Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4847/12.7TBGMR-A.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: VENDA DE BEM HIPOTECADO
TERCEIRO ADQUIRENTE
INSOLVÊNCIA
AQUISIÇÃO DO DIREITO DE USUFRUTO
DIREITO DE REMIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A existência de uma hipoteca não impede a alienação ou oneração do bem hipotecado (art. 695º do CC).

II – O adquirente da nua propriedade do imóvel hipotecado, podendo ser também demandado na execução instaurada pelo credor hipotecário contra os mutuários ao abrigo do regime previsto no art. 56º, n.º 2 do anterior CPC, é terceiro em face da obrigação exequenda.

III – Decretada a insolvência dos mutuários/executados e tendo o titular da raiz ou nua propriedade adquirido nesse processo de insolvência, por remição, o direito de usufruto de que aqueles eram titulares sobre o imóvel hipotecado, viu ser para si transmitido aquele direito, livre das garantias reais que oneravam o bem apreendido, designadamente as hipotecas e a penhora registadas (art. 824º, n.º 2 do CC).

IV – Tendo o credor hipotecário reclamado nesse processo de insolvência o seu crédito, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, relativamente ao valor do bem sobre o qual recai a hipoteca, viu extinguir-se esta sua garantia com a venda desse bem (ou direito), transferindo-se a sua preferência para o produto da venda.

V – Na venda forçada ou coactiva realizada no processo de insolvência o regime estabelecido no art. 824º, n.ºs 2 e 3 do CC não é postergado pelo que resulta dos arts. 1476º, n.º 1, al. b) e 699º do Cód. Civil.

VI – Sendo válida e eficaz a aquisição do direito de usufruto por parte do nu proprietário e não sendo este pessoalmente sujeito da obrigação exequenda, a execução deverá prosseguir apenas para a venda da raiz ou nua propriedade do bem penhorado sobre o qual incide a garantia real.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.1. No Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 1 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o executado S. P. invocou a ilegalidade da penhora e a pretendida venda da totalidade da fracção “N”, requerendo que seja ordenado ao agente de execução que promova a penhora e subsequente venda apenas do direito de raiz dessa fracção (cfr. fls. 67 a 71).
*
1.2. A Mmª Juiz a quo, datado de 3 de maio de 2017, proferiu o seguinte despacho:
«Fls. 209 e segs.:
Com total respeito por opinião diversa, entendemos assistir razão ao executado S. P..
Ora, encontrando-se demonstrada a aquisição por parte do executado S. P., nos autos de insolvência dos executados D. P. e Maria, do direito de usufruto do bem sobre qual incide a hipoteca, nestes autos a penhora passa a incidir sobre ao direito de raiz sobre esse bem.
Com efeito, nos autos de insolvência apenas foi apreendido e objeto de venda o direito de usufruto sobre a fração hipotecada, aqui penhorada e propriedade dos insolventes, tendo aí o executado pago o preço desse direito e a exequente reclamado o seu crédito, fazendo valer aí os seus direitos. Assim, a aquisição do direito de usufruto por parte daquele é absolutamente legítima e impede que essa parte do bem volte aqui a responder, pois aquele não é obrigado pessoal mas apenas na medida da doação, sendo que o direito de usufruto estava inserido na penhora por os executados D. P. e Maria serem responsáveis da dívida nessa medida.
Assim, defere-se o requerido pelo executado determinando-se o prosseguimento dos autos apenas para a venda do direito de raiz do bem penhorado.
Notifique.»
*
1.3. Inconformado com esta decisão dela recorre a exequente, BANCO A S.A., pedindo que se revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine o prosseguimento da execução para venda do imóvel penhorado nos autos no seu todo (cfr. fls. 25 a 30).
A terminar as respectivas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1. Para garantia dos contratos de mútuo que titulam a execução, os executados D. P. e Maria constituíram duas hipotecas sobre a fração autónoma designada pela letra "N", do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, si to no lugar da …, freguesia de …, concelho de Vizela, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vizela sob o n.º …-N e inscrita na matriz com o artigo …-N.
2. Tais hipotecas foram registadas na competente Conservatória do Registo Predial a favor do Banco recorrente, sob as apresentações 28 de 28.03.2000 e 14 de 20.05.2002 - cfr. certidão predial junta aos autos a fls ..
3. Pelo que, os referidos contratos hipotecários são assim títulos executivos bastantes quanto às quantias mutuadas e tudo o que em virtude daqueles contratos seja devido ao Recorrente,
4. Encontrando-se, assim, o crédito exequendo garantido pelas citadas hipotecas, o que confere ao Banco recorrente o direito de ser pago pelo produto da venda do imóvel hipotecado ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores (artigo 686º do Cód. Civil).
5. Em data posterior à constituição das referidas hipotecas, os executados D. P. e Maria transmitiram a propriedade do imóvel a favor do recorrido S. P., com reserva de usufruto a favor daqueles, através de doação registada na Conservatória do Registo Predial através da apresentação 12.11.2007.
6. Facto que originou o desdobramento da propriedade entre os mutuários D. P. e Maria, que continuaram a deter o domínio útil do imóvel, em especial no seu direito de uso e gozo através do usufruto, e o recorrido S. P. que adquiriu a nua propriedade do bem, desprovida daqueles direitos elementares, mas com a legítima expectativa de consolidação da propriedade a acontecer com a extinção do usufruto.
7. E, bem assim, ditou a necessidade de se instaurar a presente ação executiva, também, contra o recorrido S. P. na qualidade de terceiro adquirente, por forma a se poder fazer valer a aludida garantia hipotecária sobre o imóvel no seu todo, nos termos do disposto no artigo 54º, n.º 2 do CPC.
8. Uma vez instaurada a execução, foi o referido imóvel penhorado, na sua totalidade, tendo como sujeito ativo o ora Banco recorrente e como sujeitos passivos os executados D. P. e Maria, bem como, o recorrido S. P., não se fazendo qualquer distinção no averbamento da penhora no registo predial entre os invocados direitos de usufruto e direito sobre a raiz ou nua propriedade do imóvel - cfr. apresentação 2129, de 18.02.2013, da certidão predial junta a fls ..
9. Não tendo tal penhora sido objeto de oposição, impugnação ou invocação de qualquer nulidade ou irregularidade, apesar dos executados terem sido devidamente notificados para o exercício do correspondente direito, o que ditou a estabilidade da instância no que respeita à aludida penhora.
10. Na verdade, por omissão, o recorrido S. P. deixou expirar todos os prazos que lhe assistiam para em sua defesa e, eventualmente, no seu interesse, opor-se à realização da mencionada penhora, nomeadamente, nos termos e na extensão com que esta se efetivou.
11. Sendo legalmente inadmissível que o possa fazer através dos seus últimos requerimentos de fls., ou que o tribunal "a quo" admita essa possibilidade, ainda que oficiosamente, pois que não são esses os meios próprios para os efeitos pretendidos, por caducidade do direito invocado (art. 329º do Cód. Civil).
12. Ocorrências que, salvo melhor opinião, determinam, por si, a manutenção da penhora nos exatos termos registados à ordem dos presentes autos, ou seja, pela totalidade do imóvel em apreço, sem distinção entre o usufruto e a raiz ou nua propriedade.
13. Acresce que, face à declaração de insolvência dos mutuários/executados D. P. e Maria e que correu termos sob o número 1693/12.1TBGMR, do extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, o referido direito de usufruto acabaria por ser apreendido e objeto de venda nesses autos.
14. Tendo o mesmo sido adquirido pelo aqui recorrido S. P., que optou por exercer o direito de remissão e assim adquirir tal direito pelo valor de € 15.000,00.
15. O que ditou a consolidação da propriedade plena do imóvel por confusão e a, consequente, extinção do usufruto.
16. Razão pela qual, mesmo que se aceitasse a tese da irregularidade ou nulidade da penhora quanto à sua extensão, sempre se terá de admitir que tal circunstância se mostrou totalmente sanada através daquele ato de aquisição do usufruto.
17. Pois que, com esta aquisição, não só se extinguiu este usufruto, como passou o executado S. P. a ser o titular do direito de propriedade plena sobre o imóvel em causa, não sendo legalmente admissível fazer-se qualquer separação predial entre o referido direito de usufruto e o direito sobre a raiz ou nua propriedade do imóvel- cfr. artigo 1476º, n.º 1, al. b) do Cód. Civil.
18. Assim, encontrando-se penhorado o imóvel à ordem dos presentes autos, na sua totalidade, e tendo o recorrido adquirido também o usufruto, restaurando assim a plena propriedade do prédio, desde logo se terá de confirmar a correção da mencionada penhora ou, pelo menos, a sanação dos vícios de que a mesma pudesse padecer.
19. Acresce que, defende o despacho recorrido que tendo o Recorrido adquirido o direito de usufruto naqueles autos de insolvência, fica aquela parte do bem impedida de voltar aqui a responder pela dívida exequenda.
20. Ora, tal solução faria sentido se o adquirente fosse pessoa diversa do proprietário da raiz ou nua propriedade do imóvel, caso em que haveria dois direitos distintos ou autónomos sobre o mesmo bem, por um lado o usufruto, por outro a raiz ou nua propriedade do bem.
21. Sucede que não é isso que acontece, nem tal é admissível que possa ocorrer, porquanto, como acima se expôs, com a aquisição do usufruto pelo proprietário do imóvel extinguiu-se esse usufruto por confusão, consolidando-se a propriedade plena sobre esse prédio a favor de um único sujeito.
22. Não sendo legalmente admissível que se continue a falar de patrimónios ou direitos separados, nem sendo, pois, legalmente possível que a penhora (realizada e confirmada sobre um todo) se efetive agora em separado sobre duas realidades que, com tal consolidação, juridicamente deixaram de existir.
23. O Recorrido ao adquirir o usufruto sabia, ou tinha a obrigação de saber, que com tal ato contribuiu para a extinção do usufruto [art. 1476º, n.º 1, al. b) do Código Civil],
24. E uma vez extinto o direito de usufruto, recuperou este a propriedade plena sobre o imóvel, não fazendo sentido falar-se da manutenção da nua propriedade como se de um direito ou bem com penhorabilidade autónoma se tratasse, a ser vendido nos autos em separado.
25. Assim, se o Recorrido apresentou proposta de aquisição de um direito (de usufruto) que com a venda de imediato se extinguiu, sibi imputat, não sendo tal factor oponível ao exequente - cfr. artigo 871º, n.º 1 do Código Civil.
26. Questão diferente é a de saber se, no final do processo, depois de vendido o imóvel na sua plenitude, e caso o Banco recorrente tenha recebido mais do que lhe cabia, o adquirente do usufruto pode instaurar uma ação de enriquecimento sem causa contra o Banco, alegando que recebeu por duas vezes o produto da venda do usufruto (o que se não concede), mas tal ação sempre deverá ser instaurada por forma a que o Banco recorrente se possa defender, sendo inadmissível que se chegue a tal conclusão por via de um despacho proferido nuns autos de execução, que pouco ou nenhum contraditório asseguram.
27. Esta posição que sai reforçada pelo disposto no artigo 699º, n.º 1 do Cód. Civil, ao estabelecer que extinguindo-se o usufruto constituído sobre o imóvel hipotecado, o direito do Recorrente passa a exercer-se sobre esse bem, como se o usufruto nunca tivesse sido constituído,
28. Acrescentando o n.º 3 do aludido preceito legal que «se a extinção do usufruto resultar (...) da transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário (...) ­como sucede in casu -, a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado».
29. Acresce, ainda, que, uma vez constituída a hipoteca, esta permanece sem divisões, sobre a totalidade do objeto garantido ou, caso o seu titular assim o pretenda, apenas sobre uma parte, de nada servindo aferir se a coisa foi ou não parcialmente alienada ou vendida após a constituição da hipoteca.
30. Razão pela qual, enquanto não se verificar a liquidação integral do crédito garantido pela hipoteca, a garantia terá de permanecer intacta, nos termos do artigo 696º do Cód. Civil.
31. Por outro lado, é errado afirmar que com a venda do direito de usufruto no processo de insolvência dos co-executados transmitiu-se esse bem livre de ónus e encargos que o oneravam, em particular da hipoteca registada a favor do Recorrente, atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 824º do Código Civil,
32. Pois que, tal aquisição não tem correspondência com uma pretensa transmissão de um bem a favor do Recorrido, mas antes a consolidação de um direito de propriedade plena que se alcançou por via da extinção de um direito de usufruto.
33. Não houve, assim, qualquer transmissão do usufruto, mas sim a extinção desse direito a favor de quem já era o proprietário do imóvel,
34. Pelo que, nenhum ónus ou encargo predial há a eliminar, ou fazer diminuir na esfera desse imóvel
35. De igual modo, o Banco recorrente jamais concordou e ou autorizou o cancelamento de tal ónus nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 689º do mesmo diploma legal.
36. Pelo que, sem prejuízo do vindo de expor, também por esta via não se pode entender que o direito hipotecário que assiste ao recorrente possa ser atingido.
37. Aliás, a este propósito sempre se dirá que com a conduta atrás descrita os executados apenas pretenderam (concede-se, com bastante imaginação) salvaguardar o uso do imóvel apesar de estar uma hipoteca registada sobre o mesmo, o que, a vingar, frustraria totalmente qualquer possibilidade de o credor hipotecário se fazer pagar do seu crédito com a venda do imóvel.
38. Com efeito, através de uma atitude concertada - de doação da raiz ao filho e reserva de usufruto; apresentação dos pais à insolvência e venda do usufruto em tal insolvência, em que o filho adquire por remição o direito, que ficaria intocável; venda da raiz a um qualquer terceiro que, por diversos anos, nunca poderá dispor do imóvel, porque os executados conseguiram salvaguardar o usufruto para si ­consegue-se o que de outra forma nunca se conseguiria: que os pais se livrem da hipoteca enquanto forem vivos pagando um valor irrisório (o do usufruto).
39. Não pode aceitar-se o beneplácito do despacho recorrido a esta atitude.
40. Neste termos, verificando-se o registo de hipoteca a favor do Banco recorrente averbado sobre a totalidade do imóvel penhorado nos presentes autos de execução,
41. Demonstrado que com a aquisição do usufruto o Recorrido recuperou a propriedade plena desse imóvel por consolidação da raiz ou nua propriedade com o direito de usufruto,
42. Verificado que com aquela aquisição não se transmitiu qualquer direito a favor deste, mas tão-somente a extinção do usufruto, da qual simultaneamente decorre a expansão do direito de propriedade,
43. Entendendo-se o consagrado quanto ao princípio da indivisibilidade da hipoteca,
44. Atendendo que o recorrente não aceitou, nem aceita, a divisibilidade da mencionada garantia real,
45. Bem como, não se cumprindo os requisitos de extinção da hipoteca nos termos do disposto no artigo 730º do CC,
46. Jamais se poderá aceitar que a penhora passe a incidir, apenas, sobre o direito de raiz sobre esse imóvel e não sobre o imóvel no seu todo, quando é esta e não aquela a realidade predial existente.
47. O entendimento contrário conduziria à violação das regras do registo e do artigo 1440º do Código Civil, que dispõe que o usufruto só pode ser constituído "por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei", sendo que com o despacho recorrido se está a constituir um usufruto por sentença, o que não é legalmente admissível nem registável.
48. Pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal "a quo" não fez uma correta interpretação e aplicação das disposições legais contidas nos artigos 696º, 699º, 731º "a contrario", 824º, n.º 2 e 1476º, n.º 1, al. c), todos do Código Civil e 735º do CPC,
49. Tendo ainda violado o disposto no art. 1440º do Código Civil e 34º e 68º do Código do Registo Predial, pelo que, salvo o devido respeito, é ilegal o douto despacho recorrido».
*
1.4. O apelado S. P. contra-alegou, pugnando pela confirmação do julgado, apresentando as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido em 02 de Maio de 2017, que determinou o prosseguimento dos apenas para a venda do direito de raiz do bem penhorado e não do direito de usufruto.
2. O recurso não merece - com o devido respeito - o menor provimento, como se irá tentar demonstrar. Senão Vejamos:
3. Em 28 de Dezembro de 2012, o Apelante dá entrada de um Requerimento Executivo o qual tem na sua génese um contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre os co-executados D. P. e Maria.
4. Neste seguimento, o Apelante indicou à penhora o bem hipotecado, nomeadamente a fracção autónoma "N" do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vizela sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo .., o qual foi doado ao Recorrido S. P. em 12/11/2007, com reserva de usufruto a favor dos co-executados D. P. e Maria.
5. Por sentença proferida em 29/05/2012, à margem do Proc. n.º 1693/12.lTBGMR, que correu termos pelo 2° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, os executados D. P. e Maria foram declarados insolventes, suspendendo a execução contra estes, nos termos do art. 88°, n.º 1 do ClRE.
6. Pelo que a execução só pode prosseguir contra o património do terceiro, sobre o qual recai a garantia, ou seja, neste caso, a hipoteca sobre o direito de raiz da fracção aqui em apreço - cfr. artigo 735°, n.º 2 do C.P.C.,
7. Deste modo, quando notificado pelo Sr. Agente de Execução, para se pronunciar sobre a modalidade e o valor base da nua propriedade do imóvel, o Recorrido, em 06/11/2013, reclamou do acto do Sr. Agente de Execução, suscitando a ilegalidade da penhora e venda, nos termos do art. 723°, n.º 1, alínea c) e d) do CPC.
8. Ora, como decorre do auto de adjudicação de 30/09/2013, o Recorrido adquiriu, no âmbito do processo de insolvência dos co-Executados, a propriedade do direito de usufruto de que eram titulares os insolventes sobre 2 fracções autónomas, incluindo a fracção "N", penhorada nestes autos.
9. Esta aquisição judicial foi efectuada livre de ónus e encargos, tendo-se ordenado o cancelamento de todos os registos incompatíveis com a mesma, ainda que anteriores.
10. Ou seja, o Recorrido tornou-se proprietário do direito de usufruto da fracção penhorada nestes autos, sem quaisquer ónus, nomeadamente a hipoteca e a penhora registadas a favor do Apelante.
11. De salientar que a aquisição do direito de usufruto foi feita através do exercício do direito de remição, tendo a Recorrente já recebido, no âmbito daquele processo de insolvência, pagamento parcial da quantia exequenda.
12. De notar que o direito de remição é um direito que prevalece, até sobre o direito de preferência, e tem o seu âmago na protecção da família, mediante a preservação do património familiar.
13. Sendo essa a ratio legis do artigo 842° do CPC, o qual prevê que o direito de remição possa ser exercido por cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, ascendentes e descendentes.
14. Neste seguimento, facilmente se conclui que a penhora da totalidade do imóvel é ilegal.
15. Desde logo, porque constitui um locupletamento ilícito por parte do Apelante (nos termos do artigo 473° do Código Civil), a qual pretende ver ressarcido o seu crédito às custas do património pessoal de um terceiro na relação contratual, tentando por esta via estender a sua garantia aos bens pessoais do ora Recorrido sobre os quais não tem qualquer garantia.
16. Sendo que, ao aceitar tal situação estaríamos a permitir a violação inescrupulosa do artigo 721° do Código Civil, bem como o artigo 735°, n.º 2 do C.P.C.
17. Permitindo ainda ao Recorrente novo Enriquecimento Sem Causa, uma vez que o ora Recorrido já procedeu à compra do Direito de Usufruto.
18. Deste modo, o Apelante estaria a receber o mesmo valor em duplicado.
19. Não obstante o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 1476° do Código Civil, que prevê a extinção do usufruto pela união do mesmo com a propriedade, a verdade é que quando estamos perante um bem hipotecado, no qual o proprietário e o responsável pela obrigação garantida são pessoas diferentes, a venda do imóvel, em sede judicial, faz renascer os direitos reais que o terceiro tinha sobre os mesmos, nos termos do artigo 724° do Código Civil.
20. Aliás, outra solução não pode nunca ser sequer considerada, sob pena de violar o princípio constitucional da Segurança Jurídica e constituir um abuso do direito, nos termos do art. 334° do CC.
21. Além disso, a situação exposta pela Recorrente não se colocaria se o adquirente do direito de usufruto fosse um terceiro alheio à execução.
22. Pelo que, tratando de forma diferente os possíveis adquirentes do direito de usufruto, privilegiando um terceiro em detrimento do filho dos Executados, seria violar expressa e inequivocamente o Princípio da Igualdade, previsto no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.
23. Deste modo, torna-se claro e inequívoco que o único bem que poderá ser alienado no âmbito da presente execução corresponde ao direito de raiz incidente sobre tal fracção, único bem do Recorrido a responder pela dívida exequenda.
24. Face ao que vem de referir-se, resulta forçoso concluir que o alegado pela Recorrente é desprovido de todo e qualquer fundamento e viola os artigos 735°, n.º 2, 723°, n.º 1, alínea c) e d) e 824° do CPC, os artigos 473°,721°,724°, 334° do CC e o artigo 13° Constituição da República Portuguesa, pelo que deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso, confirmando-se o douto despacho».
*
1.5. O recurso foi admitido por despacho de 6 de Setembro de 2017 como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.
*
1.6. Foram colhidos os vistos legais.
*
II. Objecto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se os autos de execução deverão prosseguir para venda do imóvel penhorado no seu todo (sem distinção entre o usufruto e a raiz ou nua propriedade).
*
III. Fundamentação de facto

Os factos materiais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra – que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos –, a que acrescem os seguintes:
i. Os autos de execução têm por título executivo duas escrituras públicas de mútuo com hipoteca, outorgadas em 29.02.2000 e 08.05.2002, através das quais o Banco recorrente mutuou aos executados D. P. e Maria as quantias de € 99.759,38 e € 55.000,00, tudo nos demais termos e condições previstas nas referidas escrituras cujas cópias constam de fls. 98 a 115 e que se dão por reproduzidas.
ii. Para garantia dos mencionados empréstimos, os executados D. P. e Maria constituíram duas hipotecas sobre a fração autónoma designada pela letra "N", do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no lugar da …, freguesia de …, concelho de Vizela, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vizela sob o n.º …-N e inscrita na matriz com o artigo …-N.
iii. Tais hipotecas foram registadas na competente Conservatória do Registo Predial a favor do Banco recorrente, sob as apresentações 28 de 28.03.2000 e 14 de 20.05.2002, conforme certidão predial constante de fls. 130 a 134.
iv. Em data posterior à constituição das referidas hipotecas, os executados D. P. e Maria transmitiram a propriedade do imóvel a favor do recorrido S. P., com reserva de usufruto a favor daqueles, mediante doação registada na Conservatória do Registo Predial através da apresentação 11 de 12.11.2007,
v. Os executados mutuários deixaram de pagar as prestações a que se obrigaram.
vi. A exequente instaurou a ação executiva, também, contra o recorrido S. P. na qualidade de terceiro adquirente, fazendo valer as garantias hipotecárias constituídas quanto ao referido bem imóvel, nos termos do disposto no artigo 56º, n.º 2 do anterior CPC, conforme certidão do requerimento executivo constante de fls. 92 a 96.
vii. Na execução, foi o referido imóvel penhorado, na sua totalidade, tendo como sujeito ativo o Banco recorrente e como sujeitos passivos os executados D. P. e Maria, bem como o recorrido S. P., conforme certidão constante de fls. 126 a 129.
viii. Face à declaração de insolvência dos mutuários/executados D. P. e Maria no âmbito do processo n.º 1693/12.1TBGMR, do extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, o direito de usufruto de que aqueles eram titulares sobre o referido imóvel acabaria por ser apreendido e objeto de venda nesses autos, conforme certidão constante de fls. 138 a 144.
ix. Venda que se realizou mediante diligência de abertura de propostas em carta fechada designada para o efeito, tendo o Banco recorrente, ali reclamante, apresentado nos autos uma proposta de adjudicação do direito de usufruto da fração N pelo valor de € 15.000,00, conforme certidão constante de fls. 138 a 144.
x. O recorrido S. P. optou por exercer o direito de remição, tendo adquirido o aludido direito de usufruto, em 25.07.2013, pelo indicado valor, conforme certidão constante de fls. 138 a 144.
