Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2606/19.5T8BRG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO PRIVATIVO DE JURISDIÇÃO
FATURAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- As faturas são meros documentos particulares de valor contabilístico, emitidos unilateralmente pelo emitente, não consubstanciando títulos de crédito, uma vez que nelas o emitente não assume qualquer obrigação de pagamento de um crédito a um terceiro, sequer assume qualquer promessa de pagamento de um crédito perante um terceiro.

2- As faturas nem sequer fazem prova da verificação efetiva da transação comercial que justificará a respetiva emissão pelo emitente, e quando impugnadas pelo réu, como documentos particulares, ficam sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova.

3- Em caso de não pagamento do preço por parte do emissário, o emitente da fatura terá de instaurar ação declarativa em que terá de alegar, na petição inicial, os factos essenciais e concretos individualizadores da relação contratual que estabeleceu com o emissário e do incumprimento contratual em que este incorreu (causa de pedir) de onde faz derivar o pedido de condenação daquele a pagar-lhe o preço da mercadoria fornecida.

4- O contrato de fornecimento é um contrato nominado, objetivamente comercial, mas atípico, que se caracteriza por existir uma única relação contratual de onde emergem relações continuadas no tempo, em que o fornecedor se obriga a transmitir, regular e periodicamente, bens ou serviços ao fornecido, mediante a obrigação deste de lhe pagar o respetivo preço, sendo aplicáveis a esta relação contratual unitária as regras da compra e venda.

5- Tendo o Autor, na petição inicial, alegados factos dos quais decorre que o mesmo assenta o pedido de condenação do Réu a pagar-lhe o preço da mercadoria fornecida, num contrato de fornecimento celebrado com o último e no incumprimento desse contrato por parte deste, não pode aquele Autor, posteriormente, nomeadamente, em sede de resposta à exceção dilatória da incompetência internacional do tribunal, vir alegar factos novos tendentes a subsumir essa relação contratual no tipo contratual de prestação de serviços, nomeadamente, do contrato de empreitada, por tal implicar uma convolação da causa de pedir originária para causa de pedir diversa, fora dos condicionalismos do art. 265º, n.º 1 do CPC.

6- A preterição de pacto privativo jurisdicional não é do conhecimento oficioso do tribunal, pelo que a invocação da exceção dilatória da incompetência internacional do tribunal com fundamento na existência desse pacto, tem de ser suscitada pelo réu na contestação. Por sua vez, invocando o réu, na contestação, a exceção dilatória da incompetência internacional do tribunal para conhecer do litígio que lhe foi submetido pelo autor a julgamento, pretendendo o autor invocar a existência desse pacto para afastar essa exceção dilatória (a título de contra-exceção), o mesmo tem de invocar a existência desse pacto na réplica, quando esta seja admissível, não o sendo, na audiência prévia e não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

7- Tendo o réu invocado a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica submetida pelo autor a julgamento, não tendo este autor invocado a existência de pacto privativo de jurisdição que atribuiria essa competência internacional aos tribunais portugueses, apenas o vindo a fazer em sede de alegações de recurso, quando o seu direito a invocar a existência desse pacto já se encontrava precludido, tal invocação configura “questão nova”, de que o tribunal de recurso não pode conhecer.

8- O critério especial atributivo de competência internacional previsto no art. 7º, n.º 1, al. b) do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12/12, é um critério autónomo, puramente factual, que é aplicável qualquer que seja a obrigação do litígio, incluindo quando o autor pede a condenação do réu a pagar-lhe o preço da mercadoria fornecido. O critério relevante para efeitos de competência internacional, no caso venda de bens, é o lugar onde, nos termos do contrato, a mercadoria foi entregue ou devia ser entregue.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

Relatório

Recorrente: X, Unipessoal, Lda.
Recorrida: Y, S.A..

X, Lda., com sede na Rua da …, lote …, freguesia de ... e …, Braga, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Y, S.L., com sede em …, Barcelona, Espanha, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 65.220,00 euros, acrescida dos juros de mora, às taxas legais aplicáveis às operações comerciais, contados desde a data de vencimento da fatura, sendo os já vencidos no montante de 2.626,67 euros, bem como da sanção pecuniária compulsória prevista no art. 829-A do Código Civil, à taxa de 5% a partir do trânsito em julgado da sentença e até efetivo pagamento.
Para tanto alega, em síntese, que no exercício da sua atividade comercial forneceu à Ré, a pedido desta, diversas mercadorias, que lhe foram pagas pela última, numa relação contratual que decorreu sempre sem quaisquer problemas;
No âmbito deste mesmo relacionamento, forneceu à Ré, a pedido desta, as mercadorias que se encontram discriminadas na nota de encomenda junta aos autos a fls. 5 verso;
De acordo com o combinado entre ambas, a Ré procedeu ao pagamento de 30% do preço dessa mercadoria, mediante a emissão da fatura junta aos autos a fls. 6, emitida em 20/03/2018 e vencida em 19/04/2018;
A Ré liquidou essa parte do preço através de transferência bancária para uma das contas bancárias referenciadas pela Autora na dita fatura, como usualmente faz, ou seja, para a conta do Banco ... ou para a conta do Banco ...;
Para pagamento da importância correspondente a 60% da restante parte do preço em dívida, a Autora emitiu a fatura de fls. 7 verso, datada de 05/09/2018, no montante de 65.220,00 euros, com vencimento em 05/10/2018, que enviou à Ré para pagamento;
À semelhança do que sucedera em anteriores transações havidas entre Autora e Ré e como se passou com a liquidação da fatura respeitante à liquidação inicial e parcial do preço, o local de pagamento do preço desta última fatura, na data do respetivo vencimento, era em Portugal, em Braga, nas agências do Banco ... ou do Banco ..., modo de pagamento esse que consta, de resto, das aludidas faturas;
Acontece que apesar das mercadorias constantes dessas faturas terem sido remetidas para a Ré e terem sido por esta aceites, que também aceitou as faturas, a última não pagou a fatura de fls. 7 verso, que permanece em dívida.

A Ré contestou defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica objeto dos autos, sustentando que não tendo as partes convencionado qualquer pacto atributivo de jurisdição, situando-se a sua sede em Espanha, de acordo com o critério geral previsto no art. 4º, n.º 1 do Regulamento (EU) n.º 1215/2002, são internacionalmente competentes para o efeito os tribunais espanhóis;
Acresce que tal como a Autora configura a relação material controvertida, a relação estabelecida entre esta e a Ré reconduz-se a um contrato de compra e venda de bens, pelo que de acordo com o critério especial previsto no art. 7º, n.º 1, al. b) do Regulamento são igualmente internacionalmente competentes os tribunais espanhóis para conhecerem da presente relação jurídica.
Invocou as exceções perentórias do pagamento e do abuso de direito, alegando que tendo pago a fatura correspondente a 30% do preço da mercadoria que a Autora lhe forneceu, não obstante ter sido acordado entre ambas que a Ré lhe pagaria 60%, ou seja, a quantia de 65.220,00 euros, com a entrega da mercadoria e os restantes 10%, isto é, 10.870,00 euros, com a verificação e aprovação dessa mercadoria, a Ré emitiu a fatura n.º 2018/49, datada de 08/08/2018 e com vencimento em 07/09/2018, no valor de 76.090,00 euros, correspondente a 70% do preço contratado, na sequência do que a Ré solicitou a retificação dessa fatura dado que a mesma não se encontrava de acordo com o convencionado, visto que as mesmas acordaram que a Ré lhe pagaria apenas 60% do preço;
Em 05/09/2018, a Autora remeteu à Ré nota de débito respeitante à fatura que tinha emitido e enviou-lhe a fatura de fls. 7 verso, que a última pagou por transferência bancária para a conta indicada no correio eletrónico;
Acontece que não obstante a Autora aceitar que a Ré pagou e que o seu sistema informática havia sido pirateado, continua a exigir da última o montante da fatura de fls. 7 verso e isto apesar dos piratas informáticos se terem introduzido no sistema informático da própria Autora, a fim de promoverem a interceção dos correios eletrónicos da mesma com os seus clientes, ao que a Ré é alheia e cujos colaboradores não se aperceberam, sequer se poderiam aperceber, permanecendo na convicção que estavam a comunicar com os colaboradores legítimos da Autora e fazendo o pagamento na completa, absoluta e fundada convicção que o estavam a efetuar o pagamento à Autora e/ou de acordo com as instruções desta, pelo que a exigência da Autora no sentido de pagar pela segunda vez o montante da fatura em causa constitui um atropelo ao princípio da boa fé;
Impugnou parte da factualidade alegada pela Autora.
Conclui pedindo que por via da procedência da exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da presente relação jurídica que a Autora lhes submeteu, se absolva aquela da instância ou, subsidiariamente, que se julgue a ação improcedente e se absolva a mesma do pedido.

Notificou-se a Autora para responder, querendo, à exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica objeto dos autos.
A Autora apresentou a resposta de fls. 145 a 149, concluindo pela improcedência dessa exceção dilatória.
Alegou que a Ré lhe solicitou o fornecimento de mercadorias para uma cliente sua e daí que essas mercadorias tivessem sido entregues pela Autora à entidade que figura nas faturas por indicação da própria Ré;
A Autora teve de produzir essa mercadoria à medida e em conformidade com as instruções previamente fornecidas pelo aludido cliente da Ré, produzindo-a sob orientação e instrução desse cliente;
Conclui sustentando que a relação contratual em análise de cujo incumprimento faz derivar o seu pedido não é de compra e venda mas de empreitada, pelo que tendo esses serviços encomendados pela Ré sido prestados no seu estabelecimento comercial, sito na sua sede, e situando-se esta em Portugal, os tribunais nacionais são internacionalmente competentes para conhecer da presente relação jurídica controvertida.

A Ré respondeu alegando que em sede de petição inicial, a Autora não alegou nenhum facto que permita caracterizar o contrato que com ela celebrou como de empreitada, não podendo aproveitar a resposta à exceção para, de forma encapotada, alterar a causa de pedir que invocou na petição inicial.
Requer que os novos factos alegados pela Autora sejam considerados inadmissíveis.
Subsidiariamente impugnou parte dos factos alegados pela Autora.

Dispensou-se a realização de audiência prévia, fixou-se o valor da causa em 67.846,67 euros, conheceu-se desta última pretensão da Ré, declarando como não escrita a matéria constante da identificada resposta apresentada pela Autora que implica alteração da causa de pedir, mormente a alegada nos artigos 14º a 28º dessa resposta, e conheceu-se da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar da relação jurídica material controvertida submetida pela Autora a julgamento, em que se conclui pela procedência dessa exceção, absolvendo-se a Ré da instância, constando essas decisões da seguinte parte dispositiva:

“Resumindo a nova matéria alegada, determinante da alteração da causa de pedir, não pode sequer ser considerada pelo Tribunal.
(…).
Pelo exposto, julgo o Tribunal português internacionalmente incompetente para julgar a presente causa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 96º, al. a), 99º, n.º 1, 278º, n.º 1, al. a), 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, al. a), 578º, todos do C.P.Civil, e, em consequência, absolvo a ré da presente instância.
Custas pela Autora”.

