Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2709/18.3T8VCT.G1
Relator: JORGE DOS SANTOS
Descritores: VENDA DE BEM ALHEIO
NULIDADE
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

- O despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (-art 595º, nº1, al. b) do CPC).

- Como consequência da sanção da nulidade da venda de bem alheio prevista no art. 892º do CC, deve a coisa ser restituída ao vendedor pelo comprador, independentemente da boa ou má fé daquele.

- A correspectiva obrigação de restituir o preço segue, no entanto, um regime parcialmente diferente do que resultaria da aplicação do artigo 289º do CC.

- Assim, se o comprador agiu de má-fé, ele não goza do direito de exigir a restituição integral do preço, por argumento a contrario do artigo 894º, nº1, do CC.

- A aplicação do instituto do enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos requisitos previstos nos art. 473º e 474º do CC, pelo que, inexistindo algum deles, não é de aplicar esse regime jurídico.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

CAIXA (…), com sede em (..) instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra (…) e (…), pedindo que, na procedência da acção:

a) se declare a nulidade da venda judicial de 1/9 dos referidos 4 prédios, realizada em 12.09.2016, a favor da autora, na execução n.º 483/03.7TBCMN;
b) ordenar-se o cancelamento do registo de propriedade de 1/9 desses 4 prédios, efetuado a favor da autora pela Ap. 2851 de 2017/05/18 incidente sobre os prédios urbanos descritos no registo predial sob os n.ºs 1769 e 1770, da freguesia de ... e sobre os prédios rústicos descritos no registo predial sob os n.ºs 1781 e 1782 dessa mesma freguesia;
c) condenar-se a 1.ª ré a restituir à autora a quantia de € 14 739,02, correspondente ao preço pago pela autora e recebido por essa ré por efeito dessa venda judicial, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da adjudicação até efetivo e integral pagamento.

Alegou para tanto, e em síntese, que adquiriu 1/9 de 4 prédios em sede da execução especial n.º 483/03.7TBCMN - B, juízo de família e menores de Viana do Castelo, juiz 1. Sucedendo que tal aquisição configura uma venda de bem alheio, tendo sido remetida pelo Tribunal Superior da Relação de Guimarães para acção própria de apreciação da nulidade decorrente dessa venda. A venda em causa é de bem alheio na medida em que o executado, ora réu, já em 27.10.2009 havia transmitido aquele 1/9 dos 4 prédios aos réus A. M. e mulher, logo a penhora do mesmo na referida execução n.º 483/03.7TBCMN não poderia ter sido efetuada. Mais, a penhora realizada nessa execução foi, pois, feita erradamente, pois que, na realidade, a essa data, não existia em separado 1/9 desses 4 imóveis na titularidade do executado: a nona parte desses 4 prédios constituía o “quinhão hereditário de B. L. na herança indivisa aberta por óbito de M. L.”.

A autora estava, pois, convencida de que o ali executado B. L. era titular de 1/9 desses prédios. Por força da alienação do quinhão hereditário, não pertencendo os bens penhorados ao ali executado B. L., não poderiam ter sido objecto de venda em sede dessa execução, uma vez que o tribunal carecia de legitimidade para a realizar. Quando o tribunal procedeu à venda judicial e à aceitação da proposta apresentada pela aqui autora já os referidos bens penhorados não existiam na titularidade do executado B. L., ora réu. Deste modo, a venda judicial realizada em 12.09.2016 nessa execução e consequente adjudicação à aqui autora daquele 1/9 dos referidos 4 prédios configura venda de bens alheios e, como tal, é nula - cfr. art.º 892.º CC. Impõe-se, por isso, a declaração de nulidade da venda realizada em 12.09.2016 na referida execução n.º 483/03.7TBCMN, tendo a A. direito a exigir da 1.ª ré a restituição integral do preço que pagou e que por esta foi recebido - cfr. art.ºs 825.º e 894.º do C - ou seja, a quantia de € 14 739,02 (catorze mil setecentos e trinta e nove euros e dois cêntimos), acrescida dos os juros de mora vencidos sobre esta quantia, à taxa legal, desde a data da referida adjudicação, sendo que até à presente data, venceram-se já juros no valor global de € 1109,67 (mil cento e nove euros e sessenta e sete cêntimos).

