Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5314/15.2T8BRG-C.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: PERÍCIA DE OBJECTO DESTRUÍDO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela Relatora):

I - Para além da intervenção pessoal de técnicos em actos processuais, a que aludem, nomeadamente, os arts. 50.º, 492.º, 494.º e 601.º do Código de Processo Civil, é admissível a junção aos autos de pareceres técnicos documentados, por iniciativa das partes ou do tribunal (arts. 426.º e 601.º, n.º 1 do mesmo diploma), sendo nesse âmbito que devem ser prestados os esclarecimentos, informações e opiniões de carácter técnico relevantes e que extravasem o âmbito próprio da prova pericial, tal como legalmente definido.

II – Quando os quesitos formulados como objecto de perícia demandam respostas que não passam pelo exame, percepção ou apreciação de qualquer pessoa ou coisa, designadamente do concreto reservatório de água que explodiu e vitimou o sinistrado, directamente ou através de imagens e fotografias, aquela não deve ser admitida.

(Alda Martins)
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que são AA. D. C., J. M. e P. M. e RR. Seguradoras X, S.A. e A. B., S.A., os AA. apresentaram resposta às contestações, a qual foi desentranhada mediante despacho de que foi interposto recurso, tendo este Tribunal da Relação de Guimarães deliberado por Acórdão de 5 de Abril de 2018:

«Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte em que determina o desentranhamento dos autos da resposta à contestação, devendo esta permanecer nos autos com a relevância circunscrita ao exercício do contraditório pela Autora da prova documental apresentada pela Ré empregadora e requerimento probatório que o acompanha.»

Naquele articulado, os AA. haviam requerido, além do mais:

«Atendendo à Contestação apresentada, nos termos do art. 552, n.º 2, 2.ª parte do C.P.C. e /ou para prova e contraprova requer a A. viúva, respeitosamente a V. Ex.ª se digne para além, da prova já junta e peticionada se digne V. Ex.ª admitir:
PROVA PERICIAL
A realizar por perito com reconhecida experiência na área de Inspecção, Formação e Certificação de produtos de equipamentos e máquinas e ainda de soldadura, sugerindo-se o Ex.º Sr.º Perito conhecido em juízo, Eng. L. R., com domicilio profissional na Rua … Maia.

Com cópia do presente e cópia de anexo de imagens junto ao relatório do A.C.T., bem como registo fotográfico junto como doc.4 pela Segurada com a Contestação, e/outros que o douto tribunal julgue pertinente, responda o Ex.º Senhor Perito:

1- A construção de reservatórios de água para betoneira de camião de transporte de betão a pronto obedece a rigorosa regulamentação e requisitos de segurança?
2- Explicite o Ex.º Sr. perito quais?
2- No caso de danos nesse tipo de reservatório é possível contactar o fabricante do mesmo de forma a reparar os mesmos?
3- Nesse tipo de reservatórios é obrigatória a "Marca CE"?
4- Em que consiste ou garantias oferece a "Marca CE"?
5- Caso não proceda a aquisição a entidades vendedoras certificadas, podia a 2.ª Ré, empresa de construção civil, produzir esse tipo de reservatórios?
6- Em caso afirmativo, quais os procedimentos que haviam de ter sido seguidos para a produção/fabricação dos reservatórios referidos em 1.º pela empresa de construção civil?
7- Partindo da premissa que a construção do reservatório implicava soldura, explique o Ex.º Sr. as qualificações necessárias para o desempenho dessa actividade no caso concreto?»

Oportunamente, foi proferido despacho nos seguintes termos:

«A prova pericial visa percepcionar ou apreciar os factos através de pessoas (peritos) que são dotadas (por via da experiência ou por via de aptidões académicas, ou pelas duas vias) de especiais conhecimentos científicos ou técnicos, pessoas que, diferentemente das testemunhas, interpretam e analisam tais factos através dos referidos conhecimentos técnico-científicos que o juiz não possui (CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Volume III, AAFDL, 1980, pág. 226).

Pese embora a lei não faça agora qualquer distinção, a perícia pode consistir num exame (quando tenha por fim a averiguação em coisas móveis ou em pessoas), numa vistoria (quando se destina a averiguar factos em coisas imóveis, que aí tivessem deixado vestígios ou fossem susceptíveis de inspecção ou exame ocular) ou numa avaliação (quando se destina a determinar o valor de bens ou de direitos).

No caso dos autos, não subsistem quaisquer dúvidas de que o objecto da perícia requerida seria o “reservatório de água para betoneira de transporte de betão a pronto”. Assim, a haver perícia, consistiria, certamente, num exame.

Ora, como o referido reservatório de água já não existe (porque removido para sucata), é de todo impossível a realização da perícia requerida, precisamente, por falta de objecto. Por isso, discordamos da requerente da perícia, quando refere que a existência física do objecto não é absolutamente essencial para a perícia. A ser assim, teríamos peritos a responder com base em suposições.
Em face do exposto, não se admite a requerida perícia.»

A A., inconformada, veio interpor recurso da decisão, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1- Julga-se respeitosamente que o presente se reduz a saber: se constituiu fundamento para a rejeição de uma perícia a inexistência física actual de um objecto.
2- Com efeito, tendo sido requerida prova pericial rejeita a primeira instância a produção da mesma por considerar que "como o referido reservatório já não existe (...) é de todo impossível a realização de perícia."
3- Quanto a esta decisão se insurge a Apelante, porquanto o sinistrado foi mortalmente vitimado por uma explosão aquando da construção de um reservatório de água.
4- Julgando-se determinante, antes da prova do nexo causal, que se prove nos autos quais as especiais exigências que se impunham à Ré A. B. na construção do reservatório de água de betão a pronto que explodiu e vitimou o sinistrado.
5- Para tal entende-se não dever ser negada à Autora a produção de prova pericial que s.m.o. enquanto meio de prova não se confunde com o objecto da mesma.
6- Sendo certo que aquando do seu pedido a Autora identificou o objecto da mesma e por apelo a "cópia de anexo de imagens junto ao relatório do A.C.T., bem como registo fotográfico junto como doc.4 pela Segurada com a Contestação, e/outros que o douto tribunal julgue pertinente"
7- A Perícia no caso, traduzir-se-á numa análise técnica, na emissão de um juízo especializado por pessoa (perito) com reconhecida experiência na área de Inspecção, Formação e Certificação de produtos de equipamentos e máquinas e ainda de soldadura, tanto mais os factos controvertidos. (maxime ponto 5 do saneador).
8- Julga-se determinante, antes da prova do nexo causal, que se prove nos autos quais as exigências que se impunham à Ré A. B. na construção do reservatório de água de betão a pronto que explodiu e vitimou o sinistrado.
9- A perícia foi requerida tendo por base os registos de imagens e fotográficos existentes nos autos e outros.
10- Com todo o devido respeito não haverá lugar a quaisquer suposições sobre o objecto por que ele consta absolutamente identificado e identificável nos autos.
11- Ademais a pertinência da perícia julga-se absolutamente relevante precisamente pelo primeiro parágrafo do despacho em que a instância recorrida fundamenta o seu indeferimento.
12- No mais, a perícia não é impertinente nem dilátoria.
13- Termos em que com a rejeição da perícia foram violadas as normas do art. 413 e art. 476 do C.P.C..»
Não foi apresentada resposta ao recurso da A..
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, em separado, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil –, a única questão que se coloca a este Tribunal é a da admissibilidade da perícia requerida.

3. Fundamentação de facto

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do Relatório supra.

4. Apreciação do recurso

No despacho recorrido, em suma, entendeu-se que o objecto da perícia requerida é o «reservatório de água para betoneira de transporte de betão a pronto», consistindo aquela no exame do mesmo, pelo que, tendo este sido removido para sucata, é de todo impossível a realização da perícia requerida, precisamente por falta de objecto.

A A., no seu recurso, parece não refutar tal premissa, acrescentando que a perícia requerida visa provar quais as exigências que se impunham à R. empregadora na construção do reservatório de água de betão a pronto que explodiu e vitimou o sinistrado, tendo por base os registos de imagens e fotografias existentes nos autos, e outros.

Também o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, refere que a perícia requerida, destinada à prova de factualidade controvertida (facto n.º 5 da base instrutória), deveria incidir, não sobre o reservatório de água, mas sobre as imagens anexadas ao relatório da ACT e o registo fotográfico junto pela R. seguradora com a contestação, onde se mostram representados o aludido reservatório de água, materiais destinados à construção de outros derivatórios e equipamentos de trabalho.

Em conclusão, era perante as imagens e fotografias do reservatório que explodiu e vitimou o sinistrado que o perito deveria responder aos quesitos formulados, pelo que não se poderia dizer que a perícia carece de objecto.

Não obstante, compulsados os quesitos formulados como objecto da perícia requerida, afigura-se-nos que assim não é.