Inconformada com o assim decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação em que apresenta as seguintes conclusões:

1 - Interpôs a Recorrente o presente recurso, por entender que foram incorretamente aplicadas as respetivas disposições legais, quer no que concerne ao entendimento vertido na douta decisão em crise relativamente ao que se considera ter sido uma alteração ilegal da causa de pedir operada pela Recorrente, quer quanto à competência internacional dos tribunais portugueses para apreciarem este pleito.
2 - Entendemos que a matéria de facto alegada nos artigos 18º a 28º do articulado de 17.10.2019, não constitui uma alteração ilegal, posto que não obtida por acordo, da causa de pedir.
3 - Desde logo e porque estava em causa apenas o incumprimento de uma obrigação pecuniária por parte da Recorrida, consistente no não pagamento do valor das faturas invocadas na petição inicial, não carecia a Recorrente de invocar, especificando, a relação contratual que deu origem à emissão das mesmas faturas, posto que serviam esta, enquanto título de crédito, de suficiente causa de pedir.
4 - A expressão “fornecimento de mercadorias”, juridicamente, quanto a nós, não quer dizer coisa nenhuma.
5 - A interpretação da relação em análise levada a cabo no seguinte segmento da douta decisão recorrida, com todo o respeito, não nos sugere um contrato que não possa ser de empreitada: “(…) A autora estava apenas adstrita a entregar máquinas e equipamentos provenientes da sua atividade produtiva e pretendidos pela ré, sem prejuízo da sua adaptação às necessidades concretas do cliente final, fornecendo ela própria toda a matéria-prima e/ou técnica produtivas necessárias para o efeito, e sendo a mercadoria entregue na sede da cliente da ré, igualmente sita em Barcelona, Espanha.(…)”.
6 - Daí que para caracterizar a relação jurídica em causa e posto que foi alegada a incompetência absoluta do tribunal, relevando para este efeito a natureza da relação contratual, a especificação da relação contratual que, de resto, a Recorrida aceitou como verdadeira, importaria invocar tais factos, sem que tal implicasse a alteração da causa de pedir.
7 - Aliás, parece-nos que o entendimento da Meritíssima Julgadora “a quo” nesse sentido, decorre da interpretação que faz da expressão de “fornecimento de mercadorias” como significando necessariamente uma compra e venda.
8 – Tal não possui, salvo o devido respeito, o necessário fundamento, antes nos remetendo, no caso em apreço, para uma situação em que, quanto muito, estejamos perante um contrato atípico.
9 - No que concerne ao tema da incompetência absoluta e seguindo a caracterização proposta da relação em análise como tratando-se de uma prestação de serviços, o Regulamento (EU) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, no seu artigo 7º-1-a) e b), refere que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, considerando que para esse efeito, o lugar de cumprimento da obrigação no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
10 - Tendo, como se disse, os serviços encomendados pela Recorrida sido prestados pela Recorrente, no estabelecimento comercial que tem instalado na sua sede, dúvidas não nos parece restarem de que são os tribunais portugueses, os competentes para a apreciação da causa.
11 - Aliás, já o denominado Regulamento Roma I que veio substituir a Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 1980, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/94, de 3 de Fevereiro e apenas aplicável aos contratos celebrados posteriormente a 17 de dezembro de 2009, Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, igualmente prescrevia no seu artigo 4º-1-b) que “Na falta de escolha nos termos do artigo 3.º (…), a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo: (…) O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual;(…)”.
12 - Dispõe ainda o artigo 25º do falado regulamento que, se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, podendo esse pacto atributivo de jurisdição ser celebrado de acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si.
13 - A obrigação pecuniária trazida aos autos e que a Recorrente pretende que a Recorrida cumpra, prende-se com o pagamento do preço da fatura em falta e que, conforme ambas as partes estipularam, não o convencionando por escrito, mas porque assim procederam relativamente à liquidação das demais faturas, deveria, como sempre foi feito, mediante transferência bancária da Recorrida para uma conta bancária titulada pela Recorrente.
14 - Não vemos, salvo o devido respeito por opinião diferente constante da douta sentença recorrida, que do invocado texto legal resulte excluído que tal estipulação seja tácita.
15 - O que ambas as partes convencionaram e não nos parece que se poderá entender diversamente, é que o local de pagamento do preço das mesmas faturas seriam as entidades bancárias portuguesas, cuja identificação constava das mesmas faturas.
16 - Sendo esse o local do cumprimento da obrigação pecuniária por parte da Recorrida, não cabem dúvidas de que, também por este motivo, é este tribunal o competente internacionalmente para conhecer da causa, o que já assim se entendeu no douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Dezembro de 2010, in DGSI, embora ainda no domínio do anterior regulamento, mas em que o artigo citado tem correspondência no citado artigo 7º-1-a) do regulamento em vigor, onde se decidiu que: “(…) O Regulamento CE 44/2001 consagra um critério geral – o do domicílio do réu – e vários critérios especiais, podendo o autor escolher, para instaurar a ação, indistintamente qualquer um dos tribunais cuja competência lhe é atribuída pela aplicação de cada um desses critérios. 2. Constando do contrato que o pagamento dos créditos se realizará por meio de transferência bancária para as contas que ambas as partes comuniquem, e tendo a Recorrente indicado para o efeito uma conta bancária domiciliada em Lisboa, encontra-se preenchido o critério especial previsto na al. a), do nº 1 do art. 5º do Regulamento, que remete para o tribunal do lugar onde foi ou devia ser cumprida a obrigação em questão. (…)”.
17 - Mas mesmo que se pudesse caracterizar a relação contratual em apreço, como sendo a de um contrato de compra e venda do tipo do indicado pela Meritíssima Julgadora “a quo”, isto é, com características predominantes da compra e venda e em que a adaptação do bem vendido aos interesses do comprador importaria uma prestação de serviços tal, a nosso ver, remeter-nos-ia para a figura do contrato atípico, o que não retiraria aos tribunais portugueses a competência para a apreciação do litígio, como foi entendido na jurisprudência supra citada.
18 - Parece-nos dúvidas não restarem de que, no caso em apreço e atendendo ao modo como a relação contratual em apreço se formou, conforme foi descrito na petição inicial, de acordo com os critérios de conexão e a demais legislação aplicável, a opção pelo foro do domicílio da Recorrente é absolutamente pertinente e os tribunais portugueses internacionalmente competentes para apreciar esta ação.
19 - Assim, ao julgar, como o fez, houve-se a Meritíssima Juíza “a quo” com inobservância, além do mais, do disposto nos artigos 62º, 264º e 265º, do Código de Processo Civil e no Regulamento (EU) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, designadamente no seu artigo 7º-1-a) e b).
20 - Impõe-se e, assim se espera, decisão em sentido contrário, ou seja, a total improcedência da invocada exceção da incompetência absoluta internacional da jurisdição portuguesa, para o que não pode deixar de se decretar a revogação da douta sentença ora recorrida.

NESTES TERMOS,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso de apelação e, por via disso, ser proferido douto acórdão que revogue a douta sentença recorrida, decidindo-se pela total improcedência da invocada exceção da incompetência absoluta internacional da jurisdição portuguesa, com os fundamentos acima invocados e em conformidade com o objeto do presente recurso, procedendo-se desta forma com as exigências impostas pela Justiça.

A apelada contra-alegou pugnando pela improcedência da apelação, apresentando as conclusões que se seguem:

I – Vem o recurso ora contra-alegado interposto da douta Sentença de fls. … e seguintes, com a referência 165996967 que julgou o Tribunal português internacionalmente incompetente para julgar a presente causa.
II – O dever de fundamentação das decisões que os arts. 154º e 607º, nº 3 do C.P.C. fazem impender sobre o julgador tem como correspetivo o ónus de impugnação, motivação e alegação à parte que pretenda recorrer da decisão por ele proferida, a quem o legislador impõe o dever de expor os argumentos que determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal a quo.
III – Tal ónus que impende sobre o recorrente encontra-se vertido no art. 639º, nº 2 do C.P.C..
IV - Atento o referido ónus que impende sobre a parte recorrente, os recursos devem ser dialéticos, isto é, discursivos: o recorrente deve manifestar concludentemente o porquê do pedido de reexame da decisão, mostrando onde a sentença divergiu da prova dos autos ou do direito e qual o direito pretendido.
V - É a apontada dialecticidade que permite o arrazoado do e demarca a extensão ex adverso do contraditório perante o Juízo ad quem, fixando os limites da jurisdição recursal.
VI – De contrário, o recurso quedar-se-á num mero exercício de puro inconformismo, em que a parte vencida apenas desabafa os seus naturais desapontamento e descontentamento com a decisão recorrida.
VII - Ante o quadro referencial que acaba de descrever-se, parece notório – salvo o devido respeito por entendimento diverso – que a Apelante não observou cabalmente o ónus de impugnação, motivação e alegação que sobre si impende.
VIII - A Apelante, na sua alegação, não demonstra ou evidencia qualquer erro de julgamento do Juiz a quo que pudesse levar a uma decisão diferente, limitando-se a reproduzir argumentos por si expendidos anteriormente, que mais não demonstram senão a sua naturalíssima e simples discordância com a decisão ínsita na sentença proferida.
IX - A douta sentença recorrida é exemplar e inexpugnável: quer na sua cabal e robusta fundamentação, quer na acertada aplicação do Direito, que conduziram à decisão.
X - Deverá o recurso sob apreciação de ser liminarmente indeferido, o que expressamente se requer.

SEM PREJUÍZO,

XI – Não assiste qualquer razão à Apelante nas questões por ela abordadas no recurso interposto.
XII – Decidiu acertadamente o Tribunal a quo ao não admitir os factos novos pela Apelante introduzidos no seu requerimento enviado a juízo no dia 17/10/2019, com a referência 33743150.
XIII – Decidiu acertadamente o Tribunal a quo ao não admitir a alteração da causa de pedir pela Apelante pretendida no seu requerimento enviado a juízo no dia 17/10/2019, com a referência 33743150.
XIV – A alegação de factos novos por parte da Apelante naquele seu requerimento é instrumental à sua pretendida alteração da causa de pedir que formulou em sede de P.I., com vista a emendar a mão e lograr forçar a competência dos tribunais portugueses para julgar a presente causa.
XV - A competência do Tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos como a Autora estruturou o pedido e a causa de pedir, como decorre, aliás, do que prescreve o art. 38º, nº 1 da LOSJ.
XVI – No caso em apreço, em que o conflito tem caráter transfronteiriço e comunitário, aplicando-se-lhe o Regulamento (UE) nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, a forma como a Apelante estruturou a sua causa de pedir em sede de P.I. e caracterizou a relação contratual que estabeleceu com a Ré é fundamental para aferir da competência do Tribunal.
XVII - Como decorre inequivocamente do teor da petição inicial, a Apelante configurou a sua relação contratual com a Ré aqui Apelada como sendo um contrato de compra e venda, na modalidade de fornecimento de bens (ali mencionadas como mercadorias), tendo alegado os competentes factos essenciais, como lhe impõe o art. 5º, nº 1 do C.P.C..
XVIII - Desta feita, a relação material subjacente estabelecida entre as partes que enforma a causa de pedir na lide é, precisamente, a celebração de um contrato de compra e venda/de fornecimento de bens e o pretenso - que não se concede, nem admite – incumprimento da obrigação de pagamento do correspondente preço por parte da Ré aqui Apelada.
XIX – Contrariamente ao que pretende fazer crer a Apelante os novos factos por ela invocados não são complementares dos que arguiu em sede de P.I., mas sim factos essenciais a uma outra causa de pedir e diversa daquela que por ela foi alegada no petitório inicial.
XX - A fatura não é um título de crédito e a sua junção aos autos e a invocação da pretensa falta do seu pagamento – que não se concede, nem admite – não isenta a parte de alegar os factos essenciais que subjazem à sua causa de pedir, como o impõe o art. 5º, nº 1 do C.P.C..
XXI - E tanto assim é, que a Apelante, não obstante juntar faturas com a sua P.I., não se eximiu de alegar os factos essenciais da sua causa de pedir e que se reconduzem ao contrato de compra e venda de bens que celebrou com a Apelada e o pretenso incumprimento – que não se concede, nem admite – do pagamento do respectivo preço por parte desta.
XXII – Andou bem a Meritíssima Juiz a quo ao decidir pela qualificação do contrato celebrado entre as partes como sendo de compra e venda, sendo que na sua alegação a Apelante não logrou demonstrar o seu desacerto.
XXIII - É entendimento hoje pacífico na doutrina e jurisprudência que a al. b), do nº 1, do art. 7º do Regulamento abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objeto mediato.
XXIV – Em consequência, para a aferição da competência do Tribunal em razão da nacionalidade, é irrelevante o lugar do cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação.
XXV – Pretende a Apelante transmutar o lugar do cumprimento da obrigação em pacto atributivo de jurisdição.
XXVI – Não colhe a argumentação da Apelante quanto a tal conspecto.
XXVII – Analisada a P.I. apresentada pela Apelante, momento próprio para alegar a existência de um pacto atributivo de jurisdição, constata-se que aquela nada refere quanto a tal conspecto, precludindo, assim, a possibilidade da sua arguição.
XXVIII – O pacto atributivo de jurisdição tem de exprimir um compromisso bilateral e inequívoco, concluído em termos e condições que não deixem margem para dúvidas razoáveis quanto à aceitação por ambas as partes do foro a designar, foro esse que tem que ser expressamente identificado pelas partes.
XXIX - As partes não celebraram entre si qualquer pacto atributivo de jurisdição, nem tal pode ser inferido quer da pretensa estipulação de um lugar de cumprimento da obrigação de pagamento, quer de uma menção unilateral e simples de um IBAN numa fatura, como erradamente pretende a Apelante.
XXX – A alegação da Apelante não preenche os requisitos ínsitos no art. 25º do Regulamento aplicável e no art. 94º do C.P.C..
XXXI - Pretende a Recorrente que o contrato celebrado entre as partes seja categorizado como sendo um contrato atípico, circunstância que, no seu entendimento, determinaria a competência do Tribunal Português para julgar a causa.
XXXII - Não assiste qualquer razão à Recorrente.
XXXIII – Na decisão recorrida a Meritíssima Juiz a quo, para reforçar a sua fundamentação, atendeu à factualidade invocada inovadoramente pela Autora e, escalpelizando-a, não teve dúvidas em qualificar o contrato celebrado entre as partes como sendo de compra e venda.
XXXIV - Fundou o Tribunal a quo a sua decisão numa minuciosa análise dos factos carreados e elementos já constantes aos autos, enquadrando-a em cimentada jurisprudência comunitária – os paradigmáticos casos Car Trim e Falco Privatstiftung -, que não teve quaisquer dúvidas em qualificar contratos com as características pela Apelante apontadas como sendo de compra e venda.
XXXV – O entendimento da Meritíssima Juiz a quo tem vindo a ser unanimemente sufragado pela jurisprudência nacional, de que são exemplos, entre outros, o Acórdão desta Relação de 21/06/2018, proferido no processo 733/18.5T8GMR.G1 e o Acórdão do STJ de 14/12/2017, proferido no processo 143378/15.0YIPRT.G1.S1.
XXXVI – Em conclusão, julgou acertadamente a douta decisão recorrida em caracterizar a relação contratual estabelecida entre as partes como sendo um contrato de compra e venda de bens e em declarar a incompetência absoluta, em razão da nacionalidade, dos Tribunais Portugueses para julgar a presente causa.
XXXVII – A decisão recorrida tem completo respaldo na legislação, doutrina e jurisprudência nacional e comunitárias.
XXVIII – A Apelante não logrou demonstrar qualquer erro ou desacerto da decisão recorrida.
IXL – A decisão recorrida não violou as disposições legais identificadas pela Apelante.
XL - Atento todo o exposto, carece a Apelante de qualquer razão no recurso que interpôs, devendo ser mantida in toto a, aliás douta, Sentença proferida pelo Tribunal a quo, já que a mesma julgou com acerto, brilhantismo e perfeita observância da Lei aplicável os elementos constantes dos autos, não podendo o thema decidendi, conscientemente, ter tido desfecho diferente.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que por V. Exas. douta e superiormente serão supridos, deve o recurso interposto pela Autora ser julgado improcedente e, em consequência, mantido o julgado recorrido.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:

1- questão prévia suscitada pela apelada, que consiste em saber se a apelante incumpriu com o ónus de impugnação, motivação e alegação do objeto do recurso que interpôs e se esse pretenso incumprimento implica a imediata rejeição do recurso;

caso assim não seja,

2- se a decisão recorrida padece de erro de direito ao ter decidido desconsiderar os factos alegados pela apelante na resposta de fls. 145 a 148, na parte em que implicam a alteração da causa de pedir originariamente por ela alegada em sede de petição inicial, mormente os factos alegados nos arts. 18º a 28º dessa resposta, com fundamento de que esses factos consubstanciam factos novos, que são essenciais integrativos da causa de pedir que a mesma apelante alegara em sede de petição inicial, e com isso alterou ilegalmente essa causa de pedir que inicialmente invocara, quando, na perspectiva da apelante:
2.1- esta não carecia de alegar, em sede de petição inicial, os factos que especificassem a relação contratual estabelecida com a apelada e que deu origem à emissão das faturas, posto que essas faturas, enquanto título de crédito, consubstanciam suficiente causa de pedir; e
2.2- a alegação vertida pela apelante em sede de petição inicial - “fornecimento de mercadorias”- “não quer dizer coisa alguma” e “não sugere um contrato que não possa ser de empreitada”;
3- se essa decisão, na parte em que julgou procedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que lhes foi submetida a julgamento e, em consequência, absolveu a apelada da instância, padece de erro de direito, dado que:
3.1- a relação contratual acordada entre aquelas e de cujo incumprimento a apelante faz derivar o pedido condenatório da apelada a pagar-lhe a parte do preço alegadamente não liquidado se subsume à figura do contrato de empreitada;
3.2- apelante e apelada estipularam entre elas tacitamente um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais portugueses para dirimirem os litígios que entre elas surgissem ao estipularem verbalmente esse pacto e a apelada ao proceder à liquidação das faturas que a apelante emitiu e lhe enviou aceitou que estas deviam ser pagas, como sempre o foram, mediante transferência bancária para a conta bancária da apelante que constava dessas faturas, conta essa que se encontra domiciliada em Portugal; e
3.3- a relação contratual estabelecida entre apelante e apelada consubstancia, quando muito, um contrato atípico.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para apreciar as questões que se encontram submetidas à apreciação do tribunal ad quem e que se acabam de elencar são os que constam do relatório acima elaborado.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.

B.1- Incumprimento dos ónus de impugnação, motivação e alegação do recurso por parte da apelante.

A apelada sustenta que a apelante não cumpriu com os ónus de impugnação, motivação e de alegação prescritos no n.º 2 do art. 639º do CPC, advogando que a mesma não indica, em termos concludentes, as razões da sua discordância em relação à decisão sob sindicância, sequer faz uma análise crítica dos segmentos dessa decisão dos quais discorda, demonstrando a existência do erro do julgador, de molde a demonstrar o caminho decisório que, desconsiderando o percorrido pelo tribunal recorrido, devesse agora ser seguido, por forma a levar ao resultado por aquela pretendido.

Conclui impor-se a imediata rejeição do recurso interposto.

Vejamos:

Tal como se extrai da leitura das alegações de recurso, a presente apelação interposta pela apelante (Autora) versa apenas sobre matéria de direito, pelo que o presente recurso encontra-se submetido à disciplina jurídica estabelecida no art. 639º do CPC.

Nos termos do n.º 1 do art. 639º, impende sobre a apelante o ónus de apresentar alegações, nas quais terá de concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, acrescentando o seu n.º 2 que versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) as normas jurídicas violadas; b) o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

A falta de alegações de recurso determina a imediata rejeição do recurso, a ser determinada pelo juiz do tribunal a quo (art. 641º, n.º 2, al. b) do CPC), o que se compreende quando se pondera que um recurso sem alegações equivale a um recurso sem objeto.
A propósito do conteúdo das alegações de recurso, esse conteúdo será naturalmente variável, dependendo do teor da decisão recorrida, isto é, do número de questões tratadas e decididas na decisão sob sindicância, da complexidade jurídica dessas questões, do número de questões que o recorrente impugna, por considerar terem sido mal decididas, da complexidade jurídica das questões impugnadas, a que acresce a facilidade (ou falta dela) do recorrente na exposição e tratamento das concretas questões que impugna.
Assim, quanto maior for o número de questões tratadas na decisão sob recurso e quanto maior for a complexidade jurídica dessas questões, assim como quanto maior for o número de questões em relação às quais o recorrente manifesta o seu inconformismo em relação à decisão recorrida e que, por isso, impugna, assim como quanto maior for a complexidade jurídica dessas questões impugnadas e menor for a capacidade de síntese do recorrente em expor e tratar essas razões e na exposição dos seus motivos/razões para esse seu inconformismo, em princípio, maior será naturalmente a extensão das suas alegações de recurso.
No entanto, há que precisar que a lei processual civil não regula a extensão das alegações de recurso, não estabelecendo qualquer limite máximo para essa extensão, mas antes limita-se no n.º 1 do art. 639º do CPC., a estabelecer que estas têm de conter imperativamente conclusões, e no seu n.º 2 a fixar o conteúdo mínimo das conclusões quando o recurso verse sobre matéria de direito.

Precise-se que as conclusões consubstanciam uma exposição sintética em que o recorrente indica os fundamentos pelos quais pede a alteração ou a anulação da decisão recorrida (art. 639º, n.º 1 do CPC) e em que aquele, consequentemente, condensa, isto é, sintetiza, quais as concretas questões (de direito – quando o recurso se cinge, como é o caso, a questões de direito – ou de facto – se for o caso) decididas na decisão e em relação às quais manifesta o seu inconformismo em relação à decisão recorrida, por entender que aquelas foram aí mal decididas em face do quadro jurídico aplicável ou acusa omissão de pronúncia, por essas questões não terem sido tratadas e decididas naquela decisão, conforme, na sua perspetiva, em face desse quadro jurídico aplicável, se impunha que tivesse acontecido, e as concretas razões pelas quais entende que as mesmas se encontram mal decididas ou pelas quais deviam ter sido decididas apesar de não o terem sido, e ocorre, por isso, nulidade da decisão recorrida por omissão de pronuncia.

As conclusões são por isso, uma síntese do objeto do recurso.

Conforme pondera Abrantes Geraldes, “as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com os argumentos de ordem jurisprudencial ou doutrinário, que não devem ultrapassar o setor da motivação”(1).

Traduzindo as conclusões uma síntese do objeto do recurso é apodíctico que as mesmas se destinam a facilitar o trabalho do tribunal de recurso, ao permitir-lhe analisar, nessa condensação, quais as concretas questões em relação ao qual o recorrente manifesta o seu inconformismo e que, por isso, impugna, quais aquelas em relação às quais sustenta ter ocorrido omissão de pronúncia e, bem assim quais as concretas razões jurídicas pelas quais o recorrente entende ter o tribunal a quo incorrido em erro de direito ao decidi-las em determinado sentido, quando se impunha que as tivesse decidido noutro, ou pelas quais propugna ocorrer nulidade por omissão de pronúncia.

Para além desta função de síntese e de consequente facilitação do trabalho do tribunal ad quem, as conclusões desempenham um outro papel, o qual, aliás, constitui, a nosso ver, o seu papel fundamental e primordial, que é a sua função delimitadora do objeto do recurso.

Com efeito, podendo o recorrente, nas conclusões da alegação restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso (art. 635º, n.º 4 do CPC), é indiscutível que é pelas conclusões que resulta definido o objeto do recurso, do que deriva que as questões decididas na decisão recorrida mas que não constam das conclusões, não fazem parte do objeto do recurso, não podendo o tribunal ad quem, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia, delas conhecer, exceto se as mesmas forem do conhecimento oficio do tribunal de recurso (2).
Essas questões decididas e não impugnadas em sede de conclusões encontram-se definitivamente decididas, operando quanto às mesmas caso julgado.
As conclusões delimitam, assim, “a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem” (3).

Atenta esta função primordial e fundamental desempenha pelas conclusões, ao delimitar o objeto do recurso, compreende-se que nos termos do disposto no art. 641º, n.º 2, al. b) do CPC, a falta absoluta de conclusões gera o indeferimento liminar do recurso, a declarar pelo tribunal a quo, sem possibilidade de prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento para que o recorrente supra a falta de conclusões, sendo ineptas, por totalmente imprestáveis, as alegações de recurso que sejam destituídas de conclusões (4).

Com efeito, um recurso em que tenham sido apresentadas alegações mas em que nestas não tenham sido formuladas conclusões, é um recurso sem objeto, pelo que essas alegações de recurso são totalmente ineptas, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado, à semelhança do que acontece com uma petição inicial que seja destituída de pedido, em que se impõe o seu indeferimento liminar (arts. 186º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 590º, n.º1 do CPC).

Quanto ao conteúdo mínimo das conclusões de recurso, quando o recurso verse exclusivamente matéria de direito, esse conteúdo mínimo encontra-se fixado no n.º 2 do art. 639º do CPC e impõe ao recorrente que, nas conclusões, indique as normas jurídicas violadas, o sentido que deve ser atribuído às normas cuja aplicação e interpretação determinou o resultado que pretende impugnar e, bem assim, perante eventual erro na determinação das normas aplicáveis, a indicação das que deveriam ter sido aplicadas.
Especifique-se que contrariamente ao que acontece com a ausência de apresentação de alegações de recurso ou em que ocorra, total e absoluta, ausência de formulação de conclusões, em que essas faltas são insupríveis, não admitindo convite ao aperfeiçoamento, bem como, contrariamente ao que acontece no recurso que tenha por objeto a impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, em que ocorra incumprimento pelo recorrente dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, que igualmente não comporta convite ao aperfeiçoamento para que o recorrente supra a falta de cumprimento desses ónus impugnatórios, impondo-se, em todos esses casos, a imediata rejeição do recurso na parte afetada, já quando o recurso tenha exclusivamente por objeto matéria de direito e o apelante incumpra o conteúdo mínimo das conclusões de recurso prescrito no n.º 2 do art. 640º do CPC, esse incumprimento não implica a imediata rejeição do recurso interposto, mas apenas dá lugar à prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, convidando o recorrente a suprir a falta em que incorreu, no prazo de cinco dias. Só uma vez decorrido esse prazo sem que o recorrente supra essa omissão, impõe-se a rejeição do recurso na parte afetada pela omissão (n.º 3 do art. 640º) (5).

Assentes nestas premissas, revertendo ao caso sobre que versam os autos, verifica-se que a apelante apresentou alegações de recurso e nelas formulou conclusões, não estando em causa, como frequentes vezes acontece, o esforço de síntese que nelas foi desenvolvido pela apelante, esforço de síntese esse que, aliás, é manifesto e indiscutível.

Acresce que contrariamente ao pretendido pela apelada e salvo o devido respeito por entendimento contrário, nessas conclusões, a apelante deu integral cumprimento ao conteúdo mínimo fixado pelo n.º 2 do art. 639º do CPC, na medida em que indica as concretas questões jurídicas tratadas e decididas na decisão sob sindicância que, na sua perspetiva, se encontram erroneamente decididas e que, por isso, impugna (as identificadas supra nos pontos 2 e 3 em sede de “Fundamentos do Recurso”), indica as concretas razões pelas quais impugna esse julgamento de direito realizado pela 1ª Instância em relação a essas questões (as identificadas supra em 2.1, 2.2, 3.1, 3.2 e 3.3) e, finalmente, identifica as normas jurídicas que, na sua perspetiva, foram violadas.

Logo as razões invocadas pela apelada para fundamentar a imediata rejeição da presente apelação, na nossa perspetiva, são insubsistentes.

De resto, apesar de pretender que a apelante não cumpriu com o conteúdo mínimo fixado pelo art. 639º, n.º 2 do CPC, lidas e relidas as contra-alegações de recurso apresentadas pela apelada, verifica-se que esta não coloca propriamente em crise o cumprimento pela apelante desse conteúdo mínimo, mas o que verdadeiramente ataca é o facto de, na sua perspetiva, os pretensos erros de direito que a apelante imputa às decisões recorridas e as concretas razões em que a mesma alicerça esses pretensos erros de direito, não terem qualquer sustentação jurídica possível em face do quadro jurídico aplicável e ao modo como a apelante delineou, subjetiva e objetivamente, na petição inicial, a relação jurídica controvertida que submeteu a julgamento, sendo, consequentemente, na sua perspetiva, insubsistentes essas razões apresentadas pela apelante e improcedentes os por ela invocados erros de julgamento.

Acontece que essa posição sufragada pela apelada, ao concluir pela improcedência das razões invocados pela apelante para suportar os pretensos erros de julgamento que assaca às decisões recorridas que se debruçaram e decidiram sobre as concretas questões supra identificadas em 2 e 3 dos “Fundamentos do Recurso”, nada tem a ver com o cumprimento ou incumprimento pela apelante dos ónus dos n.ºs 1 e 2 do art. 639º do CPC, mas sim com o mérito da apelação, consistindo precisamente no objeto do presente recurso.

Finalmente, cumpre referir que ainda a apelante não tivesse dado cumprimento ao conteúdo mínimo fixado pelo n.º 2 do art. 639º do CPC para as conclusões (incumprimento esse que se tem por inverificado), diversamente do pretendido pela apelada, essa omissão não constituiria fundamento para a imediata rejeição da presente apelação, mas daria lugar ao convite ao aperfeiçoamento para que a apelante suprisse, no prazo de cinco dias, o vício da deficiência das conclusões de recurso, por falta, total ou parcial, das indicações referidas nesse n.º 2 do art. 639º e apenas caso esta persistisse em não dar cumprimento cabal a esse conteúdo mínimo das conclusões de recurso, se impunha rejeitar a presente apelação na parte afetada por essa omissão.

Deriva do que se vem dizendo, improceder a questão prévia suscitada pela apelada, impondo-se, por isso, sem mais, por desnecessárias, considerações, indeferir essa questão prévia, concluindo-se que a apelante cumpriu com todos os ónus que sobre si impendiam em sede de impugnação do julgamento de mérito realizado pela 1ª Instância em relação às questões que vêem impugnadas pela mesma e supra identificadas.

B.2- Matéria alegada pela apelada na resposta de fls. 145 a 149 – alteração ilegal da causa de pedir.

Entendeu a 1ª Instância, em sede da decisão sob sindicância, que a apelante, “a coberto do convite feito pelo tribunal a 3/10/2019, aproveitou para vir alegar uma panóplia de novos factos”, concluindo que “vistos os factos invocados na petição inicial e os factos invocados no articulado apresentado a 17/10/2019, não só é forçoso concluir que a autora extravasou o âmbito do convite formulado no que respeitava à pronúncia sobre a exceção arguida como veio alegar factos novos, alterando a causa de pedir”.

Após ter ponderado que na ausência de acordo das partes, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de dez dias a contar da aceitação, o que “manifestamente não é o que ocorre na situação em análise” em que “todos esses novos factos foram alegados para enquadrar a relação jurídica estabelecida entre as partes como contrato de prestação de serviços/empreitada, quando, na petição, a autora configura essa relação como de mera compra e venda, na modalidade de fornecimento de bens, por forma a justificar a competência internacional do tribunal português, ante a exceção deduzida pela ré na contestação”, e após ter ponderado que aqueles novos factos alegados pela apelante no requerimento de fls. 145 a 149 não são supervenientes, pelo que a apelante não os podia introduzir no processo mediante a apresentação de articulado superveniente, lê-se, na decisão recorrida, a esse propósito, que “(…), no caso, é manifesto que não estamos ante novos factos ou ante factos ocorridos já anteriormente e de que a autora só teve conhecimento após a apresentação da contestação” e após se ter sustentando que sobre as partes impende o ónus de alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas e que o princípio da estabilidade da instância, “torna firmes, após a citação, os elementos essenciais da causa” e que “a alteração objetiva da instância – do pedido e da causa de pedir” (…), não havendo acordo, como aqui não existe, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, a formular em 10 dias a contar da aceitação”, situação que igualmente não se verifica no caso dos autos, conclui o tribunal a quo que “toda a matéria alegada naquele articulado de 17/10/2019, na parte em que implica uma alteração da causa de pedir, mormente a dos arts. 14º a 28º, se tem como não escrita, não sendo admissível a sua alegação nesta fase processual”.

Concordantemente com o assim ponderado, proferiu-se decisão, determinando que “a nova matéria alegada, determinante da alteração da causa de pedir, não pode ser considerada pelo tribunal”.

Acontece que a apelante imputa a essa decisão erro de direito, argumentando que os factos que alegou em sede de petição inicial, não permitiam que a 1ª Instância tivesse concluído que aquela funda o seu pedido no incumprimento de um contrato de compra e venda, isto porque a alegação que a mesma verteu nesse articulado – “fornecimento de mercadorias” – “não quer dizer coisa alguma” e “não sugere um contrato que não possa ser de empreitada”, além de que a mesma, em sede de petição inicial, não tinha de alegar os factos que especificassem a relação contratual estabelecida entre a mesma e a apelada e que deu origem à emissão das faturas, isto porque essas faturas, enquanto títulos de crédito, consubstanciam suficiente causa de pedir.

Analisadas as diversas razões apresentadas para o inconformismo da apelante e que a levam a imputar erro de direito à decisão sob sindicância, dir-se-á que as razões por ela invocadas não têm qualquer arrimo jurídico possível em face do quadro processual civil vigente, incorrendo a mesma indiscutivelmente numa série de equívocos sobre o que sejam “títulos de crédito” e quanto ao ónus alegatório que sobre si impende em sede de petição inicial.

Especificando:

Dir-se-á que são “títulos de crédito” os documentos representativos de uma obrigação e emitidos em conformidade com a legislação específica de cada ou espécie de título, mas que têm de específico e comum beneficiarem das características da incorporação, literalidade, abstração, independência e autonomia.

Essas características significam que:

a) incorporação da obrigação no título (a obrigação e o título constituem uma unidade, de modo que sem título não existe direito ou obrigação, sequer o direito pode ser exercitado ou reclamado contra os obrigados);
b) literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspeção do título, isto é, o direito tem unicamente a entidade concreta, a dimensão, as qualidades e a relação que o título descrevem);
c) abstração da obrigação (a obrigação é independente da causa debendi, pelo que o direito impregnado no título não é uma parte da relação fundamental, mas uma realidade nova, um quid distinto e, por isso, a relação cambiária não tem comunicação com a relação fundamental, não podendo ser afastada ou afetada por qualquer defeito desta);
d) independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título (a nulidade de uma das obrigações que o título incorpora não se transmite às demais) e
e) a autonomia, enquanto afirmação de que o direito do dono do título é independente do de um titular antecedente e não pode ser prejudicado por qualquer defeito que na relação anterior se tenha alojado.

Precise-se que a figura do “título de crédito” é eminentemente de direito substantivo. Os títulos de crédito são documentos que incorporam certo direito de crédito e em que esse direito se caracteriza pelos enunciados princípios da literalidade, autonomia, independência e abstração.
A obrigação de crédito incorporada no título vale, assim, nos estritos limites objetivos e subjetivos que constam expressos no título, isto é, no documento, independentemente das vicissitudes que afetam a relação subjacente que dá causa ao direito incorporado no título (6).
São exemplos de títulos de créditos, sendo, aliás, os mais conhecidos e que assumem maior relevância na vida comercial, a letra, livrança e o cheque, cujo regime jurídico privativo se encontra enunciado, respetivamente, na Lei Uniforme das Letras e Livranças e na Lei Uniforme do Cheque.
Dadas as enunciadas características específicas da incorporação, literalidade, abstração, independência e autonomia dos títulos de crédito e a inerente segurança jurídica de que beneficiam e que emanam desses princípios quanto à existência do crédito incorporado no título, os títulos de créditos têm uma vocação particular para circular no comércio jurídico, passando de mão em mão e nele desempenhando, por via dessa sua aptidão de circulação, funções de primordial importância, não admirando, por isso, que a lei adjetiva os insira na categoria dos títulos executivos (art. 703º, n.º 1, al. c) do CPC), indo ao ponto de manter a natureza daqueles enquanto títulos executivos, ainda que a obrigação cambiária que incorporam se encontre prescrita à luz da respetiva Lei Uniforme ou não possam valer (ou já não possam continuar a valer) como títulos cambiários contra o executado, à luz dessa Lei Uniforme, desde que o exequente, portador do título, no requerimento executivo, alegue os factos constitutivos da relação subjacente ou esses factos constitutivos dessa relação subjacente constem do próprio teor do título dado à execução.
Note-se, no entanto, que a causa de pedir na ação executiva não é o título executivo que lhe serve de base, mas o facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária exequenda, ou seja, o fundamento substantivo dessa prestação, ou dito por outras palavras, a causa de pedir na execução continua a ser a relação substantiva de onde emerge o crédito exequendo explanada no título executivo, de que este último é apenas o instrumento fundamental privilegiado da demonstração dessa relação jurídica substantiva de que emerge o crédito exequendo (7).
Logo, nas ações executivas, a causa de pedir não é o título executivo, máxime o título cambiário quando este sirva de título executivo à execução, mas a relação substantiva que se encontra explanada no título executivo, ou seja, a relação fundamental ou subjacente.
O que acontece é que nos casos em que a execução tiver por título executivo um título de crédito, designadamente, um título cambiário, porque em relação a estes se verifica a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), esse título executivo, enquanto título cambiário, pode ser dado à execução de per se, sem necessidade do exequente ter de alegar a relação subjacente de que o título cambiário se abstrai (8).
Acontece que diversamente do pretendido pela apelante, as faturas não são títulos de crédito, uma vez que as mesmas não incorporam qualquer obrigação de pagamento ou promessa de pagamento assumida pelo emitente da fatura perante um terceiro (o emissário), e muito menos, uma obrigação que se caracterize pelos enunciados princípios da incorporação, literalidade, abstração, independência e autonomia, que são típicos dos títulos de crédito.
Com efeito a “fatura” é um mero documento particular de valor contabilístico emitido unilateralmente pelo emitente, que atesta uma transação comercial entre duas pessoas ou empresas (emitente e emissário), em que devem ser discriminados os itens objeto dessa transação, designadamente, a qualidade dos bens ou serviços objeto da transação a que se reporta a fatura, respetiva quantidade e preço.
Acresce precisar que, regra geral, a fatura apenas é emitida em relação a transações comerciais cujos pagamentos não foram ainda efetuados.
Como simples documento particular emitido unilateralmente pelo respetivo emitente, em que este não assume perante o emissário qualquer obrigação de crédito, sequer assume perante este qualquer promessa de pagamento de uma obrigação de crédito, a fatura não assume a natureza de título de crédito, sequer integra o elenco dos títulos executivos que se encontra explanado no art. 703º do CPC.
Aliás, porque a fatura é um documento particular emanado unilateralmente pelo emitente, a mesma não faz sequer prova da efetiva verificação da transação comercial que terá justificado a sua emissão pelo emitente, isto é, da concreta relação contratual estabelecida entre emitente e emissário e que estará na base da emanação desse documento pelo emitente.
A existência de fatura, não desobriga, por isso, o seu emitente de ter de instaurar ação declarativa para obter título executivo (sentença judicial) que lhe reconheça o direito que se arroga titular perante o emissário, em caso de incumprimento da obrigação contratual que terá justificado a emissão da fatura, nomeadamente, em caso de não pagamento do preço da mercadoria ou dos serviços prestados pelo emitente ao emissário.
Nessa ação declarativa, o emitente terá de alegar os factos factos essenciais da causa de pedir que elegeu para sustentar esse pedido, isto é, os factos nucleares da relação contratual estabelecida com o emissário e de cujo incumprimento faz derivar o pedido.
Com efeito, apesar da atenuação que com a entrada em vigor, em 01/09/2013, da Lei n.º 41/2013, de 26/06, que reviu o CPC, se verificou ao nível do princípio do dispositivo, mas que, inclusivamente, reforçou o princípio do contraditório, ao proibir ao juiz a prolação de qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (art. 3º, n.º 3 do CPC) (9), o autor continua a ter o ónus de alegar, na petição inicial, os factos essenciais que constituem a causa de pedir (arts. 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1, al. d) do CPC) que elegeu para sustentar a pretensão de tutela judiciária que formula (pedido), assim como o réu continua a ter o ónus de, na contestação, sob pena de preclusão, alegar os factos essenciais integrativos das exceções que invoca, com vista a impedir, extinguir ou modificar o direito que contra ele é exercido pelo autor (arts. 5º, n.º 1, 572º, al. c) e 573º do CPC), assim como sobre o autor continua a impender o ónus de alegar, em sede de réplica, quando esta seja admissível (art. 584º, n.º 1 ex vi art. 3º, n.º 4 do CPC), ou quando não o seja, na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (art. 3º, n.º 4 do CPC), os factos essenciais integrativos das contra exceções que pretenda opor às exceções deduzidas pelo réu na contestação.
É que os princípios do dispositivo e do contraditório mantêm-se plenamente válidos e sem entorse possível no atual vigente CPC, quanto ao ónus de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e quanto àqueles em que se baseiam as exceções invocadas, pelo que sob pena de incorrer em nulidade, na sentença, o juiz não pode considerar provados factos essenciais integrativos da causa de pedir que não tenham sido alegados pelo autor, sequer factos essenciais integrativos das exceções que não tenham sido alegados pelas partes arguentes dessas exceções (arts. 607º, n.ºs 3 a 6 e 615º, n.º 1, al. d) do CPC), mas apenas os notórios (al. c), do n.º 2 do art. 5º do CPC), os instrumentais, desde que estes resultem da instrução da causa (al. a), do n.º 2 do art. 5º) e os complementares, desde que resultem da instrução da causa e desde que, quanto aos mesmos, tenha sido acrescidamente observado o princípio do contraditório (al. b), do n.º 2 do art. 5º do CPC).
Decorre do que se vem dizendo que, contrariamente ao propugnado pela apelante, sobre ele impende o ónus de delimitar, na petição inicial, subjetivamente (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) a relação jurídica material controvertida que submeteu a julgamento, delimitando o campo de cognição do tribunal e aquilo contra o qual o apelado (réu) se tem de defender no exercício do seu direito ao contraditório.
Neste sentido, pronuncia-se Ferreira de Almeida, ao escrever: “o pedido não só conforma ou molda o objeto do processo, como condiciona o conteúdo da decisão de mérito a emitir pelo tribunal competente, isto porque o juiz, na sentença «deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras» (art. 608º, n.º 2) e «não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir» (art. 609º, n.º 1), sob pena de nulidade da decisão por omissão de pronúncia, excesso de pronúncia ou condenação ultra-petitum, respetivamente (art. 615º, n.º 1, als. d) e e)) (10).
Quanto à causa de pedir, “esta exerce uma função individualizadora do pedido e de conformação do processo; ao apreciar o pedido, o tribunal não pode basear a sua decisão de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (arts. 608º e 609º), sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia” (11),
Deste modo, sob pena de incorrer no vício da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (art. 186º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC), sobre o autor impende o ónus de alegar, afirmar ou deduzir os factos essenciais constitutivos da causa de pedir, isto é, aqueles que permitem individualizar a situação jurídica por ele alegada na ação e de onde faz derivar o pedido e cuja falta determina, consequentemente, a inviabilidade da ação (12).
Note-se que constituindo a causa de pedir o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, mas sempre concreto, que constitui a fonte de que dimana o direito que o autor pretende fazer valer em juízo, ou dito, por outras palavras, tratando-se do facto juridicamente relevante do qual dimana a pretensão (pedido) deduzida pelo autor, vigorando no ordenamento jurídico nacional o princípio da substanciação (art. 581º, n.º 4 do CPC), torna-se necessário que o autor enuncie, na petição inicial, a causa específica do pedido, ou seja, o concreto título aquisitivo do direito: um determinado ato jurídico de compra e venda, de doação, de sucessão ou a usucapião, etc. (13)
Destarte, em sede de petição inicial, sobre o autor impende o ónus de alegar os factos essenciais concretos da relação jurídica de que faz derivar o pedido, isto é, sobre ele impende o ónus de alegar o núcleo essencial fáctico e concreto que permita individualizar a relação jurídica, isto é, a causa específica de onde faz derivar o pedido, nomeadamente, se esse seu pedido se ancora na celebração de um contrato de compra e venda, de empreitada, de locação financeira, etc., e no respetivo incumprimento por parte do demandante, não lhe bastando, por conseguinte, a indicação genérica do direito que pretende tornar efetivo através da ação proposta, como sustenta a teoria da individualização.
Com efeito, como já assinalava Alberto dos Reis, “destinando-se a ação a fazer valer um direito obrigacional ou sucessório, não basta indicar o seu objeto ou o direito arrogado em juízo, sendo indispensável especificar o facto ou factos constitutivos desse direito. Exige-se, por ex., que o autor-credor concretize o ato ou facto jurídico-origem ou fonte do crédito (um empréstimo, uma compra e venda, uma empreitada, uma prestação de serviços, etc.); mas não basta a indicação abstrata do ato jurídico de que emergiu o crédito, torna-se necessária a identificação específica e devidamente concretizada dos elementos essenciais do negócio, designadamente por referência ao documento titulador e à data e local da respetiva subscrição” (14).
Deste modo é que o argumento da apelante segundo o qual, em sede de petição inicial, não lhe cabia especificar a relação contratual estabelecida com a apelada e que deu origem à emissão das faturas, porquanto estas consubstanciariam títulos de crédito, constituindo por isso suficiente causa de pedir, não tem qualquer arrimo jurídico possível à luz do quadro processual civil, assim como não tem qualquer sustentação jurídica possível aquela sua outra alegação, segundo a qual, a expressão que verteu nos arts. 2º e 3º da petição inicial – “fornecimento de mercadorias” -, “não quer dizer coisa alguma”, posto que, se assim fosse, nada mais restaria que julgar a petição inicial inepta por falta de alegação dos factos essenciais concretos integrativos da causa de pedir por ela eleita para sustentar o pedido que deduz contra a apelada.
Acontece que como bem entendeu a 1ª Instância, a alegação da apelante, no ponto 2º da p.i., segundo a qual “A Autora forneceu à Ré, a pedido desta, diversas mercadorias, que lhe foram sendo pagas pela mesma Ré, numa relação contratual que decorreu sempre sem quaisquer problemas”, e no ponto 3º do mesmo articulado, em que sustenta: “No âmbito do mesmo relacionamento, em 28 de fevereiro de 2018, a Ré solicitou à Autora o fornecimento das mercadorias constantes da nota de encomenda n.º PEC8T072, do valor total de 108.700,00 euros”, tem um significado jurídico concreto e específico.
Com efeito, ao alegar que no âmbito de uma “relação contratual que decorreu sempre sem quaisquer problemas” (art. 2º da p.i.) e ao reafirmar que a mercadoria por ela fornecida a que se reporta o preço que reclama da apelada, teve lugar “no âmbito deste mesmo relacionamento” (art. 3º da p.i.), a apelante sustenta que a relação contratual que estabeleceu com a apelada é uma única relação contratual, que se estendeu no tempo, em que a mesma, por via desse contrato se vinculou a fornecer, e forneceu, à apelada, “a pedido desta, diversas mercadorias” (art. 1º da p.i.), “no exercício da sua atividade “de comércio, importação e exportação de material, equipamento, vestuário” e outros (art. 1º da petição inicial), de que o fornecimento a que se reporta no art. 2º desse articulado e cujo preço reclama da apelada é mais um episódio de fornecimento de mercadorias que integra essa relação contratual única.
Tal significa que atentos os factos que se encontram alegados pela apelante na petição inicial, o contrato que a mesma alega ter celebrado com a apelada e em cujo incumprimento ancora o pedido que formula contra a última, se subsume à figura do contrato de fornecimento.
Precise-se que o contrato de fornecimento encontra-se previsto, pelo menos, no art. 230º, n.º 2 do Cód. Com., tratando-se, por isso de um contrato nominado, mas atípico, na medida em que a lei não o regula especificamente.
Segundo Carolina Cunha, o contrato de fornecimento é “um negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido)” (15).
Por sua vez, José Engrácia Antunes escreve que o contrato de fornecimento “pode assumir diferentes configurações que vão desde a execução de prestações periódicas e continuadas até verdadeiros contratos-quadro que dão lugar a sucessivas compras e vendas mercantis independentes, que se prolongam no tempo (v.g. contratos de fornecimento de matérias-primas, eletricidade, gás, etc.)” (16).
Conforme se pondera no aresto da Relação de Lisboa de 27/02/2018, embora o contrato de fornecimento se possa reconduzir a ocorrências de feições diversas que podem agrupar-se em vários modelos, em todos esses modelos há fornecimento de bens ou serviços pelo fornecedor ao fornecido, que se prolongam no tempo, e há pagamento desses bens ou serviços pelo último ao fornecedor (17).