*
IV. Fundamentação de direito

1.1. A hipoteca é um direito real de garantia (1) que incide sobre coisas imóveis ou equiparadas do devedor ou de terceiro.
O termo hipoteca tanto pode ser usado no sentido de direito real de garantia, como de contrato mediante o qual se constitui o direito em causa. Neste segundo sentido, a hipoteca é, normalmente, um contrato bilateral, ajustado entre o autor da hipoteca – o titular do direito sobre a coisa a hipotecar que pode não ser o devedor da obrigação garantida – e o credor hipotecário (2).
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – artigo 686º, n.º 1, do Código Civil (CC).
O efeito principal da hipoteca é a satisfação do direito de crédito garantido através do bem hipotecado.
Como direito real, a hipoteca goza de preferência e da sequela, o que significa que prevalece sobre os direitos reais de garantia posteriormente constituídos (3) e segue a coisa onerada nas suas transmissões, podendo sempre o credor hipotecário fazer valer o seu direito.
São três as modalidades da hipoteca: legal, jurisdicional e voluntária (art. 703º do CC).
A hipoteca a que estes autos se referem teve origem, precisamente, num financiamento concedido pelo Banco mutuante aos agora insolventes D. P. e Maria.
Tratou-se, pois, de uma hipoteca voluntária, porque derivada de um contrato (art. 712º do Cód. Civil).
A hipoteca pode incidir sobre a propriedade plena, de imóveis ou de bens móveis que para esse efeito sejam equiparados a imóveis (n.º 1, als. a) e f) do art.º 688.º do Código Civil), mas também sobre direitos reais menores como o direito de superfície (al. c) do n.º 1 do art.º 688.º) e o usufruto (al. e) do n.º 1 do art.º 688.º), assim como, separadamente, sobre as partes de um prédio susceptíveis de propriedade autónoma sem perda da sua natureza imobiliária (n.º 2 do art.º 688.º). Também pode constituir-se hipoteca de quota de coisa ou direito comum (art.º 689.º n.º 2).
A hipoteca que respeite a bens imóveis tem de ser celebrada mediante um negócio jurídico formal (art. 714º do Cód. Civil) e a sua eficácia depende do registo, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (art.º 687.º, n.º 2 do Cód. Civil).
As hipotecas voluntárias têm necessariamente por objeto coisas determinadas, cuja especificação deverá constar do respetivo título constitutivo; se não as especificar a hipoteca é nula (art. 716º do Cód. Civil).
A hipoteca também não impede o devedor de alienar a coisa hipotecada e é nula a cláusula que impeça o proprietário de alienar ou onerar bens hipotecados (art. 695º do Cód. Civil) (4). Os bens hipotecados não ficam subtraídos ao comércio jurídico, pelo que podem ser livremente transmitidos para terceiros (5). O que sucede é que o adquirente da coisa a adquire onerada com a hipoteca, ou seja, apesar de a coisa passar a ter outro titular, continua a responder pela satisfação do crédito garantido como se permanecesse na titularidade do devedor. É o que resulta da sua natureza de direito real de garantia e da faculdade de sequela que lhe anda associada (6). O mesmo é dizer que, enquanto subsistir, a hipoteca habilita o seu titular a atingir a coisa, onde esta se encontrar. Este atributo de sequela é consequência necessária do direito real de hipoteca e traduz o poder do titular desse direito de actuar sobre a coisa que lhe foi afeta, sem ter de se deter perante a atitude da pessoa que estiver atualmente na posse da coisa (7).
A pessoa que tenha adquirido bens hipotecados, registou o título de aquisição e não é pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas, pode ter interesse em libertar-se desse ónus real.
Para o efeito confere-lhe a lei (art. 721º do CC) o direito de expurgar a hipoteca por um dos seguintes modos:
- Pagando integralmente aos credores hipotecários as dívidas a que os bens estão hipotecados;
- Declarando que está pronto a entregar aos credores, para pagamento dos seus créditos, até à quantia pela qual obteve os bens, ou aquela em que os estima, quando a aquisição tenha sido feita por título gratuito ou não tenha havido fixação de preço.
A propósito (ainda) das hipotecas voluntárias, o art. 713º do Cód. Civil prescreve que a hipoteca não impede o dono dos bens de os hipotecar de novo; neste caso, extinta uma das hipotecas, ficam os bens a garantir, na sua totalidade, as restantes dívidas hipotecárias. Prevalece a hipoteca primeiro constituída, o que significa que o credor que seja titular de uma segunda hipoteca só poderá obter satisfação do seu crédito pelo produto da venda executiva da coisa onerada depois de inteiramente pago o credor titular da primeira hipoteca.
Outra característica da hipoteca é a sua indivisibilidade, estando tal regra consagrada no art. 696.º do Cód. Civil, nos termos do qual, “[s]alvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito”.
O citado preceito abrange (8):
- A situação de a hipoteca ter inicialmente por objeto uma única coisa, estabelecendo que, em caso de divisão da mesma, a hipoteca subsiste sobre cada coisa nova saída da divisão;
- A situação de a hipoteca ter, desde a constituição ou supervenientemente, um objeto plural, caso em que cada uma das coisas hipotecadas responde pela totalidade da dívida garantida;
- A situação de o crédito hipotecário se vir a dividir, possibilitando a qualquer dos credores hipotecários a sua execução, na sua totalidade;
- A situação de, havendo cumprimento parcial do crédito garantido, o credor hipotecário poder executar a hipoteca na totalidade para satisfação do remanescente da dívida.
A indivisibilidade da hipoteca é estabelecida unicamente em favor do credor hipotecário. Só este pode a ela renunciar – artigo 730º, alínea d) do Cód. Civil.
Particularizando, agora, o caso concreto constata-se que os autos de execução têm por título executivo duas escrituras públicas de mútuo com hipoteca, outorgadas em 29.02.2000 e 08.05.2002, através das quais o Banco recorrente mutuou aos executados D. P. e Maria as quantias de € 99.759,38 e € 55.000,00, sendo que para garantia dos mencionados empréstimos aqueles executados constituíram duas hipotecas sobre a fração autónoma designada pela letra "N", do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no lugar da …, freguesia de …, concelho de Vizela, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vizela sob o n.º …-N, que foram registadas na competente Conservatória do Registo Predial a favor do Banco recorrente, sob as apresentações 28 de 28.03.2000 e 14 de 20.05.2002.
Em data posterior à constituição das referidas hipotecas, os executados D. P. e Maria transmitiram a propriedade do imóvel a favor do também executado S. P., com reserva de usufruto a favor daqueles, mediante doação registada na Conservatória do Registo Predial através da apresentação 12.11.2007,
Sucede que os executados/mutuários deixaram de pagar as prestações a que se obrigaram, pelo que a exequente instaurou ação executiva, na qual demandou, também, o S. P. na qualidade de terceiro adquirente, de modo a fazer valer as garantias hipotecárias constituídas quanto ao referido imóvel, nos termos do disposto no artigo 56º, n.º 2 do anterior CPC.
