Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
77/07.8TAPTB.G2
Relator: MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: VIOLAÇÃO
MENOR
COACÇÃO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ELEMENTOS TÍPICOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) Não se mostrando provado que o arguido procedeu à introdução – ainda que incompleta – do seu pénis na vagina da menor, afastada se mostra a possibilidade de a sua conduta poder ser enquadrada como um crime de violação, já que um dos elementos típicos deste ilícito é, precisamente, a ocorrência de cópula, sendo certo que a sua verificação pressupõe, precisamente, tal mencionada penetração.
II) Por outro lado, se no crime de abuso sexual o menor é “persuadido” a sofrer o acto sexual de relevo, nos crimes de coacção sexual existe algo mais que tal mera persuasão, designadamente o recurso a uma supremacia física que, de facto, condiciona a submissão da vítima aos desejos do agressor.
III) E esta supremacia física resulta flagrante, no caso presente, pela enorme diferença etária existente entre o arguido e a menor (esta última, uma criança impúbere de 12 anos e o primeiro, um homem adulto de 67 anos), que determina uma forçosa ascendência corporal do primeiro, agravada ainda por uma efectiva impossibilidade de resistência por parte da ofendida, a partir do momento em que a menor é posta dentro de uma viatura e o arguido se põe em cima dela.
III) Esta forma de actuação do arguido integra, assim, os elementos tipificados no crime de coacção sexual pelo que, verificando-se todos os seus demais elementos constitutivos, se conclui dever ser o arguido punido por este ilícito.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 2ª secção do Tribunal da Relação de Guimarães
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I – relatório
1. Por acórdão de 14 de Janeiro de 2010, foi o arguido JOSÉ L... condenado como autor material de um crime de violação agravada, previsto e punível pelos artigos 164°, n° 1 e 177.° n° 4, do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão,
2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, apresentando, em súmula, as seguintes razões de discórdia:
a) Entende que toda a matéria de facto dada como assente deve ser dada como não provada, por ter ocorrido erro de julgamento;
b) Considera ainda violado o princípio “in dubio pro reo”,
c) Subsidiariamente, defende que a sua actuação apenas poderia configurar a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172° n° 2 do C. Penal na redacção à data da prática dos factos.
Termina pedindo que a sentença recorrida seja revogada e o arguido absolvido ou, subsidiariamente, que seja condenado por crime de abuso sexual de criança, em pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução.
3. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.
4. O recurso foi admitido.
5. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
6. Foi cumprido o disposto no artº 417 nº2 do C.P.Penal.
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II – questões a decidir.
A. A matéria de facto constante na decisão proferida pelo tribunal “a quo” deve ser alterada, por ter ocorrido erro de julgamento?
B. O arguido deve ser absolvido ou alterada a qualificação jurídica do ilícito pelo qual foi condenado?
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III – fundamentação.
pontos prévios.
1. No seu recurso, para além das duas grandes questões acima enunciadas, o recorrente refere ainda outros dois pontos, a saber:
a) Insurge-se quanto à forma como decorreu o interrogatório da vítima, por a actuação do tribunal "a quo" durante a audiência de julgamento e, salvo o devido respeito, ter demonstrado alguma arbitrariedade,
b) Considera que o tribunal “a quo” não cumpriu o anteriormente determinado pelo T. R. Guimarães pois, apesar dessa Douta Sentença ter sido alterada continua sem indicar qual o raciocínio seguido para concluir, sem qualquer dúvida razoável, que existiu penetração e desfloramento. O Tribunal "a quo" não esclareceu qual o raciocínio por ele seguido para concluir como concluiu permitindo ao Recorrente e ao Tribunal saber se esse raciocínio é ou não lógico e de acordo com as regras da experiência comum. Pelo que apesar de se levar em devida nota o reparo efectuado no Douto Acórdão dessa Relação impõem-se as mesmas conclusões.
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2. Convirá começar por esclarecer que foi inicialmente proferido acórdão pelo tribunal “a quo”, em 5 de Fevereiro de 2009, do qual foi interposto recurso.
Por acórdão proferido por este T. R. Guimarães foi determinada a anulação de tal acórdão, “para que o tribunal reformule a decisão da matéria de facto, completando-a com a indicação clara da prova que lhe permitiu dar como provados os factos apontados e fazendo um completo e explícito exame crítico das provas ou, caso entenda necessário, a realização de novo julgamento”.
É dentro deste enquadramento que é proferido o acórdão ora alvo de recurso, tendo o tribunal “a quo” entendido ser desnecessária a realização de novo julgamento e procedendo à reformulação do exame crítico das provas.
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3. Apreciemos então os dois pontos prévios acima enunciados.
a) No que se reporta ao primeiro, cumprirá esclarecer que a questão que o recorrente agora suscita se mostra decidida pelo anterior acórdão do T.R.Guimarães, pois já então havia sido arguida a ocorrência da eventual violação do preceituado no artº 138 nº2 do C.Penal.
Aí se diz (no acórdão do TRG), após audição do depoimento da menor, que se não mostra ocorrer violação de tal princípio, pois que o interrogatório realizado não distorceu a memória e a percepção dos factos.
Ora, uma vez que não houve lugar a qualquer nova produção de prova – designadamente, a nova audição da mencionada testemunha – há que concluir que esta questão se mostra definitivamente decidida por tal aresto, face à força do caso julgado formal, razão pela qual não poderia ter sido de novo suscitada, no presente recurso e, consequentemente, sobre a mesma se não pode já este tribunal pronunciar, por se mostrar, nesta parte, exaurido o poder jurisdicional.
b) No que se reporta à outra crítica acima indicada, que o recorrente aponta à decisão, caberá esclarecer que, embora à primeira vista, pareça estar a querer arguir a nulidade prevista no artº 379 nº1 al. a) do C.P.Penal, a verdade é que assim não é.
De facto, embora o recorrente afirme que o tribunal “a quo” continua sem indicar qual o raciocínio seguido para concluir, sem qualquer dúvida razoável, que existiu penetração e desfloramento. O Tribunal "a quo" não esclareceu qual o raciocínio por ele seguido para concluir como concluiu permitindo ao Recorrente e ao Tribunal saber se esse raciocínio é ou não lógico e de acordo com as regras da experiência comum, as razões em que funda essa sua conclusão baseiam-se não na imperceptibilidade ou ausência de justificação fundamentória, mas sim na discórdia quanto às razões que o tribunal apresenta para concluir como conclui.
Assim sendo, o que está aqui em questão não é, propriamente, a ocorrência de uma nulidade (note-se, aliás, que no recurso não é sequer enquadrada juridicamente tal questão com apelo ao vertido no artº 379 do C.P.Penal), mas sim o diverso entendimento do recorrente, face ao tribunal “a quo”, quanto à valoração probatória realizada.
E se assim é, essa questão põe-se em sede do disposto no artº 412 nº3 do C.P.Penal, pelo que deverá ser apreciada no corpo do presente recurso.
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A. A matéria de facto constante na decisão proferida pelo tribunal “a quo” deve ser alterada, por ter ocorrido erro de julgamento?
1. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo tribunal “a quo”:
O arguido, embora resida habitualmente na região de Lisboa, desloca-se amiúde a Ponte da Barca, mais concretamente à freguesia de C..., lugar da T..., donde é natural e possui casa, e onde é apelidado de "Carlinhos".
