Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
207/17.1T9BCL-A.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL ADVOGADO
QUEBRA
PRESSUPOSTOS LEGAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO DISPENSADA DO SEGREDO PROFISSIONAL A QUE ESTÁ OBRIGADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Quando esteja em causa a escusa legítima de depor de testemunha com fundamento em segredo profissional, verifica-se um verdadeiro conflito entre dois deveres jurídicos: o dever de testemunhar e o dever de guardar segredo.
II- A resolução deste conflito passa por estabelecer a concordância prática entre os deveres em confronto, de acordo com o princípio da prevalência do interesse preponderante, por forma a que prevaleça aquele que, numa análise casuística, em função dos interesses ou valores em presença, se apresente com maior dignidade, justificando o sacrífico de outros interesses ou valores de menor valia.
III- Com o propósito de concretizar o interesse ou valor mais valioso, ou, segundo os dizeres da lei, densificar “o princípio da prevalência do interesse preponderante” e assim resolver o conflito, o legislador forneceu pistas ao interprete e aplicador da lei, indicando, por forma exemplificativa, “a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, “a gravidade do crime” e a “necessidade de proteção de bens jurídicos”.
IV- Na doutrina e jurisprudência tem-se entendido que a obrigação do advogado de guardar segredo transcende, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.
V- Não deve ser ordenada a quebra de segredo profissional de advogado apenas com o propósito de apurar a proveniência e a autenticidade de documentos relativos ao registo de um imóvel numa conservatória do registo predial, diligenciado pelo advogado, em nome do arguido, seu cliente, se esses factos já resultarem objetivamente evidenciados dos aludidos documentos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo de inquérito nº 207/17.1T9BCL, que corre termos na Procuradoria da República da Comarca de Braga, aberto na sequência da queixa apresentada por D. M. e G. M. contra J. J., o Ministério Público, por despacho de 27/09/2019, considerou “imprescindível para o apuramento e cabal esclarecimento dos factos em investigação” a inquirição, na qualidade de testemunha, de Dr.ª D. S. que, a 25/09/2019, se havia recusado a depor, invocando para tanto o seu dever de sigilo profissional, decorrente da sua qualidade de advogada do arguido.
2. No dito processo de inquérito investiga-se a prática pelo arguido de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art.º 256, n.º1, als. a), b), e) e f), de um crime de burla, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 217, n.º1 e 218, n.º1 e, ainda, de um crime de furto p. e p. pelo artigo 203, n.º1, todos do C. Penal.
3. No sobredito despacho proferido pelo M.P. foi solicitada à Ordem dos Advogados a emissão de parecer sobre a legitimidade da escusa apresentada por aquela advogada.
Em resposta à aludida solicitação, o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, por despacho de 27/02/2020, considerou que “os factos em causa se encontram abrangidos pelo dever de segredo profissional, de modo que a escusa para depor apresentada pela Senhora Dra. D. S. se afigura legítima”.
4. O Ministério Público, recebido o aludido parecer, apresentou os autos ao Exmo. Juiz, tendo em vista o disposto no art.º 135º, n.º3 do CPP, que, por despacho de 09/03/2020, considerou legítima a escusa e determinou a remessa do processo a este Tribunal da Relação de Guimarães.
5. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
Porque não se mostra certificada a imprescindibilidade do depoimento da Ex.ma advogada para a descoberta da verdade relativamente aos crimes em apreciação, tanto mais que documentos idóneos atestam a sua proveniência e autenticidade, porque o conhecimento das conversas que possa ter mantido com o seu cliente sobre os factos relativos a tais documentos também não se apresenta, por isso, sequer necessário, assim, porque não estão reunidos os requisitos para que seja levantado o dever de sigilo por parte daquela, deve o presente incidente ser indeferido.
6. Foram cumpridos os vistos e procedeu-se à realização da conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

A- Das circunstâncias factuais

1. Com relevo para a decisão a proferir importa considerar que os autos evidenciam o seguinte:

1.1- A Exma. Magistrada do M.P. titular do inquérito proferiu despacho com o seguinte teor (transcrição):
Fls. 214:
Investiga-se nos presentes autos, para além do mais, a prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 alíneas a), b), e) e f), um crime de burla, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 217, nº 1 e 218º, nº 1, e dum crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 , ambos do Código Penal, cometidos pelo arguido J. J., porquanto:
1. Em 06.10.1987, o arguido J. J. vendeu aos ofendidos D. M. e G. M. o prédio rústico de sua propriedade, denominado “Bouça do Mato”, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, com a área de 24.000 m2, descrito na Conservatória do Registro Predial sob o artigo …/....
2. Não obstante ter efetuado a venda referida em 1, em 04.12.2015, o arguido, através da sua mandatária, Drª D. S., e utilizando documentação que obteve de forma não apurada, conseguiu fazer registar em seu nome, na Conservatória do Registo Predial, um prédio rústico com a área de 7 200 m2, sito no mesmo lugar de ..., ..., Concelho de Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o artigo …/..., prédio esse que, na realidade não existe, logrando desse modo apropriar-se de uma parcela de terreno dos ofendidos, que sabia não lhe pertencer.
3. No período compreendido entre o dia 16 e o dia 28.12.2016, o arguido J. J., fazendo-se passar por proprietário de uma parcela da referida bouça, com a área de 7 200 m2, vendeu, por quantia não apurada, ao sócio-gerente da empresa “Madeiras do …, Lda”, todos os pinheiros e eucaliptos ali plantados, os quais foram cortados e removidos do local.
4. No dia 28.12.2016, o arguido fazendo-se passar por dono e proprietário do prédio rústico mencionado em 1, colocou-o à venda, pelo preço de 14.000, 00 euros, na agência imobiliária “X”, com sede na Avenida …, nº …, em Barcelos.
5. para tanto, o arguido utilizou os documentos que obteve de forma não apurada e que titulam a sua suposta propriedade sob uma bouça com uma área de 7 200 m2, sita no mesmo lugar de ..., em ..., Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, sob o artigo …/..., onde, na realidade, existe apenas o prédio rustico descrito em 1.
6. Convencido da autenticidade e veracidade dos documentos que lhe foram apresentados, o gerente da “X” colocou uma placa com os dizeres “vende” no interior da bouça, propriedade dos ofendidos, e levaram ao local vários interessados na sua compra.
7. Entretanto, os ofendidos tomaram conhecimento do que se estava a passar e deslocaram-se até à agência imobiliária “Y”, onde informaram o seu gerente de que aquela bouça lhes pertencia e que a bouça que o arguido alegava ser dela, na verdade, não existe e que mesmo tinha engendrado este esquema para se apropriar ilegitimamente de uma parcela de terreno que sabia não ser dele.
No decurso da investigação até ao momento realizada, nomeadamente dos documentos obtidos junto da Conservatória do Registo Predial, juntos a fls. 115-136 dos autos, apurou-se que foram utilizados documentos para efetuar o registo predial descrito em 2, cuja proveniência importa apurar, em ordem a deslindar como é que a ilustre Mandatária, Drª D. S. (mandatária do arguido nestes autos até ao dia 15.02.2018, data em que formalmente renunciou ao mandato forense ) os obteve, bem como que diligências efetuou para confirmar a sua autenticidade e o que é que o arguido lhe disse sobre os mesmos.
Instada a sobre a sua disponibilidade em prestar depoimento, na qualidade de testemunha, acerca destes factos, a Ilustre Advogada recusou-se a depor, invocando, para tanto, sigilo profissional que só poderá ser levantado pela Ordem dos advogados (fls. 214).
Por se revelar imprescindível para o apuramento e cabal esclarecimento dos factos em investigação, ao abrigo do disposto no artigo 135º, nº 2 do C. processo Penal, oficie à ordem dos Advogados, com cópia de fls. 3-7, 112-136, 137 e 214, solicitando a elaboração de parecer sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa apresentada pela ilustre Advogada, Drª D. S..
1.2- Em resposta à aludida solicitação, o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, por despacho de 27/02/2020, considerou que “os factos em causa se encontram abrangidos pelo dever de segredo profissional, de modo que a escusa para depor apresentada pela Senhora Dra. D. S. se afigura legítima”.