Na execução, foi o referido imóvel (hipotecado) penhorado, na sua totalidade, tendo como sujeito ativo o Banco recorrente e como sujeitos passivos os executados D. P. e Maria, bem como o recorrido S. P., este terceiro à relação subjacente, não se tendo feito a distinção, quer no auto de penhora, quer no averbamento da penhora no registo predial, do direito de usufruto e direito sobre a raiz ou nua propriedade do imóvel­.
Entretanto, por sentença proferida no processo de insolvência n.º 1693/12.1TBGMR, do extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, os mutuários/executados D. P. e Maria foram declarados em situação de insolvência, pelo que se procedeu nesses autos à apreensão para a massa insolvente do direito de usufruto de que aqueles eram titulares sobre o imóvel hipotecado, com vista à sua venda, a qual foi realizada mediante abertura de propostas em carta fechada, tendo o Banco recorrente, ali reclamante, apresentado nos autos uma proposta de adjudicação do direito de usufruto pelo valor de € 15.000,00.
O recorrido S. P. exerceu, no processo de insolvência, o direito de remição, tendo adquirido o aludido direito de usufruto, em 25.07.2013, pelo indicado valor (€ 15.000,00).
No seguimento do referido exercício do direto de remição no processo de insolvência relativamente ao usufruto que incidia sobre o imóvel hipotecado divergem as partes quanto aos efeitos que do mesmo deriva relativamente ao bem penhorado.
Advoga o co-executado S. P. que, por força da declaração de insolvência dos executados D. P. e Maria operou-se a suspensão da execução quanto a estes executados nos termos do disposto no art. 88°, n.º 1 do ClRE, pelo que a execução apenas poderia prosseguir contra o património do terceiro adquirente sobre o qual recaía a garantia, ou seja, neste caso, sobre o direito de raiz ou nua propriedade da fração em apreço, nos termos do art. 735°, n.º 2 do C.P.C.
Isto porque, não sendo pessoalmente devedor à recorrente, apenas deverá responder com o património que lhe foi doado, ou seja, o direito de raiz ou a nua propriedade sobre a fração "N", mas já não com quaisquer outros bens que sejam sua propriedade.
Assim, tendo adquirido no âmbito do processo de insolvência dos co-executados o direito de usufruto de que estes eram titulares sobre duas frações autónomas, incluindo a fração "N", penhorada nestes autos e que estava onerada com as hipotecas, mediante o exercício do direito de remição, essa aquisição judicial foi efetuada livre de ónus e encargos, com o consequente cancelamento de todos os registos incompatíveis com a mesma, ainda que anteriores, pelo que propugna o recorrido ter-se tornado titular do direito de usufruto da fração penhorada nestes autos sem quaisquer ónus, nomeadamente a hipoteca e a penhora registadas a favor da apelante.
Posição contrária – e da qual emerge o presente recurso – tem a apelante, sustentando esta que, ao ter o recorrido adquirido por remição o direito de usufruto sobre a mencionada fração penhorada, verificou-se a consolidação da propriedade plena do imóvel por confusão e a consequente extinção do usufruto, pelo que passou o executado S. P. a ser o titular do direito de propriedade plena sobre o dito imóvel, não sendo legalmente admissível fazer-se qualquer separação predial entre o referido direito de usufruto e o direito sobre a raiz ou nua propriedade do imóvel - cfr. artigo 1476º, n.º 1, aI. b) do Cód. Civil.
Se é certo, por um lado, que o executado S. P. adquiriu, no processo de insolvência, através do exercício do direito de remição, o direito de usufruto que os insolventes/mutuários tinham sobre a fração penhorada, também não deixa de ser relevante, por outro lado, o facto daquele ser o titular da raiz ou da nua propriedade sobre tal imóvel – mercê da doação que, em data posterior à oneração do prédio com as hipotecas, os seus pais lhe fizeram, com reserva de usufruto para eles -, pelo que, segundo as regras gerais, com a aquisição do direito de usufruto ter-se-á operado uma reunião com o direito da raiz ou nua propriedade no mesmo titular, reconstituindo-se assim a propriedade plena ou perfeita.
O tribunal recorrido, como já enunciámos, pugnou pelo prosseguimento dos autos de execução apenas para a venda do direito de raiz do bem penhorado, porquanto, mostrando-se demonstrada a aquisição por parte do executado S. P., nos autos de insolvência dos executados D. P. e Maria, do direito de usufruto do bem sobre o qual incide a hipoteca, a penhora nestes autos passou a incidir sobre o direito de raiz desse bem. Isto porque nos autos de insolvência apenas foi apreendido e objeto de venda o direito de usufruto sobre a fração hipotecada, aqui penhorada e propriedade dos insolventes, tendo aí o executado pago o preço desse direito e a exequente reclamado o seu crédito, fazendo valer aí os seus direitos. Concluiu, assim, o tribunal a quo que a aquisição do direito de usufruto por parte daquele é absolutamente legítima e impede que essa parte do bem volte aqui a responder, pois aquele não é obrigado pessoal mas apenas na medida da doação, sendo que o direito de usufruto estava inserido na penhora por os executados D. P. e Maria serem responsáveis da dívida nessa medida.
Vejamos como decidir.
Estipula o art. 824º do Cód. Civil, atinente à venda em execução, que:

«1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens».
Estas disposições (arts. 824º e 825º do CC) valem, nos termos do art. 826º do Cód. Civil, com as necessárias adaptações, para as situações em que a transmissão do bem ou direito ocorre por adjudicação e remição, o que quanto a esta última é compreensível por esta se reconduzir a uma substituição de pessoas, sem alteração da natureza do acto (9).
Uma vez realizada a venda, “os direitos do executado, quer se trate de um direito de propriedade, de crédito, de usufruto, ou de qualquer outro, transferem-se para o adquirente. Este, porque é adquirente de direitos alheios, não pode arrogar-se senão aqueles que competiam ao transmitente, ou seja, ao executado (nemo plus iuris alium transfere potest quam ipse habet(10). Por outras palavras, o direito do adquirente, em processo de execução, filia-se no direito do executado, dele dependendo quer quanto à sua existência quer quanto à sua extensão (11).
Por força da venda em execução (leia-se aquisição por remição do direito) os bens são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerarem, os quais caducam, transferindo-se para o produto da venda dos respectivos bens (12). Ou seja, os direitos reais de garantia, que oneravam o bem penhorado (leia-se judicialmente apreendido) e vendido no processo executivo (o mesmo valendo para o processo de insolvência – cfr. art. 164º do CIRE (13)) extinguem-se, o adquirente adquire o bem sem esse ónus, e o credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem (14). Nesta conformidade, se, por exemplo, um credor hipotecário tiver reclamado o seu direito de crédito, garantido pela hipoteca, sobre um imóvel penhorado na execução, a hipoteca caduca com a venda executiva (art. 824º, n.º 2 do CC), mas o credor hipotecário fica com o direito de ser pago pelo produto da venda desse bem imóvel, com prioridade sobre os demais credores que não gozem de preferência em relação à hipoteca. O mesmo é dizer que, não obstante a caducidade dos direitos reais de garantia que incidam sobre os bens penhorados, os respetivos titulares gozam do direito de obter o ressarcimento dos seus direitos de crédito, pelo produto da venda desses bens, em conformidade com a sentença de graduação dos créditos que tiver sido proferida no respetivo processo executivo (15) (o mesmo valendo, com as necessárias adaptações, para o processo de insolvência).
Ora, tendo o recorrido adquirido no âmbito do processo de insolvência o direito de usufruto sobre a fração autónoma hipotecada, importa, por conseguinte, aferir se esse direito foi, ou não, transmitido livre dos direitos de garantia que oneravam o bem apreendido (art. 824º, n.º 2 do Cód. Civil) e, na afirmativa, se o mesmo está arredado da execução (por ser próprio do recorrido e não responder pela dívida garantida) ou, diversamente, se por força da consolidação/reunião verificada entre o titular do direito de nua propriedade e do direito de usufruto, com a inerente extinção deste (art. 1476º, n.º 1, al. b) do CC), se impõe o prosseguimento da execução para venda do imóvel penhorado no seu todo (venda da propriedade plena).
