Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
8109/17.5T8VNF.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: BOMBEIROS
ATRIBUIÇÕES
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INCÊNDIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nos termos previstos no artigo 2º n.º 1 da Lei n.º 32/2007, de 13 de Agosto (que prevê o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros) as associações humanitárias de bombeiros, são pessoas coletivas sem fins lucrativos que têm como escopo principal a proteção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em atividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto, com observância do definido no regime jurídico dos corpos de bombeiros.

II - Tendo em atenção a natureza da Autora (pessoa coletiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos) e o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros que se lhe aplica, o combate aos incêndios pela mesma levado a cabo não configura a prestação de um serviço comercial ou industrial, antes consistindo no seu escopo ou objetivo primordial de proteção de pessoas e bens, fazendo parte das suas atribuições.

III - Assim, e ainda que a Ré pudesse ter chamado a Autora para ir combater o incêndio no seu edifício industrial, tal solicitação não configuraria a celebração de um contrato de prestação de serviços tal como definido no artigo 1154º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE X, com sede na Avenida …, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “SEGURADORA ..., S.A.” (anteriormente “COMPANHIA DE SEGUROS X, S.A.”), com sede na Avenida …, em Lisboa e contra “Y – RECICLAGEM DE FIBRAS TÊXTEIS, S.A.”, com sede na Rua …, X, pedindo a condenação destas no pagamento da quantia de €10.294,74 (dez mil duzentos e noventa e quatro euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos sobre a quantia de €8.290,35, à taxa comercial, até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade, e a pedido da Ré “Y - Reciclagem Fibras Têxteis, S.A.” deslocou pessoas e veículos para apagar o incêndio que deflagrou no edifício industrial da Ré no dia 21 de Julho de 2011, na sequência do que ficaram danificados diversos aparelhos e materiais, cuja reparação importou o custo global de €8.290,35, que as Rés se recusam a pagar, responsabilizando a outra.

Regularmente citadas, as Réus apresentaram contestação.

A Ré “SEGURADORA ..., S.A.” defendeu-se por excepção e por impugnação, aceitando a existência, validade e eficácia do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., alegou que o mesmo titula um contrato de seguro de Multirrisco Industrial, que tinha como objecto a garantia dos danos directamente causados aos bens seguros, identificados nas respectivas condições particulares da apólice, em consequência de «Incêndio, Queda de Raio e Explosão», o qual não consubstanciando um contrato de seguro obrigatório, não legitima a Autora a demandar directamente a seguradora, arguindo, nestes termos, a sua ilegitimidade passiva.

Mais arguiu a excepção de prescrição do direito da Autora, para o que alegou que desde a data do conhecimento do direito da Autora (dia em que ocorreu o incêndio) e a data da propositura da presente acção e da sua citação para a mesma, já decorreu o prazo de cinco anos previsto no artigo 121.º da LCS /DL 72/2018, de 16.04).

Impugnando os factos alegados pela Autora, afirma que a apólice invocada nos autos não prevê a cobertura ou garantia da responsabilidade civil da segunda Ré, seja de natureza contratual, seja de natureza extracontratual, tenha ou não origem na sua actividade social.

Por sua vez, a Ré “Y – Reciclagem de Fibras Têxteis, S.A.” defendeu-se, igualmente, por excepção e por impugnação.

Por excepção, arguiu a sua ilegitimidade passiva, para o que alegou ter transferido para a Companhia de Seguros X, S.A. a responsabilidade pelo risco de incêndio; mais alegou a prescrição do direito da Autora por ter decorrido o prazo prescricional de dois anos previsto no artigo 317.º, alínea b) do Código Civil desde o dia do incêndio até à data da interposição da presente acção.

Notificada para se pronunciar sobre as excepções alegadas, pugnou a Autora pela sua improcedência, alegando que a demanda das duas Rés ocorreu precisamente porque cada uma delas recusava assumir a sua responsabilidade, imputando-as à outra parte. Quanto à exceção de prescrição invocada pela Ré “Y” alegou que, sendo a mesma presuntiva, tinha a Ré que alegar ter efectuado o pagamento, o que não fez; quanto à prescrição invocada pela Ré seguradora alegou que a mesma só é aplicável às relações entre seguradora e segurada.