Deriva do que se vem dizendo que o contrato de fornecimento é uma relação contratual que se caracteriza por estabelecer relações jurídicas continuadas no tempo, em que o fornecedor se obriga a transmitir regularmente, de forma continuada e periódica no tempo, ao fornecido a propriedade de bens ou serviços, mediante a obrigação deste de lhe pagar o respetivo preço, tratando-se, por isso, de um relação contratual que se aproxima do contrato de compra e venda, mas que tem de específico a circunstância de se apresentar como um negócio definitivo e unitário, cujas prestações se sucedem e prolongam no tempo, em que o fundamento do contrato é a satisfação continuada de uma necessidade duradouro da parte do fornecido em que lhe sejam fornecidos bens ou serviços.
Trata-se de um contrato objetivamente comercial ao qual são aplicáveis as regras da compra e venda, por força do disposto no arts. 3º do Cód. Com. e 939º do CC (18).

Acontece que conforme bem pondera a 1ª Instância na decisão sob sindicância, a apelante, “a coberto do convite feito pelo Tribunal a 03/10/2019”, para que se pronunciasse, querendo, sob a exceção dilatória da incompetência internacional para conhecer do litígio que aquela submeteu a julgamento”, aproveitou para alegar, nessa resposta, “uma panóplia de novos factos”, com o que “alterou a causa de pedir” inicialmente alegada, em sede de petição inicial, fora dos condicionalismos legais prescritos no art. 265º, n.º 1 do CPC.

Na verdade, a apelante, em sede de petição inicial, alegou factos concretos tendentes a enquadrar a relação jurídica contratual estabelecida com a apelada na figura do contrato de fornecimento e foi na celebração desse contrato e no respetivo incumprimento (causa de pedir) que a mesma ancorou a sua pretensão de tutela judiciária (pedido) em ver condenada judicialmente a apelada a pagar-lhe a quantia de 65.220,00 euros, de capital correspondente ao preço da mercadoria fornecida e alegadamente em dívida, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos e da sanção pecuniária compulsória.
Sucede que aproveitando a notificação que lhe foi dirigida pelo tribunal para que se pronunciasse, querendo, quanto à exceção dilatória da incompetência internacional para apreciar o litígio que aquela lhe submeteu e que foi suscitada pela apelada na contestação, no requerimento de fls. 145 a 149, nos artigos 15º a 29º, a apelante aproveitou para alegar factos novos tendentes a alterar a causa de pedir que inicialmente alegara, pretendendo que a relação contratual não é de fornecimento, mas antes de empreitada, alegando para tanto o seguinte: “a Ré solicitou à Autora o fornecimento de mercadorias, para uma cliente sua, a entidade que figura nos aludidos dois documentos, a sociedade W Appliance Controls, SLU (W) – art. 15º; “Daí que tais mercadorias tenham sido entregues a esta mesma sociedade, por indicação da Ré, como decorre de tais documentos 3 e 4” – art. 16º; “Além disso, as mercadorias entregues pela Autora foram produzidas, em conformidade com as instruções previamente fornecidas pelo aludido cliente da Ré para esse efeito” – art. 17º; “Pelo que a Autora teve de produzir tais bens, sob a orientação e instrução daquele, conforme se alcança da troca de correspondência havida entre ambos, na qual eram também fornecidos documentos técnicos com vista a habilitar a Autora a produzir tais bens rigorosamente de acordo com os interesses do dito cliente da Ré, conforme se demonstra através dos documentos que se juntam (…)” – art. 17º - (….); “A Ré considerou a hipótese da Autora lhe prestar tal serviço construindo o pretendido equipamento para o seu cliente W” – art. 21º; “Pois este tipo de equipamentos feitos à medida, já tinham sido anteriormente solicitados pela Ré à Autora e tudo tinha funcionado bem” – art. 22º; “Foi enviada pela W, a pedido da Ré, uma especificação para o equipamento em causa” – art. 23º -; “A Autora apresentou uma proposta para dar respostas ao pedido de cotação” – art. 24º; “Foi enviada uma encomenda para a realização de tal equipamento” – art. 25º; “e, finalmente, a Ré enviou uma encomenda com a adjudicação à Autora referente à proposta apresentada” – art. 26º; “Foram feitas várias reuniões de acompanhamento com caráter periódico, alguns via internet, alguns presenciais nas instalações da Autora” – art. 27º - “e após a máquina finalizada, os representantes da W vieram validar o desempenho da mesma, nas instalações da Autora” – art. 28º; “após o que, (…), foi feita a entrega e instalação do equipamento na sede da W” – art. 29º desse requerimento de fls. 145 a 149.
Precise-se que diversamente do pretendido pela apelante, os factos novos assim por ela alegados não consubstanciam meros factos complementares dos essenciais que a mesma tinha alegado na petição inicial, posto que dizem-se complementares ou concretizadores os factos que são indispensáveis à procedência da ação ou da exceção, por fazerem parte de uma causa de pedir ou de uma exceção complexa, mas que não integram o núcleo essencial da situação jurídica por ela alegada na petição inicial e que, por isso, não individualizam a situação jurídica (causa de pedir) alegada na ação ou na exceção e cuja falta de alegação não determina, consequentemente, a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir (19).
Acontece que os factos novos acima transcritos e que a apelante pretende aditar aos autos, servem precisamente para individualizar a relação contratual concreta que a mesma alega ter celebrado com a apelada e em cujo incumprimento faz ancorar o pedido que deduz contra a última, pretendendo agora, mediante a alegação desses factos novos, subsumir a relação contratual a um contrato de empreitada e fazer derivar o pedido que deduziu contra a apelada no incumprimento desse contrato de empreitada, quando, em sede de petição inicial, alegou factos tendentes a subsumir essa relação contratual à figura do contrato de fornecimento e fazendo derivar o pedido que aí formulou contra a apelada do pretenso incumprimento desse contrato de fornecimento por parte da última.
Ao assim proceder, é manifesto, como bem ponderou a 1ª Instância, que a apelante visa alterar a causa de pedir originariamente alegada pela mesma fora dos condicionalismos legais dos arts. 265º, nº 1 e 588º do CPC.
Com efeito, os factos novos em análise não são objetivamente supervenientes, isto é, não ocorreram historicamente após a apelante ter instaurado a presente ação, sequer são subjetivamente supervenientes, uma vez que não se está perante factos que ainda que tenham acontecido em momento histórico anterior à propositura da presente ação, por razões não imputáveis à apelada, eram delas desconhecidos (o que a apelante nem sequer alegou).
Acresce que esses factos novos não derivam de qualquer confissão que tivesse sido feita pela apelada e que a apelante tivesse aceite.
Por conseguinte, bem andou a 1ª Instância em não admitir a alteração da causa de pedir e em considerar como não escrita a nova matéria alegada pela apelante, determinante da alteração da causa de pedir originariamente por ela alegada na petição inicial, mormente os constantes dos arts. 14º a 28º desse requerimento, junto a fls. 145 a 149 dos autos.
Note-se que os arestos invocados pela apelante na defesa dos seus pontos de vista em nada infirmam o que se acaba de concluir, mas antes pelo contrário.
No aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/0672018, Proc. 329/17.9T8LGM.C1, subscrevendo a posição de Lebre de Freitas, sustenta-se que o art. 273º, n.º 3 do CPC (agora 265º) deve ser interpretado no sentido de possibilitar a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir, não só quando alguns dos factos que integram a nova causa de pedir coincidam com factos que integram a causa de pedir reconvencional ou fundem exceções deduzidas, mas também quando, pelo menos, o novo pedido se reporte a uma relação material dependente ou sucedânea da primeira.
Acontece que os factos novos alegados pela apelante não coincidem com a causa de pedir reconvencional (uma vez que a apelada nem sequer formulou reconvenção), sequer se fundam na exceção invocada, dado que a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer dos autos foi deduzida pela apelada a partir da relação jurídica material controvertida delineada, subjetiva e objetivamente, pela apelante em sede de petição inicial, em que, reafirma-se, os factos aí alegados pela última são tendente a subsumir a concreta relação contratual existente entre ambas no contrato de fornecimento e em cujo incumprimento a apelante faz derivar o pedido que deduz contra a apelada.
Aliás, nesse acórdão, conclui-se que à semelhança do que acontece nos presentes autos, a concreta relação originária que tinha sido alegada pelo aí autor é diversa da relação jurídica resultante da modificação operada na resposta à contestação e, por isso, não se admitiu essa alteração da causa de pedir, por implicar a convolação para relação jurídica diversa da originariamente controvertida.
Já no acórdão da Relação do Porto de 14/06/2016, proferido no Proc. n.º 991/09.6TBMCN-B.P1, sustenta-se que quando esteja em causa factos complementares que determinem a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir e que sejam desenvolvimento do pedido primitivo, podem ser deduzidos até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, desde que o objeto da ação mantenha um nexo estreito com o pedido inicial e com a originária causa pretendi e não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida, o que, refira-se, se subscreve.
Acontece que para além dos factos novos alegados pela apelante não consubstanciarem factos complementares dos essenciais que aquela tinha alegado em sede de petição inicial, esse factos novos que alegou no requerimento de fls. 145 a 149, implicam precisamente uma convolação para uma relação jurídica diversa daquela que tinha inicialmente, em sede de petição inicial, alegado.
Aqui chegados, resulta do que se vem dizendo, improcederem todos os fundamentos de recurso aduzidos pela apelante, impondo-se concluir pela improcedência da apelação nesta parte, e confirmar a decisão sob sindicância, em que a 1ª Instância determinou que se tivesse como não escrita toda a matéria alegada pela apelante no articulado de 17/10/2019, determinante da alteração da causa de pedir, mormente a alegada nos arts. 14º a 28º desse articulado.

B.3- Da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que lhe foi submetida pela apelante a julgamento.

A apelante imputa erro de julgamento à decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que aquela submeteu a julgamento e ao absolver a apelada da instância, advogando que a relação contratual acordada entre aquela e a apelada e de cujo incumprimento faz derivar o pedido condenatório que deduz é de prestação de serviços, mais concretamente, de empreitada ou, quando muito, um contrato atípico.
Mais advoga que apelante e apelada celebraram entre elas um pacto atributivo de jurisdição nos termos do qual para o conhecimento dos conflitos emergentes da relação contratual entre elas estabelecidas seriam internacionalmente competentes os tribunais portugueses, ao estipularem verbalmente esse pacto e a apelada ao proceder ao pagamento das faturas que aquela lhe enviou e emitiu, mediante transferência bancária, para as contas indicadas pela apelante nessas faturas, as quais se encontram domiciliadas em Portugal.

B.3.1- Preterição de pacto atributivo de jurisdição – questão nova/preclusão.