Contestou apenas a Ré C. M. invocando a excepção do abuso do direito por parte da A., alegando que pela presente acção, pretende a A. que a venda operada no âmbito do P. 483 seja anulada, condenando-se a Ré a pagar-lhe a importância de €14.739,02, acrescida de juros vencidos e vincendos. Ou seja, a única responsável pela compra dos bens (a A.) pretende receber de quem nenhuma responsabilidade tem (a Ré) uma quantia muito superior àquela que esta recebeu no âmbito do P. 483, quantia essa à qual não tem direito. Mais alegou que a haver qualquer discrepância entre a realidade jurídica dos prédios e aquela que se encontra registada, a mesma só poderá ser da responsabilidade da A., pois a Ré limitou-se a consultar o Registo Predial e a indicar à penhora os bens que nele figuravam como pertencentes ao Réu B. L. (Executado na outra acção), indicando 1/9 indiviso dos mencionados prédios, pois assim constava (e consta) do Registo Predial.
Por outro lado, e sobretudo, a A., apesar de saber desde 2013 que os bens penhorados tinham sido alienados pelo B. L., apresentou uma proposta de adjudicação desses bens em 2016, pagou o preço devido e registou a sua aquisição. Ao reclamar no P. 483 a restituição do valor por si pago, a A. actuou em manifesto abuso do direito, consubstanciado num evidente "venire contra factum proprium". Abuso do Direito no qual persiste inexplicavelmente, ao propor a presente acção, na qual a A. pede a nulidade da venda e até reclama da Ré um valor superior àquele que ela recebeu.
A A. é compradora dolosa, pois sabia, pelo menos desde 2013, que comprava bens que não pertenciam ao B. L..
Conclui no sentido de que: a A. sabia, aquando apresentou a proposta de aquisição, que os bens que pretendia que lhe fossem adjudicados no âmbito do P. 483 já não pertenciam ao B. L., Executado nesse processo. Era, aliás, a A. o único interveniente processual a ter conhecimento de tal facto, o qual lhe veio ao conhecimento depois de ter sido citada num Apenso de Habilitação. Aquando da dedução dessa Habilitação, foi o Requerimento instruído com todos os elementos identificativos dos prédios, pelo que, reitera-se, desde 2013 sabia a A. quem era o proprietário dos bens penhorados no P. 483. Devendo improceder o pedido de declaração da nulidade da venda.
Mais impugnou o valor peticionado pela A., porquanto à Ré apenas foi entregue parte do produto da venda (€13.359,32), tendo sido a outra parte retida pelo Tribunal (pelo Exmo. Sr. Oficial de Justiça a exercer as funções de Agente de Execução) para custear os encargos do processo, da responsabilidade do Executado. E mesmo quanto ao valor de €13.359,32, a proceder essa parte do pedido, apenas poderão ser reclamados juros desde a data em que a sentença transitar em julgado ou, quando muito, desde a data da citação da Ré; não podendo a A. reclamar juros desde a data da adjudicação (a qual nem coincide com a data em que efectivamente procedeu ao depósito do preço, pois a adjudicação ocorreu em 12/09/2016 e o depósito em 06/03/2017).

Deduziu reconvenção, no caso da procedência acção, nos termos da qual pediu a condenação da A. a pagar à Ré Reconvinte:

a) A quantia de €14.920,00 (catorze mil novecentos e vinte euros), a título de indemnização por danos patrimoniais;
b) A importância de €50.001,00 (cinquenta mil e um euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais;
c) os juros de mora vincendos, à taxa legal, sobre as quantias peticionadas, desde a prolação da Douta Sentença em 1ª Instância e até efectivo e integral pagamento.
Tendo, por fim requerido a condenação da A. como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da Ré.
A A. respondeu nos termos do articulado de fls. 205 e ss, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

No âmbito do despacho saneador foi proferida sentença, que decidiu julgar improcedente a presente acção, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados.

Inconformada com a sentença, veio a Autora recorrer da mesma, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - Não se encontram ainda reunidos todos os factos necessários à prolação de uma decisão final, designadamente no que concerne à demonstração da existência ou não de dolo por parte da recorrente aquando da apresentação da sua proposta de compra dos bens penhorados na execução n.º 483/03.7TBCMN.

2.ª - Os autos contêm matéria de facto controvertida que carece de instrução, não sendo por isso possível, sem produção de prova, conhecer-se de imediato do mérito da causa - vd. al. b), n.º 1, art.º 595.º do CPC.

3.ª - Resultou provado que o que foi penhorado na execução ao executado B. L. foi 1/9 de 4 imóveis e não, especificamente, o seu “quinhão hereditário” na herança indivisa aberta por óbito da sua avó - cfr. pontos 1.2 e 1.21 dos factos provados.

4.ª - Assim, face aos concretos termos em que foi efectuada a penhora não pôde a autora, à data da proposta de compra que efectuou, percepcionar que aqueles imóveis correspondiam ao “quinhão hereditário” do executado na referida herança indivisa.

5.ª - Acresce que, apesar de a recorrente ter tido conhecimento em 2013 da cessão do quinhão hereditário do executado, a aquisição do mesmo por parte de A. M. e esposa nunca foi registada, por isso, em 2016, aquando da apresentação da sua proposta de compra do 1/9 dos 4 imóveis, a recorrente estava convencida que pertenciam ao executado - cfr. ponto 1.20. dos facto provados.

6.ª - Face ao exposto, deve dar-se como provado o facto constante do ponto 2.1 dos factos não provados e dar-se como não provados os factos constantes dos pontos 1.44 e 1.45, ou, caso assim não se entenda, no mínimo, alterar-se a redacção destes nos seguintes termos:
1.44 - A autora sabia, desde Novembro de 2011 ou pelo menos desde Janeiro de 2013, da venda ocorrida pela escritura de “cessão de quinhão hereditário” de 27.10.2009”.
1.45 - Apesar desse conhecimento, face aos concretos termos em que foi efectuada a penhora no âmbito da execução especial n.º 483/03.7TBCMN-B e ao teor das certidões prediais dos bens penhorados não pôde a autora, à data da proposta de compra que apresentou (12.09.2016), percepcionar que os 4 prédios penhorados correspondiam ao um nono indiviso do quinhão hereditário do executado B. L. na herança indivisa aberta por óbito de M. L..- vd. arts.662.º e 640.º CPC.