No dia 8 de Abril de 2007, domingo de Páscoa, e com o pretexto de lhe pretender oferecer uma bicicleta, o arguido chamou A... Sousa, nascida a 13 de Julho de 1994, ao interior de uma garagem de que é proprietário, a cerca de 200 m da sua casa.
Uma vez lograda a presença da menor na garagem, o arguido fechou a porta desta, despiu a menor e deitou-a nos bancos (que baixou para o efeito) de uma viatura automóvel que aí se encontrava (um Fiat Panda branco, de matrícula 22-89-...), introduzindo-lhe em seguida o pénis erecto na vagina, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, desflorando-a sexualmente.
Para conseguir o silêncio da menor, e sabendo que esta era oriunda de uma família economicamente carenciada e ansiava pelos mesmos, o arguido presenteou-a com uma bicicleta, um telemóvel e, pelo menos duas vezes, carregamentos deste (de € 5,00 cada).
O arguido sabia a idade de A... Sousa e, ao manter com ela relações de cópula completa, fê-lo com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que, ao assim actuar, o fazia contra a vontade daquela.
Mais sabia o arguido, ao fechar a menor consigo na garagem, despindo-a, e servindo-se do ascendente que mantinha sobre a mesma, pelo atraso cognitivo e imaturidade da menor e pela disparidade de idades entre os dois, para que não revelasse o sucedido, a constrangia, contra a sua vontade, a manter consigo relação de cópula.
O arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei.
O arguido aufere de reforma mensal € 609,00, e vive sozinho, em casa própria; não tem antecedentes criminais e é bem visto no seu meio social.
A família da ofendida, nomeadamente a mãe e a avó, é conhecida do arguido há décadas. Antes da data dos factos, a mãe da ofendida perguntou a uma irmã do arguido quando vinha este, dizendo que ele tinha prometido dar uma bicicleta à menor A....
O Tribunal fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
Perante a negação do arguido, a convicção do tribunal assentou na análise crítica do conjunto dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.
Foi especialmente impressivo o da menor A... Sousa: apesar do seu défice cognitivo (corroborado pelo relatório de fls. 109 a 112 e pelo depoimento da psicóloga que o elaborou, B... Miquelino), foi absolutamente clara quanto ao episódio de 8 de Abril de 2007, descrevendo-o com o embaraço próprio da idade, da sua condição pessoal e de quem de facto o viveu, e credível nos termos empregues, adequados ao seu desenvolvimento e ao seu meio social. Quanto à existência de cópula, a menor referiu, nomeadamente, que tanto ela como o arguido se encontravam sem calças nem cuecas, que o arguido lhe meteu o pénis na vagina, que com ele fez movimentos "para cima e para baixo", que o arguido deitou pelo pénis algo parecido com água quente e que a menor sangrou após o acto; referiu ainda que "mais ninguém lhe tinha feito uma coisa destas".
Foram ainda relevantes os depoimentos de Maria F... (mãe de acolhimento da menor desde Julho de 2007), Fátima C... (socióloga da Comissão de Protecção de Menores que acompanhou o caso desde o início, e a quem a menor, por ter vergonha de o dizer, escreveu, reportando-se à actuação do arguido, o verbo "pinar", termo popular que qualquer dicionário define como "praticar o coito"), da aludida psicóloga e da avó da menor, P... Araújo, com quem a A... vivia à data dos factos (e que referiu, no seu discurso simples mas coerente, que a neta "não sabia o que era o mundo"): todas realçaram a circunstância de a menor narrar o sucedido sempre da mesma forma, referindo os efeitos que nela teve a actuação do arguido. Acresce que a psicóloga B... Miquelino esclareceu que a narração feita pela menor no fim das primeiras consultas passou o seu crivo de credibilidade, em relação à forma como inicialmente a menor relatou os factos, e que os pormenores fornecidos pela A... eram próprios de alguém que tinha vivido aquela situação, não bastando que a ela tivesse assistido com terceiros.
Porque existindo escassa relação afectiva entre mãe e filha, em menor grau foi valorado o depoimento, atabalhoado e fragmentário, de L... Sousa, mãe de A....
Serviram ainda a certidão de nascimento da menor (fls. 13), a perícia médico-legal de fls. 19 a 24 (que, apesar de não poder concluir pela existência de abuso, não o exclui, referindo expressamente que, num grande número de situações similares, não resultam vestígios) e a reportagem fotográfica de fls. 43 a 47 (relativa à garagem em questão).
Para as condições pessoais do arguido, valeram as declarações do próprio; no que respeita ao comportamento social do arguido, serviram os depoimentos das testemunhas por ele arroladas, seus familiares (M...Lobo, ME... Lobo e R... Pontes, esta última a irmã do arguido referida na parte final da matéria provada), seus amigos de longa data (José S..., Arnaldo P... e M... Rocha) e antigas empregadas da casa dos pais do arguido (M... Costa e M... Gomes).
Serviu ainda o certificado de registo criminal de fls. 278.
Não se produziu prova quanto à restante matéria da pronúncia (episódios entre Fevereiro e Maio de 2007), já que a menor não os narrou de forma coerente (não os situando no tempo ou no espaço) e mais nenhum elemento foi carreado para os autos a este propósito.
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2. O recorrente pretende que se proceda a uma reapreciação da matéria de facto dada como provada pela primeira instância o que, nos termos propostos no seu recurso, será realizado nos termos do disposto no artº412 nº3 do C.P.Penal.
Diz o recorrente o seguinte, a este propósito, nas suas conclusões:
1) Decorre do depoimento das testemunhas Maria T..., Maria E..., Maria C... e R... Maria que o ora recorrente apenas se desloca a C... - Ponte da Barca, na Páscoa, Natal e Vindimas;
2) Por isso, só deveriam ser consideradas provadas as deslocações nestes três períodos do ano;
3) Não resulta da prova produzida que o arguido tivesse chamado à garagem a menor A..., pelo que, deve este facto ser julgado não provado;
4) É materialmente impossível o arguido ter baixado os bancos do Fiat Panda que se encontrava na garagem, já que os mesmos não dispõem desse dispositivo, pelo que deve esse facto ser julgado não provado.
5) Não deve ser dado como provado que o arguido tenha introduzido o pénis e muito menos erecto na vagina da menor, já que este facto decorre da interpretação, na opinião do recorrente, abusiva do tribunal, da frase "coisou o coiso". - depoimento da menor, tempo 6'58.
6) A menor nunca no seu depoimento refere erecção ou "dureza" do pénis, pelo que este também decorre do "modus" de apreciação da prova do Tribunal "a quo" pelo que deve ser considerado não provado.
8) Não decorre, quer da prova testemunhal quer da prova pericial que a menor tenha sido desflorada (relatório médico-legal de fls. 19/c) pelo que este facto deve ser considerado não provado.
9) No entanto, se V.a Ex.as, Venerandos Desembargadores assim o entenderem, proceda-se a um novo exame de medicina legal na vertente ginecológica, para se apurar se de facto houve ou não desfloramento da menor.
10) Resultou apenas provado dos autos que o arguido com o conhecimento e consentimento quer da mãe quer da avó ofereceu uma bicicleta usada e um telemóvel à menor;
11) Os objectivos, com que o fez, são pura especulação da sentença recorrida e sem suporte material pelos que tais considerações devem ser tidas por não escritas.
12) Do relatório de Busca e Apreensão elaborado pela Policia Judiciária resultou provado que no interior da viatura não foram encontrados vestígios biológicos.
13) Para uma cópula completa é necessário haver "imissio seminis". E,
14) No caso da menor rompimento do hímen ou pelo menos algumas sequelas físicas, na área peri-genital;
15) O relatório médico-legal de fls. 19/c não refere quaisquer dessas situações.
16) Assim, deve ser dado como não provado que o arguido tenha mantido com a menor relação de cópula completa.
17) Não resulta provado que o arguido tenha exercido qualquer violência física sobre a menor, único facto que releva como ensina o Professor Figueiredo Dias para a existência do crime de violação.
18) Nem resulta provado que o arguido tenha colocado a menor inconsciente ou na impossibilidade de resistir ao acto, já que,
19) Não resultou provado que lhe tivesse administrado substâncias psicotrópicas, estupefacientes, bebidas alcoólicas nem recorrido a actos de hipnose ou processos motivadores da quebra de sentidos da falta de percepção dos actos em que se viu envolvida.
20) Não poderia pois o arguido, face à prova dos autos ter cometido um crime de violação!
21) Não poderia o arguido face ao plasmado no artigo 164.° do Código Penal e a interpretação que dele se deverá fazer, ser condenado pelo crime contido.
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3. A reapreciação pedida far-se-á sobre os assinalados e concretizados pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente.
Convirá esclarecer previamente quais são os poderes de reapreciação de matéria de facto, pela Relação, os seus limites e os seus condicionalismos.
Em primeiro lugar convém frisar que este poder reapreciativo da 2ª instância não é equivalente ao poder original atribuído ao juiz do julgamento, não podendo ser arbitrariamente alterado apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo face à convicção formada pelo julgador.
De facto, compete ao Tribunal (e não aos intervenientes processuais), julgar a matéria de facto, segundo os ditames previstos no artº127 do C.P.Penal, nomeadamente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (desde que se não esteja perante prova vinculada), sendo estes os parâmetros determinantes do acto de julgar. Embora este acto tenha sempre, forçosamente, um lado subjectivo (o julgador não é uma máquina), a verdade é que estas regras (complementadas ainda pelo disposto no artº374 nº2 do C.P.Penal), determinam que este acto de julgar não se possa fundar em arbitrariedade ou discricionariedade, pois balizam os fundamentos da decisão.
Assim sendo, a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim não fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final.
O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, há ainda que esclarecer quais são os seus limites – ou seja, que poderes de cognição tem o tribunal de apelo.
Mesmo nos casos em que exista documentação dos actos da audiência, o recurso para a Relação não constitui um novo julgamento, no sentido de haver lugar a reapreciação integral da prova. O que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso (pois este serve, essencialmente, como remédio jurídico), é verificar, ponto por ponto, se os erros concretos de julgamento, indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correcção.
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, nomeadamente em sede de reapreciação de matéria de facto, prende-se com o princípio da oralidade, no sentido de o mesmo implicar uma imediação, um contacto directo entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros), entendendo a lei que só através deste interagir pessoal, presencial, directo e imediato, é possível ao julgador formar a sua livre convicção.
Este tipo de contacto só existe, de facto, na primeira instância, pois a imediação permite ao julgador ter uma percepção dos elementos de prova que é muito mais próxima da realidade do que qualquer posterior análise, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que se socorra da documentação dos actos da audiência. E em matéria de credibilidade de depoimento, esta imediação revela-se, muitas vezes, de importância fulcral, já que o desenrolar do testemunho, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou desembaraço, enfim, todas as componentes pessoais ligadas ao acto de depor, que são muitas vezes insusceptíveis de serem registadas, mas que ficam na memória de quem realizou o julgamento, servem como elemento inestimável de formação da convicção do julgador, mas são praticamente insusceptíveis de serem reapreciadas em sede de recurso.
Face ao que se deixa exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe ao tribunal de recurso verificar, controlar, se o tribunal “a quo”, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artº 374 nº2 do C.P.Penal, face à documentação da audiência.
Mas dentro destes parâmetros de reexame, haverá ainda que atender a um outro limite – a lei refere que, ainda assim, tal reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas acima mencionadas, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
Neste último caso, havendo duas (ou mais) possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artºs127 e 374 nº2 do C.P.Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais.
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4. Apreciando.
Tendo em atenção os argumentos que o recorrente utiliza para fundamentar a sua discórdia, caberá começar por explicitar que parte do acervo probatório a que faz referência não é legalmente admissível nesta sede e nesta fase processual, pelo que não poderá sequer ser atendido.
Expliquemo-nos melhor.
a) O recorrente faz apelo às declarações prestadas perante a PJ, pela menor (a fls. 28 e segs. dos autos) e pela sua avó (a fls. 34 e segs.), pretendendo confrontá-las com as que prestaram em audiência de julgamento, no sentido da existência de contradições entre ambas;
b) Faz referência às declarações prestadas à PJ por Maria Paula Calado dos Santos (a fls. 36 e segs.), pretendendo com as mesmas demonstrar que a menor é mentirosa e não merece crédito;
c) Refere a reportagem fotográfica realizada pela PJ (fls. 43 a 47) e passagens do relatório intercalar realizado pela mesma entidade (fls.49 e segs.), transcrevendo passagens quase integrais do mesmo;
d) Afirma que o Fiat Panda onde os factos terão ocorrido não dispõe de dispositivo que permita reclinar os bancos da frente;
e) Atesta que tendo o arguido tem 69 anos, pesando 95 kg e medindo 1,70m, não lhe era fisicamente possível praticar os movimentos típicos da cópula, de vai e vem, desflorando a menor.
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5. Vejamos então.
a) Permitimo-nos começar por relembrar ao recorrente o vertido nos artºs 355 a 357 do C.P.Penal.
Aí se diz que é proibida a valoração de prova que não tenha sido produzida ou examinada em audiência, excepto as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos desses artigos.
No que se refere aos depoimentos prestados durante o inquérito quer pela menor, quer pela sua avó, para que os mesmos pudessem ser atendidos em sede de acórdão proferido pela 1ª instância (pois só assim, poderiam, subsequentemente, ser reverificados em sede de recurso), deveria o arguido ter requerido a sua leitura em audiência, ao abrigo do disposto no artº 356 nº5 e nº2 al. b), do C.P.Penal.
Não o fez. Assim sendo, o teor dos depoimentos prestados por tais testemunhas, em sede de inquérito, é insusceptível de poder ser apreciado para efeitos de formação de convicção do tribunal “a quo” e, subsequentemente, é proibida a sua valoração também por este tribunal de recurso.
Assim sendo, tudo o que a este respeito é dito no recurso tem de se considerar como não escrito, uma vez que o recorrente está a apelar a prova cuja valoração se mostra proibida.
b) A situação relativa à pretendida apreciação do depoimento de Maria Paula Santos é ainda mais caricata – é que, neste caso, nem sequer teria sido possível ao arguido recorrer à leitura das suas declarações em audiência, pela singela razão de esta pessoa não ter sido ouvida em julgamento.