A propósito da pretensa existência de um pacto atributivo de jurisdição celebrado entre apelante e apelada, nos termos do qual esse pacto atribuiria competência internacional aos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida submetida pela primeira a julgamento, diremos que a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que lhes é submetida pelo autor a julgamento, configura uma exceção dilatória, que determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 96º, al. a) do CPC).
Regra geral, as exceções, sejam dilatórias ou perentórias, têm de ser deduzidas na contestação pelo réu, sob pena de ficar precludido o seu direito de as poder arguir em momento processual posterior (art. 572º, al. c) e 573º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
No entanto, essa regra geral comporta duas exceções, que se encontram taxativamente enunciados no n.º 2 do art. 573º, a saber: a) se a exceção for superveniente, isto é, se os factos essenciais em que aquela exceção se baseia (art. 5º, n.º 1 do CPC) ocorreram historicamente após a apresentação da contestação (caso de superveniência objetiva) ou apesar de terem ocorrido anteriormente, esses factos essenciais constitutivos da exceção em causa, por razões não imputáveis ao réu, eram dele desconhecidos, à data da apresentação da contestação (caso de superveniência subjetiva); e b) as situações em que a lei permita expressamente ao réu que após a contestação invoque a exceção em causa ou que o tribunal dela conheça oficiosamente.
Dir-se-á que a exceção da incompetência absoluta, em que se insere a infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que lhe é submetida pelo autor, atenta a gravidade da exceção em causa, nos termos do n.º 1 do art. 97º do CPC, pode ser arguida pelas partes e pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal a todo o tempo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, exceto se essa incompetência absoluta decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário.
Com efeito, a preterição de pacto privativo de jurisdição ou de tribunal arbitral voluntário não são do conhecimento oficioso do tribunal, ficando, assim, na disponibilidade das partes a respetiva invocação, tal como a elas coube a iniciativa da sua estipulação (20).
A invocação da exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que lhes seja submetida pelo autor a julgamento por preterição de pacto privativo de jurisdição carece, assim, de ser suscitada pelo réu na contestação (arts. 97º, n.º 1, 572º, als. c) e 573º, do CPC), ou pelo autor na réplica (quando admissível) quando tendo o réu, na contestação, invocado a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica controvertida que lhe foi submetida pelo autor a julgamento, este último pretenda opor-lhe a contra-exceção decorrente da existência desse pacto privativo de jurisdição que reconheça competência internacional aos tribunais portugueses para conhecer desse concreto litígio, ou não sendo admissível réplica, na audiência prévia, ou não havendo lugar a ela, no início da audiência final (arts. 97º, n.º 1, 584º, n.º 1 e 3º, n.º 4 do CPC), sob pena de ficar precludido o direito de vir invocar a existência desse pacto privativo de jurisdição como vista a invocar a exceção dilatória da incompetência internacional do tribunal ou para o autor a afastar (21).

No caso, conforme decorre da contestação de fls. 10 a 24, tendo a apelada invocado a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais nacionais para conhecer do litígio que lhes foi submetido pela apelante, à luz do regime jurídico do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12, e atenta a relação jurídica por ela delineada na petição inicial, aderindo à notificação que lhe foi dirigido pela 1ª Instância para se pronunciar, querendo, quanto a essa exceção, a apelante apresentou a resposta de fls. 145 a 149, onde não invoca a existência de qualquer pacto privativo de jurisdição que tivesse sido celebrado entre a mesma e a apelada nos termos do qual fosse atribuída competência internacional aos tribunais portugueses para conhecer do litígio.
Com efeito, nessa resposta, a apelante apenas se limitou a invocar factos novos com vista a alterar a causa de pedir que tinha alegado em sede de petição inicial e assim se furtar à procedência dessa exceção dilatória, suscitada pela apelada na contestação.
A apelante apenas veio invocar, pela primeira vez, a existência desse pretenso pacto privativo de jurisdição em sede de alegações de recurso, numa altura em que já se encontrava precludido o seu direito a invocá-lo.
Acresce dizer que sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se obtém o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida, tendo em vista modificar ou anular essa decisão, neles não podem ser suscitadas questões novas, exceto se estas forem do conhecimento oficioso do tribunal (22), o que não é o caso da preterição de pacto privativo de jurisdição pretensamente celebrado entre apelante e apelada.
Nesta conformidade, porque a pretensa violação do pacto privativo de jurisdição consubstancia questão nova, que não é do conhecimento oficioso do tribunal ad quem, e que a apelante não cuidou em invocar em sede de resposta à exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do litígio suscitada pela apelada na contestação, vindo apenas a suscitar a existência desse pacto nas suas alegações de recurso, numa altura em que já se encontrava precludido o seu direito a invocá-lo com vista a fazer improceder aquela exceção dilatória, improcede este fundamento de recurso aduzido pela apelante.

B.3.2- Regulamento (UE) n.º 1215/2002.

É pacífico que configurando a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de uma dada relação jurídica material que lhes é submetida, um pressuposto processual, isto é, uma das condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa, sem as quais não é consentido ao juiz entrar na apreciação do mérito da causa, que essa exceção dilatória tem de ser aferida atenta a forma como o autor configura subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (pedido e causa de pedir) a relação jurídica controvertida na petição inicial (23).

Sustenta o apelante que a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses padece de erro de direito, uma vez que em função da relação controvertida por ele delineada, o contrato celebrado com a apelada e de cujo incumprimento faz derivar o seu pedido, não consubstancia um contrato de compra e venda, mas um contrato de empreitada ou, quando muito, um contrato atípico.

A este propósito, conforme supra se demonstrou, considerando os factos alegados pela apelante na petição inicial, com vista a ancorar o pedido condenatório que a mesma deduz contra a apelada, a causa de pedir por ele invocada consubstancia-se no incumprimento de um contrato de fornecimento, ao qual se mostram aplicáveis, de acordo com o direito interno, as regras da compra e venda, pelo que urge verificar se ao julgar procedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais nacionais para conhecer dessa relação jurídica e ao absolver a apelada da instância, a decisão sob sindicância se pode manter.

Enuncie-se que quando o litígio seja plurilocalizado, como é o caso daquele que se encontra em discussão nos autos, em que, em função da relação controvertida delineada pela apelante na petição inicial, esta tem a sua sede em Portugal, mas a apelada em Espanha e as mercadorias fornecidas pela primeira à segunda foram entregues em Espanha, coloca-se a questão de saber qual o tribunal que, no âmbito das várias ordens jurídicas envolvidas, tem competência para apreciar o litígio, questão essa que cabe às regras sobre a competência internacional dar resposta.
Com efeito, é às normas sobre a competência internacional que cabe repartir o poder de julgar entre os tribunais das várias jurisdições com as quais o litígio tem contacto, determinando os fatores de conexão relevantes e, em função deles, determinar se os tribunais de alguma delas são competentes para resolver o conflito.
A competência internacional dos tribunais portugueses é, assim, a fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais nacionais, no seu conjunto, relativamente à fração do poder jurisdicional atribuída por leis nacionais estrangeiras ou tratados os convenções internacionais, a tribunais estrangeiros sempre que o litígio seja transfronteiriço, isto é, quando apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras (24).
Conforme realça Teixeira de Sousa, em sede de regras relativas à competência internacional, a orientação dominante que vigora na ordem jurídica internacional, é que essa competência se afere pela lex fori, isto é, é pela lei do estado onde a ação se encontra pendente que essa competência internacional tem de ser aferida, cabendo, por conseguinte, ao direito interno de cada estado regular a competência internacional dos seus próprios tribunais, determinando quais os fatores de conexão com o litígio que lhes é submetido que considera relevantes para efeitos de lhes atribuir competência internacional para conhecer do mesmo quando este seja plurilocalizado e sendo, por isso, a essas regras de direito interno que se impõe atender para efeitos de se saber se os tribunais desse estado são ou não internacionalmente competentes para conhecer do litígio que lhes é submetido (25).
No entanto, conforme realça esse autor, essa regra geral sofre as exceções decorrentes de instrumentos internacionais a que o estado se auto vinculou, seja, por derivarem de instituições supranacionais cujos atos legislativos considera serem direta e imediatamente aplicáveis na sua ordem jurídica, como é o caso, no que concerne a Portugal, das disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências (art. 8º, n.º 4 da CRP), seja por derivarem de convenções internacionais que o próprio estado ratificou (n.º 3 do mesmo art. 8º).
Com efeito, sendo as normas que determinam a competência internacional dos tribunais de cada estado normas internas, fixadas unilateralmente por cada estado, compreende-se que estas, por um lado, não possam condicionar a competência internacional dos tribunais dos restantes estados (sujeitos às normas sobre competência internacional do seu próprio estado) e, por outro, que existindo direito supranacional imediatamente aplicável na ordem jurídica interna ou que derivem de convenções internacionais que o estado ratificou, que fixem um regime jurídico distinto do estabelecido no seu direito interno em sede de competência internacional, que estas se sobreponham ao direito interno.

É assim que em consonância com o que se acaba de referir que o n.º 1 do art. 59º do CPC estabelece que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competente quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos arts. 62º e 63º ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do art. 94º”.
Deste modo, nos termos dos arts. 8º, n.ºs 3 e 4 da CRP e 59º, n.º 1 do CPC, sempre que exista um litígio plurilocalizado, a fim de se aferir da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer desse concreto conflito, impõe-se verificar se existem regulamentos europeus ou instrumentos internacionais convencionais a que o estado português se vinculou, que sejam aplicáveis, e que estabeleçam regras de competência internacional, uma vez que caso estas existam, prevalecem sobre o direito interno, isto é, sobre as normas dos arts. 62º, 63º e 94º do CPC (26).
Como referido, essa aferição carece de ser feita de acordo com a relação jurídica configurada pelo autor na petição inicial, atentos os seus elementos subjetivos e objetivos.
O presente litígio que a apelante submeteu a julgamento, atenta a relação jurídica controvertida por ela delineada na petição inicial, é plurilocalizado, uma vez que tem pontos de conexão com Portugal e Espanha, ambos estados membros da União Europeia, pelo que que à relação jurídica em análise é aplicável o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento e do Conselho de 12 de dezembro, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial (27).
Na verdade, conforme decorre do art. 81º deste instrumento legislativo supranacional, imediatamente aplicável na ordem jurídica nacional (art. 8º, n.º 4 da CRP), o mesmo mostra-se aplicável a partir de 10 de janeiro de 2015, com exceção dos seus arts. 75º e 76º, que se aplicam a partir de 10 de janeiro de 2014, sendo, por isso, vigorante, em 10/05/2019, data em que a apelante instaurou a presente ação (cfr. fls. 8 verso).
Por outro lado, com exceção das matérias enunciadas no n.º 2 do seu art. 1º e, bem assim de matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas e as relativas à responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado, matérias essas que não se encontram manifestamente em discussão nos presentes autos, o n.º 1 desse art. 1º do Regulamento, declara que o seu regime jurídico é aplicável em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição.
Posto isto, conforme resulta dos considerandos exarados no Regulamento n.º 1215/2012, mediante a consagração do regime jurídico nele estabelecido foi propósito assumido pelo legislador comunitário “manter e desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça” dentro do espaço territorial da União Europeia, “nomeadamente facilitando o acesso à justiça” e eliminado as “disparidades das regras nacionais em matéria de competência e de reconhecimento de decisões judiciais” que “dificultam o bom funcionamento do mercado interno”, para cuja concretização considera indispensável a adoção de “disposições destinadas a unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial”, concluindo que “para alcançar o objetivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária (…) sejam determinadas por um instrumento legal da União vinculativo e diretamente aplicável” (considerando 3 e 4 do Reg.).
Na concretização desse seu desiderato, em sede de regras de conflito de jurisdição, considerou o legislador comunitário que “deverá haver uma ligação entre os processos a que o presente regulamento se aplica e o território dos Estados-Membros. Devem, portanto, aplicar-se, em princípio, as regras comuns em matéria de competência sempre que o requerido esteja domiciliado no território do Estado-Membro”, as quais devem “apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido”, devendo os tribunais “estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria do litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão inerente … (considerandos 13 e 15 do Regul. – sublinhado nosso).
Especificando quais sejam essas situações “bem definidas, em que a matéria do litígio” justifica o afastamento da regra geral do domicílio do demandado, no considerando 16, lê-se que: “O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça”, esclarecendo que “a existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele”.

Em conformidade com esses considerandos e explanando-os em letra de lei, dispõem os:

Art. 4º
“1- Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desses Estado-Membro.
2- As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais”.

Art. 5º
“1- As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas Secções 2 a 7 do presente capítulo”.

Secção 2
Art. 7º
“1) As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso de venda de bens, o lugar do Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.

