Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3747/13.8TBBRG-C.G1
Relator: HENRIQUE ANDRADE
Descritores: CIRE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PREJUÍZO
PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – A nulidade decorrente da omissão de pronúncia sobre o pedido de exoneração do passivo restante, no momento alegadamente azado para o efeito, porque não constitui nulidade do despacho de indeferimento daquele pedido, teria que ser arguida no prazo previsto no artº195.º, nº1, do CPC, com a alegação da razão por que a preterição em questão poderia influir no exame ou decisão da causa;
II – A decisão recorrida é nula, porquanto, tendo entendido aplicável ao caso em apreço o disposto no artº238.º, nº1, alínea d), do CIRE, não regista, no respectivo probatório, qualquer facto atinente aos prejuízos que, aos credores, terá causado a circunstância de o devedor não se ter apresentado à insolvência no prazo de 6 meses a que se refere o dito normativo.
Decisão Texto Integral: Decisão sumária, nos termos do artº656.º do actual CPC:

I – “Após ter sido citado para os termos do processo, o insolvente A… veio requereu a exoneração do seu passivo restante, tendo declarado expressamente, nos termos do disposto no artigo 236º, nº 3, do CIRE, preencher os requisitos necessários à concessão de tal benefício.
Foi proferida sentença declarativa da insolvência e designada data para assembleia de apreciação de relatório.
Em assembleia de apreciação do relatório, foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação e, no que tange ao pedido de exoneração do passivo restante, foi relegada tal decisão para posterior despacho.
No sentido do indeferimento da concessão da exoneração do passivo restante, pronunciaram-se o MINISTÉRIO PÚBLICO (fls. 183 a 191), assim como o credor B…, SA (fls.139).”.
A final, 11-06-2014, foi, doutamente, indeferido liminarmente aquele pedido de exoneração.
Inconformado, o requerente apela do assim decidido, concluindo deste modo:
“1. Esta figura jurídica conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
2. É uma medida que constitui para os insolventes singulares uma protecção que se pode traduzir tanto num perdão de poucas como de elevadas quantias e montantes, exonerando-os dos seus débitos, com a contrapartida, para os credores, da perda correspondente dos seus créditos.
3. O despacho liminar da exoneração deve ser proferido na assembleia de credores, só não devendo ser se ocorrer motivo fundamentado que o impeça – como acontece v.g., na hipótese de o pedido ser efectuado na própria assembleia de credores, em que o juiz pode recorrer aos 10 dias previstos no aludido artigo para lançar mão de alguma diligência probatória.
4. Prescreve o CIRE, no art.º 239 que “Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes.”
5. Em face do silencia da lei entendemos que este despacho deve ser proferido na assembleia de credores, só não devendo ser se ocorrer motivo fundamentado que o impeça – como acontece v.g., na hipótese de o pedido ser efectuado na própria assembleia de credores, em que o juiz pode recorrer ao 10 dias previstos no aludido artigo para lançar mão de alguma diligencia probatória.
6. É no momento do despacho inicial que se tem de analisar, através da ponderação de dados objectivos, se a conduta do devedor tem a possibilidade de ser merecedora de uma nova oportunidade, configurando este despacho quando positivo, uma declaração de que a exoneração do passivo restante será concedida, se as demais condições futuras exigidas vierem a ser cumpridas.
7. O MMº Juiz a quo não tinha motivos (nem tem) - ao tempo da assembleia de credores - para indeferir o pedido de exoneração do passivo, pelo que deveria ter-se pronunciado positivamente e em tempo oportuno.
8. Assim sendo, estamos perante uma omissão de pronúncia no prazo legalmente estabelecido, pelo que a cominação prevista é a nulidade nos termos do art. 195 do CPC ex vi o art.º 17 do CIRE.
9. Os requisitos impostos pelo artigo 238.º do CIRE, são cumulativos, pelo que, não se verificando os mesmos, um a um, não era caso de indeferimento liminar da pretensão do recorrente (vide Acordão STJ de 21-10-2010).
10. Não se encontram invocados todos os factos constantes do artigo 238.º do CIRE, que levaram ao indeferimento da exoneração, sendo que, por esta ausência de fundamentação, padece a referida decisão do vício da nulidade. (art.º 615, n.º 1, b)).
11. Os requisitos cumulativos da referida disposição legal não foram enunciados, nem factualmente documentados pelo credor B…, S.A, tal como se afere a fls 139, bastando-se apenas com a alegação sobre o atraso na apresentação à insolvência, pelo que não deve ser considerado.
