Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
91/12.1TAGMR.G1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
IRRELEVÂNCIA DA ALTERAÇÃO OPERADA
ARTºS 358º Nº 1 E 1º AL. F) DO CPP
258º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Não fornecendo a lei a definição de alteração não substancial dos factos, o recorte da figura terá de fazer-se, em primeira linha, em função do conceito de alteração substancial estabelecido na alínea f) do artº 1º do CPP.

II) Assim, a «alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação nos limites máximos das sanções aplicáveis».

III) Confrontando os factos descritos na acusação, para que remeteu o despacho de pronúncia e os factos que foram dados como provados, na sentença recorrida, relativos à conduta assumida pelo arguido/recorrente, verificamos não haver alteração de factos, com relevância em termos de poder consubstanciar alteração não substancial de factos que devesse ser comunicada ao arguido

IV) O que sucedeu, como o próprio arguido admite, foi que, na sentença impugnada, não foram dados como provados todos os factos por que o arguido vinha pronunciado e, concretamente, os factos que, em abstrato, seriam suscetíveis de levar a que a conduta do arguido integrasse a prática do crime de violação da obrigação de alimentos, na modalidade típica prevista no nº 4 do artº 250º, do Código Penal.

V) Ora, sendo essa a situação, não havendo, em face da prova produzida, em julgamento, a indiciação de quaisquer factos novos, que não viessem descritos na pronúncia, não teria o tribunal a quo que efetuar a comunicação ao arguido de qualquer alteração dos factos, ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 358º, nº 1, do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 91/12.1TAGMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Guimarães, Juízo Local Criminal, Juiz 2, tendo sido submetido a julgamento o arguido L. M., foi condenado, por acórdão proferido em 03/10/2014, pela prática, na forma continuada, de três crimes de violação da obrigação de alimentos p. e p. pelo artigo 250º, nº. 2, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, por cada um deles e em cúmulo jurídico de tais penas parcelares na pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de €5,00.
Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, que proferiu acórdão, em 25/01/2016, decidindo conceder parcial provimento ao recurso:
- Por padecer a decisão proferida dos vícios constantes das alíneas a) e b) do artigo 410º do Código de Processo Penal
- Consequentemente determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do objeto do processo.
Baixando os autos à 1.ª instância foi realizada audiência de julgamento, sendo proferido novo acórdão, em 02/12/2016, depositado nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(…) decido julgar a acusação procedente, por provada e, consequentemente:
A) Condeno o arguido L. M., como autor material de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º do Código Penal (na pessoa da sua filha Maria), na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros).
B) Condeno o arguido L. M., como autor material de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º do Código Penal (na pessoa da sua filha B. M.), na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros).
C) Condeno o arguido L. M., como autor material de um crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º do Código Penal (na pessoa da sua filha F. M.), na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros).
D) Condeno o arguido L. M., em cúmulo jurídico das penas referidas em A), B) e C), na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros) o que perfaz a quantia de € 1.250,00 (mil, duzentos e cinquenta euros).
E) Julgo improcedente o pedido de indemnização formulado pela demandante M. P. e, consequentemente, absolvo o demandado L. M., da instância.
F) Condeno o arguido L. M. no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
G) Condeno a demandante no pagamento das custas do pedido de indemnização civil, nos termos dos artigos 523.º do CPP.»
Inconformado com o novo acórdão, o arguido dele interpôs recurso para esta Relação, extraindo da respetiva motivação apresentada as seguintes conclusões:

1. Quanto à alteração não substancial dos factos:

1.1. No decurso do julgamento verificou-se uma alteração não substancial dos factos, uma vez que o Tribunal não condenou o arguido pelos factos e crime previstos na acusação, para a qual a decisão de pronúncia remeteu expressamente.
1.2. Deverá assim o arguido ser dessa alteração não substancial informado, sendo-lhe concedido, se o mesmo requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da sua defesa [N.º 1 do art.º 358º do C.P.P.].

2. Quanto à matéria de facto provada:

2.1. Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto nos termos da alínea a) do n.º 2 do art.º 410 do C.P.P., porque o Tribunal só verificou quais os rendimentos do arguido não constatando quais as suas despesas nesse período,
2.2. E, de qualquer forma é evidente e resulta das regras da experiência comum que nenhum cidadão sobreviverá com a quantia de € 237,82 nem com a quantia de € 197,55,
2.3. Já que a atribuição da quantia de € 197,55 como mínimo indispensável sempre pressuporia um suporte familiar de ajuda nas despesas essenciais, o que não se verificou no caso.
Termina o arguido/recorrente, pugnando a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que absolva o arguido.
O recurso foi regularmente admitido.
O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, nos termos constantes de fls. 422 a 428, que aqui se dão por reproduzidos, tendo concluído que a sentença recorrida decidiu corretamente a matéria de facto e de direito ora controvertida, não se mostrando violada qualquer das normas legais, substantiva ou adjetiva, invocadas pelo recorrente que imponha a sua alteração ou revogação, pelo que é infundado o recurso interposto, pugnando para que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Neste Tribunal, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, a fls. 437, aderindo à resposta ao recurso apresentada na 1ª Instância e concluindo no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no nº. 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. Cumpre agora apreciar e decidir:

2 – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, o Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artº. 428º do C.P.P.).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o objeto do recurso (cfr. art.º 412º do C.P.P.), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo arguido/recorrente da motivação do recurso apresentada, nele são suscitadas as seguintes questões:
1ª – Alteração não substancial dos factos descritos na acusação, na vertente da qualificação jurídica – artigo 358º, nºs. 1 e 3, do C.P.P.;
– Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – artigo 410º, nº. 2, al. a), do C.P.P.

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Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor da sentença recorrida, nos segmentos que relevam para esse efeito e que se passam a transcrever:

2.2. Da sentença recorrida

II. Fundamentação de Facto

1. Factos Provados
Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
a) O arguido viveu em união de facto com M. P. durante pelo menos dez anos.
b) Desse relacionamento nasceram as menores Maria, B. M. e F. M., respectivamente, a 14.08.1997, 12.09.2000 e 25.12.2003.
c) No processo de regulação das responsabilidades parentais nº 1077/06.0TBGMR do 2º Juízo Cível deste tribunal, por sentença, datada de 28/3/2006, transitada em julgado, que homologou o respectivo acordo, decidiu-se que o arguido pagaria, a título de alimentos, o montante global de €250,00.
d) Porém, desde Abril de 2010 até à prolação da acusação, o arguido não pagou a prestação de alimentos a que se encontrava adstrito, no montante de €9.000,00 (€250,00x36 prestações), com excepção dos montantes descritos em l) dos factos provados.
e) O arguido pelo menos desde Julho 2011 até Setembro de 2012, exerceu funções na empresa “PM unipessoal, Lda”, auferindo o salário declarado no valor de cerca de €242,50 e €2,00 de subsídio de refeição por cada dia completo de trabalho efectivamente prestado, num total de €264,50 ilíquidos e €237,82 líquidos.
f) Além das funções que exerceu na referida empresa o arguido teve ainda outros vínculos laborais embora sem as respectivas declarações formais aos serviços das finanças, nomeadamente como árbitro de futebol na Associação de Futebol de Braga.
g) A sociedade aludida em e) cessou formalmente funções.
h) Os filhos do arguido residem com a progenitora que exerce a profissão de empregada doméstica desde o ano de 2003, auferindo o salário mínimo nacional.
i) As condições económicas da progenitora das menores não permitem, por si só, fazer face às despesas alimentares, saúde, vestuário e escolares dos menores.
j) Deste modo, desde que o arguido deixou de pagar as prestações alimentícias a que estava adstrito as menores estão em situação de carência.
k) Desde Maio de 2008 foi árbitro de futebol na Associação de Futebol de Braga, mas problemas de saúde em Julho de 2011, cessou funções com a dita associação.
l) Foram descontados ao arguido, do rendimento que auferia pela Associação de Futebol de Braga, com vista ao pagamento das prestações de alimentos: Em 30.04.2010 a quantia de €380,00; em 10.06.2010 a quantia de €116,25; em 22.12.2010 a quantia de €271,00; em 20.04.2011 a quantia de €27,50; em Abril de 2011 a quantia de €332,75; em 6/7/2011 a quantia de €85,50.
m) Agiu livre, deliberada e voluntariamente, com a intenção de violar a obrigação a que está adstrito, estando ciente de que estava em condições de efectuar o pagamento da prestação alimentícia mensal e que tal omissão fazia perigara satisfação das necessidades alimentares das suas filhas, tal como veio a suceder.
n) Sabia o arguido ser a sua conduta proibida e punida por lei.
(Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido)
o) O arguido é biscateiro no conserto de calçado, auferindo desta actividade esporádica, quantia não concretamente apurada mas não superior a €150,00 por mês e vive em casa da progenitora que é própria desta.
p) A progenitora do arguido é reformada.
q) O arguido frequentou a escola até ao 9º ano.
r) Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
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2. Factos Não Provados

Não resultaram provados, com relevância para a decisão a proferir, provados os seguintes factos:
1. Encontrando-se em Março de 2013 em divida o montante de €9.250,00 (€250,00x37 prestações).
2. O arguido auferia de salário na empresa “PM Unipessoal, Lda.”, na realidade de valor não inferior a €475,00.
3. Foi desde Abril de 2010 que o arguido exerceu funções na empresa “PM unipessoal, Lda.”.
4. Após o aludido em g) dos factos provados, o arguido permanece a exercer funções e a auferir o referido salário.
5. A progenitora das menores que exerce a profissão de costureira, auferindo o salário mínimo nacional.
6. Com o aludido em i) dos factos provados a progenitora das menores despende quantia não inferior € 500,00.
7. Por sua vez, o arguido para impedir que as prestações alimentares pudessem ser cobradas coercivamente, passou a não declarar os seus reais rendimentos.
8. Assim, o arguido para assegurar a disponibilidade total dos seus rendimentos, em Abril de 2010 formulou o propósito de não proceder ao pagamento do montante relativo à prestação de alimentos das menores suas filhas, renovando tal desígnio em relação aos meses seguintes, o que se mantêm até à presente data.
9. O arguido foi renovando os seus propósitos, face à dificuldade de localização dos bens e rendimentos de que é titular, tendo agido em relação às posteriores apropriações no quadro do circunstancialismo favorável que rodeou a sua primeira actuação.
10. O arguido agiu com a intenção de se colocar na impossibilidade de não prestar alimentos.
11. Sucede que, devido às suas dificuldades económicas alguns meses o arguido não conseguia pagar a totalidade da prestação mas, outros meses pagou até um valor superior (cfr. doc. a fls. 49 dos presentes autos).
12. Desde Outubro de 2006 a Julho de 2011 o arguido pagou a quantia de e 6.480,00 (cfr. doc. fls. 49), e a quantia devida seria € 8. 000, 00 [8.000,00 - 6.480,00 = 1.520,00}, pelo que durante este período ficou em divida a quantia de € 1.520,00 e, ainda, todas as prestações desde Julho de 2011 até Dezembro de 2013 [ 250,00 x 29 = 7.250,00}, o que perfaz a quantia de € 8.770.00 [7.250,00 + 1.520,00}.
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3. Fundamentação da decisão de facto

A convicção do Tribunal, relativamente à matéria de facto provada e aos factos considerados como não provados, baseou-se na análise cuidada de todos os documentos juntos aos autos e na ponderação adequada da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.
Quanto aos documentos foram relevantes, nomeadamente fls. 20 a 26 (certidão), fls. 48 e 49 (informação), fls. 73 e 74 (informação), fls. 76 (informação), fls. 90 (informação do ISS), fls. 94 a 98 (informação, declarações e recibo), fls. 101 e 102, fls. 127 e 128 (contrato de trabalho), e fls. 129 a 137 (recibos de vencimento),
Nas declarações do arguido que, em suma, confirmou, a falta de pagamento das prestações, sendo que admitiu que os únicos pagamentos foram através de cobrança coerciva.
Também admitiu que foi árbitro de futebol e recebia rendimentos, sendo que em 2011 deixou de exercer porque teve um problema de saúde, e deixou de auferir tal rendimento. Mas que tinha pedido no processo que lhe fosse descontado esse rendimento da arbitragem para pagamento das prestações.
Mais admitiu que recebia, desde 2011, cerca de €242,00 na sociedade “PM unipessoal, Lda.”, mas que tal actividade que aí prestava durou pouco tempo, já que em 2012 a empresa fechou.
Actualmente referiu que presta serviços de consertos de calçado, de forma esporádica numa loja em Riba D’Ave, auferindo quantia variável e não concretamente apurada mas não superior a 150,00 por mês.
Mais relatou a sua situação económica e pessoal.
Mais foram relevantes os depoimentos das testemunhas:
- M. P., a qual prestou um depoimento sincero e verosímil e relatou, em suma, que foram penhorados valores ao rendimento que o arguido auferia na arbitragem – cfr. fls. 76.
O arguido nunca pagou qualquer quantia directamente e crê de sua livre e expressa vontade mas sempre de forma coerciva.
Mais esclareceu que o arguido trabalhava em consertos de sapatos, na Póvoa de Varzim.
Soube, ainda, esclarecer a sua situação económica e pessoal e das menores e das dificuldades porque passa.
- A. P., irmã da assistente, a qual prestou um depoimento sincero e verosímil e relatou, em suma, que dá as refeições às sobrinhas ao fim de semana, para as ajudar.
Sabe que a assistente aufere o salário mínimo nacional.
- A. M., o qual prestou um depoimento sincero e verosímil e relatou, em suma, que dá as refeições às sobrinhas aos fins-de-semana para as ajudar.
- L. C., cunhado do arguido, o qual prestou um depoimento comprometido e parcial, sendo certo que, em suma, relatou que o arguido actualmente não trabalha, vive com a mãe, em casa desta.
Com efeito, a união de facto entre arguido e assistente, foi demonstrada pela admissão do arguido e assistente.
Já os factos os factos dados como provados em b) e c), estão provados por documentos autênticos.
No que respeita à falta de pagamento das prestações de alimentos às menores, é o próprio arguido que confessa que nunca pagou qualquer quantia voluntariamente, esclarecendo, até, que pediu no processo que lhe fossem penhoradas as quantias que auferia como árbitro de futebol, sabendo que lhe foram penhorados diversos montantes a esse título, bem como no subsídio de desemprego.
No que concerne aos rendimentos obtidos pelo arguido no período de Abril de 2010 até à data em que foi deduzida a acusação, conclui-se da prova produzida que, na verdade, o arguido, auferia rendimentos como árbitro de futebol, durante pelo menos parte desse aludido período, bem como auferiu um salário de cerca de €242,50, como sapateiro, tal como confessou e consta do contrato de trabalho e recibos e ainda subsídio de alimentação, pelo menos até Setembro de 2012. Tais factos vieram igualmente a ser confirmados pela testemunha A. S., socia gerente da empresa identificada em e) dos factos provados.
Já no que concerne ao facto de ao arguido terem sido penhorados valores, nomeadamente no rendimento que auferia como árbitro, foi relevante o documento de fls. 48 e 49, que foi confirmado pela assistente, e foi admitido pelo arguido que lhe foram descontadas várias quantias, sendo que ele próprio teria vindo ao processo fazer tal pedido.
No que respeita à situação de carência das menores, não há dúvida da sua verificação. É que a progenitora apenas aufere o salário mínimo nacional, e por isso, necessita de ajuda da irmã e cunhado para alimentar as menores que tomam as refeições aos fins-de-semana em casa destes.
No que respeita aos factos dados como não provados, não foi feita prova da sua ocorrência, quer por ausência de prova, quer pela prova de factualidade diferente, nomeadamente os factos referentes à intenção de se colocar em situação de impossibilidade de prestar alimentos. É que o arguido trabalhou durante tal período e a empresa encerrou, é essa a prova que foi feita, e não escondeu que arbitrava jogos de futebol, tendo-lhe até sido penhoradas quantias. Após o desemprego, apenas ficou demonstrado que o arguido presta serviços como sapateiro de forma esporádica, pelo que, não foi demonstrado que seja por opção que está em tal situação.
Na verdade e não obstante o comportamento do arguido ser censurável, designadamente pelo que de não entregar qualquer quantia que seja às suas filhas tendo em vista o auxilio nas despesas destas, o certo é que não foi possível apurar quanto nós, por um lado, que o arguido se colocou em situação de impossibilidade de prestar alimentos. Por outro lado cremos que, apesar da prova produzida, não se demonstrou que o arguido tem rendimentos (para além dos que se deram como provados) que permitam cumprir, na íntegra, com a prestação de alimentos a que se mostra obrigado.
No que respeita às condições económicas e sociais, o tribunal valorou as declarações do arguido que nos pareceram sinceras e verosímeis, bem como os documentos juntos aos autos e o relatório social junto a fls. 372 e ss..
Quanto aos antecedentes criminais tomou-se em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos.
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III. Fundamentação de Direito

1. Enquadramento jurídico-penal

Vem o arguido acusado da prática de três crimes de violação da obrigação de alimentos, na forma continuada, previstos e punidos pelo artigo 250.º, n.º 4, do Código Penal.
Determina o n.º 1 do artigo 250.º do Código Penal que “quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido com uma pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
O n.º 2 “a prática reiterada do crime referido no número anterior é punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Estabelece o n.º 3 que “quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem auxilio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”.
Dispõe o nº 4 que “quem, com a intenção de não prestar alimentos, se colocar na impossibilidade de o fazer e violar a obrigação a que está sujeito criando perigo previsto no número anterior, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”.
Assim, comete o crime previsto e punível pelo mencionado preceito legal, quem:
a) Estando legalmente obrigado a prestar alimentos;-
b) E em condições de o fazer;
c) Não cumprir a obrigação;
d) Colocando, desse modo, em perigo a satisfação, sem o auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito.
Dos elementos objectivos que integram o tipo de crime em análise decorre, desde logo, estar-se em face de um crime de perigo concreto, ou seja, em que o perigo constitui, ele próprio, o resultado típico da conduta do agente.
No que respeita à obrigação de prestação de alimentos, a respectiva disciplina tem de buscar-se na lei civil, mais precisamente na previsão dos art.ºs 1675º, 1676º, 1775º, nº 2, 1874º, 1880º, 1884º, 2016º a 2018º, todos do Cód. Civil. Pode dizer-se, de um modo geral, que a obrigação de alimentos resulta de uma relação jurídico-familiar, emergente do vínculo matrimonial, ou na sequência da dissolução deste, ou por razões ligadas à filiação e parentesco [neste sentido, J. M. Damião da Cunha, em anotação ao artº 250º do Cód. Penal, “in” Código Penal, Comentário Conimbricense, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 622].
O art.º 2003º do Cód. Civil define o que deve entender-se por alimentos, nestes englobando “tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”. No caso de o alimentando ser menor, a obrigação de alimentos abrange, acrescidamente, “a instrução e educação” [Cfr. nºs 1 e 2].
O art.º 250º do Cód. Penal faz depender a verificação do tipo da existência de uma obrigação legal de alimentos. A legalidade da obrigação afere-se pela existência de norma legal de que emerge a obrigação, independentemente de existir ou não sentença ou decisão judicial que a declare ou que condene na respectiva prestação [neste sentido, vd. Actas de Revisão do Código Penal, 1993, p. 292].
Só a obrigação verdadeiramente voluntária, ou seja, aquela que não tem, de todo em todo, na sua base uma obrigação de natureza legal, está excluída do âmbito de previsão do art.º 250º do Cód. Penal. Não há, assim, dúvida de que os acordos judicialmente homologados que tenham cobertura numa norma legal, de carácter imperativo - como os que respeitam à regulação do exercício do poder paternal [cfr. art.º 1874º do Cód. Civil] - caem na alçada incriminadora da referida norma, verificados, naturalmente, que estejam os demais requisitos de punição [Damião Cunha, ob. cit., p. 626].
Só incorre na prática do crime previsto pelo art.º 250º do Cód. Penal aquele que não presta alimentos, estando em condições de os prestar. O não cumprimento da obrigação pode verificar-se pelo não pagamento dos alimentos, pela simples manutenção de um estado de incapacidade para cumprir - omissio ilicita in causa - ou pela omissão de medidas, por parte do obrigado, através das quais teria possibilidade para pagar - omissio ilicita in omittendo [Damião Cunha, ob. cit., p. 630]. A possibilidade de prestar os alimentos terá que averiguar-se atendendo às circunstâncias do caso e, designadamente, pela ponderação da situação económico-financeira do obrigado.
De acordo com as regras gerais previstas no Código Civil, a obrigação de alimentos cessa, nos termos do artigo 2012.º, quando aquele que a presta não possa continuar a fazê-lo. No entanto, há que ter em atenção que a cessação da obrigação de alimentos deve ser judicialmente declarada. Isto significa, evidentemente, que o elemento típico “em condições de o fazer” impõe ao juiz penal que proceda a uma avaliação autónoma do mesmo, independentemente, da declaração de desnecessidade (que, de resto, conduziria à cessação da obrigação).
Tal como na medida dos alimentos, também na averiguação deste pressuposto típico se deverá remeter para as regras do direito civil, ou seja, para determinação das condições de prestar deve partir-se dos meios de que o alimentante dispõe de facto: rendimentos de bens ou de quaisquer outros proventos, sejam rendimentos de trabalho, pensões sociais ou de outra natureza. Para além disso, devem também considerar-se os meios de que o obrigado poderia dispor, desde que tal se contenha no âmbito daquilo que é exigível: por exemplo, utilizar plenamente a sua capacidade de trabalho, eventualmente reduzir despesas, fazer valer direitos patrimoniais de que disponha face a terceiros, entre outros.
Importa salientar que o juiz deverá comprovar autonomamente esta ausência de condições do obrigado para o período de tempo pelo qual os alimentos são exigidos. A comprovação deve ser feita o mais concretamente possível, de modo a que seja possível o controlo judicial dos fundamentos da decisão. Caberá, por isso, indicar quais os meios de que o obrigado disporia e qual o contributo mínimo que deveria ter efectuado.
Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal (…), UCE, pág. 660 refere que “Não constitui factor suficiente para eximir o obrigado a circunstância de ele ter trabalho precário ou de estar desempregado (…).”
Ora, mesmo tendo em conta que só se pode considerar capaz de prestar alimentos quem não puser em perigo as suas próprias necessidades, o que este tribunal defende, sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana (vide Ac. T.C. nº 394/2014, D.R., 2ª, 5/6/2014), o certo é que o valor do RSI para os anos de 2009 a 2013, foi de €178,15, conforme Lei n.º 53-B/2006, de 29 de dezembro (IAS); Portaria n.º 9/2008, de 3 de janeiro (IAS/2008); portaria n.º 1514/2008, de 24 de dezembro (IAS/2009); Decreto-Lei n.º 323/2009, de 24 de dezembro (IAS/2010); Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (OE2011); Lei n.º 64-B/2011 (OE2012).
Acresce que mesmo o art.º 738º, nº 4 do C.P.C., com a redacção dada pela Lei nº 41/2013, de 26/06, considera como mínimo impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, ou seja, €197,55.
Neste jaez, o arguido estava capaz de cumprir, ainda que parcialmente a sua obrigação e não o fez, durante, pelo menos, o período em que esteve a trabalhar na sociedade “PM Unipessoal, Lda.”.
Já acima se deixou dito que o resultado típico da conduta é a colocação em perigo das necessidades fundamentais do alimentando. Quanto a este propósito, anota, com propriedade, Damião Cunha [ob. cit., p. 631] que o conceito de necessidades fundamentais não abrange, unicamente, o que é estritamente necessário, mas sim o que está legalmente determinado quanto à medida dos alimentos. A circunstância de o perigo ser afastado pelo auxílio de terceiros não obsta à aplicação do tipo legal. Decisivo é que se verifique uma conexão entre o auxílio prestado por terceiros e a inadimplemência.
No que respeita à tipicidade subjectiva, o crime em questão reveste natureza dolosa, sendo compatível com qualquer das formas que o dolo pode revestir - directo, necessário ou eventual [artº 14º do Cód. Penal].
Isto posto e vertendo à espécie em sujeito, resultou como demonstrado que o arguido, progenitor das menores Maria, B. M. e F. M., se encontra obrigado, por sentença homologatória, transitada em julgado, a contribuir para o sustento das mesmas, com a quantia mensal global de € 250,00 euros. Provou-se, também, que o arguido, a partir de Abril de 2010, não mais cumpriu tal obrigação, encontrando-se em dívida, até à presente data, a quantia global de € 7.787,00.
Provou-se, também, que o arguido pelo menos desde Julho 2011 até Setembro de 2012, exerceu funções na empresa “PM unipessoal, Lda”, auferindo o salário declarado no valor de cerca de €242,50 e €2,00 de subsídio de refeição por cada dia completo de trabalho efectivamente prestado, num total de €264,50 ilíquidos e €237,82 líquidos, sendo que, no mesmo período e por virtude da situação de incumprimento por banda do arguido, as menores ficaram na dependência exclusiva da sua progenitora, que, para fazer face às despesas de saúde, alimentação e vestuário das menores, e na insuficiência para o efeito do montante por si auferido, se socorreu da ajuda prestada por terceiros.
Ora, em face da apurada factualidade, não temos dúvidas em considerar que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos objectivos do ilícito penal pelo qual foi acusado. Com efeito, o arguido estando obrigado a prestar os alimentos aos menores, seus filhos, e em condições também de o fazer (pelo menos em parte e durante algum tempo) não cumpriu com tal obrigação, colocando, por via do seu procedimento, em perigo a satisfação, sem o auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais dos menores.
Por outro lado, demonstrou-se, ainda, que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo estar obrigado a prestar os alimentos e que, através da não prestação dos mesmos, colocava, como efectivamente colocou, em perigo a satisfação das necessidades vitais dos menores, sabendo, também, ser o seu comportamento proibido e punido por lei.
Temos, pois, que o arguido agiu dolosamente, na modalidade de dolo directo.
Em suma, o arguido preencheu, com a sua apurada conduta, os elementos objectivos e subjectivo típicos do crime previsto no art.º 250.º n.º 1 do CP, sendo que, da factualidade demonstrada, não resulta concorrer qualquer circunstância passível de excluir a ilicitude dos factos ou a culpa do arguido.
Finalmente, importa ainda salientar que protegendo o crime de violação da obrigação de alimentos, em primeira linha, bens de natureza eminentemente pessoal, ou seja, visando a protecção do titular do direito a alimentos face ao perigo de não satisfação das necessidades fundamentais, traduzidas no direito a alimentos, no direito à saúde, no direito à educação, tal significa que o agente comete tantos crimes quantas as pessoas ofendidas, ainda que haja uma só resolução criminosa. Efectivamente, “tal como no crime de homicídio e de ofensas à integridade física, os bens jurídicos protegidos são, em última instância, a própria vida, a integridade física e a saúde dos alimentados, ou seja, bens eminentemente pessoais. Daí que, considerando-se a provada única resolução do agente, estejamos, então, perante um caso de concurso ideal homogéneo que, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal urge tratar como concurso real” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto 21 de Abril de 2004, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, o não cumprimento da obrigação alimentar perante cada um dos filhos que a ela têm direito, verificando-se estes pressupostos, ou seja, colocando em perigo as necessidades fundamentais de cada um dos filhos, viola o interesse tutelado pela norma, tantas vezes quantos os filhos nestas condições de dependência. Aliás, quando se exige, para preenchimento do tipo, que o não cumprimento da obrigação ponha em perigo as necessidades fundamentais de quem tem direito aos alimentos, parece estar a enfatizar-se a incidência pessoal do bem jurídico tutelado (neste sentido decidiu, recentemente, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Janeiro de 2006, processo n.º 0514505, disponível em www.dgsi.pt).
Da prova produzida em sede de audiência de julgamento, resultou claramente demonstrado que o arguido deixou de pagar a pensão de alimentos devida às suas três filhas, a partir do momento em que ficou acordado no processo de regulação das responsabilidades parentais, mas ao que aqui interessa desde Abril de 2010.
Mais resultou que o arguido estava em condições de prestar os alimentos a que estava obrigado, conforme acima se disse quer porque mesmo assegurado o valor do mínimo de sobrevivência €177,15 (RSI), ainda, assim o arguido dispôs de rendimento sobrante para pagar, ainda, que parcialmente tais prestações, do valor do seu salário, quer do rendimento que recebia como árbitro de futebol.
Mas já não foi demonstrado que o arguido se tivesse colocado na impossibilidade de prestar os alimentos, faltando, assim, um elemento típico, para se subsumir a conduta no n.º 4 do tipo-de-ilícito em apreço.
Contudo, da factualidade apurada, verifica-se uma reiteração da conduta tida ao longo de vários anos, pelo que a mesma se subsume no n.º 2 do art.º 250.º do C.P.
*
Por fim, importa analisar a imputação ao arguido da figura do crime continuado, p. e p. pelo artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal ou se se verifica o concurso efectivo.
Dispõe o artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal que “[c]onstitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”.
Como a este propósito doutrina Eduardo Correia, o “pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de forma e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao arguido que se comporte de maneira diferente (...)”.
Por seu turno, a figura do crime continuado, consagrada no nº 2, do artigo 30º do Código Penal, está dependente da verificação cumulativa de determinados pressupostos:
a) realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);
b) homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
c) unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção) em que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada”;
d) lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado);
e) persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Abril de 2001, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, da análise dos pressupostos do crime continuado resulta que, na vertente objectiva, se exige uma homogeneidade de comportamento total e, na vertente subjectiva, se exige uma pluralidade de resoluções criminosas, de tal forma que a nova resolução renove a anterior, “de modo que todas elas se conservem dentro de uma «linha psicológica continuada” (cfr. JORGE FIGUEIREDO DIAS in “Direito Penal – Sumários e notas das Lições do Professor Figueiredo Dias ao 1.º Ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de 1975-1976”, p. 127, Coimbra Editora, 1976).
Da factualidade dada como provada, não resultam preenchidos os pressupostos do crime continuado, entendendo o tribunal que o arguido tomou apenas uma resolução criminosa de não pagar qualquer prestação voluntariamente. Com efeito, nunca pagou qualquer prestação desde que assumiu a obrigação.
(…).»

2.3. Do conhecimento do recurso

1ª – Alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia e da respetiva qualificação jurídica – artigo 358º, nºs. 1 e 3, do C.P.P.;
Sustenta o arguido/recorrente que o tribunal a quo, apesar de verificar não ter resultado provada a matéria de facto suscetível de poder preencher o crime previsto no nº. 4 do artigo 250º do Código Penal, por que o arguido vinha pronunciado, condenou-o pelo crime previsto no nº. 2 do artigo 250º do Código Penal, sem que lhe comunicasse a alteração, como se impunha que o fizesse, ao abrigo do disposto no artigo 358º do C.P.P., concedendo-lhe prazo para preparar a sua defesa nos termos do nº. 1 do mesmo preceito legal.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não se ter verificado qualquer alteração substancial dos factos descritos na pronúncia, que devesse ser comunicada ao arguido, sendo que os factos dados como provados na sentença recorrida e por que cuja prática o arguido/recorrente foi condenado, estavam descritos na acusação, para que remeteu o despacho de pronuncia (sucedendo apenas que não foram dados como provados alguns dos factos por que o arguido vinha pronunciado) e em relação à qualificação jurídica dos factos, também não ocorreu alteração que impusesse que se procedesse à comunicação nos termos pretendidos pelo arguido/recorrente, na medida em que, sendo que tratando-se do crime de violação de obrigação de alimentos previsto no artigo 250º do Código Penal, a modalidade típica prevista no nº 2, por que o arguido foi condenado, na sentença recorrida, a moldura penal abstrata que lhe corresponde é inferior à moldura penal abstrata aplicável à modalidade típica do crime prevista no nº. 4 e, por outro lado, constata-se que no despacho de pronúncia a conduta do arguido foi juridicamente enquadrada no artigo 250º do Código Penal, sem que concretizasse qualquer dos seus números.
Considera, assim, o Ministério Público que, tendo sido dada a conhecer ao arguido, no despacho de pronúncia, todos os factos cuja prática lhe era imputada e a norma legal incriminatória, foi possibilitada toda a defesa ao arguido, não havendo, nesta situação, qualquer alteração que determinasse a efetivação da comunicação ao arguido, nos termos do disposto no artigo 358º, nºs. 1 e 3, do C.P.P.
Vejamos:
A definição de “alteração não substancial de factos” mostra-se consignada na al. f) do artigo 1º do C.P.P., como sendo aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Não fornecendo a lei a definição de alteração não substancial dos factos, o recorte da figura terá de fazer-se, em primeira linha, em função do conceito de alteração substancial dos factos, que se acaba de enunciar.
Assim a «alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação nos limites máximos das sanções aplicáveis». - Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016 – 2ª edição, pág. 1081.
Mas o que é o facto? E em que situação se deve considerar que há alteração de factos, relevante, para efeitos de ser exigido que se proceda à respetiva comunicação, nos termos do disposto no artigo 358º, nº. 1 ou no artigo 359º?
A posição que vem sendo maioritariamente acolhida na doutrina e na jurisprudência, é a de que, neste domínio, o facto deve ser entendido como um acontecimento histórico, um evento naturalístico, um “pedaço de vida” a ser analisado no processo. – cfr., entre outros, Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 2ª edição, pág. 93 e Ac. da R.P.de 06/10/2010, proc. 403/04.1GAMCN-A.P1 e Ac. da RC de 11/09/2013, proc. 339/11.0JALRA.C1
Confrontando os factos descritos na acusação, para que remeteu o despacho de pronúncia e os factos que foram dados como provados, na sentença recorrida, relativos à conduta assumida pelo arguido/recorrente, verificamos não haver alteração de factos, com relevância em termos de poder consubstanciar alteração não substancial de factos, que devesse ser comunicada ao arguido/recorrente.
O que sucedeu, como o próprio arguido/recorrente admite, foi que, na sentença recorrida, não foram dados como provados todos os factos por que o arguido/recorrente vinha pronunciado e, concretamente, os factos que, em abstrato, seriam suscetíveis de levar a que a conduta do arguido integrasse a prática do crime de violação da obrigação de alimentos, na modalidade típica prevista no nº. 4 do artigo 250º do Código Penal.
Ora, sendo essa a situação, não havendo, em face da prova produzida, na audiência de julgamento, a indiciação de quaisquer factos novos, que não viessem descritos na pronúncia, não teria o tribunal a quo que efetuar a comunicação ao arguido de qualquer alteração dos factos, ao abrigo do disposto no nº. 1 do artigo 358º, nº. 1, do C.P.P.
E quanto à qualificação jurídica dos factos, ter-se-á verificado alteração, que impusesse que se procedesse à respetiva comunicação, nos termos previstos no nº. 3 do artigo 358º do C.P.P.?
Não hesitamos em afirmar que a enunciada questão, merece resposta negativa.
Entendemos assistir inteira razão ao Ministério Público, na argumentação expendida no sentido de fundamentar a posição assumida de que não estamos perante a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia.
Na verdade, sendo o arguido, ora recorrente, pronunciado «pela prática, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de violação da obrigação de alimentos, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 250º, 30º, nº. 2 e 14º, nº. 1, do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 2003º a 2009º do Código Civil, com os fundamentos de factos e de direito constantes da acusação pública deduzida a fls. 103e seguintes, para os quais, nos termos do disposto no artº. 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, expressamente se remete», veio a ser condenado, na sentença recorrida, pela prática, em autoria material, de três crimes de violação da obrigação de alimentos p. e p. pelo nº. 2 do artigo 250º do Código Penal.
Estando em causa o mesmo tipo de crime, tratando-se do crime de violação da obrigação de alimentos previsto no artigo 250º do Código Penal, sendo esta norma referida no despacho de pronúncia, sem que se indicasse qual o respetivo número (diversamente do que aconteceu na acusação, em que a imputação ao arguido/recorrente dos crimes indicados o foram na modalidade típica prevista no nº. 4 do enunciado artigo) e tendo o arguido/recorrente sido condenado, na sentença recorrida, pela prática do crime de violação da obrigação de alimentos, na modalidade típica prevista no nº. 2 do artigo 250º, sendo esta menos grave do que a prevista no nº. 4, tendo em conta a moldura penal abstrata que lhe corresponde, não tinha o tribunal a quo que proceder à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos, para eventual preparação da defesa, nos termos previstos nos nºs. 1 e 3 do artigo 358º do C.P.P.
Improcede, por conseguinte, nesta vertente, o recurso.

Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – artigo 410º, nº. 2, al. a), do C.P.P.
Defende o arguido/recorrente que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por que o tribunal a quo só verificou quais os rendimentos do arguido não apurando quais as suas despesas no período em questão. Acresce que é evidente e resulta das regras da experiência comum que nenhum cidadão sobreviverá com a quantia de €283,82, nem com a quantia de €197,55, sendo que esta sempre pressuporia um suporte familiar de ajuda nas despesas essenciais, o que não se verificou.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não se verificar o enunciado vício invocado pelo recorrente, sendo que estava na sua disponibilidade fazer provada quanto às despesas que teve se suportar durante o período e que não contribuiu com qualquer quantia para o sustento das filhas (à exceção dos montantes obtidos coercivamente pelo Tribunal, através de desconto direto nos rendimentos auferidos pelo mesmo), além de que esse elemento é irrelevante para o preenchimento do tipo legal de crime, posto que o arguido não comprou, nem sequer alegou que tivesse problemas ou despesas de saúde (ou outras de igual importância), que o impossibilitasse de pagar os alimentos às crianças (o que poderia, em abstrato, até configurar estado de necessidade desculpante – artigo 35º do Código Penal), tendo o arguido auferido, durante o dito período, os rendimentos que resultaram apurados e optando por não proceder ao pagamento de qualquer quantia, a título de alimentos, às filhas.
Vejamos:
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., constituindo um defeito estrutural da decisão, terá de resultar do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos estranhos ao texto da sentença para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer elementos existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
O indicado vício ocorre quando os factos provados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou de dispensa da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda, porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência. – cfr., entre outros, Ac. da RC de 05/11/2008, proferido no proc. 268/08.4GELSB.C1, acessível no endereço www.dgsi.pt.
A verificação do enunciado vício supõe, por conseguinte, que os factos provados na sentença não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.
Revertendo ao caso dos autos, embora não o refira expressamente, decorre da motivação do recurso, que o arguido/recorrente contextualiza o aludido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na sentença recorrida, com referência ao elemento constitutivo do tipo objetivo do crime de violação da obrigação de alimentos, das condições de prestar os alimentos ou da capacidade para cumprir a obrigação, por parte do arguido, considerando que não tendo o tribunal a quo averiguado quais as suas despesas no período em que se verificou o não pagamento da prestação de alimentos, não dispunha de elementos para que pudesse concluir pela verificação daquele elemento do tipo objetivo do crime imputado ao arguido/recorrente.
Por economia de razões, dão-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas na sentença recorrida acerca do mencionado elemento do tipo objetivo do crime de violação da obrigação de elementos.
Se é certo que o juiz penal deverá averiguar autonomamente se o obrigado a prestar alimentos dispunha de condições de facto para cumprir essa obrigação, durante o período de tempo em que não o fez, cabendo-lhe indicar os meios de que o obrigado disporia e qual o contributo mínimo que deveria ter efetuado (cfr. J.M. Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 2001, pág. 630), entrando em linha de conta, nesse apuramento, por um lado, com os rendimentos ou proventos auferidos ou de poderia dispor e, por outro lado, com as despesas correntes que qualquer pessoa terá de suportar para assegurar as necessidades inerentes à sua subsistência (posto quem como se faz notar na sentença recorrida, só se pode considerar ter capacidade para prestar alimentos quem não puser em perigo essas necessidades próprias), sendo que, no caso de existirem outras despesas para além daquelas, que devessem ser consideradas, tais como despesas de saúde, não tendo o arguido alegado o respetivo montante suportado, nem resultando o mesmo apurada, na indagação feita pelo tribunal, acerca das condições pessoais e situação económica do arguido, designadamente, mediante a realização de relatório social, entendemos não existir qualquer omissão do dever de averiguação da matéria relevante para a decisão da casa, por parte do tribunal a quo.
E lida a sentença recorrida, constata-se que a Srª. Juiz a quo fundamentou devidamente o juízo formulado, no sentido de que (tendo em conta os rendimentos auferidos pelo arguido/recorrente, durante, pelo menos, o período em que esteve a trabalhar na sociedade “PM, Unipessoal, Ld.ª”, em que não pagou qualquer quantia a título de alimentos às suas três filhas, e considerando o montante que seria necessário para assegurar a sua subsistência, considerando-se o valor do RSI para os anos de 2009 a 2013 e o valor da pensão social do regime não contributivo e tendo resultado provado que habita na casa da progenitora), o arguido/recorrente dispunha de condições para cumprir, ainda que, parcialmente, a obrigação de alimentos a que estava adstrito.
Constitui entendimento pacífico na jurisprudência dos nossos Tribunais, designadamente, do Tribunal Constitucional, conforme se evidencia na sentença recorrida que se revela capaz de prestar alimentos quem não puser em perigo as suas próprias necessidades.
Merece-nos inteira concordância o entendimento perfilhado no Ac. da RL de 07/10/2008, proferido no processo 4342/2008-5, acessível no endereço www.dgsi.pt, no sentido de que «as possibilidades dos pais para alimentarem os seus filhos, por modestas que sejam, partirão sempre de um patamar acima de zero, competindo-lhes a natural obrigação de tudo fazerem para garantir aos mesmos o máximo que estiver ao seu alcance, ainda que isso se possa vir a traduzir na partilha da sua modesta condição socioeconómica.» (…) «nos ganhos auferidos, ainda que parcos, com a satisfação das necessidades dos menores».
Nestes termos, perante a matéria factual que foi dada como provada na sentença recorrida, concluindo-se que os rendimentos auferidos pelo arguido/recorrente, durante período em que não pagou a prestação de alimentos a cada uma das suas três filhas e a que estava obrigado, lhe permitiam, sem que pudesse em perigo as necessidades inerentes à sua própria subsistência, pagar, ainda que parcialmente, aquela prestação, o que o tribunal a quo fundamentou devidamente, entendemos ser manifesto e isento de dúvida que a sentença sob recurso não enferma do apontado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Improcede, por conseguinte, também, nesta parte, o recurso.

3 – DISPOSITIVO

Nestes termos e pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s (arts. 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Notifique.

Guimarães, 20 de novembro de 2017