Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3678/17.2T8VCT-B.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
TESTEMUNHAS PRESCINDIDAS
INQUIRIÇÃO OFICIOSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
À luz do princípio do inquisitório, o tribunal tem uma margem relativamente generosa de atuação, na busca da prova necessária ao alcance do conhecimento (prático) da verdade dos factos submetidos a juízo, pelo que só em casos extremos a desnecessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio poderá constituir, autonomamente, um fundamento seguro para o recurso da decisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

O Autor instaurou ação peticionando a condenação do Réu a reconhecer a sua paternidade, requerendo para o efeito, como prova, a apresentação de 3 testemunhas.
Em 18.01.2018 foi proferido despacho saneador que, entre o mais, fixou o objeto do litígio e os temas da prova e determinou a realização de exame pericial tendo em vista apurar a paternidade biológica do Autor.
Em 09.11.2018 faleceu o Réu.
Em 09.11.2018 o Tribunal determinou que antes de se realizar o funeral do Réu e sem que se cancelassem as cerimónias fúnebres, se procedesse à recolha, no local onde se encontrava o falecido, das referidas amostras biológicas /ADN.
Em 16.11.2018 foi junto aos autos o relatório pericial das amostras biológicas / ADN do falecido Réu.
Em 23.01.2020 as ora Recorrentes foram habilitadas na qualidade de herdeiras do falecido Réu para, por vez dele, prosseguir os termos da presente causa.
Em 07.09.2020 iniciou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo o Autor aí prescindido das testemunhas por si arroladas.
Pela juíza a quo foi então proferido o seguinte despacho:

Por ser essencial para a descoberta da verdade determino a inquirição das testemunhas arroladas pelo autor.
No mesmo ato, após prolação de tal despacho, arguiram as ora Recorrentes, entre o mais, a nulidade da perícia efetuada ao cadáver do Réu por ter sido produzida sem a presença e a audição daquelas.
Foi então proferido despacho que indeferiu à arguida nulidade, despacho esse relativamente ao qual foi, entretanto, interposto recurso que corre num outro apenso.

Inconformadas com o despacho acima transcrito (em itálico), as Rés interpuseram o presente recurso, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:

1.ª - O Tribunal a quo determina a inquirição das testemunhas arroladas e de que o autor prescindiu por considerar tal prova “essencial para a descoberta da verdade”, porém, não esclarece porque se convenceu da essencialidade do depoimento dessas concretas testemunhas
2.ª - Não foi produzida qualquer prova em sede da audiência de julgamento realizada e, portanto, absolutamente ninguém fez qualquer referência àquelas testemunhas, nem dos autos resulta que tenham qualquer conhecimento de factos que pudessem relevar para a descoberta da verdade material
3.ª - Não se extraindo dos autos nem tendo o tribunal a quo indicado quaisquer razões para presumir que aquelas concretas pessoas têm conhecimento de factos importantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, não se vislumbra nenhum motivo válido para que as possa inquirir se a parte que as arrolou - o autor - delas veio a prescindir- cfr. n.º 2 art.º 498.º e n.º 1 art.º 526.º CPC
Terminam pedindo se revogue o despacho impugnado, deliberando-se a impossibilidade de inquirição das testemunhas arroladas pelo autor.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal.

No caso vertente, as questões a decidir consistem em:
- Saber se a sentença padece de nulidade por não especificar os fundamentos que justificam a decisão;
- Saber se os autos revelam a importância da inquirição de testemunhas oficiosamente ordenada pela primeira instância.
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III. FUNDAMENTOS:

Os factos
A factualidade a considerar é aquela que consta do relatório que antecede.
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- Da eventual nulidade do despacho recorrido

As Rés não arguem expressamente a nulidade da sentença, mas resulta das suas conclusões entenderem que o tribunal recorrido não indica as razões da decisão tomada.
Cumpre, pois, indagar se será a decisão em apreço nula por ser omissa quanto aos seus fundamentos.

Vejamos.
Como todos sabemos, as causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1 do art.º 615º.
Nos termos daquele preceito, é nula a sentença quando, nomeadamente, não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - cfr. alínea b).
O referido vício determinante da nulidade da sentença corresponde à ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), vício que encerra um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutiliza o julgado na parte afetada.
“A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”. (Decisão Sumária da Relação de Coimbra de 06.11.2012).
Isso mesmo ensina Alberto dos Reis: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” (Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág.140).
Deste entendimento não se tem desviado a Doutrina mais recente (Lebre de Freitas, in Código Processo Civil, pág. 297; Rodrigues Bastos, in "Notas ao Código de Processo Civil", III, pág.194).
Assim sendo, considerando que, no caso em apreço, a juíza a quo consignou que o determinado assentava na razão de tal ser essencial para a descoberta da verdade, a decisão recorrida, apesar de parca na fundamentação, do ponto de vista formal não se traduz numa decisão que careça, em absoluto, da mesma.
Face ao exposto, não se pode concluir pela nulidade da decisão sob recurso.
Acresce que, ainda que fosse de concluir pela existência de tal nulidade, sempre se imporia a este Tribunal, por força da regra da substituição prevista no art. 665º, nº 1, do CPC, indagar e decidir se, nas circunstâncias dos autos, era de proceder à inquirição em causa fazendo uso dos poderes instrutórios.

- Da subsunção jurídica dos factos

“Mais do que desempenharem uma mera função orientadora do legislador, os princípios conformam as normas legais, dotando-as de um determinado sentido operativo.” (Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova por presunção no direito civil, pág. 43).
No presente caso, o que se questiona é a violação do disposto no art. 526º do CPC, segundo o qual, quando no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor, preceito que constitui um dos afloramentos do princípio do inquisitório.
A propósito deste princípio, é de relembrar que “a prova dos factos da causa deixou, no processo civil actual, de constituir monopólio das partes”, encontrando-se “definitivamente ultrapassado” “o papel do juiz árbitro” (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, pág. 138), tendo, pelo contrário, o juiz, de harmonia com o previsto no art. 411º do CPC, o poder-dever (como hoje já é pacífico) de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade, sendo várias as normas, no âmbito da instrução, que concretizam o “princípio do inquisitório” consagrado no aludido preceito, entre elas, as contidas nos artigos 429º, 432º, 436º, 452º, 477º, 490º, 494º, 526º e 604º, nº 3, c), todos do CPC.
Quanto aos termos e limites do exercício deste poder-dever, acompanhamos a posição assumida por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa quando escrevem: “Da confluência destas e de outras normas e daquele princípio somos levados a admitir que (…) cumpre ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade.” (CPC Anotado, Vol. I, pág. 484).
A intenção do legislador não foi a de disponibilizar ao juiz um instrumento probatório cujo uso ficasse entregue à sua vontade discricionária, mas sim a de o vincular ao uso do poder conferido, “utilizando um critério objetivo para aferir da necessidade ou da conveniência das diligências probatórias suplementares com vista ao apuramento da verdade” (Abrantes Geraldes e Outros, obra e local citados).
Isto dito, forçoso é reconhecer que, à luz do aludido princípio, o tribunal tem “uma margem relativamente generosa de actuação, na busca da prova necessária ao alcance do conhecimento (prático) da verdade dos factos submetidos a juízo”. E se há, aqui, “uma certa assimetria entre as partes e o juiz, no sentido em que este pode, por regra, promover diligências instrutórias tendo por base, apenas, a conveniência das mesmas, enquanto que a parte não pode, sem mais, determinar o juiz a recorrer a elas”, “tal diferença na posição destes sujeitos processuais não deve surpreender e espelha, de certo modo, a (…) diferente natureza jurídica do direito da parte à prova e do poder-dever do juiz na investigação dos factos”, sublinhando-se, mais uma vez, que o essencial, no que toca ao último, é não esquecer que, “por força deste, o juiz deve diligenciar pela prova em função do seu juízo quanto à respectiva necessidade”, sendo o modo de surgimento mais natural do uso dos poderes instrutórios do juiz “desligado da vontade das partes, eventualmente até contra essa mesma vontade” (Nuno de Lemos Jorge, in “Os poderes instrutórios do juiz: alguns problemas”, artigo publicado na revista JULGAR - N.º 3 – 2007, pág.´s 61 a 84).
Daí que “a desnecessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio só em casos extremos poderá constituir, autonomamente, um fundamento seguro para o recurso da decisão. Só o tribunal sabe da sua necessidade de esclarecimento. Convém lembrar, aliás, que a providência pode parecer útil e revelar-se, afinal, inútil nos seus resultados. Se o juiz pretende ouvir certa testemunha por acreditar que conhece factos relevantes, pode bem suceder que ela os não conheça. Tal circunstância não implica, porém, que não se haja preenchido o requisito da necessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, uma vez que (…) essa necessidade é potencial (não se afere pelo resultado), devendo a sua utilidade eventual resultar de outros elementos presentes nos autos.” (artigo citado, pág. 76).
Com particular relevância para o caso em apreço, recorde-se ainda que, de harmonia com o disposto no art. 498º, nº 2, do CPC, a parte pode desistir a todo o tempo da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa.
Na verdade, “não se vê em que é que pode diferir a situação da testemunha que não foi arrolada daquela que o foi, tendo sido posteriormente prescindida. Ou seja, tendo o tribunal razões para presumir que determinada pessoa tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão, não se vislumbra nenhum motivo válido para que fique impedido de a inquirir porque uma das partes a arrolou e dela veio a prescindir” (Acórdão da Relação do Porto, 2 de maio de 2013, Relator - José Manuel Ferreira de Araújo Barros).
Importa ainda frisar que a aplicação do art. 526º do CPC não exige que a pertinência do depoimento advenha da inquirição de outra (ou da produção de outro meio de prova), bastando que “a convicção acerca da importância do depoimento releve dos autos” (Abrantes Geraldes e outros, in CPC Anotado, I, pág. 577). E se, é de aceitar ser, “em geral, insuficiente que a testemunha seja revelada pela própria parte a quem interessa a sua inquirição” (autores, obra e local citados), casos há, como o presente, em que, ponderando as particularidades do processo e a globalidade da prova produzida e a produzir, o arrolamento, anteriormente efetuado por uma das partes, de determinadas pessoas como testemunhas, que vieram entretanto a ser prescindidas, pode e deve, tendo presente o fim último do processo, ser considerado suficiente para sustentar a decisão da sua inquirição oficiosa.

Senão vejamos.

No caso, a instrução da causa estava reduzida à inquirição das testemunhas arroladas pelo Autor e ao relatório pericial constante dos autos.
Prescindida a prova testemunhal, restava o referido relatório pericial, relatório esse que, na generalidade dos casos, seria o exclusivamente necessário ao conhecimento da causa.
Sucede, porém, que, no caso particular em apreço, a amostra foi colhida e o relatório elaborado após a morte do Réu, numa fase prévia à habilitação das herdeiras deste, circunstância que potenciava a arguição da nulidade do mesmo (arguição essa que, como resulta do relatório que antecede, veio efetivamente a ser arguida logo após ter sido prescindida a inquirição das testemunhas arroladas).
Era, pois, de antecipar, como se vê claramente que a juíza a quo antecipou, a necessidade de produção de outra prova que não a perícia.
Ora, para além da constituída pelas testemunhas prescindidas, nenhuma outra prova se vislumbrava existir sobre os factos constitutivos do direito do Autor, resultando a utilidade eventual de tal inquirição da circunstância de terem sido arroladas para aquele efeito, ao que, aliás, acresce, que duas das testemunhas têm o mesmo apelido da mãe do Autor (o que faz supor a existência de uma relação familiar), circunstância que, tendo em conta a natureza da ação (para reconhecimento da paternidade) é suscetível de indiciar a possibilidade de um conhecimento de factos de carater pessoal, como são os relacionados com o alegado relacionamento sexual entre a mãe do Autor e o alegado pai.
Assim, para além de constatada a necessidade de produzir prova para além da pericial, havia também fundamento para crer, com alguma segurança, que o depoimento das testemunhas em causa poderia ser esclarecedor quanto aos factos que ao tribunal cumpria conhecer.
Neste quadro, afigura-se evidente a importância da sua inquirição para a realização do fim último do processo – o da prossecução do “interesse público do Estado na prestação da tutela jurisdicional”, na “justa e célere composição do litígio”, objetivo que deve ser comum a todos – magistrados e partes – constituindo para o juiz um autêntico dever, como aliás resulta do disposto no art. 6º, nº 1, do CPC.
Face ao exposto, improcede a apelação.

Sumário:

- À luz do princípio do inquisitório, o tribunal tem uma margem relativamente generosa de atuação, na busca da prova necessária ao alcance do conhecimento (prático) da verdade dos factos submetidos a juízo, pelo que só em casos extremos a desnecessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio poderá constituir, autonomamente, um fundamento seguro para o recurso da decisão.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelas Recorrentes.
Guimarães, 12.11.2020

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues