Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
114/14.0TCGMR-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ATRIBUIÇÃO DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ALTERAÇÃO
ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A atribuição da casa de morada da família é um incidente de jurisdição voluntária, podendo as suas resoluções ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna.
II- Não está em causa reapreciar a bondade da solução anterior, mas sim averiguar se houve alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do que então foi acordado/decidido.
III- Se se verificar, dos factos provados nos autos, que não se alterou de forma substancial, o circunstancialismo que foi determinante para o acordo celebrado, deve ser recusada a alteração.
IV- O processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada de família, não se caracteriza pela provisoriedade que é própria do incidente de atribuição da casa de morada de família na tramitação da acção de divórcio “sem consentimento do outro cônjuge”, podendo tal atribuição ser, apenas, alterada, conforme previsto no n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, o que é próprio dos processos desta natureza (art. 988.º do CPC).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. M. requereu, por apenso a divórcio, incidente de alteração da atribuição da casa de morada de família, contra M. S., solicitando que se proceda à entrega do imóvel ao requerente, seu proprietário, no prazo de 60 dias ou, caso assim não se entenda, no prazo que o tribunal fixar.
Alegou que a casa foi atribuída à requerida, há quatro anos, mas que o requerente, entretanto, refez a sua vida com outra mulher e não tem condições para arrendar ou comprar outra casa, uma vez que paga o condomínio, o IMI, as prestações bancárias e os seguros respeitantes à casa onde vive a requerida, estando impedido de utilizar um bem próprio e de recorrer ao crédito para comprar nova habitação. Na data do acordo residia em Guimarães, residindo atualmente no Porto.
Frustrada a tentativa de conciliação, a requerida contestou, impugnando o alegado e solicitando a manutenção do acordado anteriormente.
Respondeu o requerente, mantendo o pedido formulado inicialmente.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou o pedido improcedente, decidindo-se não alterar o acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado no processo principal por sentença de 15/12/2014.

O requerente interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

a. Com o presente recurso visa, o Recorrente, questionar a apreciação da prova produzida e vem impugná-la, em matéria de facto e de direito, nos termos e com os fundamentos que serão expostos de seguida.
b. Do recurso sobre matéria de facto, entende o Recorrente que, pelo menos, do facto dado como não provado do item - alínea r) – tem de ser dado como provado, por resultar da prova produzida em audiência de julgamento.
c. Os factos bem como outros com interesse para a decisão da causa, deveriam ter sido considerados provados pois no entendimento do Recorrente resultaram da prova produzida em audiência de julgamento.
d. A discordância com a matéria dada como não provada assenta no facto da Requerente e Requerida terem acordado que, quando o Requerente regressasse de Angola, a Requerida deixaria de ocupar a casa de morada de família (facto não provado alínea r)).
e. Por sentença proferida a 15.12.2014, homologatória do acordo alcançado entre o Recorrente e a Recorrida na mesma data, ficou acordado quanto à utilização da casa de morada de família, o seguinte: “De momento, a casa de morada de família está entregue à aqui requerente mulher, vinculando-se a mesma a pagar, em compensação, a quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais, a título de renda, comprometendo-se o requerente marido a emitir um documento que titule esse direito de a requerente viver na casa. Na posse do referido documento, a requerente mulher fica ainda vinculada a colocar em seu nome os contratos de consumos domésticos (p. ex. contratos de água, luz e gás). Por sua vez o aqui autor, assume o compromisso de pagar o valor do condomínio.”
f. Na data em que o referido acordo foi homologado, o aqui Recorrente vivia e trabalhava em Angola.
g. Pelo que, naquele momento, enquanto o Recorrente se encontrava em Angola, a casa de morada de família ficou entregue à Recorrida, sabendo que lhe seria entregue quando regressasse a Portugal.
h. E foi, nesse pressuposto, que o acordo quanto à utilização da casa de morada de família foi celebrado.
i. A expressão que consta no referido acordo quanto à utilização da casa de morada de famíliaDe momento, (…)”, demonstra bem o caráter provisório que o Recorrente e a Recorrida deram à utilização, por parte da Recorrida, do referido imóvel.
j. A expressão “momento” significa: breve período de tempo, curta duração, instante, fase, ciclo, período, etapa.
k. Assim sendo, o Tribunal a quo teria de considerar que, a expressão “De momento,(…)”, escrita no início do acordo quanto à utilização da casa de morada de família, tinha apenas em conta aquele período em que o acordo estava a ser realizado, ou seja, o período em que o Recorrente estava a viver, e a trabalhar, em Angola.
l. Pelo que, o facto de o Recorrente estar em Angola e lhe ter sido garantido pela Recorrida a entrega do imóvel quando regressasse a Portugal, foi o fator decisivo e fundamental para que a casa de morada de família, naquele momento, fosse utilizada pela Recorrida.
m. Acresce referir que, o facto dado como não provado da sentença não é sustentado por qualquer prova documental nem direta produzida em audiência de julgamento, na medida em que as declarações prestadas pelo Recorrente não foram contraditadas pela Requerida, nem pelos vários depoimentos prestados pelas testemunhas em Audiência de Julgamento.
n. Pelo supra exposto, entende o Recorrente que o Tribunal a quo devia ter dado como provado que acordo quanto à utilização da casa de morada de família foi celebrado com a seguinte indicação “de momento…”, porque, o Recorrente vivia em Angola e existia um acordo verbal entre ambos que, quando o Recorrente regressasse de Angola, a Recorrida deixaria de ocupar a casa de morada de família (facto não provado alínea r).
o. Ainda, no que respeita ao recurso sobre a matéria de Direito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto no disposto nos arts. 987.º e do 988.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e no art.º 1793.º, n.º 3, do Código Civil.
p. A lei permite a alteração da atribuição da casa de morada de família, contando que o requerente, aqui Recorrente, alegue e prove a existência de circunstâncias supervenientes que o justifique, o que aconteceu no presente caso.
q. Conforme consta na matéria dada como provada na sentença, o Recorrente, à data da celebração do acordo quanto à utilização da casa de morada de família, vivia em Angola.
r. Face ao disposto no n.º 3 do artigo 1793.º é atendível o pedido unilateral de modificação do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado pelo tribunal, com fundamento em circunstâncias supervenientes, exigindo-se o preenchimento dos seguintes requisitos, ou seja, que o requerente alegue e prove: i) que se alteraram as circunstâncias que determinaram a sua aceitação do acordo; ii) que tal alteração, tendo natureza substancial, evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória; iii) que a referida alteração tenha modificado a “base negocial” ou dos pressupostos fácticos que determinaram a vontade negocial das partes.
s. Quanto às circunstâncias que determinaram a aceitação do acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, entende o Recorrente que ficou provado na medida em que o mesmo aceitou o referido acordo com base no facto de estar a viver em Angola e a Recorrida se ter comprometido a deixar a referido imóvel, quando o Recorrente regressasse a Portugal.
t. Aliás, a permanência do Recorrente em Angola, era uma situação que já durava há cerca de 4 anos (desde o ano de 2011 até ao ano de 2015) e que, na perspetiva do Recorrente era uma situação para durar uns longos anos, na medida em que, o trabalho em Angola, não são trabalhos temporários, mas sim de caráter permanente.
u. Quanto ao facto dessa alteração, tendo natureza substancial, evidenciar sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória, entende o Recorrente que ficou provado, na medida em que o mesmo, vive e pretende continuar a viver, e a trabalhar, em Portugal.
v. Quanto ao facto dessa alteração ter modificado a “base negocial” ou os pressupostos fácticos que determinaram a vontade negocial das partes, entende o Recorrente que ficou provado que, quando regressou a Portugal, deixou de existir o pressuposto que o fez celebrar o acordo quanto à atribuição da casa de morada de família à Recorrida (isto é, deixou de viver em Angola).
w. Pelo supra exposto, todos os requisitos necessários, face ao disposto no n.º 3 do artigo 1793.º, para a alteração do acordo quanto à utilização da casa de morada de família com fundamento em circunstâncias supervenientes, encontram-se devidamente preenchidos e comprovados pelo aqui Recorrente.
x. Acresce ainda referir que, a inexistência de definição legal para a atribuição da casa de morada de família conduz ao entendimento que é uma atribuição do direito de utilização temporária ou passageira da casa de morada de família, delimitado num determinado lapso temporal e que terá um termo previsível.
y. Aliás, a manutenção da atribuição da casa de morada de família conforme o decidido pelo Tribunal a quo determina que a Recorrida não procure nova habitação, nem nada faça para tal, desincentivando a sua autonomia para que possa continuar a permanecer no imóvel, a custos reduzidos e em condições mais que vantajosas para si própria.
z. O Recorrente continua a suportar todos os pagamentos, limitando-se a Recorrida a custear os consumos domésticos dos quais exclusivamente usufrui, não pagando nenhuma despesa referente à casa de morada de família, nomeadamente, os contratos de mútuo sobre a fração autónoma, o IMI ou as prestações mensais de condomínio.
aa. Sem prescindir, acresce referir que, no acordo de utilização da casa de morada de família, homologado por sentença em 15.12.2014, ficou determinado que a Recorrida, vinculava-se a pagar ao Recorrente, “(…) em compensação, a quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de renda, (…).
bb. O valor de €250,00 pago pela Recorrida ao Recorrente, não custeia as despesas que o Recorrente tem com o referido imóvel, ficando apenas atribuído esse montante no referido acordo, porque, nessa altura, o Recorrente pagava a título de alimentos a menor o valor de €250,00 e, assim, compensava-se um valor com o outro.
cc. Acontece que, por mera hipótese, o tribunal a quo considerar o referido acordo um verdadeiro contrato de arrendamento e não um pagamento de um valor compensatório pela utilização da referida casa, esse arrendamento sempre estaria sujeito às regras do arrendamento de habitação e nunca seria um arrendamento ad
eternum.
dd. Mais, para ser determinado um verdadeiro direito de arrendamento, o tribunal deveria ter definido as condições do contrato, nomeadamente quanto ao prazo do mesmo, determinando-se uma renda de acordo com o mercado imobiliário, o que não aconteceu no presente caso.
ee. Quer o direito de arrendamento quer o direito de utilização da casa de morada de família não são um direito indefinido ou indeterminado.
ff. O espírito do preceito legal que preceitua a possibilidade de atribuição da casa de morada de família não é permitir que uma atribuição provisória se converta em definitiva.
gg. De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 8 de novembro de 2018, considerou razoável o prazo de 5 anos para a duração do direito de utilização da casa de morada de família por parte do ex-cônjuge, tendo em conta que a casa pertence ao outro.
hh. No presente caso, o acordo foi celebrado em 2014 e já estamos no início do ano de 2020, pelo que, a Recorrida já esteve um prazo razoável a utilizar a referida casa de morada de família (6 anos), para se poder organizar em termos financeiros e pessoais para puder arrendar um imóvel para habitar e não continuar a viver às custas do Recorrente que, até à presente data, paga todos os encargos relativos ao imóvel, excluindo os consumos domésticos que são utilizados exclusivamente pela Recorrida.
ii. Pelo supra descrito, entende o Recorrente que ficou provado nos presentes autos as circunstâncias supervenientes ocorridas que justificam a alteração do acordo quanto à utilização da casa de morada de família e procedendo-se à entrega do referido imóvel ao aqui Recorrente, seu único proprietário.
jj. Ao entender de modo diferente, o Tribunal a quo efetuou uma interpretação incorreta do disposto nos arts. 987.º e do 988.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e no art.º 1793.º, n.º 3, do Código Civil, devendo a sentença ser revogada.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, fazendo assim inteira e sã JUSTIÇA.

A requerida contra alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido, como de apelação, com efeito devolutivo, a subir de imediato, nos próprios autos.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto e verificação das circunstâncias relativas à alteração do acordo celebrado quanto à casa de morada de família.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

“Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1 - Requerente e requerida celebraram entre si casamento católico no dia 03-06-2000, sem convenção antenupcial – cfr. certidão de assento de casamento de fls. 7-9 do processo principal;
2 – J. P. nasceu no dia ..-08-2001 e é filho de requerente e requerida – cfr. certidão de assento de casamento de fls. 10-12;
3 - Por sentença proferida a 15-12-2014, homologatória de acordo alcançado entre requerente e requerida na mesma data, que se alcançam de fls. 68 e ss. do processo principal, foi, além do mais, determinada a conversão do processo especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge em processo especial de divórcio por mútuo consentimento, decretado o divórcio entre requerente e requerida e homologados os acordos sobre o regime de exercício das responsabilidades parentais atinentes a J. P. e sobre a atribuição da casa da morada de família;
4 - Nos termos do aludido acordo sobre exercício das responsabilidades parentais, a guarda do, então, menor J. P., ficou atribuída à mãe, aqui requerida;
5 - Nos termos do aludido acordo, o pai, aqui requerido, contribuirá, a título de alimentos a favor do filho, então menor, com a quantia mensal de € 250,00, e com metade das despesas extraordinárias de saúde do mesmo, designadamente, o custo de aquisição da vacina anual para a asma de que tal filho necessita;
6 - Nos termos do acordo relativo à casa de morada de família acima mencionado, a mesma foi identificada como respeitando à habitação sita na Rua …., Vila Nova de Gaia;
7 - Os demais termos do acordo referido no ponto anterior, com interesse para a presente decisão, são os seguintes:
- “De momento, a casa de morada de família está entregue à aqui requerente mulher, vinculando-se a mesma a pagar, em compensação, a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais, a título de renda, comprometendo-se o requerente marido a emitir um documento que titule esse direito de a requerente viver na casa. Na posse do referido documento, a requerente mulher fica ainda vinculada a colocar em seu nome os contratos de consumo domésticos (p. ex. contratos de água, luz e gás). Por sua vez o aqui autor, assume o compromisso de pagar o valor do condomínio.”
8 - A titularidade do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra E do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, que corresponde à casa de morada de família mencionada acima, encontra-se inscrita a favor do requerente mediante a apresentação n.º 48 de 08-11-1999, por compra – cfr. fls. 18-19;
9 - Sobre a fracção autónoma referida no ponto anterior, encontra-se inscrito o direito de hipoteca a favor de Banco …, SA., para garantia do pagamento da quantia máxima de € 87 093,53, mediante a inscrição n.º 34 de 08-05-2006 – cfr. fls. 18-19;
10 - Sobre a fracção autónoma referida no ponto anterior, encontra-se, também, inscrito o direito de hipoteca a favor de Banco …, SA., para garantia do pagamento da quantia máxima de € 40 000,00, mediante a inscrição n.º 35 de 08-05-2006 – cfr. fls. 18-19;
11- Os valores devidos a título de condomínio por força da fracção autónoma acima mencionada, entre 31-07-2018 e 31-07-2019, ascenderam a € 1 256,73;
12 - No mês de Junho de 2018, o requerente pagou a quantia mensal de € 266,85 para amortização dos dois contratos de mútuo referidos nos pontos 9 e 10;
13 - O requerente reside com a companheira em Matosinhos;
14 - A renda de uma habitação de tipologia T2 situada na área do concelho do Porto ascende ao valor mensal de € 600,00;
15 - A requerida reside com o filho, referido no ponto 2, supra, na fracção autónoma mencionada no ponto 8 desde a data mencionada em 3;
16 - A requerida aufere RSI no valor mensal de € 134,99;
17 - A requerida encontra-se desempregada;
18 - O requerente trabalha por conta de outrem e, em Agosto de 2019, auferiu, a título de remuneração por tal, o valor de € 2 479,93;
19 - A titularidade do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra C do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º …, da Freguesia de ..., situado na Rua …, encontra-se inscrita a favor do requerente e S. R., mediante a apresentação n.º 1460 de 09-06-2010, por partilha– cfr. fls. 333-335;
20- A titularidade do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra D do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º …, da Freguesia de ..., situado na Rua …, encontra-se inscrita a favor do requerente e S. R., mediante a apresentação n.º 5132 de 28-09-2012, por compra – cfr. fls. 338-340;
21 - Na altura referida no ponto 3, o requerente residia e trabalhava em Angola;
22- O requerente regressou de Angola em Agosto de 2015.