Não foi realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva e foi dispensado o despacho destinado à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Face ao exposto, julga-se a presente acção improcedente, e, em consequência absolve-se a Ré “SEGURADORA ..., S.A.” e a Ré “Y – RECICLAGEM DE FIBRAS TÊXTEIS, S.A.” do pedido deduzido pela Autora ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE X.
» Custas da acção pela Autora, sem prejuízo da isenção de que beneficia.
Valor da acção: já fixado a fls. 79. NF
» Registe.
» Notifique.”

Inconformada, apelou a Autora da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

I - A Autora enquanto associação de bombeiros voluntários peticiona o valor da factura fae/1982, a fls. 11, enviada à Ré seguradora, após envio da mesma facturação à Ré, Y SA por indicação desta, ao receber a factura fap71, a fls. 68 v.o, pois;
II- Ambas as Rés, quando interpeladas para pagar, evitaram fazê-lo, desculpando-se, ora com um pagamento de imposto de incêndio (carta da Ré seguradora, a fls. 63 v.o), ora com a responsabilidade da outra co-ré (carta da Ré Y, S.A., a fls. 11 vº):
III - Cotejando as contestações das Rés, verifica-se que cada uma atribui responsabilidade exclusiva à outra, pelo eventual pagamento do valor das facturas em causa;
IV - O valor de ambas as facturas, de igual montante, €8.209,35, resulta dos danos ocorridos no equipamento dos bombeiros, aquando do ataque ao incêndio ocorrido nas instalações industriais da Ré, Y, S.A.;
V - A Autora alegou, em 8° e 9° da petição inicial, a fls. 4 vº, que deslocou pessoal e veículos para apagar o incêndio que deflagrou no edifício industrial da Ré, Y, e;
VI - Que, chegados ao local, após chamada da Ré Y, S.A., os bombeiros da Autora verificaram que o pavilhão central do edifício se encontrava totalmente tomado pelas chamas (fls. 4 vº);
VII A própria Ré Y SA assumiu o que a Autora alegou em 8º e 9º da petição inicial ao aceitar tais factos em 29º da sua douta contestação, a fls. 19 vº, dizendo expressamente “Diz-se que é verdadeiro e a aqui Ré aceita apenas os factos alegados nos artigos entre os n.ºs 8º e 9º, 17º a 19º, da aliás douta p.i.” (sic).
VIII - A aceitação vinda de referir não foi posta em causa, nem tão pouco afastada por qualquer prova a posterior;
IX - Incompreensivelmente, na douta sentença recorrida, a Mm.a juiz a quo, a fls. 112, sob o item, “não se provaram”, considera que não se provou que a deslocação ao local da Autora ocorreu a pedido da Ré Y - reciclagem fibras têxteis, S.A. (sic).
X- Sobre este importantíssimo facto, além da referida aceitação, aponta, em sentido contrário do decidido, toda a prova documental e testemunhal, bem como a própria matéria constante dos “factos provados”, de fls. 111 vº e 112, mencionada nas alíneas c, d, e, f, g, h, i e j;
X- A nível documental, no sentido de que a deslocação ao local da Autora ocorreu a pedido da Ré, Y - reciclagem de fibras têxteis, S.A. apontam as cartas de fls. 11 vº e 63 vº, bem como o e-mail de fls. 64, pois,
XII - Se a Ré Y, S.A. não tivesse solicitado os serviços da Autora para apagar o referido incêndio, jamais se preocuparia em remeter o assunto à sua seguradora, dizendo logo que não encomendara tal prestação de serviços;
XIII - Também a Ré, X, S.A., agora SEGURADORA ..., S.A., confirma, implicitamente, a responsabilidade da sua seguradora, a Ré Y, S.A., ao refugiar-se no pagamento de um alegado imposto de incêndio, em vez de rejeitar, liminarmente, a existência de um pedido de serviço de socorro à Autora (carta de fls. 63 vº);
XIV - No plano da prova testemunhal, relativamente à chamada dos bombeiros da Autora pela Ré Y, S.A., impõe-se também uma decisão de facto contrária à decidida, atentando nos depoimentos dos bombeiros chamados ao local, J. L. (rot. de 4' 42" a 4' 52"), A. S. (rot. de l' 44" a 2' 09") e J. J. (rot. de 03' 01" a 03' 04"), designadamente, nas supra destacadas rotações, a cor vermelha:
XV - Dos citados testemunhos recolhe-se, com clareza, que as chamadas para os sinistros, como o do caso vertente, caem na central telefónica da Autora, provindos dos sinistrados, a Ré, Y, S.A., no caso vertente;
XVI- Esta é a única conclusão plausível, decorrente da luz das regras da experiência comum e critérios de normalidade, citada no primeiro parágrafo da "motivação" a fls.112 v.º, da douta sentença recorrida;
XVII - Face à aceitação da Ré Y, S.A., em 29º da sua contestação, que chamou os bombeiros da Autora, bem como, perante os citados depoimentos das testemunhas, por terem sido expressos de forma credível e espontânea (fls. 113), é forçoso dar-se como provado: a Ré Y, S.A., chamou os bombeiros da Autora, para apagar o incêndio deflagrado no seu estabelecimento industrial, em 21 de julho de 2011, pelas 20.00 horas, os quais se deslocaram ao local, a pedido daquela Ré;