7.ª - A recorrente / compradora esteve sempre de boa-fé, desconhecendo, sem culpa, à data da apresentação da sua proposta de compra, que os bens penhorados integravam o referido “quinhão hereditário” e o consequente carácter alheio dos mesmos, podendo, pois, exigir da ré a restituição integral do preço que pagou e por esta foi recebido - vd. art.ºs 825.º e 894.º CC.

8.ª - Mesmo que assim não se entendesse, a venda alheia ocorrida foi geradora de um enriquecimento ilícito para a recorrida e, simultaneamente, causa de um dano para a recorrente que pagou o preço, estando por isso aquela obrigada a restituir à recorrente aquilo com que injustamente se locupletou, ou seja, a quantia de € 14 739,02, acrescida dos respectivos juros de mora - vd. n.º 1 art.º 473.º CC.

Termina pedindo que de harmonia com as razões expostas deve conceder-se provimento ao recurso e, port al efeito, revogar-se o despacho saneador-sentença proferido.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II – OBJECTO DO RECURSO

A - Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumpre apreciar:

- Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada nos termos pretendidos pela recorrente.
- Se se encontram ainda reunidos todos os factos necessários à prolação de uma decisão final, designadamente no que concerne à demonstração da existência ou não de dolo por parte da recorrente aquando da apresentação da sua proposta de compra dos bens penhorados na execução n.º 483/03.7TBCMN, ou se os autos contêm matéria de facto controvertida que carece de instrução, não sendo por isso possível, sem produção de prova, conhecer-se de imediato do mérito da causa - vd. al. b), n.º 1, art.º 595.º do CPC.
- E, finalmente, se a venda alheia ocorrida foi geradora de um enriquecimento ilícito para a recorrida e, simultaneamente, causa de um dano para a recorrente que pagou o preço, estando por isso aquela obrigada a restituir à recorrente aquilo com que injustamente se locupletou, ou seja, a quantia de € 14 739,02, acrescida dos respectivos juros de mora - vd. n.º 1 art.º 473.º CC.

III. Fundamentação de facto

Factos considerados provados:

1.1. Corre termos no juízo de família e menores de Viana do Castelo, juiz 1, a execução especial n.º 483/03.7TBCMN - B, instaurada em 06.11.2010 pela ré C. M. contra o réu B. L., visando a cobrança de alimentos em atraso e respetivos juros – doc. Fls. 9 vº e 10.

1.2. Nessa execução foram penhorados ao aí executado B. L., ora réu, 1/9 parte indivisa dos seguintes imóveis:

a - prédio urbano, composto de casa de habitação com dois andares e rossio, sito na freguesia de ..., Caminha, descrito no registo predial sob o n.º …;
b - prédio urbano, composto de casa de habitação de dois andares, 2 dependências e rossio, sito na freguesia de ..., Caminha, descrito no registo predial sob o n.º …;
c - prédio rústico, composto de terreno de cultura, vinha e pomar, sito na freguesia de ..., Caminha, descrito no registo predial sob o n.º … d - prédio rústico, composto de terreno de cultura e vinha, sito na freguesia de ..., Caminha, descrito no registo predial sob o n.º ….

1.3. Foi agendada a abertura de propostas deste 1/9 destes prédios para o dia 12.12.2013, sendo que, na ausência de qualquer proposta nessa data, foi determinada a venda por negociação particular.

1.4. Em 12.09.2016, a autora apresentou proposta para aquisição de 1/9 desses 4 imóveis penhorados - pelo preço global de € 14.739,02 - tendo-lhe os mesmos sido adjudicados.

1.5. Na sequência, em 06.04.2017 foi emitido o título de transmissão de 1/9 desses 4 imóveis a favor da autora – cf. doc. de fls. 9vº e 10.

1.6. Em 18.05.2017, a autora registou a seu favor essa aquisição - cfr. Ap.2851 de 2017/05/18 – doc. 10 vº a 16.

1.7. Corre termos no juízo local de Caminha a acção de divisão de coisa comum n.º 236/10.6TBCMN, instaurada pela autora em 27.04.2010, contra, entre outros, o réu B. L. – doc. de fls. 17 e ss.

1.8. Em 26.06.2017, a autora deduziu por apenso a essa acção o incidente de habilitação de adquirente de 1/9 indiviso que B. L. detinha nos referidos 4 prédios – fls. 17 e ss.

1.9. Em 10.07.2017 A. M. e mulher contestaram esse incidente, alegando, em suma, que por escritura pública outorgada em 27.10.2009 adquiriram ao réu B. L. o quinhão hereditário deste na herança indivisa por óbito de sua avó, M. L..

1.10. Quinhão esse que corresponde a um nono indiviso da referida herança.

1.11. Em 04.12.2017 o juízo local de Caminha julgou improcedente o incidente de habilitação deduzido pela A., precisamente por considerar que a parte que a ora autora se propunha substituir (B. L.) deixou de ser parte nos autos – cf. doc. de fls. 19 e ss em face da habilitação ocorrida no apenso A. desse mesmo processo, como infra descrito em 1.42. e 1.43.

1.12. Isto, em virtude de, em 12.07.2013, por decisão proferida no apenso A dessa acção, terem sido já habilitados A. M. e E. M. a intervir nos autos em substituição de B. L., como infra descrito em 1.42. e 1.43.

1.13. Em 17.01.2018, em sede da execução n.º 483/03.7TBCMN - B, a autora requereu então a anulação da venda de 1/9 dos quatro prédios sitos na freguesia de ..., Caminha - cfr. doc. n.º 8, de fls. 21.

1.14. Alegou aí a autora que lhe foram adjudicados bens alheios, o que consubstancia “erro quanto à coisa transmitida”.

1.15. Em 27.03.2018, o juízo de família e menores decidiu julgar improcedente a pretensão da ora autora, quer por a considerar extemporânea, quer por entender que desde dezembro de 2011 tinha conhecimento da referida escritura de cessão do quinhão hereditário.

1.16. Em 14.06.2018, sob recurso da autora, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu confirmar a decisão recorrida, negando provimento à apelação da autora - cfr. doc. n.º 9, de fls. 24 e ss.

1.17. Nesse acórdão do Tribunal Superior consignou-se, de entre o mais o seguinte: “Em primeiro lugar, por tudo quanto inicialmente se expôs, sobre os pressupostos do incidente deduzido e lembrando-se que ele o foi ao abrigo do disposto no n.º 1, do art.º 838.º, CPC, devia ter sido o mesmo liminarmente rejeitado. Com efeito, invocou-se, a pretexto de o bem ter sido vendido pelo executado a terceiro antes de penhorado na execução e nesta ter sido adjudicado à apelante, que houve “erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado” - um dos dois fundamentos naquela norma previstos - e, portanto, pediu-se a anulação da venda executiva. Ora, manifestamente, tal situação configura uma venda de bem alheio e não se confunde com aquela previsão legal. Como se explicou e justificou, na desconformidade em causa não cabe a venda de coisa alheia. (…) O bem adjudicado corresponde, inquestionavelmente, ao que, neste processo, foi anunciado, pretendido comprar e comprado pela recorrente. Se, de facto, a coisa vendida pertencia, sem dúvida, a terceiro, para a venda, na execução, ficar sem efeito necessário era que, nos termos do art.º 839.º n.º 1, alínea d), tivesse sido este - e não foi - a reivindicá-la aqui. De resto, o problema da nulidade da venda de 27.10.2009 só pode ser tratado e decidido no confronto também do vendedor e do comprador (no incidente apenas estão a credora exequente que requereu a penhora e o adquirente a quem na execução ele foi adjudicado) e em função das regras de direito substantivo atinentes - arts.ºs 892.º, 894.º e 825.º do CC - e sem perder de vista as do registo predial.” (…) “Certo que a apelante, nas alegações e conclusões, invoca ainda - mas não o fizera no requerimento inicial, por isso aqui tal se apresentado como questão nova - a nulidade decorrente, já não do fundamento que invocara e subsumira ao disposto no n.º 1, do art.º 838.º, CPC, mas da venda de bens alheios, pedindo que esta, sendo de conhecimento oficioso, seja declarada por este Tribunal. Sucede que este incidente é impróprio para tal se apreciar e decidir. Na execução, a consequência seria a prevista na alínea d), do n.º 1, do art.º 839.º, CPC (ficar sem efeito). Nele não estão os interessados respectivos, nomeadamente o dono, a reivindicá-la. Tal nulidade, em função do regime previsto no art.º 892.º, CC, está sujeita a condições (não pode ser oposta pelo vendedor ao comprador de boa fé nem o comprador doloso ao vendedor de boa fé) que limitam o seu conhecimento oficioso. Tem de ser equacionada em função das regras de registo predial e dos conceitos de terceiro e de boa-fé (cfr. Acórdão do STJ, de 21-02-2006).”

1.18. Em 27.10.2009, por escritura pública de “cessão de quinhão hereditário”, o réu B. L. declarou vender ao réu A. M. o seguinte: “Quinhão Hereditário na Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de sua avó, M. L., quinhão esse que corresponde a um nono indiviso da referida herança” - cfr. doc. n.º 10.

1.19. Esse “quinhão hereditário” engloba o 1/9 de que o réu B. L. foi proprietário nos referidos 4 prédios.

1.20. Os réus A. M. e mulher, porém, não fizeram registar a seu favor a aquisição desse quinhão hereditário.

1.21. Em 06.11.2010, na execução especial por alimentos referida supra em 1.1. veio a exequente C. M., ora ré, indicar à penhora, em concreto, a nona parte dos referidos 4 prédios devidamente identificados.

1.22. A autora, em 12/9/2016, no âmbito da execução nº 483/03.7TBCMN apresentou proposta de compra de 1/9 desses 4 prédios, no valor global de € 14 739,02, valor esse que pagou na íntegra, tendo-lhe por isso mesmo sido emitido o título de transmissão respectivo.

