subjectivo público sui generis de natureza administrativa e não um direito civil de servidão: «trata-se, afinal de contas, de uma faculdade resultante directamente da lei administrativa e da específica afectação ou destinação do terreno em que a via foi implantada. Essa faculdade é conferida potencialmente a todos os cidadãos (e não, como sucede com os direitos civis, a determinados sujeitos jurídicos, com exclusão de todos os outros), ao público, em suma – sem embargo de as circunstâncias impedirem que ela seja efectivamente utilizada por toda a gente. A qualidade de proprietário é, bem vistas as coisas, afinal, uma simples condição de facto para que os cidadãos aproveitem a via pública nesta específica forma» (cfr. Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. 1, pág. 75 e Estudos de Direito Administrativo, 1, pág. 33 e sgs.). De igual modo tem vindo a jurisprudência administrativa a julgar: «o direito de acesso dos confinantes à via pública é um direito subjectivo-público “sui generis”, não um direito civil de servidão» (cfr. Ac. do STA, rec. nº 040581 de 13/1/2004 e rec. nº 041420 de 25/5/2000, in www.dgsi.pt).
Enquanto se mantiver a afectação da via pública à circulação, os proprietários dos prédios confinantes, embora não tenham servidão de passagem, dada a inadmissibilidade de constituição de direitos reais de gozo sobre coisas públicas, têm o poder de exigir que a Administração não os impeça de aceder ao seu prédio através das vias públicas. Mas esse direito só pode ser exercido nos termos e nas condições legais e regulamentares em que esse uso especial é permitido num dado momento. É da essência da dominialidade o poder de afectar ou desafectar a coisa ao uso público, bem como regulamentar, modificar ou alterar o uso comum, de modo que ele possa ser exercido com disciplina e ordem. Deste modo, não faz parte do direito de acesso à via pública, o poder de exigir que a mesma se construa, suspenda, cesse ou que se mantenha inalterada.
Igualmente está controvertida a atuação da ré (perante os autores) relativamente ao alegado “caminho”.
No mesmo Ac. diz-se ainda: “Como qualquer outro proprietário, o exercício das faculdades inerentes à propriedade pública também deve pautar-se pela «boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito» (art. 334º do CCV). A circunstância de se tratar de exercício de domínio público não é impeditiva da aplicação da cláusula geral do abuso de direito, tal como resulta do art. 1304º do CCv”.
A figura do abuso de direito é de conhecimento oficioso pelo que, caso se apure matéria bastante, pode ser conhecida pelo Tribunal.
Ora, aquela factualidade tal como esta outra alegada e relativa à atuação da ré, é matéria controvertida, que exige prova, a qual deve ser feita para que em sede de sentença se possam considerar todas as soluções plausíveis de direito.
Por isso é prematuro proferir decisão de mérito relativamente ao pedido reconvencional. O raciocínio de que ainda que se prove a versão dos autores tal conduzirá sempre á sua improcedência não se mostra, a nosso ver, correto.
O que ainda falta apurar é, a ter-se constituído um direito de servidão a favor do prédio dos autores no domínio provado, daí decorrendo saber se atualmente estão privados de acesso à via pública e o que isso pode implicar, designadamente se se constituiu alguma obrigação para a ré.
Ainda a propósito destas matérias no Ac. TCAN de 21/10/2016 diz-se: “O que pretende é que se lhe reconheça o direito, enquanto proprietário do prédio, a manter o acesso à via pública por viaturas automóvel e trator, pelas respectivas entradas, condenando-se as entidades rés a demolir qualquer obstáculo que o impeça. Está em causa no presente processo o denominado acesso à “zona da estrada”, ou seja, o direito de acesso à via pública por parte de um terreno privado. Este acesso à via pública constituída pela faixa de rodagem, pelas bermas e, quando existam, por valetas e passeios estava regulado para as estradas nacionais, pelo Decreto-Lei n.º 13/71 de 23 de Janeiro, hoje pela Lei n.º 34/2015, de 27 de Abril, e para as estradas e caminhos municipais, encontra-se regulado na Lei nº 2110, de 19 de Agosto de 1961. Para as estradas municipais, refere o artigo 42º da Lei 2110 que “não é permitido a veículos e animais entrar nas vias municipais ou sair delas fora das serventias estabelecidas segundo as normas deste regulamento”, e o artigo 43º diz que: “nenhum proprietário é permitido erguer tapumes e resguardos ou efectuar depósitos de manutenção, escavações, edificações e outras obras ou trabalhos de qualquer natureza na zona das vias municipais sem prévia licença da câmara municipal”. Refere o artigo 45º deste último diploma que “ não é em geral permitida a construção ou reconstrução de passadiços ao longo ou através das vias municipais. As câmaras municipais poderão excepcionalmente autorizá-las, a título precário e sem o dever de indemnizar na hipótese de revogação das autorizações, determinadas pelas necessidades de viação”.
Por seu lado refere o artigo 62º da Lei ora em análise que: “As serventias das propriedades confinantes com as vias municipais são sempre executadas a título precário, não havendo direito a indemnização por quaisquer obras que os proprietários sejam obrigados a fazer, quer na serventia, quer na propriedade servida, no caso de ser modificada a plataforma da via municipal.
Como se vê dos artigos referidos as serventias das propriedades confinantes com a via pública são sempre precárias e como se refere no Acórdão deste Tribunal, processo n.º 00111/06.9BEMDL, de 05-11-2010: Trata-se de um direito precário, no sentido de que fica dependente das modificações que a Administração entenda fazer nas formas e modalidades de utilização dos bens dominais. Em princípio, a propriedade pública não está sujeita a restrições em favor dos proprietários confinantes. A Administração, enquanto mantiver afectada a via à circulação, não pode impedir os proprietários confinantes de utilizá-la nas condições legais e regulamentares. Mas não tem que respeitar o interesse desses proprietários em manter para sempre o modo de utilização da via. A afectação e o modo de utilização das coisas públicas podem variar ao longo do tempo. Por exemplo, se estrada tem por utilidade principal a circulação automóvel, não há restrições de interesse privado que impeçam o uso do subsolo estradal também para saneamento público. Neste caso, pode acontecer que, apesar da via manter o mesmo uso, a forma como os proprietários vizinhos a utilizavam já não possa ser a mesma. Todavia, tais interesses privados não podem deixar de ser sacrificados ao interesse público. Sendo as serventias concedidas a título precário, então, nem a actuação da Administração é ilícita, nem há lesão de uma posição jurídica subjectiva consolidada dos proprietários confinantes.

Refere o sumário deste Acórdão o seguinte:

1. O direito de acesso à via pública é um direito subjectivo público sui generis de natureza administrativa e não um direito civil de servidão;
2. Não faz parte do direito de acesso à via pública, o poder de exigir que se a mesma se construa, suspenda, cesse ou que se mantenha inalterada.”

Veja-se ainda Acórdão do STA, proc n.º 040581, de 13.01-2004, quando refere:

“II - O direito de acesso dos confinantes à via pública é um direito subjectivo-público "sui generis", não um direito civil de servidão.
III - O artigo 62° do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n° 2 110 de 19 de Agosto de 1961, subtrai à obrigação de indemnizar as situações em que é possível vencer as consequências das alterações na plataforma da via mediante obras na "serventia" ou na propriedade servida.

De todo o exposto se conclui que o acesso à via pública é um direito subjectivo-público "sui generis", não um direito civil de servidão. Os proprietários dos prédios confinantes têm direito a utilizar o acesso à via pública nas condições legais e regulamentares existentes, mas tendo sempre em atenção que a propriedade pública não está sujeita a restrições em favor dos proprietários confinantes. A Administração, não tem que respeitar o interesse desses proprietários em manter para sempre o modo de utilização da via.”
Significa isto que apenas apuradas todas as circunstâncias que rodeiam o modo como se processou e processa o acesso ao prédio dos autores se pode decidir o pedido reconvencional.
Não se está perante qualquer ineptidão uma vez que não se está a analisar do ponto de vista do pedido e causa de pedir estruturantes da ação (artº. 186º do C.P.C., nºs. 1 e 2); estamos em sede de análise do prosseguimento da apreciação do pedido reconvencional e a matéria em causa interessa ao mesmo e apenas nesse âmbito se lhe pode dar relevância.
Nessa mesma perspetiva não cabe apreciar qualquer alteração de pedido ou causa de pedir, figuras que se reportam, no caso dos autores, às suas pretensões tal como elencadas na p.i. (artº. 265º C.P.C.).
Cabe ainda atentar na compatibilização entre a absolvição que a ré obteve e que transitou, com a decisão aqui acolhida no sentido do apuramento da matéria que lhe está subjacente. Não podendo o eventual apuramento da matéria alegada dar suporte à procedência dos pedidos formulados, na medida em que foi interpretado pelo Tribunal como significando o pedido de reconhecimento de uma servidão de passagem sobre um espaço de domínio público, isso não obsta, a nosso ver, que esse apuramento não possa ser feito para efeitos de análise do pedido reconvencional (sem que daí decorra aquele efeito, mas podendo decorrer algum outro sobre este mesmo pedido reconvencional).
Igualmente o facto de a ré ter sido absolvida da prática de atos que impeçam a passagem, bem como da obrigação de demolir o muro (-oque tem de ser sempre salvaguardado, conforme ainda o nº. 5 do artº. 635º do C.P.C.), tal não significa que o pedido reconvencional em que se pede o reconhecimento do direito de passagem não possa ser improcedente, deixando em aberto para outras instâncias o apuramento de outros eventuais efeitos (pensamos na vertente indemnizatória que não pode ser sem mais excluída, nomeadamente tendo em conta eventual abuso de direito).
Sem se pretender fazer qualquer tipo de apreciação quanto aos efeitos em concreto da factualidade alegada pelos autores, uma vez que só os termos em que a mesma for apurada pode permitir qualquer ilação, o que dizemos é que é prematuro decidir o pedido reconvencional face ao afastamento da ideia de que ele é o “oposto” (sem mais) dos pedidos dos autores.
Por tudo o exposto, o recurso deve ter acolhimento na medida em que a instância reconvencional deve prosseguir na totalidade, com a apreciação da matéria alegada pelos autores na p.i. relativa à constituição de servidão antes dos anos 70, e demais factualidade que se afigurar relevante (incluindo a concretização de factualidade alegada, na medida do legalmente admissível), nomeadamente para eventual conhecimento oficioso de exceção se isso se afigurar ser pertinente.
Deste modo, revoga-se a decisão proferida que julgou procedente o pedido reconvencional na parte em que declarou que a favor dos AA./reconvindos não existe qualquer direito de passagem, seja a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do edifício “Portas ...”, devendo antes os autos prosseguir (também) para sua apreciação, acrescentando-se ao objeto do litígio e aos temas da prova o âmbito e a matéria “supra” referidos.
***
V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso dos autores procedente, e em consequência, dando provimento à apelação, revoga-se a sentença recorrida na parte que decidiu “Declarar que a favor dos AA./reconvindos não existe qualquer direito de passagem, seja a pé ou com qualquer veículo motorizado ou não, sobre o espaço que constitui o átrio do edifício “Portas ...”, determinando-se a prossecução dos autos para apreciação também da “supra” identificada alínea b) do pedido reconvencional.
Custas pela ré (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
*
Guimarães, 20 de maio de 2021.
*
Os Juízes Desembargadores

Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Maria da Conceição Bucho

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)