XVIII - Relativamente aos factos 2 e 3, considerados não provados, a fls. 112 v.º, da douta sentença recorrida, analisando os depoimentos das testemunhas, mormente, os destacados a cor vermelha, da testemunha, A. O., de rotações 7' 03" a 8' 13" de 21' 57" a 22' 22" de 23' 10" a 23' 50'" e de 30' 40" a 35' 43" - da testemunha J. L., de rotações 20' 28" a 21' 18" - da testemunha, A. S., de rotações 18' 22" a 24 18' 52", de 19' 21" a 19' 24" - da testemunha, J. A. de rotações 8' 46" a 9' 47" de LO' 12" a LO' 42" e de 14' 30" a 14' 54" - da testemunha, Maria, de rotações 4' 29" a 4' 28" de 5' 42" a 5' 47" de 6' 07" a 7' 22", de 7' 51" a 9' II", de II' 18" a II' 30", de 13' 14" a 13' 47", de 14' 42" a 15' 14" e de 16' LO" a 16' 50" verifica-se que o teor desses mesmos depoimentos é suficiente para dar como provados aqueles factos inseridos em 2º e 3º dos não provados;
XIX - Preponderantemente, articulando-os com os documentos dos autos (relatório, facturas, carta e e-mails) dos quais resulta nunca ter sido posto em causa, por qualquer das Rés, nenhum dos danos peticionados na factura em cobrança, aquando das respectivas interpelações para pagar (e-mail de fls. 11 v.º, carta de fls. 63 vº e e-mail de fls. 64);
XX - As testemunhas esclarecem, de forma credível, como se processa o relatório, imediatamente, após o incêndio, para enviar ao cdos (centro distrital de operações de socorro), bem como a sua posterior complementaridade em alguns equipamentos, cujos danos só se verificam após o balanço do que ficou no incêndio;
XXI - O valor dos equipamentos constantes da factura em causa foi apurado a partir do valor das respectivas aquisições, bem como dos dados fornecidos pela oficina, no que concerne aos veículos danificados, como bem esclarecem as testemunhas A. O. e Maria (autora da fatura), através dos citados depoimentos supratranscritos; XXII - Mais esclarecem que, para a substituição dos equipamentos facturados, se foi buscar o valor base da respectiva aquisição, confirmando a autora da factura, Maria, que já tinham comprado os equipamentos em data anterior à da factura;
XXIII - Após se consagrar a credibilidade das testemunhas, a fls. 113, da sentença recorrida, não se compreende a "necessidade"(?) pretendida pela Mm.a juiz a quo, na sua douta sentença recorrida, ao dizer, a fls. 113 v.º, in fine, que a referência à elaboração da factura não é suficiente, desconhecendo-se em que assentou a sua elaboração, e que não seria difícil apresentar documentos referentes aos custos dos materiais, bem como juntar aos autos documentos de aquisição dos materiais repostos;
XXIV - Tal raciocínio, expendido pela Mm.a juiz a quo, levaria a um descabido exercício interminável, para qualquer factura submetida a juízo, obrigando o autor da respectiva cobrança, a percorrer o caminho de toda a facturação anterior, eventualmente, processada por terceiros, até ao autor da factura que respeitasse à extração da matéria-prima do solo, com que se fabricam os componentes dos vários produtos finais,
XXV - No circunstancialismo vindo de referir nas conclusões precedentes, sem conceder, seria, pelo menos, de ter presente, quanto à repartição do ónus da prova, a máxima "iis quae difficilioris sunt probationes leviores probationes admittuntur", referida nas “noções elementares de processo civil”, do Prof. Manuel de andrade, a fls. 188 e segs., do vol. 1/1963, a propósito dos coeficientes que não alteram a repartição do ónus da prova;
XXVI - Tal coeficiente será de aplicar, como o mestre considera aconselhável, quando ocorre a simples verosimilhança dum facto ou a natural dificuldade da sua prova;
XXVII - No caso dos autos, dada a eventual dificuldade de prova, face à destruição de equipamentos, adquiridos há algum tempo atrás, deve aplicar­-se tal coeficiente, conjugando os testemunhos, os documentos e a aceitação processual dos factos peticionados em 8º e 9º da p. inicial;
XXVIII - Cumprindo o ónus a cargo da recorrente, imperativo do art.º 640º do cód. proc. civil, para alterar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, correspondentes à matéria dada como não provada, constante dos itens 1, 2, e 3, sob a epígrafe, "não se provaram", a fls. 112 e 112 v. °, da douta sentença recorrida, a recorrente indicou supra, além da restante prova, já referida, os constantes da gravação realizada;
XXIX- Nesta conformidade, face ao que ficou alegado, deverá, contrariamente ao decidido, considerar-se provado que:

1) A deslocação ao local da Autora ocorreu a pedido da Ré “Y - reciclagem fibras têxteis, S.A.”;
2) Os aparelhos e materiais referidos em g. importaram à Autora o seguinte custo: um aparelho respiratório €1.479,77, 6 fatos nomex, €3.300,00, 6 pares de luvas nomex, €321,84, 2 suportes de lanternas, €208,00, 1 transmissão €150,00; e
3) Durante as operações de combate, ficaram danificados, designadamente, os seguintes materiais que importaram o seguinte custo: 1 lanço de manga de 45 m, no valor de €119,21; 1 lanço de manga de 70m, no valor de €188,00; 6 lanços de manga de 25m, no valor de €625,80; 2 antenas de rádio, no valor de €115,00; 1 kit de embraiagem, no valor de € 107,50 e 1 cardan em viatura, no valor de €125,00.
XXX - Cumpre registar que, também resulta dos autos, com o devido relevo inerente, ter-se processado apenas a simples facturação dos equipamentos danificados, sem qualquer menção de preços de mão de obra despendida pela a.;
XXXI - Por outro lado, não é de somenos importância fazer notar que não se encontra alegado algures, pelas Rés, que Autora decidiu, por sua exclusiva iniciativa ir apagar o incêndio em causa, sem ter ocorrido o correspondente pedido da Ré Y, S.A., directamente conhecedora dos factos.
XXXII - A douta sentença recorrida, ao considerar não provados os factos supra referidos na precedente conclusão XXIX, absolvendo as Rés do pedido, violou o disposto nos artigos 412°, 1 e 607°,4 e 5, do cód. proc. civil; e 1154°, 1155°, 1156°, 1163° e 1167°, c), do código civil.”

Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso e consequentemente pela substituição da decisão proferida sobre a matéria de facto e, em consequência, pela substituição, também, da decisão final, julgando a acção procedente, com a implícita condenação das Rés SEGURADORA ..., S.A. e Y - Reciclagem de Fibras Têxteis, S.A., no pedido deduzido pela Autora na medida das suas responsabilidades.
As Rés contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:

1 - Determinar se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 1), 2) e 3) dos factos não provados.
2 – Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

Factos considerados provados em Primeira Instância:

A. A Autora é uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, que tem por objectivo a protecção de pessoas e bens, designadamente o socorro a feridos, doentes ou náufragos e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em actividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto.
B. A Autora pode desenvolver, com observância do seu fim não lucrativo e sem prejuízo do seu escopo principal, outras actividades, individualmente ou em associação, parceria ou por qualquer outra forma societária legalmente prevista, com outras pessoas singulares ou colectivas, nomeadamente prestação de cuidados de saúde, actividades desportivas, culturais e recreativas, actividades de carácter social de apoio e protecção à infância, juventude, à deficiência e aos idosos ou em qualquer situação de carência que justifique uma actuação pró humanitária, e outras actividades, a título gratuito ou remunerado, nomeadamente a prestação de serviços, comerciais ou industriais.
C. No exercício da sua actividade, no dia 21 de julho de 2011, pelas 22 horas, a Autora deslocou pessoal e veículos, para apagar o incêndio que deflagrou no edifício industrial da Ré, sito no Lugar …, em ….
D. Chegados ao local, os bombeiros da Autora verificaram que o pavilhão central do edifício industrial se encontrava totalmente tomado pelas chamas.
E. De imediato, deram início aos trabalhos, efectuando manobras de protecção a outros edifícios da Ré, expostos ao incêndio, ao mesmo tempo que pediram reforço de meios via CDOS de Braga, enquanto combatiam as chamas, desenvolvendo, nomeadamente, as seguintes tarefas: - montagem de um PCOB com CODIS 3 Braga; - solicitação da comparência dos técnicos da EDP, para corte de cabos eléctricos; - solicitação de máquinas à administração da Autora e à protecção civil municipal; - aproximação e domínio do incêndio, para entrada no pavilhão, auxiliados pelas máquinas, após cedência da estrutura metálica do telhado, com a temperatura; - remoção de parte da parede da fachada 4 do pavilhão, para permitir a progressão das equipas de bombeiros no seu interior; - abordagem do pavilhão no piso inferior, para verificar encontrar-se intacto; - manobras de rescaldo do incêndio, durante alguns dias, por apenas ser possível aceder a toda a área pela porta da fachada 1, porque a estrutura do telhado bloqueava a progressão dos bombeiros da Autora; - trabalho permanente em conjunto com as máquinas para remover os escombros e efectuar o rescaldo à medida que se progredia.
F. Durante as operações de combate, ficaram danificados vários aparelhos e materiais, designadamente, um aparelho respiratório, 6 fatos Nomex, 6 pares de luvas Nomex, 2 suportes de lanternas, 1 transmissão, e dois veículos.
G. Relativamente aos materiais e equipamentos danificados no incêndio referido em C., a Autora emitiu a factura n.º FAP/1, datada de 30/03/2012 e vencida na mesma data, no global de € 8.290,35, em nome da Ré “Y – Reciclagem de Fibras Têxteis, S.A.”.
H. Relativamente aos materiais e equipamentos danificados no incêndio referido em C., a Autora emitiu a factura FAE/1982, com data de 09/07/2014 e vencimento em 09/08/2014, no montante global de € 8.290,35, em nome de “Companhia de Seguros X, S.A.”.
I. Em 7 de Fevereiro de 2014, a Ré “Y – Reciclagem de Fibras Têxteis, S.A.” respondeu à Autora que “remetemos este assunto à Companhia de Seguros, pelo que estamos a aguardar a resposta da nossa Seguradora.”.
J. Em 27 de Dezembro de 2011, a Companhia de Seguros X enviou ao Ilustre Mandatário da Autora uma carta de onde resulta, para além do mais que “cumpre-nos informar que, embora lamentando, não podemos proceder a qualquer pagamento, atendendo a que as “Seguradoras” já pagam imposto de incêndio sobre os prémios de acordo com a lei.”.
K. Entre a Ré “Y – Reciclagem de Fibras Têxteis, S.A.” e a Companhia de Seguros X (actualmente “SEGURADORA ..., S.A.”) foi celebrado o contrato de seguros “multirrisco Industrial”, nos termos da apólice n.º ...MRIND, constante de fls. 43 a 55, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1. A deslocação ao local da Autora ocorreu a pedido da Ré “Y - Reciclagem Fibras Têxteis, S.A.”.
2. Os aparelhos e materiais referidos em G. importaram à Autora o seguinte custo: um aparelho respiratório € 1.479,77, 6 fatos Nomex, €3.300,00, 6 pares de luvas Nomex, € 321,84, 2 suportes de lanternas, € 208,00, 1 transmissão 150,00.
3. Durante as operações de combate, ficaram danificados designadamente os seguintes materiais que importaram o seguinte custo: 1 lanço de manga de 45 m, no valor de € 119,21; 1 lanço de manga de 70m, no valor de € 188,00; 6 lanços de manga de 25m, no valor de € 625,80; 2 antenas de rádio, no valor de € 115,00; 1 kit de embraiagem, no valor de € 107,50 e 1 cardan em viatura, no valor de € 125,00.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