No sentido preconizado pelo tribunal recorrido poder-se-á invocar o facto de o art. 824º, n.º 2 do Cód. Civil referir-se a todos os direitos reais de garantia e, portanto, não excluir da sua previsão nenhum desses direitos, designadamente a hipoteca, ainda que anteriormente constituída. Não excluindo, ter-se-ia de encontrar no regime legal da hipoteca algo que justificasse a sua exclusão, isto é, que impedisse a aplicação do regime estabelecido no mencionado preceito normativo.
Com relevo no caso dos autos cumpre atentar nas particularidades do regime da hipoteca quando estamos perante um direito de usufruto.
Segundo o artigo 699.º do Cód. Civil, que tem como epígrafe “Hipoteca e usufruto”:
«1. Extinguindo-se o usufruto constituído sobre a coisa hipotecada, o direito do credor hipotecário passa a exercer-se sobre a coisa, como se o usufruto nunca tivesse sido constituído.
2. Se a hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito.
3. Porém, se a extinção do usufruto resultar de renúncia, ou da transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário, ou da aquisição da propriedade por parte daquele, a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado».
Do n.º 1 do citado normativo extrai-se que, nos casos em que foi hipotecada a propriedade, extinto o usufruto o direito do credor hipotecário passa a exercer-se sobre a coisa (estende-se à propriedade plena), como se o usufruto nunca tivesse existido, harmonizando-se esta regra com a natureza de simples limitação ao direito de propriedade que tem este direito real. Não se trata, assim, rigorosamente em relação ao credor hipotecário de um direito que se expande pela extinção do usufruto, mas de uma restrição que desaparece (16).
Se a hipoteca recair sobre o usufruto, a extinção deste direito acarreta a extinção daquela garantia (n.º 2 do art. 699º do CC), como consequência do desaparecimento do bem onerado pela garantia. Porém, se estivermos perante actos voluntários do usufrutuário, nomeadamente a renúncia ao usufruto, causadora da sua extinção (art. 1476º, n.º 1, al. e) do Cód. Civil) ou outros actos também determinantes dessa extinção (por reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa - art. 1476º, n.º 1, al. b) do Cód. Civil), o n.º 3 do art. 699º do CC comina a ineficácia da extinção do usufruto para com o titular de hipoteca do usufruto (ou seja, o proprietário cujo direito se tenha expandido por força da extinção do usufruto não poderá opor essa extinção ao titular da hipoteca) (17). Por outras palavras, nestes casos a extinção do usufruto não é oponível ao credor hipotecário, em aplicação do princípio de que os actos de disposição do proprietário dos bens onerados não podem prejudicar a garantia (18).
Por sua vez, dispõe o art. 1439º do Cód. Civil que o usufruto é o direito de gozar temporariamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância.
Porque pode ter por objecto coisas ou direitos, sempre alheios, o usufruto é um direito real menor, limitado, mas de gozo pleno, pois a única limitação é a de não poder o usufrutuário alterar a forma ou substância da coisa ou direito.
O usufruto extingue-se, entre o mais, pela reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa - art. 1476º, n.º 1, al. b) do CC.
No «caso do usufruto, nenhum dos titulares (usufrutuário ou proprietário) pode ser considerado como sujeito passivo da relação de que o outro seja titular activo. Cada um deles é titular de um estatuto real que, envolvendo posições relativas entre si, compreende sobretudo poderes absolutos, direitos com eficácia erga omnes. Juntando-se na mesma pessoa (por negócio entre vivos ou por sucessão mortis causa, ou porque o proprietário adquira o usufruto ou porque o usufrutuário adquira a nua propriedade) as qualidades de usufrutuário e de nu-proprietário, haverá uma reunião de poderes até aí dispersos por duas ou mais pessoas, que envolve a extinção do usufruto e a restauração da plena potestas sobre a res; o que não há, porém, é uma confusão, tendente à destruição recíproca das duas posições anteriores nos pólos da mesma relação jurídica» (19).
Como observa Luís A. Carvalho Fernandes (20), «qualquer que seja a causa da perda do direito (…) o usufruto extingue-se, não se verificando, pois, em rigor a sua aquisição por parte do proprietário. O que se passa é a expansão deste direito, por ter desaparecido a causa da sua compressão. Há, pois, como que uma restituição do direito de propriedade à sua feição anterior. Traduzindo sugestivamente esta ideia, falava de aqui Manuel de Andrade em aquisição derivada restitutiva.
Este é um efeito automático de extinção do usufruto, que opera ipsa vi legis»
No caso dos autos o que foi hipotecado não foi a raiz ou a nua propriedade da fração autónoma designada pela letra "N", do prédio urbano identificado nos autos, nem o direito de usufruto sobre aquele bem, mas sim a própria fração autónoma supra identificada (a propriedade plena).
Sucede que, em data posterior à constituição das referidas hipotecas, os executados/mutuários, D. P. e Maria, transmitiram a propriedade da aludida fração autónoma a favor do recorrido S. P., com reserva de usufruto a favor deles, mediante a doação registada na Conservatória do Registo Predial através da apresentação 12.11.2007, o que originou o desdobramento da propriedade entre os mutuários, que enquanto usufrutuários continuaram a deter o domínio útil do imóvel, podendo, no uso e fruição, tirar partido de todas as suas utilidades, sem outra limitação que não seja a de preservar a sua forma ou substância, e o recorrido S. P. que adquiriu a raiz ou nua propriedade do bem, desprovida daqueles direitos de uso e fruição.
Esse desdobramento da propriedade não afetou as hipotecas incidentes sobre a fração, visto que os registos destas são anteriores ao registo dos direitos (reais limitados de gozo) resultantes daquele desdobramento.
Com efeito, como explicitam Pedro Martinez e Pedro Fuzeta, a hipoteca repercute-se de modo diverso em função do direito real do autor da hipoteca. Assim, se o autor da hipoteca é usufrutuário da casa, ao constituir a hipoteca só onera o seu direito de usufruto, em nada afetando propriedade de raiz sobre o mesmo bem; do mesmo modo, sendo a hipoteca constituída pelo proprietário de raiz não se onera o direito de usufruto sobre a coisa. Diferente é a situação de uma hipoteca feita pelo proprietário pleno que, posteriormente, deu o mesmo bem de usufruto a terceiro, caso em que este direito real de gozo não prejudica a posição jurídica do credor hipotecário (sendo esta precisamente a situação objeto dos presentes autos).
O problema coloca-se, porém, ao nível dos efeitos da aquisição, por remição, pelo recorrido, no processo de insolvência, do direito de usufruto dos mutuários/executados D. P. e Maria sobre a referida fração.
Desde logo há que ter presente que, sendo declarada a insolvência do devedor autor da hipoteca, e não se verificando os pressupostos dos arts. 120º e 121º do CIRE, as obrigações do insolvente vencem-se e o credor hipotecário passa a ser considerado um credor garantido da insolvência (art. 47º, n.º 4, al. a) do CIRE).
Como crédito sobre a insolvência o seu titular terá que o reclamar (art. 128º, n.º 1 do CIRE), embora o administrador da insolvência o possa reconhecer mesmo sem reclamação (art. 129º do CIRE).
O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada (art. 164º, n.º 2 do CIRE).
O credor (hipotecário) com garantia real pode, no prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tempo útil, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado; se não aceitar a proposta, o administrador da insolvência fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior. (art. 164º, n.º 3 do CIRE).
Liquidados os bens onerados com garantia real, e abatidas as correspondentes despesas (da liquidação), é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos, cujos créditos estejam verificados por sentença transitada em julgado, com respeito pela prioridade que lhes caiba (arts. 172º a 174º do CIRE).
Dos autos resulta que por sentença proferida no processo de insolvência n.º 1693/12.1TBGMR, do extinto 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, os mutuários/executados D. P. e Maria foram declarados em situação de insolvência, pelo que se procedeu nesses autos à apreensão para a massa insolvente do direito de usufruto de que aqueles eram titulares sobre o imóvel hipotecado, com vista à sua venda, a qual foi realizada mediante abertura de propostas em carta fechada, tendo o Banco recorrente, ali reclamante, apresentado nos autos uma proposta de adjudicação do direito de usufruto pelo valor de € 15.000,00.
O recorrido S. P. optou por exercer, no referido processo de insolvência, o direito de remição, tendo por isso adquirido o aludido direito de usufruto, em 25.07.2013, pelo indicado valor (€ 15.000,00).
Ora, como sucede em todos os processos executivos concursais, os credores hipotecários que neles participam, visando obter o pagamento do seu crédito, com o tratamento preferencial que lhes assiste, relativamente ao valor do bem sobre o qual recai a hipoteca, veem extinguir-se esta sua garantia com a venda desse bem (ou direito), transferindo-se a sua preferência para o produto da venda (21).
É esta a doutrina consagrada nos n.ºs 2 e 3, do art.º 824º, do C. Civil, que rege as vendas em execução, em sentido amplo, abrangendo também os processos falimentares ou de insolvência.
Daí que o n.º 1 do art. 174º, do CIRE disponha que, “liquidados os bens onerados com garantia real (…) é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes caiba”.
Os bens onerados com hipotecas são, pois, vendidos no processo de insolvência, sem que aquela garantia acompanhe o bem no património do adquirente, caducando com a venda, nos termos do citado art. 824º, n.º 2, do C. Civil, transferindo-se a preferência de pagamento que ela conferia ao respetivo credor para o produto da venda.
A razão de ser deste regime de transmissão dos bens livres daqueles direitos de garantia e da consequente extinção destes com a venda judicial foi a de evitar a depreciação do valor dos bens que resultaria duma alienação com subsistência de encargos, em benefício tanto do exequente – pelo seu direito a pagar-se sobre o produto do próprio património onerado do devedor, no que exceder os encargos -, como o do executado – para obter o máximo de amortização dos seus débitos pelo produto dos bens (22).
No circunstancialismo evidenciado nos autos afigura-se-nos que o apontado regime estabelecido no art. 824º, n.ºs 2 e 3 do CC não é postergado pelo que resulta dos arts. 1476º, n.º 1, al. b) e 699º do Cód. Civil.
Desde logo porque o art. 824º do Cód. Civil prevê um regime específico aplicável às situações em que está em causa uma venda ou alienação de bens com carácter forçado ou coactivo, consequente à apreensão judicial dos bens do devedor para a massa, realizada num processo de execução, mas igualmente no processo de insolvência.
Situação diversa ocorre quando, por exemplo, está em causa uma transmissão voluntária de direitos reais de gozo, como seja o caso de o nu proprietário que adquire o direito de usufruto ou o usufrutuário que adquire o direito de propriedade sobre a coisa, em que se verifica a extinção do usufruto por consolidação ou reunião da titularidade do usufruto e da nua propriedade na mesma pessoa (cfr. artigo 1476º, n.º 1, al. b) do Cód. Civil), reconstituindo-se assim a propriedade plena ou perfeita.
No caso vertente, o recorrido, embora não seja terceiro em face da execução – visto ter sido demandado ao abrigo do regime previsto no art. 56º, n.º 2 do anterior CPC –, é terceiro em face da obrigação exequenda ou da relação subjacente, visto não se ter responsabilizado pessoalmente pelo pagamento do crédito hipotecário. Legitima-se a sua demanda na execução, enquanto terceiro, por ter adquirido um direito (nua propriedade) sobre um bem já onerado com uma garantia (hipoteca) em benefício do credor hipotecário (que é também exequente). À custa da coisa onerada, continua o credor (hipotecário) a poder realizar o seu direito de crédito, pois a prévia constituição da garantia real faz nascer sobre o imóvel um vínculo de natureza real oponível erga omnes, pelo que ao dirigir-se ao património do terceiro o credor não faz mais do que exercer uma faculdade que carateriza o seu direito real: a sequela (23).
Não sendo, porém, pessoalmente sujeito da obrigação exequenda, o co-executado S. P. não pode deixar de beneficiar do mesmo regime jurídico que seria aplicável a um terceiro que adquirisse o direito de usufruto no processo de insolvência.
Nessa situação o terceiro adquirente do usufruto veria reconhecida a transmissão desse direito para a sua esfera jurídica em virtude do regime previsto no art. 824º do CC, livre dos direitos reais de garantia que onerassem o bem apreendido, designadamente as hipotecas e a penhora registadas a favor da apelante, sendo que o produto da venda (leia-se do exercício do direito remição) seria depois afeto à satisfação coerciva do direito de crédito garantido, pela ordem de preferência que lhe couber. Consequentemente, nessa situação, impor-se-ia o prosseguimento da execução apenas para a venda da raiz ou nua propriedade do imóvel penhorado, dada a validade e eficácia na transmissão do direito de usufruto incidente sobre o imóvel penhorado, com o consequente cancelamento dos direitos de garantia real.
Ressalvando o devido respeito por opinião contrária, a nosso ver, esse regime é inteiramente transponível para a situação objeto dos autos, pois sendo o recorrido terceiro em relação à obrigação exequenda, e tendo (válida e eficazmente) adquirido, por remição, no processo de insolvência, o direito de usufruto que os mutuários/executados D. P. e Maria eram titulares sobre o imóvel hipotecado, viu para si ser transmitido aquele direito, livre das garantias reais que oneravam o bem apreendido, designadamente as hipotecas e a penhora registadas a favor da apelante.
Estando em causa, como se viu, uma venda de bens/direitos com carácter forçado ou coactivo, e não uma transmissão voluntária de direitos reais de gozo, propendemos justificar-se, nessa situação, uma interpretação restritiva do estatuído no art. 1476º, n.º 1, al. b) do CC, de modo a que não seja causa de extinção do usufruto a reunião da titularidade do usufruto e da nua propriedade na mesma pessoa.
Constata-se, aliás, que o apelante, enquanto credor com garantia real, reclamou o seu crédito no processo de insolvência, não se evidenciando que tenha apenas reclamado uma parte do crédito, pelo que em função do regime previsto nos arts. 172º a 174º do CIRE, abatidas as correspondentes despesas (da liquidação), será imediatamente pago do seu crédito, de acordo com a prioridade que lhe couber. Embora se reconheça que o montante resultante do exercício do direito de remição pela aquisição do usufruto dos insolventes seja manifestamente insuficiente para o pagamento integral do crédito garantido, nada obsta a que a hipoteca se extinga quanto a esse direito do bem onerado porque em relação a ela a garantia já está acionada e concretizada na medida do possível. E essa extinção da hipoteca quanto ao direito de usufruto do bem onerado tão pouco é suscetível de pôr em causa a indivisibilidade da hipoteca, porquanto a alienação daquele direito irá ser, nos termos legais, afeto à satisfação da totalidade do crédito (24).
De outro modo, a sufragar-se a posição propugnada pela apelante, esta lograria ser ressarcida do seu crédito através do património pessoal do recorrido – que, repete-se, é terceiro em face da relação subjacente –, tentando por esta via estender a sua garantia de modo a abranger na venda executiva a propriedade plena do imóvel penhorado, quando se tem por adquirido nos autos que o direito real limitado de gozo (usufruto) que os insolventes detinham sobre o prédio penhorado foi válido e eficazmente adquirido pelo recorrido em sede do processo de insolvência; no fundo, a pretensão da apelante representaria uma afetação de bens pessoais do recorrido sobre os quais não tem qualquer garantia, os quais, nos termos da lei substantiva, não respondem pela dívida exequenda (art. 735º, n.º 1 do CPC por interpretação a contrario).
