Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1588/13.1TBGMR-G.G1
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
DEVER FUNCIONAL
PRINCÍPIOS DO DISPOSITIVO
PRECLUSÃO E AUTORRESPONSABILIDADE
FALHAS DE INSTRUÇÃO IMPUTÁVEIS ÀS PARTES
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
ADEQUAÇÃO AO PADRÃO DE VIDA DE CIDADÃO INSOLVENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O convite ao suprimento das insuficiências probatórias, ao abrigo do princípio do inquisitório do artigo 411.º do Código de Processo Civil, é uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever funcional.

II- O princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.

II- A omissão desse acto devido, influindo no exame e decisão da causa, implica a nulidade da decisão nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 195.º do Código de Processo Civil.

III- Tal convite encontra-se balizado pelos princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.

IV- O rendimento disponível deve corresponder ao necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos membros do seu agregado familiar e se fundamenta na salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal.

V- É dever do insolvente adaptar o seu estilo e nível de vida ao padrão social condizente com a sua situação de insolvência.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
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I - RELATÓRIO.

AS PARTES
INSOLVENTES: B. S. e M. C..

Por sentença datada de 22.05.2013, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de B. S. e de M. C., na sequência da apresentação à insolvência efectuada pelos insolventes.
Por despacho datado de 03.10.2013, foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência os insolventes deveriam ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse o salário mínimo nacional, nomeadamente quaisquer subsídios de férias e de natal que viessem a auferir (“Entregarem imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda o salário mínimo nacional, nele se incluindo todo e qualquer subsídio de férias e de natal que lhes venha a ser pago “). Tal decisão foi confirmada pelo Ac. Tribunal da Relação de Guimarães proferido no âmbito do apenso D.

Para tanto, a decisão teve como suporte a seguinte factualidade:

- Por sentença datada de 22.05.2013, a fls. 93ss, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de B. S. e M. C., no seguimento da apresentação à insolvência efectuada por estes devedores em 08.05.2013;
- O insolvente-marido nasceu em -.06.1982 e a insolvente-mulher em 15.01.1982, sendo casados entre si desde 09.03.2004 segundo o regime de comunhão de adquiridos (cfr. CAN a fls. 60 e 63 e CAC a fls. 66);
- Os insolventes nunca beneficiaram da exoneração do passivo restante (cfr. CAN a fls. 60 e 63);
- Aos insolventes não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. CRC a fls. 187 e 188);
- A insolvente-mulher encontra-se desempregada, sem que aufira subsídio de desemprego e sem que haja notícia que se encontra inscrita em centro de emprego (relatório a fls. 145ss);
- O insolvente-marido é aprendiz de calceteiro, auferindo mensalmente €485 (recibos a fls. 180);
- Aos insolventes é conhecido o bem imóvel descrito a fls. 4 do apenso A, com um valor patrimonial de €117.061,13;
- Os insolventes residem com dois filhos, de 8 e 4 anos de idade, no imóvel apreendido (relatório a fls.145ss e CAN a fls. 71 e 74);
- Foram reconhecidos créditos a 3 credores, num total de €127.658,56 (apenso B), sendo que:
- €125.746,56 foram reclamados pela Caixa … (pastas contendo as reclamações de créditos) com fundamento em dois saldos devedores de cartão de crédito (nos valores de €471,06 e €352,67) e dois contratos de mútuo com hipoteca celebrados em 09.05.2005 e 23.08.2006, pelos valores respectivos de €95.000 e €25.000 e incumpridos, respectivamente, desde 09.08.2012 e 24.09.2012;
- €420 foram reconhecidos ao BCP;
- €1.492 foram reconhecidos ao Barclays.
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Em 01.06.2018 vieram os insolventes requerer a alteração do valor do rendimento indisponível para os €1.552 (o que corresponderia a não procederem à entrega, nomeadamente, dos subsídios de férias e de natal talqualmente por si pretendido aquando da apresentação à insolvência) com o argumento de que terão sido pais novamente (em 03.06.2016), o que acarretou um aumento das despesas do agregado familiar.
A 04.10.2018 foi proferida decisão a recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante pedido pelos insolventes, e em consequência foi declarado prejudicado pedido de alteração do valor do rendimento disponível bem como o requerimento de fraccionamento em prestações do valor em dívida à fidúcia.

Em tal decisão, o tribunal a quo deu como assente a seguinte factualidade:

- Por sentença datada de 22.05.2013, a fls. 93ss, foi declarada a insolvência de B. S. e de M. C., na sequência da apresentação à insolvência efectuada pelos insolventes;
- Por despacho datado de 03.10.2013, a fls. 194ss, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência os insolventes deveriam ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse o salário mínimo nacional, nomeadamente quaisquer subsídios de férias e de natal que viesse a auferir; tal decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão proferido no âmbito do apenso D.;
- À data da prolação do despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, os insolventes eram pais de duas crianças, então com 8 e 4 anos de idade, tendo tal facto sido valorado na fixação do rendimento disponível;
- O processo de insolvência foi encerrado por despacho datado de 15.12.2014, a fls. 318, pacificamente transitado em julgado;
- Os insolventes jamais efectuaram quaisquer cessões à Exma. Sra. Fiduciária (cfr. fls. 344ss, 401ss e 460ss);
- Em 03.06.2016 os insolventes tiveram o seu terceiro filho (cfr. fls. 431v);
- O insolvente-marido recebeu as seguintes quantias líquidas entre Dezembro de 2014 e Fevereiro de 2018 (cfr. fls. 372, 382ss, 386ss, 417ss, 428ss e 484ss ):
- A insolvente-mulher recebeu as seguintes quantias líquidas entre Dezembro de 2014 e Janeiro de 2018 (cfr. fls. 417v e 504ss):
- A insolvente esteve inscrita em centro de emprego entre 09.08.2013 e 29.01.2014 e reinscreveu-se em 22.02.2016 (cfr. fls. 390, junto pela própria);
- Em 07.07.2016 os insolventes receberam um reembolso em sede de IRS no valor de €109,15 (cfr. fls. 441);
- Em 2017 os insolventes receberam um reembolso em sede de IRS no valor de €318 (cfr. fls. 490);
- O agregado familiar dos insolventes recebeu ainda os seguintes valores mensais líquidos a título de abono de família (devidos aos menores seus filhos) no período compreendido entre Dezembro de 2014 e Fevereiro de 2018 (cfr. fls. 454 e 563ss):
- Os dois filhos mais velhos dos insolventes foram incluídos no escalão A da acção social escolar nos anos lectivos de 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018, que se traduziu nos seguintes benefícios: (cfr. fls. 593)
- Refeições gratuitas em todos os anos lectivos para os dois menores;
- Livros escolares gratuitos para o menor S. em todos os anos lectivos;
- Livros escolares gratuitos para a menor D. no ano lectivo de 2014/2015;
- €118 em livros escolares para a menor D. nos anos lectivos 2015/2016 e 2016/2017;
- €176 em livros escolares para a menor D. no ano lectivo 2017/2018;
- €12 em material escolar para o menor S. em todos os anos lectivos;
- €12 em material escolar para a menor D. no ano lectivo 2014/2015;
- €16 em material escolar para a menor D. nos anos lectivos 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018;
- €20 para visitas de estudo no ano lectivo 2017/2018 para cada um dos menores S. e D..
Interposto recurso da decisão da primeira instância que recusou antecipadamente a exoneração do passivo restante, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, com data de 24.01.2019, foi proferida decisão a revogar a decisão que decretou a antecipada cessão da exoneração do passivo restante e determinou “o prosseguimento dos ulteriores termos do incidente, devendo ser apreciadas as questões suscitadas pelos requeridos relativas ao plano de pagamento dos valores em dívida indicados na supra fundamentação, e à alteração da decisão sobre o quantum mensal do rendimento disponível”.
Em cumprimento do ordenado pelo Tribunal da Relação de Guimarães a primeira instância ordenou as competentes diligências.