Resulta linearmente das disposições legais que se acabam de transcrever que o princípio geral vigente em sede de Regulamento é o de que a competência internacional tem por base o domicílio do requerido, ou seja, no caso, da apelada (ré), independentemente da nacionalidade desta.
Este critério geral tem por escopo, segundo Dário Moura Vicente, poupar o réu às dificuldades inerentes à condução da sua defesa perante um tribunal estrangeiro (28).
Trata-se, por conseguinte, da conjugação do princípio actur sequitur forum rei, o qual visa assegurar a proteção legal das pessoas domiciliadas na União Europeia.
De acordo com este princípio geral, ainda que demandante e demandada tenham nacionalidade extra união europeia e mesmo que os factos que integram a causa de pedir que suporta o pedido formulado pela primeira tenham ocorrido fora do território da União Europeia, os tribunais dos Estados Membros da União, mais concretamente, os tribunais do Estado-Membro em que a demandada (ré) se encontre domiciliada na data da propositura da ação, é internacionalmente competente para dela conhecer.
À luz do princípio da perpetuatio fori, vigente igualmente na ordem jurídica interna (art. 260º do CPC), aquilo que releva para o legislador comunitário é o domicílio da demandada, à data da propositura da ação, sendo irrelevantes quaisquer alterações posteriores desse domicílio (29).
Desde que a demandada tenha, à data da propositura da ação, o seu domicílio dentro de um estado que integra a União Europeia, ainda que seja cidadã extra comunitária e, reafirma-se, ainda que os factos que integrem a causa de pedir que a demandante alegou para suportar a pretensão de tutela judiciária (pedido) formulada contra aquela tenham ocorrido fora do território da União, os tribunais do Estado-Membro onde a demandada se encontra domiciliada são internacionalmente competentes para conhecer desse concreto litígio.
Note-se que este critério geral eleito pelo legislador comunitário como elemento de conexão relevante e geral para atribuir a competência internacional aos tribunais dos Estados-Membros da União Europeia visa proteger os cidadãos que residam no território da União e assume tal importância ao ponto de, no considerando 11, o legislador comunitário referir expressamente que os tribunais do domicílio do réu devem “estar sempre disponíveis”, exceto em alguns casos “bem definidos”, “em que a matéria do litígio ou a autonomia das partes” justificam o recurso a outro critério de conexão (30).
Esses outros critérios de conexão alternativos e especais em relação ao critério geral do domicilio da demandada são exclusivamente – “só” – os enunciados nas Secções 2 a 7 do Regulamento (art. 5º, n.º 1), que uma vez percorridos, não têm manifestamente aplicação ao caso em apreço, com exceção do elencado no n.º 1 do art. 7º, onde igualmente se confere competência internacional aos tribunais de outro Estado Membro quando, em matéria contratual, nele se situe o “lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, entendendo-se para estes efeitos, salvo convenção em contrário, “no caso de venda de bens, o lugar “onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues” (als. a) e b), do n.º 1 do art. 7º).
Subjacente a este critério especial do art. 7º, n.º1, als. a) e b) do Regulamento, está a ponderação de que o foro do lugar do cumprimento da obrigação é o mais bem colocado para a condução do processo, sendo esse lugar, em geral, aquele com o qual o litígio apresenta a conexão mais estreita.
Por outro lado, conforme é entendimento pacífico, com o objetivo de limitar divergências associadas ao recurso à aplicação das regras de direito de conflitos do Estado do foro, na referida al. b) do n.º 1 do art. 7º, o legislador comunitário estabeleceu um conceito autónomo de “cumprimento da obrigação”, adotando uma solução prática, que assenta num critério puramente factual, que é sempre aplicável qualquer que seja a obrigação em litígio, incluindo quando essa obrigação consista no pagamento da contrapartida pecuniária do contrato (preço). Segundo este critério, na compra e venda, salvo convenção em contrário, o lugar do cumprimento, é o lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou deviam ser entregues, pelo que a obrigação relevante é a entrega dos bens e não a correspondente obrigação de pagamento de uma quantia em dinheiro, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação (31).
Revertendo ao caso dos autos, a apelada (Ré) tem a sua sede em Espanha, pelo que de acordo com o critério geral fixado no Regulamento, são os tribunais espanhóis os internacionalmente competentes para conhecer do presente litígio.
Atenta a relação controvertida delineada pela apelante na petição inicial, a causa de pedir por ela eleita para sustentar o pedido de condenação da apelada a pagar-lhe o preço da mercadoria fornecida assenta no incumprimento por parte desta de um contrato de fornecimento.
O contrato de fornecimento consiste numa multiplicidade de compras e vendas de bens ou de serviços, que têm em comum a circunstância dessas múltiplas transações terem lugar no âmbito de um único contrato ao longo do tempo. Aliás, o contrato de fornecimento, como antes enunciado, encontra-se sujeito ao regime jurídico do contrato de compra e venda.
A apelante alega, em sede de petição inicial, que os bens que forneceu à apelada foram entregues em Espanha, o que foi aceite pela última na contestação.
Na petição inicial a apelante não alega que tivesse acordado com a apelada que o lugar do pagamento do preço da mercadoria fornecida fosse em Portugal, mas antes o que sustenta era ser esse o procedimento seguido usualmente entre ambas (arts. 5º e 9º da p.i.), o que é bem distinto da existência de um acordo ou convenção entre ambas em que as mesmas tivessem acordado que o pagamento do preço pela apelada se processaria em Portugal.
Logo, na ausência de convenção em contrário, nos termos do art. 7º, n.ºs 1, als. a) e b), por referência ao critério autónomo explanado nesta al. b), considera-se como lugar do cumprimento, o lugar onde, nos termos do contrato de fornecimento celebrado, os bens foram ou devam ser entregues, isto é, Espanha.
Por conseguinte, quer pelo critério geral, quer pelo critério especial previsto no Regulamento, os tribunais portugueses, tal como decidido pela 1ª Instância, são internacionalmente incompetentes para conhecer da relação jurídica controvertida delineada subjetiva e objetivamente pela apelante na petição inicial, uma vez que essa competência internacional pertence aos tribunais espanhóis.
Resulta do que se vem dizendo, que a aliás, bem estruturada e fundamentada decisão recorrida, que julgou procedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da relação jurídica que lhes foi submetida pela apelante e absolveu a apelada da instância, não padece dos erros de direito que a apelante lhe assaca.
Termos em que, na improcedência de todos os fundamentos de recurso aduzidos pela apelante, impõe-se julgar totalmente improcedente a presente apelação e confirmar as decisões recorridas.
*
Decisão:

Nesta conformidade, os juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar a presente apelação totalmente improcedente e, em consequência:
- confirmam as decisões recorridas.
*
Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC)
Notifique.
*
Guimarães, 05 de março de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dr. José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)


1. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 639.
2. Acs. STJ. de 06/06/2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1; de 27/10/016, Proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1; de 18/06/2013, Proc. 483/08.0TBLNH.L1.S1; RG. de 24/01/2019, Proc. 3113/17.6T8VCT.G1, in base de dados da DGSI.
3. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 106.
4. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 145.
5. Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 148 e 149.
6. Rui Pinto, “A Ação Executiva”, 2018, AAFDL Editora, pág. 194.
7. Acs. STJ de 18/04/2002, Proc. 02B3251; RC. de 09/09/2014, Proc. 581/11.3TBFND-A.C1, in base de dados da DGSI.
8. Ac. RE. de 28/06/2017, Proc. 172/15.0T8CBA-A.E1, in base de dados da DGSI.
9. Ac. RC. de 20/09/2016, Proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in base de dados da DGSI.
10. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, 2015, Almedina, pág. 81.
11. Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 71.
12. Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Ediforum, págs. 70 a 74.
13. Ferreira de Almeida, ob. cit., págs. 69 a 75.
14. Alberto dos Reis, “Código Processo Civil Anotado”, vol. 3º, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 353. No mesmo sentido Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs. 137 e 138, onde se lê que “A causa de pedir tem, pois, um substrato fáctico cuja alegação compete ao autor, de modo a fundamentar a sua pretensão. É muito por isso que usa falar-se em narração: o autor deverá expor (narrar) o quadro factual atinente ao tipo legal de que pretende prevalecer-se na ação instaurada. Tal narração fáctica envolverá a alegação e a descrição, por exemplo, dos concretos factos relativos à celebração do negócio de compra e venda de um bem por via do qual o autor ficou credor do preço sobre o réu, os factos relativos à ocorrência de um acidente de viação e respectivas consequências e à responsabilidade civil daí decorrente, os factos relativos à celebração de um contrato de arrendamento e à conduta do réu violadora dos seus deveres de inquilino, (…). Será por via desses factos, isto é, pela demonstração desses factos e, juízo, que o autor poderá vir a alcançar a tutela jurisdicional desejada. É da correspondência entre o quadro factual assim apurado nos autos e o quadro fáctico previsto numa ou mais normas substantivas que resultará o reconhecimento do direito invocado. Isso ocorrerá na sentença, fixando esta e concreto os efeitos inerentes a tal reconhecimento, nos limites do peticionado”.
15. Carolina Cunha, “O Contrato de Fornecimento no Setor da Grande Distribuição a Retalho: Perspetivas Atuais”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita”, I, Coimbra Editora, 2009, págs. 622 e 623.
16. José Engrácia Antunes, “Direito dos Contratos Comerciais”, Almedina, 2009, pág. 358.
17. Ac. RL. de 27/02/2018, Proc. 2231/15.2T8LSB.L1-7, in base de dados da DGSI.
18. Acs. RP. de 30/11/2015, Proc. 41/14.0TBMCN.P1, in base de dados da DGSI.
19. Teixeira de Sousa, ob. cit., págs. 70 a 72.
20. Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, pág. 164, nota 3. No mesmo sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, págs. 221 e 222, onde escrevem: “No atual código, a violação do pacto privativo de jurisdição determina a incompetência absoluta do tribunal (arts. 96-a e 97-1). Esta incompetência tem todavia especialidades de regime: não é de conhecimento oficioso, conforme dispõe o art. 97-1, nem admite o aproveitamento dos autos a que alude o art. 99º, n.ºs 2 e 3; por outro lado, não sendo de conhecimento oficioso, não pode gerar indeferimento da petição inicial em despacho liminar, mas apenas absolvição do réu da instância, diversamente do que o art. 99º, n.ºs 1 e 3, dá a entender”. Ainda, Acs. STJ. de 17/13/2016, Proc. 588/13.6TVPRT.P1.S1; de 04/06/22015, Proc. 536/14.6TVLSB.L1-6 e de 08/06/2003, Proc. 04A1223, in base de dados da DGSI.
21. Ac. STJ. de 08/06/2003, Proc. 04A1223, onde se pondera que “Da conjugação dos arts. 101º e 108º do CPC (atuais arts. 96º e 102º do CPC), decorre que a violação de um pacto privativo de jurisdição gera incompetência relativa, que não é de conhecimento oficioso do tribunal, podendo ser arguida pelo Réu sendo o prazo de arguição fixado para a contestação ou resposta ou, quando não houver lugar a esta, para outro meio de defesa que tenha a faculdade de deduzir. Sendo assim, não tendo o Réu, na contestação, nem a interveniente deduzido tal exceção, ficou definitivamente precludido o direito de o invocar”.
22. Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 395.
23. Manuel Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pags. 90 e 91; Acs. STJ. de 29/04/2010, Proc. 622/08.1TVPRT.P1.S1; RC de 28/09/2010, Proc. 512/09.0TBTND.C1, in base de dados da DGSI.
24. Remédio Marques, in “Ação Declarativa”, 3ª ed, pág. 268; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 198.
25. Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 93 a 94.
26. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 3ª ed., Almedina, págs. 144 e 145; STJ. de 04/03/2010, Proc. 2425/07.1TBVCD.C1; de 19/12/2018, Proc. 2312/16.2T8FNC.L1.S1; RG. de 24/01/2019, Proc. 1689/17.7T8BGC.G1; de 31/10/2018, Proc. 31/10/2018, Proc. 642/14.7TBBGC.G1; RL. de 19/05/2016, Proc. 478/14.5TCSC.L1-6; 14/02/2013. Proc. 3082/11.6TBCLD.L1.2, todos in base de dados da DGSI.
27. Ac. STJ. de 11/02/2015, Proc. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, in base de dados da DGSI.
28. Dário Moura Vicente, “Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001”, publicado na Revista Scientia Iuridica, n.º 293, pág. 360.
29. Marco Carvalho Gonçalves, “Competência Judiciária na União Europeia”, publicado na Revista Scientia Iuridica, n.º 339, págs. 423 e 424.
30. Ac. STJ. de 03/03/2005, Proc. 04A4283.
31. Acs. STJ. de 21/06/2011, in CJ/STJ, t. 2º, pág. 131; RG de 02/05/2016, Proc. 475/15.3T8FAF-A.G1, in base de dados da DGSI.