1.23. No âmbito da tentativa de conciliação efectuada nos autos de Divórcio Litigioso nº483/03.7TBCMN, foi regulado o exercício do poder paternal relativamente à menor C. F., filha da Ré e do Réu B. L..

1.24. Por força desse Acordo, realizado em 30 de Junho de 2003 e homologado por Douta Sentença de 29 de Setembro do mesmo ano, ficou o B. L. obrigado a pagar à Ré, a título de alimentos, a quantia de €125,00 (cento e vinte e cinco euros) mensais, montante anualmente actualizado em função do índice de inflação.

1.25. Não tendo o Réu B. L. procedido a tal pagamento, foi instaurada Execução para cobrança de tais valores. – Documento de fls. 84 vº e ss.

1.26. Após pesquisas efectuadas pela subscritora junto de diversas entidades, foram nomeados à penhora, e posteriormente penhorados, 1/9 indivisos de quatro prédios. – Documento 2 de fls. 87 vº e ss.

1.27. Prédios esses cujo primitivo registo na Conservatória do Registo Predial foi promovido pela A., na sequência da aquisição por parte desta de 2/9 indivisos desses prédios, no âmbito de Execução movida contra dois irmãos do Réu B. L. (Processo nº628/2002, que correu seus termos no extinto Tribunal Judicial de Caminha). – Documento 3 de fls. 91 e ss.

1.28. A A., em processos judiciais, arrogou-se da titularidade de 2/9 dos mencionados prédios, não tendo jamais mencionado que o seu direito corresponde a 2/9 de um quinhão hereditário! – Documento 4 de fls. 105 vº e 106.

1.29. Foi a A. quem apresentou, relativamente a esses prédios, a Declaração Modelo 1 do IMI. – Documento 5, fls. 107.

1.30. No âmbito do P. 483, foi determinada a venda dos bens penhorados por proposta em carta fechada, a qual ficou deserta. – Documento 6 de fls. 108.

1.31. Subsequentemente, foi determinada a venda por negociação particular, através da qual, durante vários anos, não se logrou obter interessados. – Documento 7, de fls. 108 vº.

1.32. Pelo que, por despacho de 02/05/2016, foi indeferida a prorrogação do prazo peticionada pelo Sr. Encarregado de Venda. – Documento 8, fls. 109 vº.

1.33. Em face da iminente extinção da instância (por deserção), a aqui Ré requereu a adjudicação dos bens penhorados. – Documento 9, fls. 110 vº e ss.

1.34. Na sequência desse pedido, foi designado dia para a abertura de propostas em carta fechada (12/09/2016), tendo a A. efectuado a única proposta de aquisição. – Documento 10, de fls. 112 vº e 113.

1.35. Posteriormente, a A. "ameaçou" desistir da aquisição (devido a um problema com o registo de uma das verbas, relacionado com as áreas), pelo que a aqui Ré insistiu na adjudicação dos bens penhorados, caso a A. avançasse com essa "desistência". – Documento 11, fls. 113 vº e ss. – tendo este problema sido ultrapassado e os bens adquiridos pela A. – Documento 13, fls. 127 vº e 128.

1.36. Na sequência dessa venda, recebeu a Ré a importância de €13.359,32 (treze mil trezentos e cinquenta e nove euros e trinta e dois cêntimos). – Documento 14, fls. 128 vº.

1.37. Posteriormente, em face da inexistência de outros bens penhorados, foi extinta a execução (P. 483), documento 15, fls. 129.

1.38. Em Janeiro de 2018, foi a Ré notificada do pedido de anulação da venda efectuada pela A., na qualidade de adquirente no âmbito do P. 483 com fundamento de que os bens penhorados e adjudicados, à data da adjudicação, não pertenciam ao Executado B. L.. – Documento 16, fls. 129 vº e ss.


1.39. A Ré respondeu, pugnando pela intempestividade e, principalmente, pela inexistência de erro (dado que a A. sabia desse facto desde 2013, ou seja, muito antes de ter apresentado a proposta, em 2016). – Documento 17, fls. 139 vº e ss.

1.40. A ora A. instaurou acção de divisão de coisa comum contra A. B., B. F. e B. L. a que corresponde o Processo nº236/10.6TBCMN, na qualidade de titular de 2/9 dos prédios supra descrito em 1.2.

1.41. No âmbito do referido processo especial de acção de divisão de coisa comum foi a A. notificada da contestação deduzida em 24/11/2011 por A. M. e esposa na qual estes invocavam ter adquirido ao co-réu B. L. o seu quinhão hereditário – fls. 166 e ss, tendo deduzido a resposta de fls. 178 e ss.

1.42. Por apenso à referida acção de divisão de coisa comum foi deduzido incidente de habilitação de adquirente pelos referidos A. M. e esposa, de que a A. foi notificada em 18/01/2013, tendo contestado nos termos constantes de fls. 185 e ss.

1.43. Com data de Julho de 2013 foi proferida sentença, transitada em julgado, constante de fls. 186 vº e ss que julgou habilitados como adquirentes do réu B. L. os requerentes habilitandos A. M. e esposa.

1.44. A A. sabia, desde Novembro de 2011 ou pelo menos desde Janeiro de 2013, que os bens penhorados pela aqui Ré já não pertenciam ao Réu B. L..

1.45. Apesar desse conhecimento, no ano de 2016, apresentou uma proposta, na sequência da qual lhe foram adjudicados os referidos bens.

1.45. Apesar desse conhecimento, no ano de 2016, apresentou uma proposta, na sequência da qual lhe foram adjudicados os referidos bens.

1.46. A aquisição do quinhão hereditário por parte A. M. e E. M. não foi registada.

Factos julgados não provados:

2.1. Foi tendo em conta o anúncio de venda formulado na sequência da penhora dos bens indicados pela aí exequente, ora Ré, que a ora A. apresentou proposta de compra.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da pretendida alteração da matéria de facto provada e não provada

Entende a recorrente que deve dar-se como provado o facto constante do ponto 2.1 dos factos não provados e dar-se como não provados os factos constantes dos pontos 1.44 e 1.45, ou, caso assim não se entenda, no mínimo, alterar-se a redacção destes nos seguintes termos:

1.44 - A autora sabia, desde Novembro de 2011 ou pelo menos desde Janeiro de 2013, da venda ocorrida pela escritura de “cessão de quinhão hereditário” de 27.10.2009”.
1.45 - Apesar desse conhecimento, face aos concretos termos em que foi efectuada a penhora no âmbito da execução especial n.º 483/03.7TBCMN-B e ao teor das certidões prediais dos bens penhorados não pôde a autora, à data da proposta de compra que apresentou (12.09.2016), percepcionar que os 4 prédios penhorados correspondiam ao um nono indiviso do quinhão hereditário do executado B. L. na herança indivisa aberta por óbito de M. L..- vd. arts.662.º e 640.º CPC.

Para sustentar esta pretensão, alega a recorrente/autora que, face aos concretos termos em que foi efectuada a penhora não pôde a autora, à data da proposta de compra que efectuou, percepcionar que aqueles imóveis correspondiam ao “quinhão hereditário” do executado na referida herança indivisa e que, apesar de a recorrente ter tido conhecimento em 2013 da cessão do quinhão hereditário do executado, a aquisição do mesmo por parte de A. M. e esposa nunca foi registada, por isso, em 2016, aquando da apresentação da sua proposta de compra do 1/9 dos 4 imóveis, a recorrente estava convencida que pertenciam ao executado - cfr. ponto 1.20. dos factos provados.

Os factos provados que a apelante pretende sejam considerados não provados ou alterados são:

- “1.44. A A. sabia, desde Novembro de 2011 ou pelo menos desde Janeiro de 2013, que os bens penhorados pela aqui Ré já não pertenciam ao Réu B. L..”
- “1.45. Apesar desse conhecimento, no ano de 2016, apresentou uma proposta, na sequência da qual lhe foram adjudicados os referidos bens.”

Ora, os referidos factos considerados provados pelo tribunal a quo foram bem julgados como tal, porquanto fundam-se na convicção resultante do teor dos documentos juntos aos autos pelas partes, indicados a cada alegação factual respectiva, os quais consistem essencialmente de certidões do registo predial e peças processuais extraídas de processos e seus incidentes. Cumpre salientar, aliás, que a prova documental que fundamenta tais factos e que não foi questionada nos autos, é de tal modo expressiva e esclarecedora que, em rigor, não permite apreciação alternativa à que foi efectuada pelo tribunal, bem se dispensando a produção de qualquer outra prova, designadamente testemunhal, assim se evitando a prática de actos inúteis.

Com efeito, do teor dos documentos juntos aos autos resulta que foi a recorrente quem procedeu ao primitivo registo na Conservatória do Registo Predial, na sequência da aquisição de 2/9 indivisos desses prédios, que a recorrente, referindo-se a tais prédios (quinhões) sempre mencionou 2/9 e não 2/9 de um quinhão hereditário (Cf. Documento 4, junto com a Contestação), sendo da sua autoria a apresentação do Modelo 1 do IMI (Cf. Documento 5, junto com a Contestação), que, em 18/01/2013, no âmbito do Processo nº236/10.6TBCMN e que corre seus termos no Juízo de Competência Genérica de Caminha, a recorrente foi citada para o incidente de habilitação deduzido pelos adquirentes dos bens penhorados (Cf. Documento 18, junto com a Contestação), incidente no qual se levantou precisamente a questão do quinhão hereditário e dos 2/9 indivisos (cf. página 44 e ss.), onde consta a negrito, em letras maiúsculas, na página 44 desse Documento 18, o seguinte: "DA INEXISTÊNCIA DO DIREITO DE PROPRIEDADE DE QUE A AUTORA SE ARROGA, TAL COMO O CONFIGURA", seguindo-se aí uma detalhada exposição factual, onde se menciona que o direito daquela que nessa acção figura como A. (a aqui Apelante) se reportará a um quinhão hereditário e não a compropriedade.