Foi proferida decisão pela primeira instância com data de 01.07.2019, pela qual foi indeferido o pedido de alteração do rendimento disponível.

Os insolventes dela vêm interpor RECURSO, pedindo a revogação da decisão e sua substituição por outra, a julgar procedente o pedido de alteração do rendimento disponível.
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Os recorrentes/insolventes apresentou as seguintes CONCLUSÕES:

A. Os recorrentes apresentaram-se à insolvência no pretérito dia 8 de Maio de 2013, tendo-lhes sido fixado a título de rendimento indisponível o equivalente a 1 SMN para cada um dos recorrentes por Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante e Nomeação de Fiduciário, datado de 3 de Outubro de 2013.
B. Em 21 de Setembro de 2013 não se conformando com esse valor, nem compreendendo o montante atribuído a cada um dos visados, os insolventes interpuseram recurso, no qual requereram a revogação da decisão recorrida por outra que concedesse aos insolventes, e durante o período da cessão, um valor nunca inferior a 3 salários mínimos nacionais, assim como, a nulidade da decisão recorrida. Por acórdão datado de 13 de Fevereiro de 2014 foi julgada improcedente a apelação e, consequentemente confirmada (!) a decisão recorrida.
C. Em 15 de Dezembro de 2014, foram os autos encerrados para efeito de início do nuclear período de cessão, durante o qual os insolventes estavam obrigados a ceder à massa insolvente todas e quaisquer quantias que auferissem acima do valor equivalente a dois salários mínimos nacionais (1 SMN + 1SMN).
D. Sucede que, em 3 de Junho de 2016, nasceu o terceiro filho dos insolventes, T. M., pelo que os insolventes passaram a enfrentar naturalmente novos compromissos financeiros e económicos, dado que é inevitável o acréscimo das despesas com o novo membro da família, como é confessado pelo próprio Tribunal a quo.
E. A responsabilidade dos insolventes duplicou, porquanto são inúmeras as despesas que surgem recorrente ou extraordinariamente com três filhos menores de idade, um deles ainda bebé, sendo expectável que as mesmas variem conforme as necessidades dos menores.
F. Por requerimento datado de 1 de Junho de 2018, os insolventes requereram a alteração do rendimento disponível, tendo em consideração nascimento do terceiro filho dos requerentes e, consequentemente, o aumento das despesas mensais, de modo a que pudessem dispor de um valor global de EUR. 1 552,00 para o sustento do seu agregado familiar, com o mínimo de dignidade.
G. Nessa senda, por requerimento datado de 6 de Julho de 2018, e porque o Tribunal a quo não se tinha pronunciado, proactivamente e cientes da existência do valor de EUR. 2 509,95 em débito para com a massa insolvente, e não sendo possível aos insolventes despenderem da quantia em causa de uma só vez, declararam que estavam os mesmos disponíveis para proceder à cessão para a massa insolvente, do rendimento disponível que auferissem acima dos 2 salários mínimos nacionais fixados no Despacho de Exoneração do Passivo Restante acrescidos de EUR. 132,08 até ao final do período de 5 anos, regularizando assim todos os montantes em falta.
H. Exactamente 6 dias depois da apresentação daquela proposta (em 12.07.2018) o Tribunal a quo notificou os insolventes do requerimento apresentado pela “CAIXA ...”, credora nos autos. Não tendo o Tribunal a quo tomado posição relativamente a esses requerimentos, até à presente data, seguramente por lapso técnico.
I. De cima do tablado o Tribunal a quo proferiu, em 4 de Outubro de 2018 com os dizeres alegados supra, culminando: “se os insolvente não cumpriram integralmente as suas obrigações, nomeadamente a de entrega à Exma. Sra. Fiduciária de todos os valores por si recepcionados que ultrapassam o salário mínimo nacional, foi opção sua, pois que, repete-se, teria condições económicas para o efeito.”.
J. Por não concordarem com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, em 30 de Outubro de 2018, os insolventes decidiram interpor recurso da mesma, tendo requerido, nomeadamente, a revogação da decisão recorrida por outra que permitisse aos recorrentes cederem ao fiduciário o montante mensal que recebessem e fosse superior ao equivalente a 3,5 SMN ou, subsidiariamente, a EUR. 1 552,00.
K. Assim, por acórdão datado de 24 de Janeiro de 2019 foi “revogada a decisão recorrida que decretou a antecipada cessão da exoneração do passivo restante (…)” e determinado o “prosseguimento dos ulteriores termos do incidente, devendo ser apreciadas as questões suscitadas pelos requeridos relativas ao plano de pagamento dos valores em dívida indicados (...) e à alteração da decisão sobre o quantum mensal do rendimento disponível”.
L. Por despacho de 01.07.2019 entendeu o Tribunal a quo não estar justificada a pretendida alteração do valor do rendimento indisponível, justificando tal decisão nos termos e com os fundamentos já previamente invocados por despacho de 4 de Outubro de 2018. Traduzindo-se a decisão do Tribunal a quo de que ora os insolventes recorrem um simples “copy paste” da anterior decisão do Tribunal de 04.10.2018.
M. De facto não pode escapar incólume o desajustado, incompreensível e, sobretudo, totalmente incoerente processo lógico-racional levado a cabo pela Meritíssima Juiz a quo no douto despacho.
N. Posteriormente à atribuição a título de rendimento indisponível do valor equivalente a 2 (dois) salários mínimos nacionais, por despacho datado de 3 de Outubro de 2013, verificou-se uma significativa alteração das circunstâncias da vida dos requerentes, o que deverá, sobremaneira, ser tida em conta pelo Tribunal.
O. Em 3 de Junho de 2016, nasceu o terceiro filho dos insolventes, T. M., actualmente com 3 anos e 1 mês de idade.
P. Ressalta à evidência que a responsabilidade dos insolventes duplicou, porquanto são inúmeras as despesas que surgem recorrente ou extraordinariamente com três filhos menores de idade, um deles ainda “bebé”, e que não podem ser quantificadas e determinadas por referência a um período temporal tão curto (mês), sendo expectável que as mesmas variem conforme as necessidades dos menores.
Q. Ademais, é de fácil percepção que o nascimento do terceiro filho dos insolventes culminou num acréscimo às despesas de aproximadamente EUR. 310,00.
R. Embora a Meritíssima Juiz a quo entenda o contrário, é inquestionável que todas estas despesas constituem factos notórios, na medida em que estão estribadas segundo um critério padrão de um agregado familiar composto por cinco pessoas.
S. O douto Tribunal ad quem, seguramente conhece o custo de vida e os encargos regulares de um agregado familiar, pelo que aquilatará da regularidade e acerto de tais valores, sendo certo que não estão em causa quaisquer despesas luxosas, mas tão-só as necessidades básicas e elementares dos recorrentes e do seu agregado familiar.