Como se explicitou na decisão recorrida – com a qual se concorda –, “nos autos de insolvência apenas foi apreendido e objeto de venda o direito de usufruto sobre a fração hipotecada, aqui penhorada e propriedade dos insolventes, tendo aí o executado pago o preço desse direito e a exequente reclamado o seu crédito, fazendo valer aí os seus direitos. Assim, a aquisição do direito de usufruto por parte daquele é absolutamente legítima e impede que essa parte do bem volte aqui a responder, pois aquele não é obrigado pessoal mas apenas na medida da doação, sendo que o direito de usufruto estava inserido na penhora por os executados D. P. e Maria serem responsáveis da dívida nessa medida”.
Essa intangibilidade do usufruto, adquirido por remição, mostra-se, no caso, legitimada pelo regime do art. 824º do CC.
Não há que trazer à colação o regime estabelecido no art. 871º do CC, visto esta ser uma forma de extinção privativa dos direitos de créditos, assente na reunião das qualidades recíprocas de credor e devedor da mesma prestação, o que não é transponível para a junção, na mesma pessoa, das qualidades de usufrutuário e de nu-proprietário (25).
Por fim, não colhe a argumentação de o despacho recorrido comportar a constituição (ilegal) do usufruto, já que este direito (real de gozo) foi constituído através da supra mencionada escritura de doação e foi levado ao registo, como se alcança da respetiva certidão predial.
Nesta conformidade, é de concluir que relativamente ao direito de usufruto a extinção da hipoteca (26) ao abrigo do disposto no art. 824º do CC não é impedida pelas normas específicas da hipoteca.
Resta, pois, concluir pela confirmação da decisão recorrida, improcedendo as conclusões da apelante.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):

I - A existência de uma hipoteca não impede a alienação ou oneração do bem hipotecado (art. 695º do CC).
II – O adquirente da nua propriedade do imóvel hipotecado, podendo ser também demandado na execução instaurada pelo credor hipotecário contra os mutuários ao abrigo do regime previsto no art. 56º, n.º 2 do anterior CPC, é terceiro em face da obrigação exequenda.
III – Decretada a insolvência dos mutuários/executados e tendo o titular da raiz ou nua propriedade adquirido nesse processo de insolvência, por remição, o direito de usufruto de que aqueles eram titulares sobre o imóvel hipotecado, viu ser para si transmitido aquele direito, livre das garantias reais que oneravam o bem apreendido, designadamente as hipotecas e a penhora registadas (art. 824º, n.º 2 do CC).
IV – Tendo o credor hipotecário reclamado nesse processo de insolvência o seu crédito, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, relativamente ao valor do bem sobre o qual recai a hipoteca, viu extinguir-se esta sua garantia com a venda desse bem (ou direito), transferindo-se a sua preferência para o produto da venda.
V – Na venda forçada ou coactiva realizada no processo de insolvência o regime estabelecido no art. 824º, n.ºs 2 e 3 do CC não é postergado pelo que resulta dos arts. 1476º, n.º 1, al. b) e 699º do Cód. Civil.
VI – Sendo válida e eficaz a aquisição do direito de usufruto por parte do nu proprietário e não sendo este pessoalmente sujeito da obrigação exequenda, a execução deverá prosseguir apenas para a venda da raiz ou nua propriedade do bem penhorado sobre o qual incide a garantia real.
*
V. – DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pela apelante BANCO A S.A., confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
*
Guimarães, 26 de outubro de 2017

Alcides Rodrigues
Espinheira Baltar
Eva Almeida


1. Os direitos reais de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor de uma coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respetivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular activo - cfr. Mota Pinto, in Direitos Reais, coligido por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, p. 135. 2. Cfr. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Almedina, p. 115.
3. Em princípio. Há algumas exceções, como as que decorrem dos privilégios imobiliários especiais (art. 751º do CC) e do direito de retenção. - cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias, 2017, 2ª ed., Almedina, p. 199.
4. Cfr. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, obra citada, p. 124, os quais referem ser, todavia, frequente incluir-se no contrato constitutivo de uma hipoteca uma cláusula nos termos da qual, na eventualidade de o bem ser vendido ou onerado, a obrigação vence-se imediatamente.
5. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantias das Obrigações, 4.ª ed., pág. 193 e A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, p. 765.
6. Cfr. Ac. RP de 31/01/2013 (Relator Aristides Rodrigues de Almeida), www.dgsi.pt.
7. Cfr. Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, “Parecer sobre Expurgação da Hipoteca”, em CJ, Ano XI, T. 5, pp. 35 a 47.
8. Cfr. Ac. RP de 5/04/2011 (Relator Henrique Araújo) www.dgsi.pt.; Antunes Varela, Obrigações em Geral, volume II, 4.ª edição, 1990, pp 539 e 540.
9. Nos termos do art. 842º do CPC, «ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda». O direito de remição consiste num meio de proteção do património do executado, na medida em que permite que o mesmo se conserve na esfera patrimonial dos seus familiares diretos em caso de adjudicação ou venda, sem prejudicar a satisfação do crédito exequendo (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almeida, p. 393/394). Trata-se, por isso, de um “benefício de caracter familiar (…) funcionando como um direito de preferência a favor da família no confronto com estranhos” (cfr. Ac. do STJ de 13/09/2012 (Relator Abílio Vasconcelos), in www.dgsi.pt.) Lebre de Freitas, in A acção executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, p. 385, refere que a «lei processual concede ao cônjuge e aos parentes em linha reta do executado um «especial» direito de preferência, denominado «direito de remição». (…) «Direito de preferência pela sua natureza, o direito de remição é, no entanto, um «direito de preferência qualificado».
10. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 98/99.
11. Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 1999, Almeida, p. 240.
12. Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, obra citada, p. 384/386, Remédio Marques, Curso De Processo Executivo Comum À Face Do Código Revisto, Almedina, 2000, p. 405; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 99, ao referirem que “os [direitos reais de] garantia caducam todos”.
13. A venda no processo de insolvência está sujeita ao regime previsto nos arts. 811º e ss. do CPC, os quais lhe são aplicáveis por força do art. 17º do CIRE.
14. Cfr. Miguel Mesquita, Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, Almedina, 1998, p. 148 e Ac. RP de 31/01/2013 (Relator Aristides Rodrigues de Almeida), www.dgsi.pt.
15. Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, obra citada, p. 386.
16. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 721.
17. Cfr. Rui Pinto Duarte, in Código Civil Anotado, (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 884.
18. Cfr. Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, volume III, 1993, p. 154.
19. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 532.
20. Cfr. Lições de Direitos Reais, Quid Iuris, pp. 358-359.
21. Cfr. Ac. RP de 16/03/2010 (Relatora Sílvia Maria Pereira Pires), in www.dgsi.pt.
22. Cfr. Neste sentido, Anselmo de Castro, in A acção executiva singular, comum e especial, 2.ª ed., 1973, Coimbra Editora, pág. 228.
23. Cfr. Miguel Mesquita, obra citada, pp. 25/26.
24. Cfr. embora não totalmente transponível, mas com alguns pontos comuns, Ac. RP de 31/01/2013 (Relator Aristides Rodrigues de Almeida), www.dgsi.pt.
25. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, p. 532.
26. Cfr. considerando que o elenco das causas de extinção da hipoteca previsto no art. 730º do CC não é taxativo, sendo de admitir a validade de outras causas de extinção desde que as mesmas resultem da ordem jurídica, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, p. 837, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, p. 752 e L. Miguel Pestana de Vasconcelos, obra citada, pp. 225/226. E no sentido de ao elenco do art. 730º do CC se poder acrescentar o mecanismo do artigo 824.º do Código Civil, por constituir uma outra causa de extinção da hipoteca – como dos demais direitos reais de garantia anteriores ao registo da penhora – prevista de modo expresso na ordem jurídica, o Ac. RP de 31/01/2013 (Relator Aristides Rodrigues de Almeida), www.dgsi.pt.