Com efeito, conforme acima transcrito no Relatório, tais quesitos são os seguintes:

«1- A construção de reservatórios de água para betoneira de camião de transporte de betão a pronto obedece a rigorosa regulamentação e requisitos de segurança?
2- Explicite o Ex.º Sr. perito quais?
2- No caso de danos nesse tipo de reservatório é possível contactar o fabricante do mesmo de forma a reparar os mesmos?
3- Nesse tipo de reservatórios é obrigatória a "Marca CE"?
4- Em que consiste ou garantias oferece a "Marca CE"?
5- Caso não proceda a aquisição a entidades vendedoras certificadas, podia a 2.ª Ré, empresa de construção civil, produzir esse tipo de reservatórios?
6- Em caso afirmativo, quais os procedimentos que haviam de ter sido seguidos para a produção/fabricação dos reservatórios referidos em 1.º pela empresa de construção civil?
7- Partindo da premissa que a construção do reservatório implicava soldura, explique o Ex.º Sr. as qualificações necessárias para o desempenho dessa actividade no caso concreto?»

Trata-se, pois, de questões que não incidem sobre o resultado do exame, percepção ou apreciação de factos atinentes ao concreto reservatório que explodiu e vitimou o sinistrado, fosse directamente ou através de imagens ou fotografias do mesmo, mas de questões técnicas de carácter geral e abstracto sobre o tipo ou categoria de reservatórios a que aquele pertence.

A resposta a tais quesitos não depende da observação ou exame do concreto reservatório que explodiu e vitimou o sinistrado, mesmo no caso do ponto 7, em que se solicita que a resposta seja proferida em função duma premissa dada como adquirida.

Ora, nos termos do art. 388.º do Código Civil, a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.

É nesse pressuposto que devem ser lidos os preceitos procedimentais constantes do Código de Processo Civil, designadamente o art. 475.º, n.º 1, nos termos do qual, ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência, e o art. 480.º, segundo o qual, definido o objecto da perícia, procedem os peritos à inspecção e averiguações necessárias à elaboração do relatório pericial, podendo o juiz e as partes assistir à inspecção.

Isto é, nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 262), a prova pericial “[t]raduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas.”

Assim, como sucedia no anterior Código de Processo Civil, antes da revisão de 1995-1996, “(…) a prova pericial continua a poder visar tanto a perceção indiciária de factos por inspecção de pessoas (maxime, pelo exame médico-legal das partes) ou de coisas, móveis ou imóveis (sua descrição e composição, defeitos, grau de resistência de determinado material, vestígios de atuações humanas ou naturais, etc.), como a determinação do valor de coisas ou direitos (valor dum prédio, dum quadro, de acções não cotadas na bolsa ou quotas de sociedades, dum direito de usufruto ou de superfície, etc.), ou ainda a revelação do conteúdo de documentos (maxime, os livros e documentos de suporte da escrita comercial e os documentos electrónicos) ou a verificação de letra, assinatura (art. 482), data, alteração ou falta de autenticidade de documento.

Em todos os casos, entre a fonte de prova (pessoa ou coisa) e o juiz interpõe-se a figura do perito, intermediário necessário em virtude dos seus conhecimentos técnicos: apreendendo ou apreciando factos, por serem necessários conhecimentos especiais que o julgador não tem, ou por os factos, respeitando a pessoas, não deverem ser objecto de inspeção judicial (art. 388 CC), o perito intervém no processo de manifestação da fonte de prova e traduz ao juiz o resultado da sua observação ou apreciação.

Diversas do perito, quanto ao regime aplicável, são as figuras do técnico que pode assistir à audiência final ou elaborar um parecer (art. 601) e do técnico ou pessoa qualificada que realiza uma verificação não judicial qualificada (art. 494), bem como as de vários outros técnicos a que o Código de Processo Civil faz referência” (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Almedina, 2017, pp. 311-312).
Nesta conformidade, para além da intervenção pessoal de técnicos em actos processuais, a que aludem, nomeadamente, os arts. 50.º, 492.º, 494.º e 601.º do Código de Processo Civil, é admissível a junção aos autos de pareceres técnicos documentados, por iniciativa das partes ou do tribunal (arts. 426.º e 601.º, n.º 1 do mesmo diploma).

Assim, é nesse âmbito que devem ser prestados os esclarecimentos, informações e opiniões de carácter técnico relevantes e que extravasem o âmbito próprio da prova pericial, tal como acima definido.

No caso em apreço, como se explicou, os quesitos formulados demandam respostas que não passam pelo exame, percepção ou apreciação de qualquer pessoa ou coisa, designadamente do concreto reservatório que explodiu e vitimou o sinistrado, directamente ou através de imagens e fotografias, pelo que, por definição, não se reportam a prova pericial.

Em face do exposto, ainda que por razões diversas das enunciadas no despacho recorrido, não é admissível a perícia requerida.

Improcede, pois, o recurso.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 21 de Fevereiro de 2019

(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)
(Vera Sottomayor)