Ora, nestas circunstâncias, é absolutamente inadmissível a consideração do teor do depoimento por si prestado em inquérito – que apenas terá valido para aquela fase processual, mas já não para a que agora releva, que é a de julgamento – uma vez que nem sequer foi inquirida em audiência.
c) No que se reporta às fotografias que a PJ tirou à casa do arguido, são as mesmas prova legalmente admissível e passíveis de reexame por este tribunal, exactamente por terem a natureza que têm – documental – não estando assim sujeitas às restrições enunciadas nos artigos que supra citámos. Todavia, o enfoque que o recorrente lhes dá é que é já inadmissível, pois integra-as e funde-as com o teor do relatório intercalar da PJ.
Tal relatório não tem qualquer natureza probatória – é em si mesmo uma súmula de depoimentos prestados perante tal autoridade policial, contendo ainda a opinião do inspector que a elaborou e as diligências de prova que entende deverem ser realizadas.
Ora, admitir-se a sua valoração, seria permitir-se o que a lei expressamente veda, face ao vertido no artº 356 nº7 e artº 129, ambos do C.P.Penal.
Assim sendo, também tudo o que a este respeito é referido no recurso, não pode ser aqui apreciado, por não estarmos perante prova.
d) Afirma o recorrente que os factos se terão passado numa viatura Fiat Panda, que não dispõe de dispositivo que permita reclinar os bancos da frente.
Salvo o devido respeito, não fundamenta em qualquer meio probatório a inexistência de tal dispositivo. E a verdade é que, ouvida a prova, ninguém refere tal circunstância, nem foi junta qualquer prova documental que a ateste.
Assim sendo, tal circunstância, por se mostrar insustentada em qualquer meio probatório resultante dos autos, não pode ser atendida.
e) Finalmente, atesta o recorrente ter 69 anos, pesar 95 kg e medir 1,70m, pelo não lhe era fisicamente possível praticar os movimentos típicos da cópula, de vai e vem, desflorando a menor.
Mais uma vez, salvo o devido respeito, não fundamenta o arguido qual o meio probatório em que funda a descrição de tais características físicas. Diga-se, aliás, que o que se mostra comprovado nos autos é que, à data da ocorrência dos factos, o arguido teria 67 anos, desconhecendo-se em absoluto qual era então a sua constituição física e a sua altura.
Assim sendo, e pelas idênticas razões já expendidas quanto à matéria relativa à alínea imediatamente anterior, também estas circunstâncias não poderão ser consideradas neste recurso (para além do mais, o recorrente nem se dá ao trabalho de explicar porque razão alguém que tenha aquele peso, altura e idade, se mostra fisicamente impedido de praticar um acto de cópula…).
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6. Passemos então a apreciar a matéria do recurso que é legalmente admissível.
Ouvida a integralidade da prova gravada, há ainda necessidade de se fazer um último reparo:
Não obstante a proibição expressa constante no artº 130 nº1 do C.P.Penal, foi perguntado sistemática, expressa e directamente a muitas das testemunhas inquiridas, “o que é que se constava na freguesia”.
Mais: foi-lhes ainda perguntado, de idêntica forma, “se achavam que o arguido era pessoa para praticar os actos de que vinha acusado”, não obstante o vertido no nº 2 do citado artº 130 do C.P.Penal.
Escusado será dizer que estas perguntas não deveriam ter sido admitidas e que, consequentemente, as respostas dadas, relativamente às mesmas, têm de ser pura e simplesmente ignoradas.
Posto este pequeno intróito, avancemos para as questões propostas:
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7. A primeira questão a apreciar prende-se com a circunstância de o recorrente entender que deveria ser dado como assente que apenas se desloca a C... - Ponte da Barca, na Páscoa, Natal e Vindimas e não que ele aí se desloca amiúde, tendo em atenção o depoimento das testemunhas Maria T..., Maria E..., Maria C... e R... Maria.
Embora se trate de um ponto factual de praticamente nenhum relevo, cumpre apreciá-lo.
É verdade que aquelas testemunhas afirmaram ser nessas datas que o arguido aí se deslocava sempre, mas as mesmas não referiram que o não fizesse noutros momentos. Aliás, o próprio arguido, para além de admitir que ia à sua terra naqueles momentos festivos, referiu ainda fazê-lo em outros alturas, designadamente para ir à caça, com um tio da menor, tendo disponibilidade do seu tempo, uma vez que está reformado.
Assim sendo, a matéria provada, a este respeito, não merece censura e deve ser mantida.
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8. A segunda questão reporta-se à circunstância de entender que inexiste prova de ter sido o arguido quem chamou a menor para ir à garagem.
Salvo o devido respeito, mal se entende esta crítica à matéria de facto assente. Em primeiro lugar, porque o recorrente não a fundamenta em qualquer passagem testemunhal que demonstre a sua inverificação e, em segundo lugar, porque o próprio arguido admitiu em audiência que, tendo-lhe a menor pedido a bicicleta prometida, lhe disse para ir com ele à garagem, para lha entregar.
Não há pois fundamento para proceder a qualquer alteração factual desta matéria.
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9. A terceira questão prende-se com o fulcro factual dos presentes autos, designadamente, com a circunstância de ter sido dado como assente que o arguido teve relação de cópula com a menor.
Neste caso, os fundamentos críticos do recorrente reportam-se, essencialmente, aos seguintes vectores:
Às declarações prestadas pela menor, que considera incongruentes e que não hesita em adjectivar de mentirosas;
Ao teor do relatório pericial de exame à menor, que não atesta o seu desfloramento;
Ao facto de da prova testemunhal não resultar que o arguido tenha mantido relações de natureza sexual com a menor.
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10. Vejamos então o que resulta da audição integral do que foi dito em julgamento e do relatório pericial apresentado.
Em primeiro lugar, cabe referir que o arguido admite ter dado à menor uma bicicleta (velha, por si arranjada), um telemóvel (que adquiriu com os pontos do seu cartão), ter-lhe dado algumas quantias monetárias (€ 2 ou € 3, ocasionalmente) e ter feito dois ou três carregamentos de € 5 cada, para o telemóvel oferecido. Admite igualmente que a oferta da bicicleta ocorreu na sua garagem, no domingo de Páscoa de 2007, à tarde e que apenas estavam presentes ele próprio e a menor. De igual modo, refere que a oferta do telemóvel foi feita directamente à A..., num outro dia e que a mãe da menor soube, até por seu intermédio, que tais oferendas iam ocorrer. Nega, todavia, ter tido qualquer contacto de cariz sexual com a A....
Face a esse veemente negar de tal tipo de contacto, o recorrente pretende que se considere que o depoimento da menor se mostra inverosímil, quer face à sua própria versão dos factos, quer atendendo às inconsistências das declarações prestadas pela A... e ao teor dos relatórios médicos juntos.
Caberá assim averiguar se o tribunal “a quo”, ao decidir dar prevalência e credibilizar o relato realizado pela ofendida, face a versões divergentes da sucessão de acontecimentos, o faz sem que tal decisão se mostre devidamente acompanhada pela prova produzida; ou seja, se o acervo probatório desacompanha fortemente a verosimilhança do relato realizado pela menor.
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11. Adianta-se, desde já, que tal não sucede.
Na verdade, ao longo de todo o julgamento foi patente o esforço de descredibilização que o arguido pretendeu fazer do relato da menor, procurando fundá-lo na prossecução de tentativa de ganho patrimonial, às suas custas; isto é, a A... teria dito o que disse, instruída pela sua família, para tentar obter dinheiro do arguido.
É bom deixar claro que tal tipo de insinuação não teve qualquer concretização factual – na verdade, nem sequer as testemunhas de defesa foram capazes de afirmar terem sido contactadas por qualquer familiar da menor, no sentido de procurarem obter um acordo financeiro, em troca da desistência da queixa.
Para além do mais, ouvidas quer a mãe da menor quer a sua avó, quer a própria A..., foi patente a sua simplicidade de espírito e incapacidade de compreensão de qualquer pergunta que não fosse simples, directa e resumida, bem como de acompanhamento de raciocínios dedutivos senão básicos.
Por outro lado, houve três testemunhas que se destacaram pelo seu conhecimento da menor (quer a nível pessoal quer profissional), pela sua isenção, probidade e distanciamento face aos intervenientes processuais, designadamente M... Fernandes (a quem a menor foi entregue após os factos e que vem dela cuidando em sede de família de acolhimento), Fátima C... (socióloga e técnica da Comissão de Protecção de Menores) e B... Miquelino (psicóloga, a trabalhar no INML, que tem vindo a acompanhar a menor desde os factos, em consulta).
Do depoimento conjugado destas testemunhas resultou claro que a menor, quer na data dos factos, quer nos três meses seguintes, demonstrava em relação à figura do arguido afecto, numa vinculação próxima de uma relação de filha-progenitor. O arguido era alguém que a menor considerava como uma figura protectora, que se interessava por ela, que lhe dava prendas, visualizava-o como uma referência positiva na sua vida, tendo a expectativa (que se manteve pelo menos até Maio de 2007), de que este a levasse a viver consigo para “Lisboa”.
Este sentimento era de tal forma forte, que a menor manteve contactos telefónicos com o arguido, durante os meses seguintes à Páscoa de 2007, que só cessaram com a retirada à força do telemóvel (ordenada pelo tribunal).
Mais explicaram que este tipo de relação afectiva que a A... tinha para com o arguido se explicava por uma conjugação de factores, designadamente, pelo desinteresse dos seus pais biológicos e desinvestimento afectivo familiar em relação à menor e pelo atraso de desenvolvimento que a A... apresenta, que a tornam muito mais vulnerável a este tipo de situações.
As três depoentes afirmaram ainda que a menor tem feito um percurso muito positivo, desde que se mostra integrada na família de acolhimento e que sempre relatou, com a consistência própria da sua idade e do seu desenvolvimento cognitivo, a ocorrência do acto de cariz sexual em questão nestes autos, fazendo-o sempre com reticência e de forma muito envergonhada; mais referem que ainda hoje é uma criança que não demonstra qualquer interesse por namoros ou por quaisquer actos de relacionamento entre sexos, privilegiando o relacionamento com crianças de 6/7 anos, por preferir as brincadeiras próprias destas idades.
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12. O teor dos depoimentos prestados por estas três testemunhas não se mostra contraditado por nenhuma das pessoas ouvidas em audiência e constitui, sem dúvida, uma forte credibilização do depoimento prestado pela menor – o facto de a A... ter sido “obrigada” a relatar o sucedido com o arguido, em nada a beneficiou (do seu ponto de vista), pois acabou por lhe retirar o sonho que tinha de ir viver para Lisboa, privando-a ainda do contacto com alguém por quem tinha carinho e que a presenteava.
E se assim é, teremos de concluir que o tribunal “a quo”, ao optar por dar credibilidade ao testemunho da menor, o fez de acordo com as regras de apreciação probatória constantes no artº 127 do C.P.Penal; isto é, actuou dentro dos parâmetros que a lei fixa para a formação da livre convicção do julgador.
Mais: tendo realizado esta opção e tendo fundamentado a mesma no demais acervo probatório, teremos de concluir não estarmos aqui perante uma situação de dúvida inultrapassável, insuperável, que imponha a aplicação do princípio in dubio pro reo (pois ela não resulta – como parece pretender o recorrente – da mera circunstância de o arguido negar a prática dos factos).
Na verdade, o princípio que o recorrente invoca só é de passível aplicação nos casos em que o julgador, ao apreciar os elementos probatórios que foram carreados para os autos, chegar a um beco sem saída, não conseguindo afirmar, com segurança jurídica, se um determinado facto se verificou ou não. Então, e só então, caso se chegue a tal situação de dúvida inabalável, insuperável, haverá que fazer uso do mencionado princípio.
Ora, no caso dos autos, esse dilema probatório genérico que o recorrente invoca (impossibilidade de opção, por parte do julgador, pela versão do arguido ou pela da menor, face à contradição existente entre ambas), não se verifica, pelo que não há, nesta sede ampla, lugar à aplicação do princípio supra enunciado.
Assim, no que a esta matéria se refere e face aos poderes reapreciativos deste tribunal de recurso que já acima deixámos expostos, concluímos não poder haver lugar a alteração da convicção que a 1ª instância alcançou.
Todavia, dentro destes parâmetros – ou seja, dentro da credibilização do relato realizado pela menor – haverá ainda que verificar se o tribunal “a quo” bem entendeu o por si relatado e o expressou correctamente em sede de matéria factual.
É sobre tal questão que nos debruçaremos de seguida.
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13. O tribunal “a quo” deu como assente que o arguido introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, desflorando-a sexualmente.
Será que é isto o que resulta da conjugação do depoimento da A... e do relatório médico-legal de fls. 19 a 24? Cremos que não.
Senão, vejamos.
O mencionado relatório refere, na parte que aqui nos releva que, examinada a ofendida, esta apresenta hímen permeável ao dedo indicador da perita (não referindo, todavia, que se trata de hímen complacente, que ocorre quando é permitida a passagem de um pénis erecto, sem destruição daquela estrutura anatómica) e conclui nos seguintes termos: “Analisando a informação relativa ao suspeito evento e a totalidade dos exames efectuados e acima descritos, pode considerar-se que a compatibilidade entre essa informação e os exames efectuados é possível mas não demonstrável. Importa assinalar que a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios”. Mais se refere, nesse relatório, na parte relativa à história do evento, que a menor refere a ocorrência de contacto entre os órgãos genitais dos dois (A... e arguido).
Por seu turno, o testemunho da menor, em julgamento, embora mencione o contacto do órgão sexual do arguido (obviamente em estado de erecção, pois que o acto termina em ejaculação) com os seus próprio órgãos sexuais, não é esclarecedor nem peremptório quanto à verificação de efectiva penetração – esta é uma conclusão que a Mª juiz-presidente retira do que a A... relata. O que a menor refere, sem dúvida, é que aquele contacto ocorreu, que sentiu algo doloroso e que, a final, o arguido ejaculou.
Ora, da conjugação deste relato – e ponderando-se quer a total inexperiência sexual da menor, quer a sua dificuldade de expressão e atraso cognitivo – com o teor do relatório médico acima referido, cremos que resulta uma ilação diversa daquela a que o tribunal “a quo” chegou; isto é, cremos que estamos perante a prática de um acto de cariz sexual, através do friccionar do órgão sexual masculino na região vulvar da menor, onde terá ocorrido posterior emissio seminis.