1.3- Em face do mencionado parecer da Ordem dos Advogado, a Exma. Magistrada do M.P. titular do inquérito proferiu novo despacho com o seguinte teor (transcrição):
FIs. 227-231: Conforme decorre do teor do parecer elaborado pela Ordem dos Advogados — Conselho Regional do Porto, mostra-se legítima a recusa em prestar depoimento manifestada pela Ilustre Advogada, D. S., ao abrigo do disposto no artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Ora, uma vez que o seu depoimento é imprescindível ao cabal apuramento e esclarecimento dos factos, pelos motivos já aduzidos no nosso despacho de fls. 215-217, que aqui se dá por integralmente reproduzido, promove-se a V.Ex., ao abrigo do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, seja suscitado o incidente de quebra de sigilo profissional da Ilustre Advogada junto do Tribunal da Relação de Guimarães, e seja ordenado a prestação de depoimento por parte da testemunha, com quebra do sigilo profissional.
Conclua os autos ao Meritíssimo Juiz de Instrução.
1.4- O Exmo. Senhor Juiz de Instrução proferiu despacho com o seguinte teor (transcrição):
Considerando a especificidade da investigação que ocorre nos autos e a natureza dos ilícitos investigados, surge relevante pata o prosseguimento da mesma o depoimento da testemunha D. S., advogada que terá patrocinado o ora arguido.
A referida testemunha escusa-se a depor, invocando estar a coberto do segredo profissional tal como previsto no art. 92.°, n.° 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, pelo que se mostra legítima a escusa apresentada face ao normativo citado.
A ser assim, e face aos elementos já recolhidos, é mister solicitar ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães que, num caso em que está em causa um juízo de prevalência entre os interesses em conflito, julgue da quebra (ou não) do segredo em causa (na sequência, aliás, do que foi fixado como jurisprudência no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 2/2008, do S.T.J. de 13/02/2008), o que desde já se determina, ao abrigo do disposto no art. 135°, n.° 2 e 3.
Nestes termos, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.
2. Importa delimitar com precisão, em termos factuais, a questão que nos é colocada por forma a decidir da quebra ou não do segredo profissional invocado pela testemunha indicada como motivo da sua escusa em prestar depoimento. Esta questão foi definida pela Exma. Procuradora - Adjunta, no seu despacho acima transcrito, que precedeu a solicitação de parecer à Ordem dos Advogados sobre a legitimidade da escusa de depor, na qualidade de testemunha, pela Exma. Senhora Advogada D. S..
Assim, encontra-se pendente inquérito criminal aberto em consequência de queixa apresentada por D. M. e G. M., contra J. J. em que se investiga a prática por este de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 alíneas a), b), e) e f), um crime de burla, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 217, nº 1 e 218º, nº 1, e dum crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, ambos do Código Penal.
A Exma. Magistrada do M.P. titular do referido inquérito, estando em causa o registo de um imóvel efetuado pela referida advogada, enquanto mandatária do aqui arguido, pretende obter o depoimento daquela advogada relativamente aos seguintes factos:
1) A proveniência dos documentos que foram utilizados para efetuar o registo de um imóvel na Conservatória do Registo Predial.
“… em 04/12/2015, o arguido, através da sua mandatária, Dr.ª D. S., e utilizando documentação que obteve de forma não apurada, conseguiu fazer registar em seu nome, na Conservatória do Registo Predial, um prédio rústico com a área de 7200 m2, sito mesmo lugar de ..., em ..., Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo …/..., prédio esse que, na realidade, não existe, logrando, deste modo, apropriar-se de uma parcela do terreno dos ofendidos, que bem sabia não lhe pertencer”;
Esta parcela de terreno consiste num prédio que anos antes o arguido havia vendido aos ofendidos, assim identificado:
“Em 06.10.1987, o arguido J. J. vendeu aos ofendidos D. M. e G. M. o prédio rústico de sua propriedade, denominado “Bouça do Mato”, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, com a área de 24.000 m2, descrito na Conservatória do Registro Predial sob o artigo …/....”
2) Como é que aquela Senhora Advogada obteve os documentos“…deslindar como é que …”;
3) Quais foram as diligências por ela efetuadas para “confirmar a sua autenticidade”; e
4) O teor da conversa que teve com o arguido sobre o assunto – “o que é que o arguido lhe disse sobre os mesmos”.

