Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
294/18.5GBPRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
CONDUÇÃO DE VEÍCULO NA VIA PÚBLICA
SUBMISSÃO TESTE PESQUISA DE ÁLCOOL
QUALIDADE DE CONDUTOR
LEGITIMIDADE DA ORDEM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Uma das categorias de cidadãos que estão sujeitos à submissão de provas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool é a dos condutores (cfr. arigo 152.º, n.º 1, al. a) do Código da Estrada1).
II) Conduzir significa guiar, ter a direção efetiva de um veículo, sendo indiferente para a qualificação de alguém como condutor o tempo durante o qual conduziu ou os metros que percorreu.

III) No caso de uma autoridade policial solicitar a um cidadão que remova o seu veículo automóvel do local onde se encontra estacionado, por tal ser proibido, é a esse cidadão que compete informar que não se encontra capaz de proceder ele próprio a tal remoção, por ter ingerido bebidas alcoólicas ou por qualquer outro motivo, diligenciando ele mesmo ou pedindo aos agentes da autoridade que diligenciassem para que outra pessoa retire o veículo do local.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Maria José Matos.

I. RELATÓRIO

No processo sumário n.º 294/18.5GBPRG, do Juízo de Competência Genérica de Peso da Régua, Juiz 1, da comarca de Vila Real, foi submetido a julgamento o arguido A. J., com os demais sinais dos autos.

A sentença, proferida oralmente a 20 de dezembro de 2018, tem o seguinte dispositivo:

«Nestes termos, o Tribunal julgou a acusação procedente por provada e, em consequência, decidiu:

a) Condenar o arguido A. J., na prática, como autora material de um crime de desobediência, p. e p. pelos art.ºs, 152º, nºs 1, alínea a) e 3 e 156º, ambos do Código da Estrada e artigos 69º, nº 1, alínea c) e 348º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 360,00 (trezentos e sessenta euros).
b) Na sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses.
c) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando a Taxa de Justiça no mínimo legalmente previsto, ou seja, 2 UC, e nas demais despesas e encargos com o processo.

O arguido foi ainda advertido de que terá que entregar a sua carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.

Foi ainda advertido de que, se conduzir veículos motorizados durante o período da proibição imposta, incorre na prática do crime de violação de proibições, p. e p. pelo art. 353º do C. Penal
Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal.
Comunique à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e ao I.M.T.T.»
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1. Vem o arguido condenado como autor material de um crime de desobediência, p. e p. pelos artºs, 152º, nºs 1, alínea a) e 3 e 156º, ambos do CE e artigos 69º, nº 1, alínea c) e 348º, nº 1, alínea a), ambos do, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, num total de € 360,00, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses e nas custas do processo.
2. Na decisão prolatada pelo douto Tribunal a quo encontram-se violadas as normas contidas nos artigos 152.º, n.º 1, a) e 3 do CE e 348.º, n.º 1, a) do CP;
3. Apesar dos factos dados como provados, entendeu aquele douto Tribunal que o arguido mantinha a qualidade de condutor e entendeu, ainda, que a ordem que lhe foi dirigida foi legítima e regularmente comunicada;
4. Discorda profundamente o arguido, pois entende que no momento da ordem a si dirigida já não gozava da qualidade de condutor, uma vez que tinha já terminado a condução.
5. Destarte, atento o hiato temporal considerável ocorrido entre a actividade de condução e a emanação da ordem a si dirigida, esta já não gozava da qualidade da atualidade, carecendo, assim, de ser legítima,
6. Motivo porque se não preencheram os elementos objetivos do tipo legal de crime a que o arguido foi condenado.
7. Motivo, finalmente, porque deve a decisão prolatada pelo douto Tribunal a quo, com os presentes argumentos, ou outros de conhecimento oficioso, ser substituída por outra que determina a absolvição do arguido.
8. Caso assim não se entenda, considerando-se a manobra de marcha atrás de cinco metros efetuada, sempre se dirá criticamente que a mesma não se compadece com o ato de condução previsto no CE.
9. Ainda que assim não fosse, a mesma não foi voluntária mas sim executada no cumprimento de ordem legítima da autoridade e, como tal, é causa de exclusão da sua ilicitude, nos termos do art. 31º, n.º2, alínea c) do CP.
10. Em abono do arguido concorre ainda a materialização de uma situação de conflito de deveres, sabendo que não estava apto para iniciar condução de veículo automóvel, por um lado, mas adstrito à necessidade de remover a viatura do local para repor a segurança rodoviária dos peões transeuntes, por outro;
11. Donde resulta a licitude da sua recusa em efetuar o teste de pesquisa de álcool nos termos expendidos, atento o preceituado a art. 36º do CP, por referência à extensão do princípio do direito à não auto-incriminação e do princípio da necessidade (art. 18.º, n.º 2 da CRP).»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito próprios.