T. Destarte, uma coisa é certa e inquestionável, os insolventes têm despesas correntes e imprescindíveis (como água, luz, alimentação e despesas com os três menores) que, considerando o seu custo actual, mesmo com grande contenção e sacrifício, facilmente ultrapassam os EUR. 1 000,00 mensais.
U. Aliás, com um rendimento indisponível fixado em EUR. 1 200,00 e com despesas a rondar os EUR. 1 552,00 os insolventes não conseguirão, de forma nenhuma, colmatar tais despesas, com o seu actual rendimento mensal, pelo que é inconcebível a fixação de 1 SMN como rendimento disponível para cada um dos insolventes, tendo em linha de conta que o seu agregado familiar era constituído, na altura, por mais dois filhos menores e, actualmente, por três. Não se alcança que noção da realidade que Tribunal a quo detém, pois não a demonstra.
V. Note-se que a decisão da Veneranda Relação de Guimarães, transitada em julgado, determinou concretamente que o Tribunal a quo deveria promover a alteração do rendimento indisponível do agregado familiar dos recorrentes de modo a que consiga sobreviver condignamente.
W. O facto de haver mais uma “boca a comer” não pode diminuir o valor a que cada ser humano tem direito – 1 SMN –, ou seja, se o facto de ter três filhos, que implica despesas acrescidas, não for equacionado no valor a ceder está a eliminar-se o direito a ter filhos ou a mantê-los, pelo que o despacho judicial em crise deverá ser substituído por outro que determine que os recorrentes apenas cedam ao fiduciário o montante mensal que recebam e seja superior ao equivalente a 3,5 SMN, resultante da quantia necessária para que possa prover dignamente à sua subsistência.
X. No limite, deverá conceder-se o valor de EUR. 1 552,00 e a manter-se enquanto o rendimento dos recorrentes não sofrer qualquer alteração positiva e nunca baixar este valor, sob pena de inconstitucionalidade da norma ínsita no art. 239.º do CIRE.
Y. Atente-se na pérola do Tribunal a quo: “se os insolventes decidiram ter um terceiro filho, tal decisão apenas a eles é assacável, já que sabiam que com esse nascimento necessariamente aumentariam as despesas que já suportavam. E diga-se que a decisão de ter um terceiro filho mal se compreende num contexto de terem já a seu cargo dois filhos menores, de estar pendente o presente incidente e de a insolvente-mulher se encontrar desempregada.”.
Z. Em lado algum do ordenamento jurídico português, especialmente o constitucional, é dito que é expressamente proibido aos insolventes terem filhos e/ou constituírem família por força dessa condição, pelo que o infeliz desabafo do Tribunal a quo revela-se profundamente desajustado.
AA. O Tribunal a quo afirma que “a informação prestada pela DREN quanto ao escalão de acção social escolar em que foram colocados os menores S. e D. nos anos lectivos de 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 12017/2018 infirmam a alegação de que mensalmente os insolventes despenderão €40 em despesas escolares e de transporte e de €650 em alimentação (…) os menores S. e D. têm beneficiado, desde o início do período de cessão, de refeições gratuitas nos respectivos estabelecimentos de ensino por si frequentados bem como de atribuição gratuita de manuais escolares (…)”. Continuou o Tribunal a quo “as invocadas despesas com os menores são ainda cobertas (…) pelo valor que os insolventes recebem do ISS todos os meses a título de abono de família".
BB. Ultimando o Tribunal a quo “ainda que os valores percebidos a título de abono de família devido aos menores não possam ser contabilizados para efeitos de cessões, o certo é que os mesmos não podem deixar de ser valorados para aferir do efectivo esforço financeiro dos insolventes e da sua capacidade ou falta dela para cumprir as obrigações que o art. 239.º CIRE sobre si fazem recair”, “beneficiando os menores em idade escolar do escalão A da acção social escolar mais difícil se torna a defesa do argumento de que os vendimentos auferidos pelos insolventes, ainda que superiores ao salário mínimo nacional, são integralmente direccionados à satisfação das necessidades básicas dos filhos.”
CC. Se os menores recebem “escalão A”, “refeições gratuitas”, “atribuição gratuita de manuais escolares” e “abono de família” é porque realmente carecem disso, uma vez que estes benefícios não são “dados à toa”, perdoe-se o plebeísmo, mas antes àquelas pessoas que não têm outra alternativa. Era preferível que não recebessem qualquer tipo de “apoios”, isso denotaria que estariam numa situação muito mais favorável do que estão actualmente.
DD. Pegando ponto por ponto nos “benefícios” que o Tribunal a quo expõe como argumento justificativo das excessivas despesas alegadas pelos insolventes com os seus filhos, importa que fique assente que tais benefícios não são suficientes para fazer face aos dispêndios suportados com eles. Desde logo não pagam as refeições que integram o pequeno-almoço; o lanche a meio da manhã; o jantar; o lanche a meio da tarde; o lanche antes de dormir (ceia). Ou será que os pobres não têm direito àquelas refeições?
EE. O valor facultado por força desses benefícios é diminuto (aproximadamente EUR. 16,00) face aos valores efectivamente necessários.
FF. O total agregado dos gastos médios dos recorrentes nos anos que o Tribunal a quo tomou por consideração importa em EUR. 721,51, o que permite apurar uma diferença EUR. 681,51 e que a dividir por 12 dá EUR. 56,80, mais do que o alegado pelos recorrentes.
GG. Na douta decisão do Tribunal a quo e da qual aqui se recorre, entendeu a Meritíssima Juiz que, além de os recorrentes não demonstrarem algumas das despesas invocadas no requerimento de 1 de Junho de 2018, não foi junto qualquer recibo de renda comprovativo da invocada despesa de habitação.
HH. Ao Tribunal é imposto um dever de cooperação nos termos e para os efeitos do art. 7.º do CPC e de procura da verdade material, não podendo comportar-se como parte, uma vez que a CRP não lhe consente tal despautério.
II. Mais uma vez, o Tribunal a quo decidiu sem mais, pelo que o despacho recorrido enferma de ilegalidade por violação do dever de convite ao aperfeiçoamento previsto no art. 590.º, n.º 4 do CPC ex vi art. 17.º do CIRE, ao que acresce que, o art. 436.º do Código do Processo Civil, aplicável ex vi art. 17.º do CIRE, permite ao Juiz, por sua iniciativa requisitar informações ou documentos que repute necessários ao esclarecimento da verdade, faculdade que o Tribunal a quo mais uma vez não empregou.
JJ. Assim, temos de concluir que omitiu a Meritíssima Juiz a quo, in casu, um convite à parte que a lei processual impunha, omissão essa que, como é óbvio, influiu no exame e decisão da causa, daí padecer a decisão recorrida de uma nulidade processual prevista no art. 195.º do Código de Processo Civil, a qual se argui desde já para todos os legais efeitos.

DITO ISTO:

KK. Tudo o alegado evidencia o desajuste da decisão recorrida.
LL. Foram violados, entre outros, o art. 239.º, n.º 3 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas e arts. 7.º, 195.º, 436.º e 590.º, n.º 4 do Código do Processo Civil ex vi art. 17.º do CIRE e arts. 1.º, 36.º, 59.º, n.º 1, al. a) e 73.º. da Constituição da República Portuguesa. “.
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Foi o recurso admitido, como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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II-FUNDAMENTAÇÃO.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
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As questões a decidir são as seguintes:

A) Nulidade da decisão por omissão do dever funcional de convite ao aperfeiçoamento – artigo 195.º do Código de Processo Civil.
B) Fixação do rendimento disponível e alteração das circunstâncias.
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OS FACTOS

A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

- Em -.06.2016 nasceu T. M., filho dos insolventes; (cfr. fls. 431v).
- O insolvente-marido auferiu as seguintes quantias líquidas entre Dezembro de 2014 e Janeiro de 2019 (cfr. fls. 372, 382ss, 386ss, 417ss, 428ss, 484ss e 716ss):
- A insolvente-mulher auferiu as seguintes quantias líquidas entre Dezembro de 2014 e Janeiro de 2019 (cfr. fls. 417v, 504ss, 719ss, 749ss e 765):
- O agregado familiar dos insolventes recebeu ainda os seguintes valores mensais líquidos a título de abono de família (devidos aos menores seus filhos) no período compreendido entre Dezembro de 2014 e Dezembro de 2018 (cfr. fls. 454, 563ss e 756v):
- Os dois filhos mais velhos dos insolventes foram incluídos no escalão A da acção social escolar, nos anos lectivos de 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017, 2017/2018 e 2018/2019, que se traduziu nos seguintes benefícios: (cfr. fls. 593 e 770)
Refeições gratuitas em todos os anos lectivos para os dois menores;
Livros escolares gratuitos para o menor S. em todos os anos lectivos;
Livros escolares gratuitos para a menor D. no ano lectivo de 2014/2015;
€118 em livros escolares para a menor D. nos anos lectivos 2015/2016 e 2016/2017;
€176 em livros escolares para a menor D. no ano lectivo 2017/2018;
€154 em livros escolares para a menor D. no ano lectivo 2018/2019;
€12 em material escolar para o menor S. nos os anos lectivos 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018;
€16 em material escolar para o menor S. no ano lectivo 2018/2019;
€12 em material escolar para a menor D. no ano lectivo 2014/2015;
€16 em material escolar para a menor D. nos anos lectivos 2015/2016, 2016/2017, 2017/2018 e 2018/2019;
€20 para visitas de estudo nos anos lectivos 2017/2018 e 2018/2019 para cada um dos menores S. e D.. ”.
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O DIREITO

A)
Da nulidade da decisão por omissão do dever funcional de convite ao aperfeiçoamento – artigo 195.º do Código de Processo Civil.

Sustentam os recorrentes que ocorre nulidade por o tribunal recorrido não haver feito uso do dever de convidar os requerentes a corrigir, completar o seu requerimento probatório, nos seguintes modos:

GG. Na douta decisão do Tribunal a quo e da qual aqui se recorre, entendeu a Meritíssima Juiz que, além de os recorrentes não demonstrarem algumas das despesas invocadas no requerimento de 1 de Junho de 2018, não foi junto qualquer recibo de renda comprovativo da invocada despesa de habitação.
HH. Ao Tribunal é imposto um dever de cooperação nos termos e para os efeitos do art. 7.º do CPC e de procura da verdade material, não podendo comportar-se como parte, uma vez que a CRP não lhe consente tal despautério.
II. Mais uma vez, o Tribunal a quo decidiu sem mais, pelo que o despacho recorrido enferma de ilegalidade por violação do dever de convite ao aperfeiçoamento previsto no art. 590.º, n.º 4 do CPC ex vi art. 17.º do CIRE, ao que acresce que, o art. 436.º do Código do Processo Civil, aplicável ex vi art. 17.º do CIRE, permite ao Juiz, por sua iniciativa requisitar informações ou documentos que repute necessários ao esclarecimento da verdade, faculdade que o Tribunal a quo mais uma vez não empregou.
JJ. Assim, temos de concluir que omitiu a Meritíssima Juiz a quo, in casu, um convite à parte que a lei processual impunha, omissão essa que, como é óbvio, influiu no exame e decisão da causa, daí padecer a decisão recorrida de uma nulidade processual prevista no art. 195.º do Código de Processo Civil, a qual se argui desde já para todos os legais efeitos. “.

A M.ma Juíza sustentou a sua decisão nos seguintes termos:

Invocam os recorrentes a nulidade da decisão recorrida porquanto o tribunal terá omitido um supostamente vinculado convite ao aperfeiçoamento por não terem notificado os recorrentes a juntarem prova de uma alegação por eles produzida.
Bem é de ver que o tribunal não está vinculado a suprir quaisquer falhas na produção de prova das partes. As falhas que o Tribunal pode convidar as partes a suprir são falhas na alegação de factos tidos por relevantes para a boa decisão da causa e não falhas na produção das provas tendentes à demonstração dos factos tidos por relevantes para a boa decisão da causa.
Tanto basta para concluir pela não verificação da apontada nulidade. “.
Vejamos se ocorre a apontada nulidade – iremos apreciar apenas a argumentação jurídica dos recorrentes, deixando fora desta decisão a apreciação e considerações “ajurídicas” que os recorrentes fazem da conduta e da decisão tomada pela M.ma Juíza.
Uma das linhas mestras do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – que alterou o artigo 645.º n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961, atribuindo-lhe uma redacção igual à do artigo 526.º n.º 1 do Código de Processo Civil actual –, tal como definidas no seu preâmbulo, era a de privilegiar a decisão de fundo sobre a decisão meramente formal, através de uma atitude mais interventiva do Juiz – cfr. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão.
Nas palavras do legislador de 1995, cabia ao processo civil procurar a verdade material, em vez de se privilegiarem aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do Direito Substantivo ao caso concreto – cfr. citado diploma legal: “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.” De notar, que quando o legislador fala em verdade material, quer significar como sendo a absoluta correspondência entre afirmações sobre factos e a realidade dos mesmos através da produção da prova. Esta verdade material, será ou tenderá a ser, aquela “verdade processual”, que os diversos meios de prova permitam apurar. A prova tem por finalidade a demonstração da verdade de uma afirmação de facto controvertida. Ou nas palavras acertadas de JOSÉ IGREJA MATOS, O Juiz e o Processo Civil (Contributo para um debate necessário), in Julgar, 2, pág. 105, “A verdade judicial resulta de um debate privado e condicionado, por isso é relativa, e esgota-se no momento em que é pronunciada, por isso temporária”.
A maior prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo foi explicada da seguinte forma no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro: “Procede-se a uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados. (…)
Para além de se reforçarem os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adoptar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se as restrições excepcionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Esta prevalência da verdade material sobre a forma é a razão de ser da opção feita pelo legislador pela consagração do princípio do inquisitório em matéria da instrução do processo em detrimento do princípio do dispositivo.
É significativo a expressão sistemática da inserção do artigo 411.º do Código de Processo Civil, logo nas disposições gerais do Título V, Instrução do processo, na actual redacção. O legislador, quis alterar o paradigma quanto aos princípios aplicáveis na instrução do processo que “tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.
Os autores, JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 207, afirmam que é no domínio da instrução do processo, que “o juiz tem poderes mais amplos do que no domínio da investigação dos factos, na medida em que se pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes, mas não lhe é lícito, a menos que o processo seja de jurisdição voluntária (art. 986-2, 1.ª parte), considerar factos essenciais não alegados (arts. 5-1, 608-2, 2.ª parte e 615-1-d, 2.ª parte).” É precisamente esta última parte, que MARIANA FRANÇA GOUVEIA, Os Poderes do Juiz na Acção Declarativa, Em Defesa de um Processo Civil ao Serviço do Cidadão, in Julgar, 1, pág. 60, entende que aqui não existe qualquer “restrição” ou compressão do princípio do inquisitório atrás apontado, quando afirma, “(…) diríamos que o juiz pode ordenar oficiosamente diligências probatórias em relação a factos principais alegados e em relação a factos instrumentais, estejam ou não alegados”.

Daí que, genericamente, se pode afirmar que o não uso dos poderes instrutórios por parte do juiz, acarreta a omissão de acto que a Lei não quer que ocorra, omissão que é sancionada com a nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Neste sentido, JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 208. No caso, tal omissão influi na decisão da causa, pelo que a sua impugnação será por via de recurso da decisão final e não a sua arguição aquando da verificação do acto omitido.

Será este o caso dos autos?

O processo civil visa dar resposta a conflito de interesses privados, na sequência de apresentação a Tribunal de pretensões sujeitas a normas de direito privado. O princípio do dispositivo tem a sua génese, numa concepção liberal do processo, em que o juiz era o árbitro de um jogo em que as partes teriam o ónus de impulsionar o andamento, tendo a possibilidade de dispor do processo. Trata-se da emanação do princípio da autonomia privada, que domina o direito privado.
Hoje o processo só se inicia sob o impulso ou iniciativa da parte, formulando uma pretensão, um pedido – princípio do pedido. Quando percepcionamos este princípio com o do dipositivo, podemos concluir claramente, que segundo este (dispositivo) recai sobre as partes o ónus de alegação dos factos essenciais que consubstanciam a causa de pedir, A., e aqueles factos que podem integrar uma excepção, R.. De igual modo, na fase instrutória, recai sobre A. e R., respectivamente, o ónus de prova dos factos que a cada uma aproveita – artigo 342.º, n.º 1 e 2 do Código Cível (1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.).
Se continua a recair sobre as partes o ónus de apresentar a juízo a tutela jurisdicional do seu interesse ou direito, recaí sobre o juiz o “dever” de providenciar pelo andamento do processo a fim de obter decisão, em tempo razoável, de modo a ser activamente e efectivamente assegurado o direito fundamental, com garantia constitucional, de acesso ao direito e aos tribunais, artigo 20.º da CRP, e artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (direito de acção como direito de deduzir num tribunal uma concreta pretensão relativamente a uma situação jurídica que se quer ver tutelada). Como referências jurisprudenciais, quanto à qualificação deste poder como poder/dever temos entre outros, ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 14.11.2006, cons. Azevedo Ramos, ac. Tribunal da Relação do Porto, de 08.03.2004, des. Sousa Peixoto, ac. Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.06.2009, des. Manuel Gonçalves, ac. Tribunal da Relação do Porto de 02.05.2013, des. Araújo de Barros, ac. Tribunal da Relação do Porto de 16.12.2009, des. Rodrigo Pires, ac. Tribunal da Relação do Porto de 29.01.2002, des. Afonso Correia, ac. Tribunal da Relação do Porto de 07.06.2011, des. Pinto dos Santos, ac. Tribunal da Relação do Porto, de 19.10.2006l, des. Amaral Ferreira, in dgsi.pt.
Efectivamente, o processo deixou de ser um assunto de partes, em que não há interesses públicos a tutelar (concepção privatística do processo) e que as partes podem livremente dispor do processo. A função jurisdicional enquanto função do Estado, de modo a ser prestado o serviço público da justa composição de litígios de acordo com a verdade material, é em si mesmo um interesse do Estado. Assim, logo que os particulares submetam o litígio à função jurisdicional do Estado, este passa a ser um interesse do Estado que seja resolvido de acordo com uma justa resolução e de acordo com a verdade material, sendo a preservação de tal interesse uma incumbência do juiz. Esta é a razão de ser desta alteração significativa da natureza publicista do processo. Segundo entendimento de LEBRE DE FREITAS, ob. cit., o processo ou a forma processual tem como finalidade assegurar a justa composição do litígio, no respeito dos direitos das partes. Sobre esta evolução do nosso processo civil, entre outros MARIANA FRANÇA GOUVEIA, ob. cit., pág. 47 e segs..
No âmbito da instrução do processo (parte que nos interessa), o monopólio que pertencia às partes, de prova de factos alegados, deixou de existir. O juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, 1996, página 138.
O juiz tem a iniciativa de ordenar o depoimento testemunhal nos termos do artigo 526.º, bem como determinar junção de documentos, artigo 436.º, ordenar a realização de prova pericial, artigo 467.º, n.º 1, uma 2.ª perícia, artigo 487.º, n.º 2, a realização de inspecção judicial, artigo 490.º, ouvir pessoas após alegações, artigo 607.º, n.º1 e ouvir as partes, artigo 452.º, n.º 1. Esta panóplia de alterações quanto aos poderes do juiz do processo, veio dar um novo paradigma do que é o princípio do inquisitório no processo civil português, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, in ob. cit., pág 139.
Impõe a lei, segundo palavras deste autor, na ob. cit, pág 139, ao juiz o “dever de ordenar o depoimento testemunhal de pessoa que haja razões para presumir, no decurso da ação, que tem conhecimento de factos importantes para a decisão da causa (art. 645) quando até agora tinha o poder discricionário de o fazer só no caso de a inquirição de outra pessoa tornar manifesto o interesse do depoimento”.
Menciona o mesmo autor, com especial relevância para a decisão da nulidade arguida, que os poderes de que o juiz pode lançar mão, têm o seu campo no âmbito da produção da prova e já não da investigação dos factos, ob. cit, pág. 141. Em igual sentido, ARTUR ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., pág. 162/163.
De modo concordante e certeiro, NUNO LEMOS JORGE, Poderes Instrutórios do Juiz, Alguns Problemas, in Julgar 3, 2007, afirma que na nova formulação decorrente da alteração do Código de Processo Civil de 1995, cabe ao juiz “a iniciativa da prova”, pág. 61. Neste artigo, são apontados os perigos e/ou problemas que se podem colocar no uso deste poder dever. Precisa que “no que diz respeito aos poderes instrutórios do juiz, há que reconhecer que, antes de mais, eles encontram um limite natural nas garantias das partes, assumindo particular importância, neste caso, a garantia de imparcialidade do tribunal. (…) É este o difícil equilíbrio a gerir: demasiadas concessões às sugestões probatórias das partes podem transformar o juiz num instrumento de uma (ilícita) fuga aos ónus probatórios das partes; demasiada insensibilidade às pretensões de uso, pelo juiz, dos seus poderes instrutórios podem implicar o incumprimento do poder-dever previsto no n.º 3 do artigo 265.º”, NUNO LEMOS JORGE, ob. cit., pág. 69/70.
Ou em palavras de LOPES DO REGO, in, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág. 425, “O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste – não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos groseira e indesculpavelmente negligentes das partes”.