Com relevo para a decisão da presente causa, não resultaram demonstrados os seguintes factos alegados pelas partes:

a) O requerente paga, por ano, a título de IMI devido por ser titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma referida em 8, supra, a quantia de € 347,95;
b) Na data referida no ponto 3, o requerente residia em Guimarães;
c) O requerente reside no concelho do Porto;
d) Requerente e companheira pretendem passar a residir noutra habitação que não a referida no ponto 13, supra;
e) O requerido, devido à vigência dos contratos de mútuo referidos nos pontos 9 e 10, supra, está impossibilitado de contrair novo contrato de mútuo para aquisição de nova habitação para si e companheira;
f) A requerida pagou parte do preço de compra da fracção autónoma referida em 8, supra;
g) A requerida padece de depressão profunda;
h) O requerido aufere metade do valor mensal da pensão auferida por sua mãe desde a morte desta;
i) O requerente explora um centro de estudos com a companheira;
j) Os pais da requerida habitam na fracção autónoma designada no ponto 8, supra;
k) A requerida tem um companheiro, A. C.;
l) O companheiro da requerida habita na fracção autónoma designada no ponto 8, supra;
m) A requerida trabalha;
n) A requerida aufere outros rendimentos além do RSI;
o) A requerida usa habitualmente roupa, calçado e carteiras das marcas Armani, Calvi Klein, Carolina Herrera, Dolce Gabbana, entre outras marcas de renome;
p) A requerida frequenta os restaurantes e hóteis mais caros da cidade do Porto, designadamente, Porto Palácio Congress Hotel & Spa, The Yeatman e DOP;
q) A requerida passa, todos os anos, férias no estrangeiro em períodos de 15 dias a 1 mês;
r) O requerente e requerida acordaram que, quando o primeiro regressasse de Angola, a segunda deixaria de ocupar a fracção autónoma referida no ponto 8 da matéria de facto provada.

O apelante impugna a decisão de facto.
Entende que a alínea r) dos factos não provados deve transitar para os factos provados pois considera que ficou provado que requerente e requerida acordaram que, quando o requerente regressasse de Angola, a requerida deixaria de ocupar a casa de morada de família.
É certo que ficou provado que o requerente residia e trabalhava em Angola na data do acordo de atribuição da casa de morada de família (apesar de na petição inicial ter alegado que residia em Guimarães – artigo 5.º - alegação que só viria a corrigir mais tarde, após a tentativa de conciliação – artigo 24.º das alegações), tendo regressado oito meses depois – pontos 3, 21 e 22 dos factos provados.
Contudo, tal facto não é suficiente para fazer prova do acordo verbal constante da alínea r) dos factos não provados.
Para sustentar que houve esse acordo, o apelante baseia-se, apenas, nas suas declarações e no facto de ter ficado a constar do acordo de atribuição da casa de morada de família a expressão “De momento…”, que confere provisoriedade ao decidido.
O requerente declarou em audiência que se encontrava a residir e trabalhar em Angola quando o acordo referente à atribuição da casa de morada de família foi alcançado (dezembro de 2014), mas que regressou a Portugal logo em agosto de 2015 e que o pressuposto daquele acordo era que vigoraria apenas enquanto permanecesse em Angola e que, logo que regressasse, passaria ele a dispor da casa de morada de família para aí habitar.
Contudo, o requerente não conseguiu explicar o motivo de ter ficado a constar do acordo que a requerida passaria a pagar renda pela ocupação do imóvel, com a elaboração por parte do requerente de um documento que titulasse esse direito da requerida e com a obrigação da requerida colocar em seu nome os contratos de consumo domésticos (água, luz e gás), o que se afigura excessivo se estivesse prevista uma ocupação de apenas poucos meses. Como se refere na motivação da decisão de facto “o conteúdo do acordo aponta, face a critérios de normalidade, para uma ocupação prolongada do imóvel pela requerida, nele se prevendo a criação de um vínculo locatício e a elaboração de um documento que o titulasse”. Por outro lado, o filho de ambos, que, na altura, tinha 13 anos de idade, ficou à guarda da mãe e a residir com ela na casa de morada de família, sendo certo que se provou que a mãe não tinha, como não tem, condições económicas que lhe permitissem comprar ou arrendar uma casa onde pudessem viver os dois.
Tudo isto, aliado ao facto de o requerente não ter logrado efetuar qualquer prova – para além do seu depoimento, interessado – sobre o hipotético acordo, leva-nos a confirmar a decisão de facto, designadamente quanto à questionada alínea r) dos factos não provados.