Decorre do preceituado n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.

O legislador impõe por isso ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar, sob pena de rejeição do recurso.

No caso concreto, a Recorrente cumpriu satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, indicando os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, o sentido da decisão que em seu entender se impõe e os elementos de prova em que fundamentam o seu dissenso.

Contudo, a reapreciação da matéria de facto nos termos pretendidos pela Recorrente revela-se, no caso concreto, manifestamente inútil (não sendo de realizar no processo atos inúteis conforme decorre do artigo 130º do Código de Processo Civil).

Vejamos.

Pretende a Recorrente nos presentes autos o pagamento pelas Rés da quantia de €8.290,35, acrescida de juros de mora, correspondendo aquele valor aos danos por si sofridos em aparelhos e materiais no combate ao incêndio no estabelecimento da Ré Y, para onde deslocou pessoal e veículos a solicitação da Ré.

Analisada a petição inicial da Autora ressalta que pela mesma não foi juridicamente qualificada a relação da qual alegadamente emerge a sua pretensão.

A sentença recorrida, discorrendo por isso sobre qual a fonte da obrigação em que a Autora fundamentaria a sua pretensão, considerou (e bem) que estando excluídas, à partida, as fontes das obrigações baseadas nos negócios unilaterais, na gestão de negócios ou no enriquecimento sem causa, a pretensão da Autora apenas poderia fundar-se no contrato (responsabilidade contratual) ou na responsabilidade civil, para concluir que a responsabilidade das Rés em caso algum se pode fundar na responsabilidade civil extracontratual uma vez que em nenhum momento a Autora imputa à Ré “Y” (e muito menos à Ré seguradora) a prática de qualquer facto ilícito culposo, não se tendo apurado que foi a Ré “Y” quem provocou o incêndio combatido pela Autora e ainda que, atenta a factualidade dada como provada, a Autora não logrou provar ter celebrado com a Ré “Y” qualquer contrato.

Quanto à responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual (que é susceptível de abranger a tríplice espécie derivada de: facto ilícito, do risco ou de facto lícito) é a que resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem” (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral”, Volume I, 9ª Edição, página 537).

E, analisada a petição inicial, de imediato se conclui que a Autora não alegou qualquer facto onde impute à Ré Y (e muito menos à Ré seguradora) a prática de qualquer facto ilícito culposo susceptível de, a provar-se, fazer a Ré incorrer na obrigação de a indemnizar; logo, não ficaram apurados quaisquer factos de onde decorra a prática de qualquer acto ilícito culposo por parte de nenhuma das Rés.

Aliás, a Autora nem sequer alegou qualquer facto de onde decorra qual a origem do incêndio e nem tão pouco o que determinou que os materiais e aparelhos tivessem ficado danificados durante as operações de combate ao incêndio.