Entendemos assim que o que o acervo probatório demonstra é a inexistência de penetração vaginal (ou seja, o pénis não ultrapassou o hímen e não passou além do orifício vaginal, entrando dentro da vagina), mas sim a existência de fricção do pénis com a região vulvar da menor – sendo que se entende como vulva o conjunto dos órgãos genitais femininos externos (vide H. Rouvière, Anatomie Humaine, Tome 2, 11ª edição, pág. 625).
E se assim é, impõe-se que se proceda à alteração da matéria fáctica relativa a tal matéria, o que se realizará de seguida, sem necessidade de concessão de prazo para o arguido sobre a mesma se pronunciar, pela singela razão de que tal alteração se processará em consequência do pedido reapreciativo realizado pelo próprio recorrente, nesta sede (artº 358 nº1 e nº2 e 424 nº3, todos do C.P.Penal).
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14. Face ao exposto, altera-se a matéria fáctica dada como assente nos seguintes termos:
a) Onde se lê Uma vez lograda a presença da menor na garagem, o arguido fechou a porta desta, despiu a menor e deitou-a nos bancos (que baixou para o efeito) de uma viatura automóvel que aí se encontrava (um Fiat Panda branco, de matrícula 22-89-...), introduzindo-lhe em seguida o pénis erecto na vagina, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, desflorando-a sexualmente passará a constar Uma vez lograda a presença da menor na garagem, o arguido fechou a porta desta, despiu a menor e deitou-a nos bancos (que baixou para o efeito) de uma viatura automóvel que aí se encontrava (um Fiat Panda branco, de matrícula 22-89-...), friccionando, em seguida, o pénis erecto na vulva, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, até ejacular.
b) Onde se lê O arguido sabia a idade de A... Sousa e, ao manter com ela relações de cópula completa, fê-lo com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que, ao assim actuar, o fazia contra a vontade daquela passará a constar O arguido sabia a idade de A... Sousa e, ao agir da forma descrita, fê-lo com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que, ao assim actuar, o fazia contra a vontade daquela.
c) Onde se lê Mais sabia o arguido, ao fechar a menor consigo na garagem, despindo-a, e servindo-se do ascendente que mantinha sobre a mesma, pelo atraso cognitivo e imaturidade da menor e pela disparidade de idades entre os dois, para que não revelasse o sucedido, a constrangia, contra a sua vontade, a manter consigo relação de cópula passará a constar Mais sabia o arguido, ao fechar a menor consigo na garagem, despindo-a, e servindo-se do ascendente que mantinha sobre a mesma, pelo atraso cognitivo e imaturidade da menor e pela disparidade de idades entre os dois, para que não revelasse o sucedido, a constrangia, contra a sua vontade, a manter consigo a relação acima descrita.
Passará a constar dos factos não provados:
O arguido desflorou sexualmente a menor;
O arguido manteve com a menor relações de cópula completa
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B. O arguido deve ser absolvido ou alterada a qualificação jurídica do ilícito pelo qual foi condenado?
1. No que se reporta ao pedido de absolvição que é realizado pelo recorrente, o mesmo mostra-se claramente improcedente, pois que se fundava na asserção de que toda a matéria fáctica dada como assente passaria a não provada.
Todavia, caberá agora avaliar se a sua actuação, face às alterações que foram introduzidas nos factos provados, deverá ser qualificada juridicamente de forma diversa da constante no acórdão ora em apreciação.
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2. O tribunal “a quo” fez as seguintes considerações, a propósito do enquadramento jurídico dos factos:
Vinha o arguido pronunciado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p., à data dos factos, pelo art. 172., n.º 1, Cód. Penal: "quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos"; idêntica conduta é agora, após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, prevista no art. 171., n.º 1, e punida com a mesma pena.
Esta imputação referia-se à circunstância de o arguido ter acariciado a menor no peito e na zona genital, mais do que uma vez, entre Fevereiro e início de Maio de 2007; ora, nada se tendo provado quanto a essa factualidade, é evidente que se impõe a absolvição do arguido deste crime.
A pronúncia imputava ainda ao arguido a prática de um crime de violação, tal como o previa o art. 164., n.º 1, em vigor à data dos factos: "quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos". Nos termos do n.º 4 do art. 177., esta pena sofria um agravamento de um terço, nos limites mínimo e máximo, no caso de a vítima ser menor de 14 anos.
Após a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o tipo legal em causa não sofreu alteração sensível, para ao que a este caso importa; já o mesmo não se diga da agravação, agora contemplada no art. 177, n.º 6, que, no caso de vítima menor de 14 anos, será de metade, quer no limite mínimo quer no limite máximo da pena. Assim, nos termos do art. 2., n.° 4, e por mais favorável ao arguido, aplicar-se-á aqui a lei vigente à data da prática dos factos.
O aludido art. 164. insere-se no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual, previstos, nessa altura, nos artigos 1632 a 171. do Cód. Penal.
No que respeita ao tipo objectivo de ilícito, constata-se que a vítima do crime pode ser do sexo feminino ou masculino, sendo, aqui, uma menina; estando em causa, nestes autos, a cópula - definida como "penetração da vagina pelo pénis"2 - é evidente que o agente tem de ser um homem, no caso o arguido.
É pressuposto da aplicação desta norma o uso, por parte do agente, de violência ou de ameaça grave, de previamente tornar a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir; ora, quando um homem com mais de 60 anos, aproveitando a anuência de uma menor com a promessa de lhe oferecer uma bicicleta, consegue que ela entre numa garagem, e em seguida fecha a porta desta, despe a menor e a deita nos bancos de uma viatura, é evidente que não só está a usar de violência com a vítima, como também a dificultar-lhe a resistência. Dessa forma, o arguido obrigou a vítima a sujeitar-se à cópula que pretendia manter com ela, preenchendo o requisito do constrangimento, também previsto no tipo legal em causa.
No que respeita ao tipo subjectivo, há dolo da parte do arguido, não só porque sabia a idade da menor - 12 anos - como se aproveitou do ascendente que mantinha sobre ela (pelo atraso cognitivo e imaturidade da menor, e pela disparidade de idades entre os dois), como porque agiu com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos.
Cometeu, por isso, o arguido o crime de violação na pessoa de A... Sousa.
Como a menor tinha apenas 12 anos à data dos factos, a pena aplicável ao arguido, nos termos do citado art. 177.°, n.° 4, passa a situar-se entre 4 anos e 13 anos e 4 meses.
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3. Afirma o recorrente que esta qualificação jurídica se mostra incorrecta e que, em última ratio, deveria a conduta do arguido ser enquadrada como constitutiva da prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172, n.° 2 do C.P. na redacção à data da prática dos factos.
Assenta essa sua asserção nos seguintes fundamentos:
O sentido de violência plasmado, no artigo 164.° n.°1, refere-se e destina-se apenas à violência física;
Segundo o entender do recorrente não pode também o Tribunal "a quo" considerar que "in casu" o agente colocou a vitima na impossibilidade de resistir ao acto. Na verdade, não resultou provado que o agente colocasse a vítima em estado de inconsciência ou impossibilidade de resistência física pelo simples facto do mesmo ter, eventualmente, fechado a porta da garagem.
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4. Apreciando.