12. A doação efectuada pelo insolvente à filha não trouxe qualquer prejuízo para os credores, uma vez que as garantias que os credores detinham em relação aos bens imóveis não ficaram afectadas com a doação efectuada por parte do insolvente.
13. Apesar de em 29 de Dezembro de 2012, o insolvente ter doado á sua filha, por escritura pública as fracções autónomas designadas pelas letras “D” e “L”, melhores identificadas a fls. 176 e 177, não prova que tenha actuado com o intuito de fugir ao pagamento aos credores, nem de agravar a sua situação de insolvência.
14. Na data em que foi efectuada a doação das fracções supra referenciadas, já incidiam registados sobre os imóveis os vários ónus e encargos a favor dos vários credores, os quais supra se referiram.
15. Por outro lado, o valor reclamado pelos credores nos presentes autos de insolvência, no montante de € 290.092,89 é manifesta e absolutamente superior ao valor das duas fracções autónomas em apreço, pelo que, o acto de transmissão em si, não contribuiu em nada para o agravamento da situação da insolvência do recorrente, nem constituiu uma fuga ao pagamento dos créditos aos credores.
16. Todos os ónus registados supra referidos acompanharam os bens e continuaram a afectar os imóveis transmitidos exactamente da mesma forma que o afectavam antes da transmissão, o que, torna esta absolutamente inócua em relação ao agravamento ou não da sua situação de insolvência.
17. O insolvente não actuou de forma dolosa ou com culpa grave no intuito de subtrair o bem ao direito/conhecimento dos credores e respetiva ação legal, pelo que, e precisamente por isso, não houve ocultação do património do insolvente.
18. Os requisitos enunciados no artigo supra descrito, não se encontram preenchidos, pelo que, no entender do mesmo, não existe motivo para o indeferimento liminar havido.
19. Ao contrário do que resulta dos factos considerados nos autos, as prestações referentes ao mútuo celebrado entre o B…, S.A e a sociedade S…, Lda, no qual o aqui recorrente era avalista, sempre foram liquidadas.
20. É patente o abuso do direito do credor B…, S.A nesta matéria, porque se por um lado, alega que houve um atraso na apresentação á insolvência por parte do insolvente, o facto, é que junta elementos aos autos (tal como resulta da alínea d) do artigo 9.º) que levam o MMº juiz a quo a dar como provado que o “insolvente avalizou livrança em branco, em incumprimento desde 18 de Abril de 2013”, pelo que, forçoso será de concluir que, se a referida livrança apenas está em incumprimento desde Abril de 2013 então inexiste qualquer incumprimento no dever de apresentação á insolvência, uma vez que, foi o mesmo declarado insolvente em Julho de 2013.
21. Por outro lado, existe uma contradição inegável ente os factos provados no douto despacho recorrido e a fundamentação pois não é possível dar como provado as alíneas a,) b), c,) e d) do artigo 9.º dos factos considerados provados e entender-se que o insolvente deveria ter-se apresentado á insolvência até Julho de 2011.
22. Se ficou provado que o insolvente apenas entrou em incumprimento em Abril/Julho de 2013, não se pode sustentar que o mesmo deveria ter-se apresentado á insolvência em Junho de 2011, para efeitos da exoneração.
23. Ainda que assim não fosse, o mero atraso na apresentação à insolvência não deve levar ao indeferimento “liminar” de que fala o art. 238.º do CIRE, desacompanhado da constatação de prejuízo dele decorrente para os credores e da consciência da impossibilidade de melhoria da situação económica por parte do devedor, i e., da definitividade da situação de insolvência.
24. Na realidade, o prazo previsto na lei, deve contar-se só e após esgotadas todas as negociações entre as partes.
25. Mesmo que se entenda concluir que a situação de insolvência do recorrente havia ocorrido há mais de seis meses, tal facto, não determinaria só por si o indeferimento liminar do pedido formulado, uma vez que ainda se teria que constatar que esse atraso havia prejudicado os interesses dos credores, nomeadamente por ter contribuído para o agravamento da sua situação de insolvência, e que o insolvente sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica, uma vez, que o preenchimento destes requisitos como fundamento do indeferimento liminar é cumulativo.
26. Em suma: a douta decisão impugnada não pode manter-se, pois violou o disposto no art.º 239 do CIRE e art.º 615 n.º1, ali) b) do CPC, ex vi do artigo 17.º do CIRE.”.
Em contra-alegações, o Ministério Público pronuncia-se no sentido da improcedência do recurso.

O recurso é o próprio, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o que se fará em decisão sumária, atenta a respectiva simplicidade.
II – As questões a decidir são as que abaixo se enunciam.
III – Fundamentação:
i) Nulidade decorrente de omissão de pronúncia no prazo legalmente estabelecido:
Segundo o recorrente, o Mmº Juiz deveria ter-se pronunciado sobre o seu pedido de exoneração do passivo restante, aquando da realização da assembleia de credores, ocorrendo, porque o não fez, a enunciada nulidade.
Vejamos:
A nulidade em questão não o é da decisão impugnada, pelo que deveria ter sido arguida num dos prazos previstos no artº199.º, nº1, do CPC, o que não se mostra feito.
Por outro lado, não diz o recorrente em que medida pode a suposta irregularidade cometida influir no exame ou decisão da causa (como se prevê no artº195.º, nº1, parte final, do CPC), o que, sempre, impediria o conhecimento da questão, visto que também não vem indicada, nem se conhece, a norma que declare a invocada nulidade.
Por aqui, claudica, pois, o recurso.

ii) A factualidade assente:
É a constante da decisão recorrida, para ela se remetendo, ao abrigo do disposto no artº663.º, nº6, do actual CPC.

iii) A nulidade decorrente da falta de invocação de “todos os factos constantes do artº238.º do CIRE”:
Da articulação entre as conclusões 10 e 11, parece resultar que o recorrente tem em vista o “prejuízo para os credores” de que fala a alínea d) do nº1 do artº238.º do CIRE.
Que dizer:
Efectivamente, do probatório não consta qualquer ponto que se reporte ao elemento em questão.
Poderá obtemperar-se que se trata de matéria conclusiva (a extrair, pois, de verdadeiros factos), e não (de matéria) factual.
Não cremos que o argumento proceda.
Haverá, por certo, situações em que o atraso na apresentação à insolvência cause prejuízos notórios, e facilmente contabilizáveis, aos credores, mas outras ocorrerão em que tal não sucede.
No primeiro, o probatório terá, naturalmente e ainda assim, que reflectir tal notoriedade ou contabilização.
No segundo, deverá fazer-se um esforço instrutório (adentro das regras processuais aplicáveis, como é evidente) no sentido de tornar tão clara quanto possível a existência desses prejuízos, e levar o seu resultado ao probatório.
Aliás, a decisão recorrida “navega nestas águas”, sufragando o entendimento de que não pode concluir-se que, do mero atraso na dita apresentação do insolvente, resultam necessariamente prejuízos para os credores.
De referir que, na decisão recorrida, a propósito dos prejuízos para os credores, se argumenta com a doação feita, em Dezembro de 2011, pelo insolvente, a uma sua filha, dos dois prédios que, aparentemente, constituíam todo o seu património imobiliário.
Isto, depois de se ter considerado que seria a partir de Janeiro desse ano que o insolvente deveria ter contado os seis meses de que fala a dita alínea, o que parece inculcar que se quer fazer uma ligação entre tal doação e aqueles prejuízos.
Mas os prejuízos de que fala a lei hão-de advir, como parece evidente, do incumprimento daquele prazo e não de alguma circunstância que com esse incumprimento não se relacione, designadamente quando ela é, notoriamente, posterior ao termo daquele prazo.
A decisão é, pois, como propugna o recorrente, nula, por isso que não especifica (todos) os fundamentos de facto que a justificam – artº615.º, nº1, alínea b), do CPC.
E, como dos autos não constam todos os elementos que, provavelmente, são coligíveis e permitam uma decisão conscienciosa, não poderá este tribunal substituir-se ao recorrido, como se prevê no artº665.º, nº1, do CPC, devendo este, sentindo-se para tanto habilitado, reformular a decisão de facto, por forma a fazer dela constar os ditos prejuízos, ou, nesta óptica, reabrir a instrução do processo.
Em suma, o recurso, com mérito, deverá proceder.

Em síntese:
I – A nulidade decorrente da omissão de pronúncia sobre o pedido de exoneração do passivo restante, no momento alegadamente azado para o efeito, porque não constitui nulidade do despacho de indeferimento daquele pedido, teria que ser arguida no prazo previsto no artº195.º, nº1, do CPC, com a alegação da razão por que a preterição em questão poderia influir no exame ou decisão da causa;
II – A decisão recorrida é nula, porquanto, tendo entendido aplicável ao caso em apreço o disposto no artº238.º, nº1, alínea d), do CIRE, não regista, no respectivo probatório, qualquer facto atinente aos prejuízos que, aos credores, terá causado a circunstância de o devedor não se ter apresentado à insolvência no prazo de 6 meses a que se refere o dito normativo.

IV – Decisão:
São termos em que, julgando a apelação procedente, anula-se a decisão recorrida, e os trâmites dela dependentes, para que, no tribunal recorrido, se proceda do modo acima exposto.
Custas a final.

• Os trechos entre aspas são transcritos ipsis verbis.
• Entende-se que a reclamação para a conferência, nos termos do artº652.º, nº3, do actual CPC, está sujeita a custas [tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais, in fine (0,25 a 3)], devendo observar-se o disposto no artº14.º, nº1, deste.
Guimarães, 16-09-2014
Henrique Andrade