Quanto ao facto não provado - “2.1. Foi tendo em conta o anúncio de venda formulado na sequência da penhora dos bens indicados pela aí exequente, ora Ré, que a ora A. apresentou proposta de compra” -, resulta evidente, da conjugação de toda a prova documental dos autos e que levaram o tribunal a quo a considerar como provados os demais factos supra enunciados, que o mesmo tem de considerar-se como não provado.
Assim sendo, impõe-se nesta parte a improcedência das conclusões da recorrente.
*
Da verificação dos requisitos para, sem necessidade de mais provas, poder ser proferida decisão de mérito sobre a apreciação total ou parcial dos pedidos, nos termos do art. 595º, nº1, al. b) do Código de Processo Civil

Invoca a apelante que não se encontram ainda reunidos todos os factos necessários à prolação de uma decisão final, designadamente, no que concerne à demonstração da existência ou não de dolo por parte da recorrente aquando da apresentação da sua proposta de compra dos bens penhorados na execução n.º 483/03.7TBCMN, contendo os autos matéria de facto controvertida que carece de instrução, não sendo por isso possível, sem produção de prova, conhecer-se de imediato do mérito da causa.
Afigura-se-nos que a apelante não tem razão.
Vejamos.
O art. 595º, nº1, al. b) do CPC prevê que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Ora, perante o supra exposto e as considerações por nós tecidas no que à matéria de facto questionada no recurso diz respeito, não se nos depara qualquer outro facto concreto relevante para a decisão da causa cuja prova bastante não esteja desde já efectuada.
De resto, a apelante não menciona que outros factos controvertidos ou constantes da sentença carecem de instrução, de modo a poder concluir-se que não estão reunidas as condições legais para ser proferido, como foi, saneador-sentença.
Em todo o caso, face ao caudal de prova documental (não questionada) que bem sustenta a consideração dos factos provados e não provados efectuada na sentença, inútil seria a produção de qualquer outra prova, por não se antever a virtualidade de contrariar aquela, e determinar-se o prosseguimento dos autos para audiência de julgamento.
Deste modo, improcedem também nesta parte as conclusões do recurso.
*
Do enriquecimento sem causa

Na última das conclusões do recurso, alega a recorrente que a venda alheia ocorrida foi geradora de um enriquecimento ilícito para a recorrida e, simultaneamente, causa de um dano para a recorrente que pagou o preço, estando por isso aquela obrigada a restituir à recorrente aquilo com que injustamente se locupletou, ou seja, a quantia de € 14 739,02, acrescida dos respectivos juros de mora - vd. n.º 1 art.º 473.º CC.

Perante o quadro fáctico provado e supra mencionado, vejamos então o seu enquadramento jurídico.
Por via da presente acção pretende a A. obter a declaração de nulidade da venda efectuada no âmbito do processo de execução por alimentos, na qual a mesma foi a compradora/adquirente, com fundamento no disposto nos artigos 892º e ss do Código Civil.
O referido art. 892º do CC diz-nos que “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar, mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa-fé o comprador doloso.”
Como ensina Menezes Cordeiro (in “Direito das Obrigações, 3º vol., Contratos Em Especial, pág. 51 e ss.), pertinentemente citado na sentença recorrida, quanto ao regime jurídico da venda de bens alheios, “Daqui decorre que o preceituado nos artigos 892º e ss pressupõe sempre a ignorância de uma das partes acerca do carácter alheio de coisa.
Trata-se de uma sanção que apenas se refere à relação entre vendedor e comprador.
No que respeita ao verdadeiro titular do bem, a venda é ineficaz, verdadeira res inter alios acta.
Quanto à legitimidade para a arguição da nulidade dispõe-se no artigo 892º que o vendedor não pode opôr a nulidade ao comprador de boa-fé, nem o comprador doloso invocá-la perante o vendedor de boa-fé.
O termo dolo, introduzido por razões de ordem histórica, deve aproximar-se da “má fé”.
“Boa fé” e “má fé” hão-de além disso entender-se predominantemente em sentido ético: há boa fé quando se desconhece sem culpa a alienidade da coisa e má fé quando essa circunstância seja conhecida ou então ignorada por negligência.
O sistema de inoponibilidades instituído oferece à parte de boa-fé o direito de se prevalecer da eficácia do contrato. Não que lhe confira o direito ao cumprimento do dever de entrega do preço ou do dever de entrega da coisa, pois foram precisamente estes deveres que a lei quis impedir que nascessem ao cominar a nulidade.
O alcance da inoponibilidade é outro: conferir à parte de boa-fé determinadas posições apesar da invalidade dos deveres primários de prestação, as quais teriam de pressupôr em princípio a inobservância de deveres primários de prestação perfeitamente válidos e eficazes.
Como consequência da sanção da nulidade, deve a coisa ser restituída ao vendedor pelo comprador, independentemente da boa ou má fé daquele.
A correspectiva obrigação de restituir o preço segue, no entanto, um regime parcialmente diferente do que resultaria da aplicação do artigo 289º.
Assim, se o comprador agiu de má-fé, ele não goza do direito de exigir a restituição integral do preço, por argumento a contrario do artigo 894º, nº1. Apenas lhe podem aproveitar as regras do enriquecimento sem causa (neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado , vol II, 3ª edição, nota 1 ao artigo 894º.
O direito consignado no nº1 do artigo 894º do CC não se aplica ao comprador de má-fé que apenas pode pedir, com base no enriquecimento sem causa – artigo 473º - aquilo com que o vendedor se locupletou.”
Revertendo ao caso dos autos, tendo-se provado que a A., quando adquiriu os bens penhorados no âmbito da execução especial por alimentos nº 483, sabia que os mesmos já não pertenciam ao Executado, e sabia-o desde 2011 ou pelo menos desde 2013, podemos concluir, como na sentença em apreço, que a mesma actuou com dolo.
De modo que, ao assim ter actuado, está vedado à A. opor à R. a nulidade prevista no citado artigo 892º CC, sendo que, por outro lado, inexiste qualquer facto provado ou sequer alegado que permita concluir que a Ré tivesse actuado de má-fé.
Decorre, assim, que está vedado à A. o direito à restituição integral do preço, na medida em que tal direito, ao abrigo do disposto no artigo 894º CC, somente está previsto para o comprador de boa-fé, o que, como vimos, não ocorre in casu.
Acresce que, tal como se entendeu na sentença recorrida, também não assiste à A. o direito à restituição nos termos das regras do enriquecimento sem causa – artigo 473º CC.
Decorre artigo 473º do CC que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outra é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (nº1). A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (nº2).

O enriquecimento sem causa depende, assim, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- existência de um enriquecimento, que esse enriquecimento não tenha causa que justifique, que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição e que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído - Acórdão do STJ de 23.04.1998, BMJ 496, pág 370.

Assim, como refere Galvão Teles, dá-se o enriquecimento sem causa “quando o património de certa pessoa se valoriza ou deixa-se de valorizar à custa de outra pessoa, sem que exista uma causa justificativa. No que concerne ao 1º requisito, podemos dizer que “se dá o enriquecimento a favor de uma pessoa quanto o seu património se valoriza ou deixa de se desvalorizar. O enriquecimento traduz-se na diferença, para mais, entre o valor que o património apresenta e o que apresentaria se não ocorresse determinado facto (…). A valorização por sua vez pode consistir no aumento do activo ou na diminuição do passivo. A não desvalorização dá-se quando se faz uma economia ou poupança, evitando-se uma despesa que doutro modo se realizaria. (1)”
Relativamente ao segundo requisito que consiste no enriquecimento ser obtido à custa de outem, é necessário compreender que a obrigação de restituir, pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
A restituição supõe a deslocação de um valor entre patrimónios havendo um património beneficiado e outro desfalcado. Não é possível pedir a restituição de um valor que não se perdeu. Tem de se sofrer uma privação para se pretender a restituição que a lei fala.
É o empobrecido que a lei aponta como titular do direito creditório emergente do enriquecimento sem causa. (2)
Por fim, temos o último requisito que consiste no facto de o enriquecimento não ter causa justificativa.
Como escreveu Almeida e Costa, reputa-se que o enriquecimento carece de causa, quando o direito não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial”. (3)
Por último, será também necessário ter presente que o artigo 474º do CC estabelece a natureza subsidiária da obrigação, dizendo expressamente que “Não há lugar a restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição, ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Assim, atenda a relação de subsidiariedade, só será admissível lançar mão do enriquecimento sem causa, se se mostrarem esgotadas as hipóteses de aplicação de vários outros institutos.
A este propósito salienta Cunha Gonçalves (4), o seguinte: “Se o individuo que se julga lesado no seu património tiver ao seu dispor uma acção baseada em contrato ou num preceito especial da lei, em estreita e imediata correlação com o facto jurídico em questão, é esta acção que deve usar e não do locupletamento”, sendo que também Pires de Lima e Antunes Varela (5) fazem notar que “quando o enriquecimento assenta sobre um negócio jurídico e o negocio é nulo, a própria declaração do nulidade do acto devolve ao património de cada uma das partes os bens com que outra se podia enriquecer à sua custa.”

Desde modo e em conclusão, o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- existência do enriquecimento;
- que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;
- que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;
- que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído”. (6)

No caso vertente, não se vislumbra que a R., com venda em causa, tenha enriquecido sem causa justificativa à custa da A.
Como bem nota a sentença recorrida, a R. era titular de um direito de crédito; a causa que deu origem ao recebimento do preço pago cuja restituição é peticionada pela A. é a cobrança coerciva por parte da Ré desse direito de crédito, no âmbito de uma acção executiva para pagamento de quantia certa - cobrança de alimentos.
Donde se conclui que não está verificado um dos apontados requisitos cumulativos, determinantes da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, não havendo, por isso, lugar à pretendida restituição.
Por todo o exposto, impõe-se a improcedência de todas as conclusões do recurso.
*

DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Guimarães, 21.11.2019

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
Amílcar José Marques Andrade


1. Cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, pág. 157.
2. Cfr. Galvão Teles, ob. Cit., pág. 160.
3. Cfr. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 4ª edição, pág. 327.
4. Citado por Leite Campos, in Enriquecimento sem causa, pág. 175
5. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 2ª Edição, Volume I, anotação ao artigo 474º
6. Confrontar acórdão do STJ de 23.04.1998, in BMJ 476, pág. 370 e de 14.05.1996, in CJST, 1996, II Volume, pág. 171