E quanto à responsabilidade objectiva ou pelo risco e à responsabilidade por actos lícitos (em que se justifica a obrigação de indemnizar mesmo quando se adopta uma conduta lícita, pois como salienta Antunes Varela – ob. cit. página 588- “o acto pode ser lícito e obrigar, todavia, o agente a reparar o prejuízo que a sua prática porventura cause a terceiro”) também não resultam apurados quaisquer factos que permitam concluir pela responsabilidade das Rés.

Assim, inexistem factos provados (sendo certo que nem sequer foram alegados) que permitam concluir que a Ré exerce uma actividade perigosa, por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados (cfr. n.º 2 do artigo 493º do Código Civil), e que os danos em causa tenham ocorrido por força daquele exercício; apenas sabemos que a Ré se dedica à actividade industrial e que ocorreu um incêndio no seu edifício.

Da mesma forma inexistem factos provados (pois que nem sequer foram alegados) de onde decorra a prática pela Ré de facto licito que tenha causado os danos invocados pela Autora, sendo certo que se não pode entender como tal o simples facto da Ré Y ter, alegadamente, chamado a Autora para combater o incêndio, pelo que, ainda que se considerasse provado tal facto (conforme pretende a Recorrente) não se concluiria pela responsabilidade da Ré Y (e nem da Ré seguradora).

Assim, bem andou o tribunal a quo ao afastar a obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil extracontratual.

O tribunal a quo afastou ainda a responsabilidade contratual considerando não ter a Autora logrado demonstrar a celebração de qualquer contrato com a Ré Y.

Sustenta agora a Recorrente que celebrou com a Ré Y um contrato verbal de prestação de serviços previsto no artigo 1154º do Código Civil por entender que é o que ocorre sempre que alguém chama os bombeiros para apagar o fogo.

Não entendemos, contudo, que lhe assista razão; ainda que se viesse a considerar conforme pretende a Recorrente que foi a Ré Y que chamou a Autora tal não configuraria um contrato de prestação de serviços tal como o define o referido artigo 1154º do Código Civil.
De acordo com este preceito o contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição, sendo-lhe aplicáveis, de acordo com o disposto no artigo 1156º do Código Civil, as regras do mandato.

Estando em causa um contrato oneroso, tal contrato tem como efeito, para a parte a quem é prestado o serviço, a obrigação de retribuição (cfr. artigo 1167.º, alínea b) do Código Civil), sendo obrigação da contraparte a prestação do serviço nos termos convencionados (cfr. artigo 1161.º, alínea a), do Código Civil).

É certo que a Autora ao ir combater os incêndios presta um serviço, mas fá-lo por força das suas atribuições e tendo por base o seu objectivo primordial de protecção de pessoas e bens, designadamente a extinção de incêndios (cfr. alínea A) dos factos provados) e não por força de um qualquer contrato de prestação de serviços celebrado com as pessoas que a chamam para esse fim.

Não podemos aqui esquecer ainda (conforme aliás a Recorrente salientou na petição inicial para beneficiar da isenção de custas prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais) que se trata de uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos.

E se a Autora pode desenvolver outras actividades, nomeadamente prestação de cuidados de saúde, actividades desportivas, culturais e recreativas, actividades de carácter social de apoio e protecção à infância, juventude, à deficiência e aos idosos ou em qualquer situação de carência que justifique uma actuação pró humanitária, e outras actividades, a título gratuito ou remunerado, nomeadamente a prestação de serviços comerciais ou industriais, tem de o fazer na observância do seu fim não lucrativo e sem prejuízo do seu escopo principal, pelo que a extinção de incêndios, fazendo parte do seu escopo principal, não pode estar inserida e nem pode ser considerada, “serviços comerciais ou industriais”.