Na verdade, a par do princípio do dispositivo, que onera as partes, igualmente existe o princípio da autorresponsabilidade das partes. Recai sobre as partes o dever de impulso processual e de alegação. Com efeito, as partes são quem melhor conhecem os factos, a maior parte das vezes de modo directo, são elas quem têm mais interesse em apresentar os elementos factuais favoráveis à sua pretensão. Não é do interesse da parte alegar factualidade, ainda que verdadeira, que lhe seja desfavorável. Por contraponto, o juiz alheio ao conflito, à factualidade que o sustenta, não está em condições de poder ter o domínio sobre tais circunstâncias. Como dissemos, terá já iniciativa da prova, se da discussão puder resultar tal conhecimento.

Não havendo a parte indicado prova documental, fica precludida a possibilidade de em momento posterior vir indicar prova, ou mesmo, por via enviesada, sugerir a sua produção. Acompanhando este entendimento, NUNO LEMOS JORGE, in ob- cit., pág. 70, diz: “Se foi a própria parte a negligenciar os seus deveres de proposição da prova, não seria razoável impor ao tribunal o suprimento dessa falta. Apenas na hipótese — raríssima — de resultar do já processado, designadamente da produção de outras provas, objectiva e seguramente, a necessidade de tal diligência, revelando-se esta em termos que permitam concluir que se verificaria igualmente caso a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório, é que o juiz deverá, excepcionalmente, atender a tal “sugestão”. “A eventual negligência ou inépcia alegatória/probatória das partes redundará, assim, e inevitavelmente, em seu prejuízo, uma vez que não poderão as mesmas contar (sempre) com uma aturada exercitação, pelo juiz, dos seus poderes/deveres de suprimento e de indagação oficiosa. Recai, pois, sobre eles a tarefa de contribuir, de modo diligente e eficiente, para a formação da convicção do julgador, esta naturalmente alicerçada na valoração final de todas as provas trazidas à instrução, discussão e julgamento do pleito”, FERREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., pág. 96.
Não cabe ao juiz no exercício do citado “poder-dever” em caso de ausência de prova documental ordenar a sua requisição às partes ou a terceiros para prova de certa factualidade, vendo que uma das partes irá ver soçobrar a sua pretensão por falta de prova. Igualmente, em caso de certo e determinado documento ser inócuo quanto a certa factualidade, não é caso de “pedir/sugerir” a junção de um outro para suprir a deficiência daqueloutro ao abrigo do “poder-dever” do juiz, sem mais.

Neste sentido, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 28.05.2002, Cons. AFONSO DE MELO, (O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal não serve para suprir comportamentos negligentes das partes – pressupõe que estas cumpriram minimamente o ónus que sobre elas recai de indicarem as provas de que pretendem socorrer-se – e o conhecimento da importância do testemunho pode, hoje, provir de qualquer meio de prova – sumário), Ac. Tribunal da Relação do Porto, de 09.02.2015, Des. JOÃO NUNES (Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso mesmo, aquelas têm interesse direto em cumprir.), Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 04.03.2013, Des. ANA CRISTINA DUARTE, (Como já se salientou, este poder de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste, não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos negligentes das partes. Ou seja, a inquirição por iniciativa do tribunal constitui um poder-dever complementar de investigação oficiosa dos factos, que pressupõe, no mínimo, que foram indicadas provas cuja produção implica a realização de uma audiência - Cfr. Lopes do Rego, ob. e loc. cit.), Ac Tribunal da Relação do Porto, de 02.10.2006, Des. MACHADO SILVA, (A inquirição por iniciativa do tribunal constitui um poder-dever complementar de investigação oficiosa dos factos, que pressupõe, no mínimo, que foram indicadas provas cuja produção implica a realização de uma audiência, assim, v.g., se o autor omitiu culposamente a apresentação, em tempo útil, do requerimento probatório (e se o réu adoptou idêntica estratégia), não havendo lugar a actos de instrução, nos termos do art. 621.°, não incumbe naturalmente ao juiz ouvir, ao abrigo deste preceito, as pessoas que o autor "sugere" que sejam inquiridas". Sufragando-se este entendimento, por não se divisarem razões para dele divergir, conclui-se que a inquirição por iniciativa do tribunal, no caso dos autos, não pode ser deferida, sob pena de traduzir um suprimento oficioso de um comportamento negligente da parte, como sucedeu com a recorrente, ao não ter apresentado, tempestivamente, com a petição, o seu rol de testemunhas, nos termos do art. 63º do CPT.), Ac Tribunal da Relação de Coimbra, de 06.06.2017, Des. ARLINDO OLIVEIRA, (O dever de gestão processual e inquisitório que subjaz a tais preceitos não pode servir para “remediar” a inércia da parte, a quem incumbe a alegação e prova dos factos (a que está inerente a junção/indicação dos respectivos meios probatórios) em que assenta a sua pretensão, só se justificando, em nosso entender, o recurso a estes preceitos quando a parte não tem facilidade em os obter ou os não pode obter, devendo esta justificar a dificuldade de, ela própria obter o documento, como refere Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, 2004, Almedina, a pág. 474, em anotação ao disposto no artigo 535.º do CPC (a que corresponde o actual 436.º). Ora, nada é alegado no sentido de justificar a substituição do tribunal à parte na apresentação dos documentos, pelo que, igualmente, por este prisma, não pode proceder o recurso.). Em igual sentido, Ac Tribunal da Relação do Porto, de 22.02.2011, Des. JOSÉ CARVALHO, Ac Tribunal da Relação do Porto, de 17.05.2007, Des. CECÍLIA AGANTE, Ac. Tribunal da Relação do Porto de 19.10.2006, Des. AMARAL FERREIRA, Ac. Tribunal da Relação do Porto de 16.12.2009, Des. RODRIGO PIRES, , Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.04.2017, Des. EZAGUY MARTINS, todos acessíveis em dgsi.pt.
Assim, tudo ponderado, não se verifica a apontada nulidade de omissão de convite a suprir a falta de meio probatório, pois que sobre si recai o ónus de prova da factualidade por si alegada, não resultando dos autos a ocorrência de qualquer circunstância que impusesse distinta atitude da M.ma Juíza.
Soçobra a pretensão dos recorrentes, por não se verificar a arguida nulidade.
*
B)
Fixação do rendimento disponível e alteração das circunstâncias.

Os recorrentes/insolventes pretendem a alteração do montante do rendimento disponível de um salário mínimo para cada um, defendendo que as suas necessidades só serão satisfeitas com a alteração do valor do rendimento indisponível para os €1.552 (o que corresponderia a não procederem à entrega, nomeadamente, dos subsídios de férias e de natal talqualmente por si pretendido aquando da apresentação à insolvência1) com o argumento de que terão sido pais novamente (em 03.06.2016), o que acarretou um aumento das despesas do agregado familiar.
A factualidade a atender é a supratranscrita, que não foi impugnada ou objecto de recurso da matéria de facto.

Dispõe o artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com a epígrafe Cessão do rendimento disponível, o seguinte:

1 – (…)
2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 – (…).

Entendeu a M.ma Juíza o seguinte:

(…) não estão minimamente demonstradas algumas das despesas invocadas no requerimento de 01.06.2018: não foi junto qualquer recibo de renda comprovativo da invocada despesa de habitação, antes inculcando a declaração de fls. 570 (junta pelos insolventes em 04.07.2018) que estes residirão com os pais da insolvente mulher, sendo estes quem suportarão a eventual renda devida; a informação prestada pela DREN quanto ao escalão de acção social escolar em que foram colocados os menores S. e D. nos anos lectivos de 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017, 2017/2018 e 2018/2018 infirmam a alegação de que mensalmente os insolventes despenderão €40 em despesas escolares e de transporte e €650 em alimentação (€100 em pão, leite e fiambre; €100 em alimentação do insolvente marido; €450 em alimentação do agregado familiar): menores S. e D. têm beneficiado, desde o início do período de cessão, de refeições gratuitas nos respectivos estabelecimentos de ensino por si frequentados bem como de atribuição gratuita de manuais escolares, a despesa escolar que mais pesa nos orçamentos familiares, não se compreendendo como poderão as despesas de alimentação do agregado familiar atingir a apontada grandeza.
A isto acresce que as invocadas despesas com os menores são ainda cobertas (e no caso do menor T. M., totalmente cobertas) pelo valor que os insolventes recebem do ISS todos os meses a título de abono de família: só ao menor T. M. foi atribuído um abono de família que durante o ano de 2017 ascendeu aos €146,41/mês, passando para os €166,15 no ano de 2018.
Assim, este agregado familiar desde pelo menos Maio de 2017 que nunca teve um rendimento disponível para fazer face às suas despesas inferior a €1.480,30: ainda que os valores percebidos a título de abono de família devido aos menores não possam ser contabilizados para efeitos de cessões, o certo é que os mesmos não podem deixar de ser valorados para aferir do efectivo esforço financeiro dos insolventes e da sua capacidade ou falta dela para cumprir as obrigações que o art. 239.º CIRE sobre si fazem recair: tendo disponível mensalmente €219,62 a título de abono de família (€253 actualmente) e beneficiando os menores em idade escolar do escalão A da acção social escolar mais difícil se torna a defesa do argumento de que os vencimentos auferidos pelos insolventes, ainda que superiores ao salário mínimo nacional, são integralmente direccionados à satisfação das necessidades básicas dos filhos.
Aliás, tivesse o Tribunal tido conhecimento dos valores pagos a título de prestações sociais aos menores que integram o agregado familiar dos insolventes bem como os benefícios que lhes são concedidos a título de acção social escolar (valores nunca revelados pelos insolventes, antes tendo sido o Tribunal quem tomou a iniciativa de inquirir juntos dos serviços competentes pela sua concessão) e eventualmente o valor a ceder poderia não ter sido fixado somente naquele que excedesse o valor da retribuição mínima mensal garantida.
É de ponderar o que já foi decidido neste processo: o artigo 239.º, n.º 3, alínea b) i do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas “fixa, como limite máximo, para efeitos de rendimento indisponível, três salários mínimos nacionais. Quanto ao limite mínimo aponta uma cláusula geral traduzida no sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. Teremos de determinar, em cada momento e em cada caso concreto, qual o mínimo indispensável, dentro duma concepção de dignidade do devedor e seu agregado.
A jurisprudência constitucional balizou, como mínimo de sobrevivência, o rendimento de reinserção social. Este será o mínimo dos mínimos, abaixo do qual se põe em risco a subsistência de qualquer pessoa, no contexto da sociedade e ordenamento jurídico português.
O salário mínimo nacional tem uma finalidade de garantir já um sustento, com dignidade, face à média dos salários praticados no país que rondam, segundo estatísticas oficiais, os 800€. E as famílias, com este rendimento, tê de suportar todas as despesas inerentes ao seu sustento, que envolve alimentação, saúde, habitação, educação e outras despesas conexas. E uma grande parte das famílias vive com o salário mínimo nacional, com todas as despesas conexas com o seu sustento.”, Ac do Tribunal da Relação de Guimarães em 13.02.2014, que decidiu manter a decisão da primeira instância de fixar dois salários mínimos do agregado familiar dos ora recorrentes.
Em princípio, as decisões proferidas em processos de jurisdição contenciosa transitam em julgado (artigo 628.º do Código de Processo Civil), permanecendo imutáveis. Casos há, porém, em que – à semelhança da jurisdição graciosa – aquelas decisões gozam de uma imutabilidade “diminuída”, podendo ser alteradas, se circunstâncias supervenientes o impuserem.
Trata-se de situações que se prolongam no tempo, que estão sujeitas a numerosas vicissitudes e que podem variar na sua configuração. E, nesses casos, a decisão que foi tomada com base num determinado circunstancialismo pode, ao fim de algum tempo, revelar-se completamente desadequada à situação actual. Assim, sem abdicar da regra contemplada no artigo 613.º do Código de Processo Civil, a lei atenua a imutabilidade da decisão, permitindo a respectiva alteração se, paralelamente, se alterar a situação que ela visa regular.
O regime está previsto, em geral, para as resoluções proferidas em processos de jurisdição voluntária (artigo 988.º do Código de Processo Civil), mas aplica-se, também, em certos processos de jurisdição contenciosa, como nas acções de alimentos a maiores (artigo 2012.º do Código Civil). Neste sentido, Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.10, relatado pelo Cons. MOREIRA ALVES, in dgsi.pt.
O despacho inicial de exoneração do passivo restante (em que se determina o montante a excluir do rendimento disponível), cujo cumprimento se vai prolongar por cinco anos, apresenta-se como outro dos casos de jurisdição contenciosa em que as circunstâncias factuais em que assentou a decisão podem sofrer alterações. Com efeito, basta pensar, por exemplo, numa alteração do estado de saúde do devedor, a demandar gastos acrescidos, ou no nascimento de um filho, para se concluir pela razoabilidade de alteração do montante antes fixado. E, por isso, a lei acautelou a possibilidade de o juiz contemplar “outras despesas”, mesmo depois do despacho inicial.
Todavia, só é razoável mitigar a força do caso julgado se os factos susceptíveis de fundamentar a alteração forem objectiva ou subjectivamente posteriores à decisão alteranda. Se assim não fosse, estar-se-ia a tutelar a inércia ou desinteresse do devedor (único interessado em ver salvaguardada a realização das suas despesas) que, em qualquer momento e quantas vezes o entendesse, sempre poderia vir requerer a consideração de despesas que antes não cuidara de invocar.
Em consequência, temos de entender que a faculdade assegurada na parte final do ponto iii) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pressupõe a superveniência, objectiva ou subjectiva, das despesas aí mencionadas.
No caso dos autos, a factualidade atinente ao nascimento de mais um filho dos insolventes configura uma circunstância superveniente com relevância para a fixação do montante do rendimento disponível.
É de considerar que o agregado familiar dos insolventes é agora composto por eles, insolventes, e três menores. Efectivamente, ocorreu alteração do número de pessoas que integram o agregado familiar, nascimento de um filho. Configura este facto, por si só uma alteração significativa na economia familiar. Trata-se de facto notório que não carece de demonstração. Se é certo que tal acontecimento apenas aos insolventes pode ser assacado, o mesmo não pode à luz das normas legais e dos princípios citados implicar uma efectiva diminuição efectiva do rendimento que foi considerado como mínimo indispensável. Isto é, o nascimento de mais um filho acarreta um aumento de despesas, e em consequência o agregado dos insolventes viu diminuir o rendimento que o tribunal fixou como rendimento disponível, tendo como um dos pressupostos de facto a composição do agregado familiar, que agora (desde 2016) é distinto.
Na decisão a tomar é de considerar, entre outros elementos, a composição do agregado familiar, sua alteração, por um lado, e a situação na qual os insolventes estão colocados. Com efeito, na sequência da situação económico e financeira foram os mesmos declarados insolventes, dada a situação de carência de rendimentos. Deste modo, não se pode qualificar a actual situação dos recorrentes como de um agregado familiar “normal”, pois que o nível de vida sofreu uma alteração significativa, para pior. Se as necessidades são as normais de um agregado familiar como o dos insolventes, já a realidade da situação económico e financeiro é distinto, face à declaração de insolvência, pelo que irá representar sacrifícios a nível económico e financeiro. Por fim, é de ponderar também os legítimos interesses dos credores.
Por último é de ponderar, como foi na decisão em crise, o valor do salário mínimo à data em que se iniciou o período de cessão era de €505 mensais (cfr. DL 144/2014, de 30.09.2014), situação que se manteve até 31.12.2015. Entre 01.01.2016 e 31.12.2016 o salário mínimo nacional foi de €530/mês (cfr. DL 254-A/2015, de 31.12 e DL 86-B/2016, de 29.12), e entre 01.01.2017 e 31.12.2017 de €557/mês; a partir de Janeiro de 2018, o salário mínimo nacional passou a ser de €580 mensais. Já no corrente ano de 2019 é no valor de 600 €.

Pelo exposto, considera-se parcialmente procedente a pretensão dos recorrentes, fixando-se o valor de dois e meio salários mínimos nacionais. Montante que se encontra muito próximo do máximo legal, que é de três salários mínimos nacionais
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III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar parcialmente procedente a apelação, fixando o valor de dois e meio salários mínimos nacionais de rendimento disponível.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando o seu decaimento em 1/5 por referência ao valor da demanda (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

I – O convite ao suprimento das insuficiências probatórias, ao abrigo do princípio do inquisitório do artigo 411.º do Código de Processo Civil, é uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever funcional.
II – O princípio do inquisitório adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.
II – A omissão desse acto devido, influindo no exame e decisão da causa, implica a nulidade da decisão nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
III – Tal convite encontra-se balizado pelos princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.
IV – O rendimento disponível deve corresponder ao necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos membros do seu agregado familiar e se fundamenta na salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal.
V – É dever do insolvente adaptar o seu estilo e nível de vida ao padrão social condizente com a sua situação de insolvência.
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Guimarães, 14 de Novembro de 2019

Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira
Joaquim Luís Espinheira Baltar
Maria Luísa Meireles C. F. Duarte Ramos