O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
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1. Questões a decidir

Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, as questões a decidir são seguintes:

. ilegitimidade da ordem para a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado por o arguido não ter a qualidade de condutor de um veículo;
. ou, no caso de se considerar que tinha essa qualidade, saber se verifica uma causa de exclusão da ilicitude, por ter conduzido no cumprimento de ordem legítima da autoridade.
caso assim não se entenda, saber se a manobra de marcha atrás de cinco metros que o arguido efetuou não foi voluntária, porque executada no cumprimento de ordem legítima da autoridade.
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2. Factos Provados

A sentença foi proferida oralmente, nos termos do disposto no artigo 389-A, n.º 1 do Código de Processo Penal, sendo que no que toca à indicação dos factos provados e respetiva motivação, do registo áudio efetuado e junto ao processo consta textualmente o seguinte:

«O Tribunal considerou existirem elementos que permitem dar como demonstrada a verificação dos factos que estão descritos na acusação. O arguido confirmou estes factos ainda que os termos utilizados sejam diferentes. O arguido disse que fez uma manobra com o carro, no contexto da abordagem pela GNR; esclarecendo de que manobra se tratava, diz que realizou a manobra de marcha atrás por uma distância que situou, mais ou menos, em cinco metros - isso naturalmente é conduzir veículo automóvel, nos termos que se encontram precisamente descritos na acusação -, o que significa que o arguido admitiu ter conduzido o veículo automóvel nesta sequência. De certa forma também dando confirmação àquilo que já decorria do auto de notícia.

Por outro lado, o arguido deu conta de alguns factos, complementares ou suplementares, e as palavras que utilizou e a forma que se expressou foram convincentes.

O arguido pareceu-me sincero e honesto a dizer o que disse e por isso o Tribunal deu como provado que conduziu o seu carro até ao local onde os senhores agentes depois o acabaram por abordar. Conduziu de casa até lá. Foi ao café. Esteve no café cerca de meia hora. Ingeriu algumas bebidas alcoólicas. Ao avistar os senhores polícias e com receio de que o multassem por ter deixado o carro mal estacionado foi ter com os senhores polícias para lhes pedir que retirassem a multa; foram as palavras do arguido. Assim fez e disse o arguido que os agentes lhe perguntaram se não se importava de tirar o carro dali, na sequência do que o arguido fez, então, a tal manobra que aqui concretizou e à qual já me referi; ou seja, entrou no carro, ligou o carro, fez a manobra de marcha atrás e recuou cerca de cinco metros. Nessa sequência, os senhores agentes pediram-lhe, nomeadamente, para além do mais, que efetuasse o teste de alcoolémia e o arguido recusou. Disse o arguido que o fez porque tinha estado a beber momentos antes, tinha medo que acusasse algum nível de alcoolémia e tinha medo que ficasse sem a carta, sendo que a sua profissão é precisamente motorista. Foram estes os esclarecimentos que o arguido aqui transmitiu, palavras das quais o Tribunal não tem razões para duvidar.

Para além disso, o arguido deu ainda conta de que - precisamente na sequência do que se deixou dito -, é motorista internacional, desenvolvendo a sua atividade por conta de outrem no continente europeu, atividade que lhe rende mensalmente cerca de 650,00 €, vive com os pais, tem dois filhos maiores a frequentar a universidade, sendo que o arguido e a mãe dos seus referidos filhos são quem os sustentam, uma vez que eles ainda não trabalham.

Foi isto que o Tribunal deu como provado. Naturalmente também se deu como provado, pelo menos a atentar pelo certificado de registo criminal existente nos autos, não tem antecedentes criminais.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recorrente insurge-se com a sua condenação pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348º, nº 1, alínea a) e 69º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, argumentando com a ilegitimidade da ordem para se submeter ao teste de pesquisa de álcool por não ter então a qualidade de condutor ou, a considerar-se que a tinha, com a existência de uma causa de exclusão da ilicitude, alegando ter conduzido no cumprimento de ordem legítima da autoridade.

Não impugna contudo o recorrente a matéria de facto provada constante da sentença em crise, pelo menos nos termos legalmente admissíveis, prescritos no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal. Por outro lado, a sentença também não evidencia a presença de qualquer dos vícios decisórios previstos no nº 2 do artigo 410.º do mesmo diploma.
A matéria de facto a considerar é pois a fixada na 1ª instância, nos exatos termos constantes da sentença recorrida.

Dessa sentença constam como provados os factos constantes da acusação, indicados por remissão para essa peça processual (2), designadamente que:

«. No dia 3 de dezembro de 2018, pelas 19,15 h, na Av. …, Peso da Régua, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula JL, quando foi abordado pela GNR, que lhe pediu a documentação e que efetuasse o teste de alcoolemia, o que o arguido recusou.
De imediato, o arguido foi advertido que a recusa em efectuar o mencionado teste o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, mas este, ainda assim, recusou-se a efetuá-lo.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente ao recusar-se a efetuar o teste de pesquisa de álcool no sangue, bem sabendo que desobedecia a uma disposição legal que o impedia de recusar submeter-se ao aludido teste e para a qual fora devidamente advertido das consequências legais em que incorreria de persistisse na sua conduta.
Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

Consta também como provada na sentença a factualidade respeitante à versão apresentada pelo próprio arguido em audiência, ou seja:

«Que se encontrava no café há cerca de meia hora, tendo aí ingerido algumas bebidas alcoólicas, quando avistou os agentes da GNR e, com receio de que o multassem por ter deixado o carro mal estacionado, foi ter com eles para pedir que retirassem a multa.

Tendo os agentes da GNR lhe perguntado se não se importava de tirar o carro dali, na sequência do que o arguido entrou no seu veículo automóvel, ligou-o e fez uma manobra de marcha atrás, recuando cerca de cinco metros, após o que voltou a sair do carro.

Tendo sido nesse momento que lhe foi pedido que efetuasse o teste de alcoolémia e que aconteceu a recusa do arguido a fazê-lo, tal como já supra consignado.»

Em face da factualidade apurada, acabada de transcrever, dúvidas não podem subsistir de que o arguido tinha a qualidade de condutor, pois quando foi abordado pelos agentes da autoridade para efetuar o teste de pesquisa de álcool tinha acabado de conduzir um veículo automóvel na via pública. Conduzir, como se sabe, significa guiar, ter a direção efetiva de um veículo. E é inegável que o arguido conduziu o veículo automóvel, pois ligou-o e, ao volante do mesmo, com ele circulou. Sendo indiferente para a qualificação de alguém como condutor o tempo durante o qual conduziu ou os metros que percorreu. No caso foram cerca de cinco metros, que integraram inclusive uma manobra de marcha atrás.

Neste contexto, a ordem dada pelos agentes da GNR ao arguido para que se submetesse a prova para a deteção do estado de influenciado pelo álcool tem cobertura legal no artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada, que estabelece as três categorias de cidadãos que estão sujeitos à submissão a essas provas, uma das quais é precisamente a dos condutores (cfr. al. a) do n.º 1) (3).

Por outro lado, embora da factualidade apurada resulte que o arguido conduziu depois de o agente da GNR lhe ter pedido para retirar a viatura do local onde se encontrava estacionada, o certo é que não se provou – nem nunca tal o arguido afirmou – que o pedido ou ordem de retirada do veículo daquele local implicasse necessariamente a condução por parte do arguido, pois, como é evidente, a remoção da viatura poderia ser sempre ser realizada por outrem. Sendo precisamente ao arguido que competiria informar que não se encontrava capaz de proceder ele próprio a tal remoção, por ter ingerido bebidas alcoólicas ou por qualquer outro motivo, diligenciando ele mesmo ou pedindo aos agentes da autoridade que diligenciassem para que outra pessoa retirasse o veículo do local.

Não o tendo feito e assumindo o arguido a condução, ligando o veículo e com ele circulando cerca de 5 metros, executando uma manobra de marcha atrás, não há dúvida de que o fez voluntária livre e conscientemente e, como sabia, estava sujeito a ser fiscalizado como condutor, como o foi, e a submeter-se a provas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool.

O circunstancialismo apurado afasta pois a verificação da invocada causa de exclusão da ilicitude do artigo 36.º do Código Penal, desde logo pela inexistência de um qualquer conflito de deveres.

Assim, sendo como já vimos legítima e regularmente comunicada a ordem que foi dada ao arguido pelos militares da GNR para que realizasse o teste para a deteção de álcool no sangue, e preenchendo a apurada conduta do arguido também os demais elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º n.º 1, a) e 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, cuja verificação não foi sequer impugnada no recurso, não merece censura a sentença recorrida.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso do arguido A. J..
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UCs a taxa de justiça.
*
Guimarães, 11 de junho de 2019
(Elaborado e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Como permite a al. a) do n.º 1 do artigo 389.º-A do Código de Processo Penal.
3. Sendo as outras duas categorias: os peões, quando intervenientes em acidente de viação, e qualquer pessoa que pretenda iniciar a condução.