Aliás, a Lei n.º 32/2007, de 13 de Agosto (que prevê o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros) dispõe no seu artigo 2º que “As associações humanitárias de bombeiros, adiante abreviadamente designadas por associações, são pessoas colectivas sem fins lucrativos que têm como escopo principal a protecção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em actividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto, com observância do definido no regime jurídico dos corpos de bombeiros” (n.º 1) e que “Com estrita observância do seu fim não lucrativo e sem prejuízo do seu escopo principal, as associações podem desenvolver outras actividades, individualmente ou em associação, parceria ou por qualquer outra forma societária legalmente prevista, com outras pessoas singulares ou colectivas, desde que permitidas pelos estatutos” (n.º 2).

E ainda que a designação de associação humanitária de bombeiros é exclusiva das associações cujo regime jurídico é regulado naquela lei, não podendo ser adoptada por outras entidades, ainda que com fins idênticos, mas não detentoras de corpos de bombeiros (n.º 3).

Do exposto decorre que, tendo em atenção a natureza da Autora (pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos) e o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros que se lhe aplica, o combate aos incêndios não configura a prestação de um serviço comercial ou industrial, antes consistindo no seu escopo ou objectivo primordial de protecção de pessoas e bens, fazendo parte das suas atribuições.

Assim, e ainda que a Ré Y a pudesse ter chamado para ir combater o incêndio no seu edifício industrial, tal solicitação não configuraria a celebração de um contrato de prestação de serviços tal como definido no artigo 1154º do Código Civil.

Acresce dizer que, mesmo a ponderar-se a celebração de um contrato de prestação de serviços, tal como pretendido pela Recorrente, ainda assim não está em causa nos autos o pagamento pelas Rés da retribuição eventualmente devida como contrapartida de serviços prestados; o que a Recorrente veio reclamar da Ré Y e da Ré seguradora (invocando quanto a esta um contrato de seguro do ramo “Multirrisco Industrial” celebrado com aquela Ré) é o pagamento do valor do seu material e aparelhos danificados durante as operações de combate do incêndio por si levadas a cabo. E, mais uma vez, não se mostram sequer alegados pela Autora factos concretos que permitam perceber o que determinou que o material e aparelhos ficassem danificados durante o combate ao incêndio por forma a imputar tais danos às Rés. Salientamos apenas, quanto aos danos nos veículos, que consta do documento junto pela Autora com a petição inicial (“Relatório de ocorrência”) que ao manobrar um veículo para o deslocar para outro ponto do incêndio aquele embateu com o canto traseiro lado direito no canto traseiro lado esquerdo, tendo ficado os dois veículos danificados, pelo que parece ser de imputar a responsabilidade pelos danos à própria Autora e a quem, por sua conta, se encontrava a manobrar o veículo.

É, por isso, de concluir, não resultarem dos autos factos que permitam sustentar que sobre as Rés recai a obrigação de pagamento da quantia peticionada nos presentes autos pela Autora, sendo, por isso, também inútil apreciar a impugnação da matéria de facto deduzida pela Autora quanto aos pontos 2) e 3) dos factos não provados.

Em face de todo o exposto, improcede, pois, integralmente a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.

As custas são da responsabilidade da Recorrente sem prejuízo da isenção prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do regulamento das Custas Processuais.
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I - Nos termos previstos no artigo 2º n.º 1 da Lei n.º 32/2007, de 13 de Agosto (que prevê o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros) as associações humanitárias de bombeiros, são pessoas colectivas sem fins lucrativos que têm como escopo principal a protecção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em actividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto, com observância do definido no regime jurídico dos corpos de bombeiros.
II - Tendo em atenção a natureza da Autora (pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos) e o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros que se lhe aplica, o combate aos incêndios pela mesma levado a cabo não configura a prestação de um serviço comercial ou industrial, antes consistindo no seu escopo ou objectivo primordial de protecção de pessoas e bens, fazendo parte das suas atribuições.
III - Assim, e ainda que a Ré pudesse ter chamado a Autora para ir combater o incêndio no seu edifício industrial, tal solicitação não configuraria a celebração de um contrato de prestação de serviços tal como definido no artigo 1154º do Código Civil.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

As custas são da responsabilidade da Recorrente sem prejuízo da isenção prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do regulamento das Custas Processuais.
Guimarães, 10 de julho de 2019
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares
Margarida Almeida Fernandes
Margarida Sousa