Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
465/04.1GBGMR.G1
Relator: NAZARÉ SARAIVA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
EXIBICIONISMO
DESCRIMINALIZAÇÃO
MENOR DE 14 ANOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A mera prática de actos de carácter exibicionista perante menor de 14 anos, que integrava a prática do crime consumado p.p. no artº172º, nº 3, al. a), do CPenal, na redacção dada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março Desde que se verificasse, como é óbvio, o elemento subjectivo. deixou de constituir um ilícito nos quadros da lei nova (Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Guimarães.

No 2º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da comarca de Guimarães, procº comum nº465/04.1GBGMR, o arguido Mário P..., com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, sob a imputação da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças p. p., à data dos factos, pelo artº 152º, nº 3, al. a) do Código Penal, na redacção dada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março.

A final foi proferida sentença, constando do respectivo dispositivo, o que se segue (transcrição):

“Pelo exposto:

1. Atenta a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro ao art. 171º, n.º 3, al. a), do Cód. Penal, julgo descriminalizada a conduta do arguido em causa nos presentes autos e, consequentemente absolvo o arguido Mário P... da acusação que ao mesmo é imputada nos autos.

2. Sem custas criminais.”

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Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o Ministério Público onde, em síntese, defende que:

- «No caso, os elementos da lei nova e da lei velha verificam-se nos factos dados como assentes: existe efectivamente com a lei nova uma restrição do âmbito da punibilidade; contudo, os factos comprovados na Sentença continuam a ser puníveis, já que o elemento típico novo (o importunar, isto é, o perigo concreto) já se verificava à data da prática dos factos dados como assentes, não havendo qualquer verdadeira eliminação da infracção, tendo-se de rejeitar a ideia de descriminalização»;

- «Ou seja, reformulando, os elementos típicos do crime em apreço tal como resulta da factualidade dada como assente, verificam-se tanto à luz da norma revogada como da lei nova, não se podendo falar verdadeiramente em descriminalização, mas em mera adição de um novo elemento que não existia na previsão do Código Penal na versão do Decreto- Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, revisto e publicado em anexo pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, vigente desde 1 de Outubro de 1995, o que representa tão só restrição do âmbito da punibilidade»;

- «Vista a argumentação antecedente, deve-se aplicar ao arguido a pena parcelar de um ano por cada um dos crimes de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo art. 171, nº 3, al. a), do CP na redacção dada pelas leis nº 59/2007 de 4.9 e nº 61/2008, de 31.10, sendo concretamente mais favorável ao arguido o regime punitivo da nova lei»;

- «Em cúmulo, é de lhe aplicar a pena de um ano e seis meses de prisão suspensa por igual período com a condição de (…)».


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Respondeu o arguido pugnando no sentido da confirmação do julgado.

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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece obter provimento.

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Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo arguido.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Factos provados e não provados constantes da sentença recorrida (transcrição):
“Com interesse para a causa resultou a seguinte matéria de facto provada:
a) Mariana A... nasceu no dia 20 de Maio de 2001 e é filha de António A... e de Gracinda S....

b) No dia 08 de Junho de 2004, cerca das 11h30m, o arguido Mário, conduzia a viatura de matrícula ABX no lugar de M..., Airão, Santa Maria, área desta comarca.

c) Aproximou-se da casa de Rosa F..., avó materna da Mariana, e onde esta se encontrava a brincar no terraço.

d) Após sair da viatura, o arguido aproximou-se do referido terraço e retirou o seu pénis para fora das calças e segurando-o na mão ao mesmo tempo que o abanava dirigiu-se à Mariana;

e) No dia 18 de Junho de 2004, cerca das 12 horas, na Rua Arcebispo A..., Airão, o arguido abeirou-se da testemunha Maria e da menor Mariana F..., nascida em 03/02/2002, e de seguida retirou o pénis para fora das calças e começou a masturbar-se à frente da menor Mariana e de Maria.

f) O arguido bem sabia que a Maria e a Mariana tinham menos de 14 anos de idade aquando dos factos.

g) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de exibir perante as referidas menores os seus órgãos genitais (o pénis), com actos masturbatórios, o que logrou conseguir.

h) O arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos libidinosos, apesar de saber que a Maria e a Mariana eram menores de 14 anos de idade e que assim podia atentar e prejudicar o livre desenvolvimento da personalidade destas.

i) O arguido sabia que aquela conduta era proibida e punida por lei penal.

j) A menor Maria após os factos descritos na al. d) foi ao encontro da sua avó e referiu-lhe “ó avó está lá fora um homem com pila grande a fazer assim”, ao mesmo tempo que fazia gestos com as mãos para frente e para trás; e durante algum falou sobre os factos mencionando “o homem de pila grande”;
l) A menor Mariana nunca relatou a conduta acima descrita do arguido, quer espontaneamente quer quando lhe perguntavam o que se tinha passado a propósito, demonstrando para com a testemunha Elisabete e os pais da menor nem sequer se ter apercebido de tal conduta.
m) O arguido padeceu, durante todo o ano de 2004 e até Agosto de 2006, de dependência de bebidas alcoólicas, o que lhe provocava constantes estados de inconsciência, de consciência débil e/ou alterada, crises psicóticas e perturbações comportamentais aos mais variados níveis, mormente ao nível de relacionamento familiar, social e da sua libido.
n) Durante tal período de tempo envolvia-se em discussões constantes e em agressões físicas, não trabalhava, não tinha vida familiar, deixou de residir com a família durante oito meses no final do ano de 2006; esteve internado no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar do Alto do Ave E.P.E., desde 16.10.06 até 24.10.06 e a partir daí recebeu tratamento psiquiátrico em ambulatório, tendo mantido abstinência e ausência de alterações comportamentais o que determinou a atribuição de alta médica em 14.11.2008.
o) Actualmente o arguido não ingere álcool, vive com a mulher e filhos, mantendo uma relação com estes pautada pela normalidade, e trabalha.
p) À data dos factos o arguido era imputável,
q) O arguido não tem antecedentes criminais.


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Matéria de facto não provada.

Com interesse para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:

- que o arguido se tivesse dirigido à menor Maria dizendo-lhe “ó menina cheira aqui”.


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FUNDAMENTAÇÃO:

Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – artº 412º, nº 1, do CPP.

In casu, a única questão trazida à apreciação desta Relação consiste em saber se está despenalizada a conduta do arguido, prevista e punida, à data dos factos, pelo artº 172º, nº 3, al. a), do CPenal, na redacção dada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, face à entrada em vigor do artº 171º, nº 3, al. a), do CPenal, na redacção introduzida pelas Leis nº 59/2007, de 4 de Setembro, e 61/2008, de 31 de Outubro.

Vejamos…

Dispõe o artº 2º do Cód. Penal:

“ 1 - As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.

2 - O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.

3- (...)

4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver salvo havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.»

Temos, assim, que o nº 1 deste preceito consagra a regra conhecida como da não retroactividade das leis penais, enquanto no nº 2 é formulada a primeira excepção àquela regra.

E compreende-se a razão desta excepção pois, como refere Maia Gonçalves, se uma nova lei deixa de incriminar factos que a lei anterior incriminava, significa isso que o legislador entendeu, em mais adequada e actualizada visão dos valores legalmente protegidos, que os factos não são criminalmente censuráveis. Não faria, em tais termos, sentido persistir-se na incriminação, pelo que não deve mais aplicar-se a lei anterior.” Cfr. Código Penal Português”, Almedina, 8ª ed., 1995, pág. 177.

Pois bem, presente o citado normativo, importa surpreender qual é a concreta conduta considerada criminosa à luz do preceituado no artº 172º, nº 3, al. a), do CPenal, na redacção dada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março:

“Quem praticar acto de carácter exibicionista perante menor de 14 anos é punido com pena de prisão até 3 anos».

A propósito do bem jurídico protegido, escreve o Prof. Figueiredo Dias: “ Trata-se ainda nele, pode dizer-se, de proteger a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livro desenvolvimento da sua personalidade.» Cfr. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999,Tomo I, pág.541

Assim, para a consumação deste crime, basta que o agente ( que pode ser qualquer pessoa) pratique actos de carácter exibicionista, mas necessariamente conotados com o sexo, perante uma criança ou um jovem menor de 14 anos ( de qualquer sexo), sendo «tipicamente indiferente … que a vitima seja ou não sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o acto sexual que …perante ela se pratica …, que lhe caiba uma intervenção activa (mesmo a iniciativa) ou puramente passiva no processo», ou sequer que a acção do agente crie um perigo efectivo. É ainda necessário que o agente actue com dolo, ainda que sob a forma de dolo eventual.

Estamos, pois, perante um crime de perigo abstracto «na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada (…). Por isso tem aqui plena aplicação a ideia-base do crime de perigo abstracto (…) de que o bem jurídico protegido constitui apenas a ratio legis, o motivo que conduziu o legislador, mas se não traduz no tipo objectivo de ilícito». Cfr. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 542.

Acontece que face à Reforma Penal de 2007 (Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro) o crime de abuso sexual de crianças passou a constituir o artº 171º, passando o nº 3, al. a), deste preceito, a estatuir que será punido com pena de prisão «quem importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170º».

E o artigo 170º, na redacção introduzida pela citada Lei nº 59/2007, estatui:

Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».

Ou seja, actualmente, para a consumação do crime p.p no artº 171º, nº 3, al. a), com referência ao artº 170º, ambos do CPenal, exige-se que o agente, com a prática do acto de carácter exibicionista, importune menor de 14 anos, isto é, ponha em perigo a liberdade de autodeterminação sexual O bem jurídico protegido continua a ser o mesmo. da vítima menor de 14 anos. Quanto ao lado subjectivo do tipo de ilícito, o agente tem de estender o seu dolo (em qualquer das suas modalidades) a todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, nomeadamente ao elemento «importunar menor de 14 anos».

O que significa que actualmente o crime de abuso sexual de crianças previsto e punido no artigo 171º, nº 3, al. a), com referência ao artº 170º, ambos do CPenal, passou a configurar um crime de perigo concreto. Já não basta, tal como ocorria na lei anterior, a prática de actos de carácter exibicionista perante menor de 14 anos. O legislador da Reforma Penal de 2007 entendeu que só se verifica o crime se existir (se se provar) o perigo concreto para a liberdade de autodeterminação sexual da vítima menor de 14 anos.

Aliás, já a propósito do crime de actos exibicionistas, p. p. no artigo 171º, na versão anterior à Reforma Penal de 2007, escrevia Anabela Miranda Rodrigues:

Trata-se, neste sentido, de um crime de resultado pois que, para além da prática dos actos exibicionistas, é preciso que a vítima seja importunada, no sentido que se vem defendendo ( a sua liberdade de autodeterminação sexual é posta em perigo com a sua prática)». Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, I, pág. 539.

Temos, pois, que a mera prática de actos de carácter exibicionista perante menor de 14 anos, que integrava a prática do crime consumado p.p. no artº172º, nº 3, al. a), do CPenal, na redacção dada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março Desde que se verificasse, como é óbvio, o elemento subjectivo., passou, com a Reforma Penal de 2007, a ser “indiferente” para o direito penal, o mesmo é dizer que tal conduta deixou de constituir um ilícito nos quadros da lei nova, tanto mais que tal conduta nem sequer é passível de configurar uma tentativa punível à luz da lei nova, face ao disposto no artº 23º, nº 1, do CPenal.

É certo que o Ministério Público recorrente defende que «No caso, os elementos da lei nova e da lei velha verificam-se nos factos dados como assentes: existe efectivamente com a lei nova uma restrição do âmbito da punibilidade; contudo, os factos comprovados na Sentença continuam a ser puníveis, já que o elemento típico novo (o importunar, isto é, o perigo concreto) já se verificava à data da prática dos factos dados como assentes, não havendo qualquer verdadeira eliminação da infracção, tendo-se de rejeitar a ideia de descriminalização».

É um entendimento defendido por alguns autores, como nos dá conta o Prof. Taipa de Carvalho, a fls 200, da sua obra “Direito Penal, Parte Geral”, 2ª ed.:

«Segundo uns autores (Jakobs, Padovani), o facto praticado na vigência da L.A. (que é menos exigente que a lei nova, pois esta exige mais elementos para que o facto seja crime), mantém-se punível, desde que revista as características exigidas pela L.N., havendo somente que ver qual a pena mais leve (se a da L.A. ou da L.N.), que será aplicada».

Porém, quanto a nós, não podemos deixar de subscrever a posição do Professor Taipa de Carvalho quando defende, a par de outros autores, que «quando L.N. vem acrescentar novas exigências (novos elementos), aumentando, portanto, a compreensão típica e diminuindo a extensão da punibilidade, a sua entrada em vigor determina a despenalização das condutas praticadas na vigência da L.A., mesmo que tais condutas preencham os pressupostos que passaram a constar da L.N.», pois que «…aceitar a continuidade da punibilidade era estar a valorar, retroactivamente, como típica uma circunstância que, na altura em que o facto foi praticado, não era.»- Vd. Ob. cit., pág. 200, § 363

E, conclui o mesmo Prof.:

Ora, sempre que a manutenção da punibilidade da conduta pressuponha a retroactividade da valoração como típica de uma circunstância que o não era, tal manutenção tem de recusar-se, pois que violar-se-ia a proibição da retroactividade desfavorável». - Vd. Ob. cit., pág. 201, § 363 (salientados nossos)

De todo o modo e a talho de foice sempre se dirá que ainda que se seguisse a tese defendida pelo Ministério Público recorrente – e não se segue – sempre o mesmo careceria de razão quanto à pretendida manutenção da punibilidade da conduta do arguido no que se refere à menor Mariana F....

Com efeito, no que a tal menor concerne, os factos dados como assentes não preenchem as características exigidas pela L.N., ou seja, o elemento típico adicionado «importunar». – vd. a matéria de facto dada como provada na alínea l), da sentença recorrida.

Concluindo: o recurso improcede.


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Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.

Não há lugar a tributação.