Em matéria factual, provado se mostra agora que, no dia 8 de Abril de 2007, o arguido conseguiu que a A..., então com 12 anos de idade, fosse à sua garagem e, depois de fechar a porta desta, despiu-a da cintura para baixo, bem como a si mesmo, meteu-a dentro do seu carro e friccionou o seu pénis na vulva da menor, até ejacular.
Esta conduta foi querida, logo mostra-se realizada com dolo directo.
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5. Temos, assim, que não se mostrando agora provado que o arguido procedeu à introdução – ainda que incompleta – do seu pénis na vagina da menor, afastada se mostra a possibilidade de a sua conduta poder ser enquadrada como um crime de violação, já que um dos elementos típicos deste ilícito é, precisamente, a ocorrência de cópula, sendo certo que a sua verificação pressupõe, precisamente, tal mencionada penetração (como aliás bem esclarece, entre outros, o acórdão do STJ de 29.10.2008, in www.dgsi.pt, doc. nº SJ200810290028743:
I - Materialmente, a violação é um caso especial de coacção sexual em que o acto sexual de relevo pode ser a cópula, o coito anal ou o coito oral.
II - O facto de o crime de violação englobar agora, também, os actos de penetração anal e oral não desvirtua a noção de cópula. Cópula continuará a ser entendida como resultado de uma relação heterossexual de conjugação carnal entre órgãos sexuais masculinos e femininos, que, como tal, exige sempre a introdução completa ou incompleta do órgão sexual masculino na vagina, o que afasta a equiparação com a chamada cópula vestibular ou vulvar”).
Todavia, não restam dúvidas que o friccionar de um pénis erecto na vulva de uma menor, corresponde e integra-se no que a lei refere como acto sexual de relevo (conceito este que igualmente integra qualquer tipo de cópula – vaginal, oral ou anal – pois que estes últimos correspondem, precisamente, aos mais graves actos sexuais de relevo), pois trata-se de um acto, de uma conduta sexual, imposta pelo arguido à menor, ofensiva do seu direito à livre expressão sexual, à sua liberdade e autodeterminação neste campo.
Para satisfazer o seu apetite sexual, o arguido impôs à ofendida que suportasse um acto objectivamente violador da sua intimidade e atentatório do direito que lhe assiste de determinar livremente a sua sexualidade, acto este ofensivo, em elevado grau, do sentimento de timidez, pudor e vergonha de qualquer pessoa.
E se assim é, resta então apurar se a actuação do arguido deverá ser juridicamente enquadrada como um crime de coacção sexual, nos termos previstos no artº 163 nº1 do C.Penal (cuja redacção não sofreu alterações com a Lei nº 59/07) ou como um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. no artº 172 nº1 do C.Penal, à data dos factos e, presentemente, no artº 171 nº1 do mesmo diploma legal.
E a destrinça entre a aplicabilidade destes dois normativos resultará, forçosamente, da apreciação a realizar quanto a ter ou não ocorrido uma das seguintes circunstâncias, como elemento associado ao acto sexual:
- Violência;
- Ameaça grave;
- Inconsciência;
- Impossibilidade de resistência.
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6. Entende o recorrente que não se verifica quer violência, quer impossibilidade de resistência, pois a primeira reconduz-se ao exercício de violência física e a segunda não ocorre, pois apenas resulta que o arguido fechou a porta da garagem.
Cremos não assistir aqui razão ao recorrente.
Na verdade, a este propósito, afirma-se no acórdão recorrido:
“(…) quando um homem com mais de 60 anos, aproveitando a anuência de uma menor com a promessa de lhe oferecer uma bicicleta, consegue que ela entre numa garagem, e em seguida fecha a porta desta, despe a menor e a deita nos bancos de uma viatura, é evidente que não só está a usar de violência com a vítima, como também a dificultar-lhe a resistência. Dessa forma, o arguido obrigou a vítima a sujeitar-se à cópula que pretendia manter com ela, preenchendo o requisito do constrangimento, também previsto no tipo legal em causa.”
Ora, com excepção da referência à cópula, estamos de acordo com o que aí se deixa dito.
Na verdade, os conceitos acima enunciados requerem ponderação face às circunstâncias do caso.
Se no crime de abuso sexual o menor é “persuadido” a sofrer o acto sexual de relevo, nos crimes de coacção sexual existe algo mais que tal mera persuasão, designadamente o recurso a uma supremacia física que, de facto, condiciona a submissão da vítima aos desejos do agressor.
E esta supremacia física resulta flagrante, no caso presente, pela enorme diferença etária existente entre o arguido e a menor (esta última, uma criança impúbere de 12 anos e o primeiro, um homem adulto de 67 anos), que determina uma forçosa ascendência corporal do primeiro, agravada ainda por uma efectiva impossibilidade de resistência por parte da ofendida, a partir do momento em que a menor é posta dentro de uma viatura e o arguido se põe em cima dela. A A... foi assim confinada a um espaço já de si pequeno (garagem), que lhe é estranho, em que a porta foi fechada – o que impede que pela mesma saia – e, adicionalmente, fica fisicamente restringida e impedida de resistir, a partir do momento em que é enfiada no carro, com o arguido em cima de si.
Cremos que esta forma de actuação – que vai além da mera persuasão, repete-se, prevista no abuso sexual e que fica aquém de uma agressão física corporal ou de uma manietação, que corresponderiam já à prática concursal de outros ilícitos, designadamente ofensas corporais e/ou sequestro – integra os elementos tipificados no crime de coacção sexual pelo que, verificando-se todos os seus demais elementos constitutivos, se conclui dever ser o arguido punido por este ilícito.
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7. Entende-se, pois, que o arguido praticou o crime de coacção sexual, p. e p. pelo artº163 nº1 do C.Penal.
Procede-se assim à alteração da qualificação jurídica dos factos, não havendo lugar à necessidade de audição prévia do recorrente, quer pelas razões que já acima deixámos expostas, quer porque este ilícito é menos gravemente punido do que o que era imputado ao arguido, em sede de pronúncia.
Este crime, como já atrás se deixou dito, não foi sujeito a alterações na reforma de 2007.
Todavia, no que se reporta às circunstâncias qualificativas do mesmo, já tal não sucede. Senão, vejamos:
Na redacção vigente à data da prática dos factos, o artº 177 nº 4 do C.Penal determinava que a agravação da pena seria de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, caso a vítima fosse menor de 14 anos.
Presentemente, o artº 177 nº6 do mesmo diploma legal estatui que tal agravação é de metade.
Assim sendo, e face ao disposto no artº 2º nº4 do C.Penal, é patente, face apenas às molduras penais, que o regime vigente à data da prática dos factos se mostra, em concreto, mais favorável ao arguido, razão pela qual deverá por este ser punido.
Face ao exposto, consigna-se que a conduta do arguido integra a prática de um crime de coacção sexual agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 163 nº1 e 177 nº 4, ambas do C.Penal, na versão vigente à data da prática dos factos, o que corresponde a uma moldura penal de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão.
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8. Obtido o enquadramento jurídico e a moldura penal, resta apurar qual a pena concreta a impor e se a mesma deve ou não ser suspensa na sua execução.
a) A este propósito, refere o tribunal “a quo”:
No caso, não cabe chamar à colação o disposto no art. 70., porquanto a pena aplicável ao crime é apenas de prisão.
Para chegar à pena concreta, o tribunal deve ter em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção - art. 71.2, n.° 1 - bem como as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, e cuja enumeração exemplificativa consta do art. 71.2, n.2 2.
Assim, verificam-se as seguintes agravantes: a forte intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo, o alto grau de violação dos deveres impostos ao agente (o arguido conhecia de longa data a família da vítima, sabia que a mesma era economicamente carenciada e, apesar disso, explorou as fragilidades da menor) e a conduta posterior aos factos (não só tentando "comprar" o silêncio da menor, através da oferta da bicicleta, do telemóvel e de carregamentos deste, como negando em julgamento a prática dos factos); a seu favor, a ausência de antecedentes criminais e a circunstância de ser bem visto no seu meio social.
Por isso, e não esquecendo, também, as elevadas necessidades de prevenção geral em casos como o dos autos, julga-se adequada a pena de 6 anos de prisão.
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b) Por seu turno, o recorrente entende que deve ser valorizado o facto de ter ficado provado que o arguido é bem visto no seu meio social, tem 68 anos e não tem antecedentes criminais e que tendo em conta as finalidades da punição que são: a defesa dos bens jurídicos e a reintegração do indivíduo na sociedade, lhe deve ser imposta pena não superior a 3 anos de prisão, suspensa na sua execução.
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c) Apreciando.
Dentro do limite acima mencionado, a pena é determinada no âmbito de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
No intervalo destes dois parâmetros, haverá então que atender às considerações de prevenção geral de integração e às exigências de prevenção especial, que poderão ser positivas ou de socialização ou negativas ou de intimidação ou segurança individuais.
O crime que o arguido cometeu protege quer o direito à saúde, quer a autodeterminação sexual pessoal.
No caso vertente, a ilicitude da actuação do arguido mostra-se elevada, pois em causa está uma vítima de apenas 12 anos de idade, que o arguido não se coibiu de iniciar sexualmente, circunstância que determinou que aquela menor tivesse de ser confrontada com uma área das relações humanas de foro extremamente íntimo, de uma forma desadequada e prematura. Aproveitou-se ainda da pouca preparação para se defender da sua vítima, resultante não só da sua idade, mas ainda do seu atraso cognitivo, de que tinha pleno conhecimento. A estas circunstâncias acresce a enorme disparidade de idades entre o arguido e a sua vítima.
A culpa do arguido tem de se considerar como intensa, situando-se em patamar superior, visto que o arguido se comportou com dolo directo, para satisfação da sua lascívia e desejo sexual, aproveitando-se do facto de ter um ascendente sobre a menor e de esta ser oriunda de uma família economicamente carenciada, sendo assim muito vulnerável a qualquer dádiva que lhe fizessem, situação que o arguido aproveitou e explorou, através da entrega de dois bens fortemente desejados por qualquer criança daquela idade – uma bicicleta e um telemóvel. Acresce que o arguido conhece há décadas a família da ofendida, com quem se relaciona e de quem é vizinho.
A natureza do acto que o arguido praticou situa-se num patamar de censura e gravidade muito próximos do acto de cópula; isto é, corresponde a um dos mais censuráveis actos que, dentro da tipificação do ilícito, se podem praticar.
O arguido não demonstrou qualquer arrependimento pelo acto que praticou.
É reformado, vive sozinho, não tem antecedentes criminais e é bem visto no seu meio social.
Se a ausência de antecedentes criminais joga a seu favor, a verdade é que a consideração que goza no seu meio acaba por funcionar como um “pau de dois bicos”, como circunstância simultaneamente agravante e atenuante.
Na verdade, se essa consideração, por um lado, faz pressupor uma conduta dentro das normas sociais vigentes e uma aparente boa integração social, que contribui para que seja respeitado por quem o conhece, por outro torna a sua actuação potencialmente mais perigosa, precisamente porque essa consideração e esse respeito permitiram a sua aproximação a uma menor, sem os entraves que decorreriam caso se tratasse de um elemento socialmente desconsiderado.
Nenhuma outra circunstância ocorre que abone a favor do arguido.
As necessidades de prevenção geral são prementes, pois segundo um recente relatório proveniente da Procuradoria-Geral da República, os crimes sexuais contra menores triplicaram em Portugal entre 2002 e 2007, numa média de 1400 casos por ano.
Tendo em atenção tudo o que se deixa dito e face à moldura penal abstracta, entende-se dever o arguido ser condenado numa pena de 5 anos e 3 meses de prisão.
E assim sendo, fica prejudicada a apreciação de uma eventual suspensão de tal pena, uma vez que o vertido no artº 50 do C.Penal (mesmo na actual redacção), a não permite.
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iv – decisão.
Face ao exposto, acorda-se em considerar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido JOSÉ L... e, em consequência, altera-se a decisão recorrida, nestes termos:
1. No que se reporta à matéria de facto dada como assente, procede-se às seguintes alterações:
a) Onde se lê Uma vez lograda a presença da menor na garagem, o arguido fechou a porta desta, despiu a menor e deitou-a nos bancos (que baixou para o efeito) de uma viatura automóvel que aí se encontrava (um Fiat Panda branco, de matrícula 22-89-...), introduzindo-lhe em seguida o pénis erecto na vagina, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, desflorando-a sexualmente passará a constar Uma vez lograda a presença da menor na garagem, o arguido fechou a porta desta, despiu a menor e deitou-a nos bancos (que baixou para o efeito) de uma viatura automóvel que aí se encontrava (um Fiat Panda branco, de matrícula 22-89-...), friccionando, em seguida, o pénis erecto na vulva, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, até ejacular.
b) Onde se lê O arguido sabia a idade de A... Sousa e, ao manter com ela relações de cópula completa, fê-lo com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que, ao assim actuar, o fazia contra a vontade daquela passará a constar O arguido sabia a idade de A... Sousa e, ao agir da forma descrita, fê-lo com o intuito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, tendo perfeita consciência que, ao assim actuar, o fazia contra a vontade daquela.
c) Onde se lê Mais sabia o arguido, ao fechar a menor consigo na garagem, despindo-a, e servindo-se do ascendente que mantinha sobre a mesma, pelo atraso cognitivo e imaturidade da menor e pela disparidade de idades entre os dois, para que não revelasse o sucedido, a constrangia, contra a sua vontade, a manter consigo relação de cópula passará a constar Mais sabia o arguido, ao fechar a menor consigo na garagem, despindo-a, e servindo-se do ascendente que mantinha sobre a mesma, pelo atraso cognitivo e imaturidade da menor e pela disparidade de idades entre os dois, para que não revelasse o sucedido, a constrangia, contra a sua vontade, a manter consigo a relação acima descrita.
2. Adita-se à matéria de facto não provada o seguinte:
O arguido desflorou sexualmente a menor;
O arguido manteve com a menor relações de cópula completa.
3. Condena-se o arguido, pela prática de um crime de coacção sexual agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 163 nº1 e 177 nº4, ambas do C.Penal, na versão vigente à data da prática dos factos, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
4. No demais, mantém-se o decidido.
Condena-se o recorrente no pagamento da taxa de justiça de 5 UC., atento o seu parcial decaimento e a complexidade das matérias em apreciação.

Guimarães, 10 de Maio de 2010