B - Da fundamentação de direito.

1. No caso sub judice está em causa saber se deve ser ordenada a quebra de segredo profissional de advogado, em conformidade com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 135º do CPP, uma vez que já decorreu a primeira fase do incidente de escusa de depor, na qualidade de testemunha, por parte de advogado, tendo o Senhor Juiz de Instrução decidido ser legitima a escusa(1).

O artigo 135º do CPP, ao referir-se ao “Segredo Profissional” no seu nº1, prevê que “ … os advogados (…) podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo”, dizendo o nº3 do mesmo normativo que a intervenção do “tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado”, “… pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que se mostre justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos (…)””.
Como é sabido, quando esteja em causa a escusa legitima de depor de testemunha com fundamento em segredo profissional, verifica-se um verdadeiro conflito entre dois deveres jurídicos: o dever de testemunhar e o dever de guardar segredo. A resolução deste conflito passa por estabelecer a concordância prática entre os deveres em confronto, de acordo com o princípio da prevalência do interesse preponderante, por forma a que prevaleça aquele que, numa análise casuística, em função dos interesses ou valores em presença, se apresente com maior dignidade, justificando o sacrífico de outros interesses ou valores de menor valia.
O dever de testemunhar decorre de lei imperativa, nomeadamente, do disposto nos artigos 131º e 132º do CPP, sendo que a testemunha só pode recusar-se a depor nos casos previstos na lei.
Em sentido amplo, o segredo profissional consiste na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma atividade profissional.
Nos termos do disposto no artigo 208º da CRP “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.
Ao segredo profissional do advogado refere-se o artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei, nº 145/2015 de 09/09, que no corpo do seu nº 1 estabelece uma cláusula geral segundo a qual 1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços…”, estabelecendo, depois, nas suas diversas alíneas, exemplos em que se concretiza a aludida cláusula geral.

E os nºs 2, 3, e 4 do citado preceito legal acrescentam:

“2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4- O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.”.

A violação de segredo profissional assume dignidade penal, encontrando-se prevista como crime no artigo 195º do CP, segundo o qual “ Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.
No que concerne ao advogado, o dever de guardar segredo profissional tem como fundamento o princípio da confiança, o dever de lealdade do advogado para com o constituinte e a advocacia considerada na sua função de interesse público.
Com efeito, o segredo profissional do advogado possui uma dupla valência. Por um lado, protege-se a relação fiduciária que se cria entre o advogado e o seu cliente. O advogado figura como confidente necessário do cliente. Por outro lado, é garante do interesse público fundado na função social da advocacia e ainda o interesse coletivo no exercício digno da profissão.
Nas palavras de António Arnault (2) O fundamento ético-jurídico do sigilo profissional do advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense.
Neste sentido, tem-se entendido que a obrigação do advogado de guardar segredo transcende, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral, cfr. Ac STJ de 15.02.2018, processo 1130/14.7TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
Decorre do exposto, que o dever de testemunhar e o dever de segredo profissional do advogado não constituem deveres absolutos, na media em que a lei permite que, numa análise casuística, um deles possa ceder em detrimento do outro em função dos interesses ou valores mais valiosos presentes em cada caso.
Com o propósito de concretizar o interesse ou valor mais valioso, ou, segundo os dizeres da lei, densificar “o princípio da prevalência do interesse preponderante” e assim resolver o conflito, o legislador forneceu pistas ao interprete e aplicador da lei, indicando, por forma exemplificativa, “a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, “a gravidade do crime” e a “necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Como bem refere Costa Andrade (3), a formula utilizada pelo legislador tem - segundo uma breve síntese por nós realizada - quatro implicações normativas: vincular o julgador a padrões objetivos e controláveis, não ficando a decisão sujeita à sua livre apreciação; afasta qualquer das duas posições extremadas segundo as quais: o dever de segredo prevalece sobre o dever de colaborar com a justiça penal e a tese inversa de que simples prestação de testemunho perante o tribunal penal justifica por si, sem mais, a violação do segredo profissional; o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado de que a realização da justiça penal não configura como interesse legitimo, bastante para justificar, por si só, a quebra do segredo profissional; e, por último, atribui-se à justiça penal a idoneidade para levar à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir.
A imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade ocorre quando inexistem meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade, ou seja, a verdade material fica irremediavelmente comprometida.
A “necessidade de proteção de bens jurídicos” tem sido identificada como coincidindo com a ideia de “necessidade social premente” (pressing social need), na interpretação do artigo 8º da CEDH (c. acórdão do TEDH no caso Sanday Times v. Reino Unido). De forma que nem todos os bens jurídicos justificam a quebra do segredo profissional e, em princípio, não deverá ser ordenada nos crimes particulares que não tenha um impacto social notório, cfr. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade católica Editora, 2ª edição, pág. 365.
No que se refere à gravidade do crime, em nosso entender, a mesma deverá ser aferida em abstrato e em concreto. Ou seja, deverá ser considerada uma gravidade abstrata mínima em que a quebra do segredo profissional deverá, por princípio, ter-se por excluída. Porém, nunca deverá ser desconsiderada a gravidade do crime em concreto.
No caso vertente, na primeira instância, o Ministério Público pretende que seja ouvida, na qualidade de testemunha, a advogada identificada nos autos relativamente aos factos que acima foram indicados.
Fazendo agora uma sumula dessa factualidade, pretende-se ver esclarecidos os factos referentes à realização de um registo na Conservatória do Registo Predial de um imóvel alegadamente pertencente ao arguido, cliente da referida advogada, sendo que do próprio registo resulta terem sido apresentados documentos e prestadas declarações, bem assim que o mesmo foi diligenciado pela referida advogada.
Assim, pretende-se saber a proveniência dos documentos com base nos quais foi efetuado o registo, como é que foram eles obtidos, que diligências a testemunha levou a cabo para apuramento da sua autenticidade e, por último, qual o teor das conversas tidas com o cliente sobre o assunto.
O certo é que, sendo apenas estes os factos com fundamento nos quais se pretende obter a quebra do segredo profissional da Exma. Senhora Advogada, desde já adiantamos não poder ser atendido o pedido, porquanto o depoimento não é imprescindível para a descoberta da verdade no sentido que deixamos exposto (4).
Na verdade, como bem refere o Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto no seu parecer, com o qual concordamos integralmente, “Em primeiro lugar, é incontornável que a ilustre advogada foi mandatária do arguido no inquérito. Ele outorgou-lhe procuração forense no mesmo.
Por outro lado, é por demais evidente que o registo levado a cabo na Conservatória mencionada teve como base concretos documentos.
Ora, tais documentos, por cópia, já se encontram nos autos, e através deles é possível reconstruir o fundamento da legalidade do registo efetuado, afinal, da razão da sua não recusa.
Explicitando, o registo do imóvel, do concreto imóvel em causa, foi levado a cabo através de documentos idóneos para o efeito, sendo bem conhecida a sua proveniência, não havendo qualquer suspeita legítima sobre a sua autenticidade. Temos nos autos o teor da caderneta predial do artigo matricial rústico …/..., Barcelos cuja obtenção se alcança normalmente através da internet. Como temos, também, uma certidão judicial, proveniente de um processo de inventário judicial e que está arquivado na Unidade Central de Barcelos, do Tribunal Judicial de Braga, certidão emitida por uma escrivã adjunta naquele Tribunal.
Ou seja, diante deste cenário, dúvida alguma se pode colocar quanto à proveniência e autenticidade dos documentos usados para a realização do registo definitivo do referido artigo em nome do arguido.
Aliás, a requisição de registo é muito clara revelando a sua justeza. O dito imóvel foi registado em nome do arguido em virtude da usucapião, em virtude da declaração complementar que nela foi efetuada pela referida mandatária – a Dr.ª D. S. - em representação do arguido, ao proceder à identificação do moderno artigo matricial 977/... resultante das avaliações tributárias realizadas no concelho de Barcelos e que entraram em vigor a 30/09/1988, como correspondendo ao antigo artigo matricial rústico 1527/..., precisamente o artigo que consta da certidão extraída do inventário acima referido e que designa o prédio constante da relação de bens sob o n.º15 e que, a final, foi adjudicado ao arguido, sendo o único que lhe foi dado em partilhas por óbito do seu pai C. F..
Assim, o depoimento da ilustre advogada, quanto a tais temas, não se mostra absolutamente nada necessário, muito menos e como exige a lei, imprescindível para alcançar conhecimento sobre aqueles. Os documentos falam por si e perante as circunstâncias factuais já provadas, eles demonstram evidentes responsabilidades da testemunha na produção da requisição do registo predial em causa pois que nela atestou falsamente uma decisiva circunstância factual, o que até lhe poderá retirar a qualidade que agora possui, adquirindo uma outra seguramente bem mais gravosa.
E neste preciso contexto, o conhecimento das conversas que o arguido possa ter tido com a sua advogada não se apresenta nem necessário, nem imprescindível para a investigação dos crimes acima indicados.
A investigação da verdade dos crimes em causa, o que o Ministério Público concretamente pretende não passa, então, pelo depoimento da ilustre advogada que foi mandatária do arguido, como testemunha. Não há demonstração da imprescindibilidade do mesmo.”
Assim, em nosso entender, pese embora, à partida, a gravidade dos crimes em presença e os respetivos bens jurídicos, em si mesmos, não sejam impeditivos da quebra do segredo profissional, verifica-se que o depoimento, na qualidade de testemunha, da referida advogada, não se mostra necessário e, por isso, muito menos, imprescindível, no sentido de que sem ele não ser possível a descoberta da verdade relativamente aos crimes em investigação, designadamente para a demonstração da proveniência e autenticidade dos documentos em causa.
Com efeito, os ditos documentos espelham já uma realidade objetiva indiscutível relativamente ao objeto que se diz pretender ver investigado e esclarecido. O teor das conversas eventualmente mantidas pela advogada com o arguido, seu cliente, não é necessário para o efeito pretendido.
Em suma, não deve ser ordenada a quebra de segredo profissional de advogado apenas com o propósito de apurar a proveniência e a autenticidade de documentos relativos ao registo de um imóvel, numa conservatória do registo predial, diligenciado pelo advogado, em nome do arguido, seu cliente, se esses factos já resultarem objetivamente evidenciados dos aludidos documentos.
Por conseguinte, no caso concreto, considera-se como não verificada uma situação que justifique a quebra de segredo profissional da Senhora Advogada, decidindo-se pela não prestação do seu depoimento.

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em não dispensar a Senhora Advogada, Dr.ª D. S., melhor identificada nos autos, do segredo profissional a que está obrigada.
Sem custas.
Guimarães, 11.05.2020

(Armando da Rocha Azevedo – Relator)
(Clarisse S. Gonçalves – Adjunta)


1. Note-se que, aderimos aqui à posição que temos por mais correta, vertida na fundamentação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 2, de 2008, in DR, 1ª Série a, de 31.03.2008, segundo a qual “ (…) quando invocado o sigilo bancário, a autoridade judiciária perante a qual tiver sido suscitada deverá decidir se essa escusa é legítima ou ilegítima. Quando conclua, após as diligências que considerar necessárias e cumprido o formalismo do n.º 5 do mesmo artigo, que a escusa é ilegítima, a autoridade judiciária ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento, não podendo então a instituição bancária deixar de cumprir o ordenado. Se concluir que a escusa é legítima, dois caminhos estão abertos à autoridade judiciária: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou então suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior. A quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima”
2. Iniciação à Advocacia, Coimbra 2000, pág. 66.
3. Comentário Conimbricense, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pag. 795/796.
4. No sentido de que não deverá ser quebrado o segredo profissional do advogado no caso de o depoimento não ser imprescindível para a descoberta da verdade, vide, v.g., Ac RP de 12.10.2011, processo 3559/05.2TAVNG.P1, relator J. Gomes; Ac RE de 20.03.2012, processo 11/12.3YREVR.E1, relator Ana Brito; e Ac RG de 28.10.2019, processo 2360/13.4TABRG-G.G1, relator, Teresa Coimbra, todos disponíveis em www.dgsi.pt.