Cumpre, agora, analisar se estão reunidos os pressupostos para alteração da atribuição da casa de morada de família efetuada por acordo em dezembro de 2014.
O critério geral para atribuição da casa de morada da família na sequência de acção de divórcio não pode ser outro senão o de que deve ser atribuído ao ex-cônjuge que mais precise dela, pois o objectivo da lei é proteger o ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar. A necessidade da casa será, assim, o factor principal a atender, devendo o tribunal ter em conta, tanto a situação patrimonial dos cônjuges, como o interesse dos filhos, para além de outras razões atendíveis como, a idade e o estado de saúde dos ex-cônjuges, a localização da casa, o facto de algum deles dispor de outra casa em que possa viver, etc.
Quando, em face destes elementos, se possa concluir que a necessidade ou premência da necessidade de um dos ex-cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais precise dela.
Contudo, a atribuição da casa de morada da família é um incidente de jurisdição voluntária, podendo as suas resoluções ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, face ao que dispõe o artigo 1793.º, n.º 3 do Código Civil – neste sentido, cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 25/02/2013 e de 22/05/2017, ambos em www.dgsi.pt – resultando do disposto nos artigos 988.º e 987.º do CPC a possibilidade de se alterar o regime, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna.
A nova resolução do tribunal deverá ter em conta a existência ou conhecimento superveniente de circunstâncias que importem um juízo diverso do que foi anteriormente realizado pelas partes ou pelo tribunal no que diz respeito ao uso da casa de morada de família, “sem o que, em vez de estarmos perante uma nova questão, estaríamos perante uma reapreciação extemporânea, desde logo em primeira instância, de uma decisão anteriormente transitada nos termos dos arts. 619º e 628º, do Código de Processo Civil (ex vi, do seu art. 549º, nº 1)” – Acórdão da Relação de Guimarães de 17/12/2018, processo n.º 1163/13.0TBPTL-G.G2 (José Flores), in www.dgsi.pt.
Não está aqui em causa reapreciar a bondade da solução anterior, mas sim averiguar se houve alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do que então foi acordado/decidido.

O critério, é o que se consignou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Abril de 2011, processo n.º 9079/10.6TBCSC.L1-2, in www.dgsi.pt:
“(…) para que uma obrigação parental seja modificável, com base na alteração das circunstâncias, aquele que pretende a alteração deve alegar as circunstâncias existentes no momento em que aquela obrigação foi contraída e as circunstâncias presentes no momento em que requer a modificação dessa mesma obrigação. Se o juízo de relação mostrar uma variação de contexto, então deve autorizar-se a alteração da obrigação. No caso contrário, a alteração deve, naturalmente, recusar-se.”

De acordo com Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, págs. 314/316, citação colhida no Acórdão da Relação do Porto, de 22/05/2017 (processo n.º 395/12.3TBVLC-I.P1), relator Carlos Querido, in www.dgsi.pt, para que ocorra tal alteração é necessário:

«a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);
b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);
c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...);
d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).»
Feitas estas considerações, reportemo-nos ao caso concreto.
Não interessa para os autos a alegação do apelante de que tem que suportar os custos com as hipotecas, impostos e condomínio e que o montante pago pela requerida - € 250,00 mensais – não chega para cobrir os seus gastos, pois tais circunstâncias já ocorriam, exatamente nos mesmos termos, quando foi celebrado o acordo. Também continua a verificar-se a circunstância de o filho de ambos viver com a requerida e de esta se encontrar desempregada, auferindo o RSI.
Como já vimos, o apelante sustenta-se no acordo que teria efetuado com a requerida no sentido de passar a habitar a casa quando regressasse de Angola, estando a permanência da requerida e de seu filho na mesma, condicionada por esse facto. Já vimos que esse acordo não se provou.
Ficou provado que o requerente vivia em Angola e que agora vive com uma companheira em Matosinhos e o apelante entende que essa é a circunstância superveniente que justifica a alteração do acordado, uma vez que necessita da casa para viver.
Ficou, também, provado que o requerente trabalha por conta de outrem auferindo remuneração mensal de cerca de € 2.479,93, que a renda de uma habitação de tipologia T2, na área do concelho do Porto ascende ao valor mensal de € 600,00 e que o requerente é comproprietário, com sua irmã, de dois apartamentos na cidade do Porto.
Ora, dos factos provados nos autos, não vemos que se tenha alterado de forma substancial, o circunstancialismo que foi determinante para o acordo celebrado, pois a requerida continua a viver com o filho e sem possibilidades económicas de comprar ou arrendar uma habitação para os dois. Por outro lado, se é certo que o requerente vive, agora, em Matosinhos (perto da casa de morada de família), também é verdade que pode suportar uma renda compatível com as suas necessidades, ou mesmo adquirir uma nova casa, para além de que é, ainda, comproprietário, com sua irmã, de dois apartamentos na cidade do Porto. Ou seja, continua a existir uma maior necessidade da habitação por parte da requerida, que não tem possibilidades de obter outra habitação para si e para o seu filho, ao contrário do requerente que, apesar de ser proprietário da casa, tem possibilidades económicas diferentes. Veja-se que o Tribunal Constitucional decidiu, em acórdão de 27.02.2013 - n.º 127/13, Processo n.º 672/2012, 3.ª Secção, Relator Cons. Vítor Gomes, acessível no site: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130127.html: “[n]ão julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, na parte em que, em caso de divórcio, permite a constituição, por decisão judicial, de uma relação de arrendamento da casa de morada de família a favor de um dos ex-cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge e contra a vontade deste».
Assim, concordamos com a sentença recorrida quando considerou que a alteração ocorrida não é idónea, por si só, a legitimar a pretendida alteração ao acordo celebrado entre as partes, no sentido da cessação do direito de a requerida ocupar a casa de morada de família.

Finalmente, entende o apelante que o espírito do preceito legal que possibilita a atribuição da casa de morada de família é o de uma atribuição provisória.
Ora, como já supra salientámos, a atribuição da casa de morada da família é um incidente de jurisdição voluntária, podendo as suas resoluções ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, face ao que dispõe o artigo 1793.º, n.º 3 do Código Civil, resultando do disposto nos artigos 988.º e 987.º do CPC a possibilidade de se alterar o regime, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna.
Trata-se de regime diferente do previsto no n.º 2 in fine e no n.º 7 do artigo 931.º do CPC que constitui incidente na tramitação da acção de divórcio “sem consentimento do outro cônjuge”, tendo natureza provisória, como expressamente resulta das citadas disposições legais: é provisório o acordo obtido quanto ao destino da casa de morada de família [vigorando em regra “durante o período de pendência do processo” – art. 931/2]; é provisório o regime adoptado na decisão do juiz proferida perante a inviabilidade do acordo das partes [como expressamente o define o n.º 7 do art. 931.º].
O referido incidente distingue-se daquele processo de jurisdição voluntária previsto no artigo 990.º do CPC, que não se caracteriza pela mesma provisoriedade, apesar da sua alterabilidade, prevista no n.º 3 do artigo 1793.º do Código Civil, própria dos processos desta natureza (art. 988.º do CPC) – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 15/06/2015, processo n.º 5161/12.3TBSTS.P1 (Carlos Querido), in www.dgsi.pt.
Ou seja, é alterável, como vimos, mas não quer dizer que seja provisório.
Do exposto se conclui que não há qualquer alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do acordado entre as partes, pelo que a sentença deve ser confirmada.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 17 de setembro de 2020

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes