Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
343/11.8TBCMN.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
EXTINÇÃO DA SERVIDÃO
USUCAPIÃO
POSSE
ANIMUS
PRESUNÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Para que o direito de servidão de passagem invocado pelos Autores pudesse ser constituído por Usucapião, em princípio, teriam aqueles que alegar e provar o elemento psicológico da posse, ou seja, o “animus”, que, como é sabido, consiste na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.

II. Sucede que o legislador, no art. 1252º, nº 2 do CPC, reconhecendo que muitas vezes é difícil a prova daquela intenção subjectiva, estabelece que, em “caso de dúvida, presume-se a posse naquela que exerce o poder de facto”.

III. Está-se, assim, naquele preceito legal perante uma presunção legal, isto é, uma ilação que a lei tira de um facto conhecido, o facto-base da presunção (no caso, o exercício do poder de facto sobre uma coisa) para firmar um facto desconhecido, o facto presumido (no caso, a efectiva existência de um animus sibi possidendi), conforme art. 349º do CC.

IV. Assim, no caso concreto, tem que se entender que quem detém o poder de facto sobre uma coisa, podendo fazê-lo, não tem de provar que exerce esse poder convicto que corresponde ao exercício do respectivo direito real, uma vez que beneficia daquela presunção legal prevista no art. 1252º, nº 2 do CC.

V- A parte contrária é que terá que ilidir essa presunção legal, pelo que terá que demonstrar: ou que não é verdadeiro o facto-base da presunção (isto é, não estarem a ser exercidos poderes de facto sobre uma coisa), ou demonstrar que não é verdadeiro o facto presumido (actuar quem exerce tais poderes sem a convicção de que os mesmos dizem respeito à titularidade do correspondente direito real).

VI. As servidões prediais podem ser constituídas por usucapião, mas apenas no caso das servidões aparentes, atenta a proibição de se constituírem, por usucapião, as servidões não aparentes (art. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1 do CC).

VII- Uma das formas previstas na lei para a extinção das servidões, é a renúncia – art. 1569º, nº 1, al. d) do CC-, podendo esta ser expressa ou tácita. Nesta última modalidade, a renúncia concretiza-se através de factos donde a mesma claramente se possa deduzir; ou seja, a renúncia tácita da extinção da servidão tem de deduzir-se de factos incompatíveis com a sua subsistência. Já a renúncia expressa opera pela mera comunicação ao proprietário do prédio serviente, não requerendo aceitação do proprietário do prédio serviente – v. nº 5 do art. 1569º do CC”.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
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JOSÉ e mulher MARIA veio intentar contra “X – CONSTRUÇÕES, LIMITADA”, a presente acção comum declarativa sob a forma ordinária, por via da qual peticionam que:

a) A ré seja condenada a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre os prédios identificados, no artigo 1º da petição;
b) A ré seja condenada a reconhecer a servidão de passagem a pé e de máquinas/alfaias agrícolas constituída a favor dos identificados prédios dos autores, com a largura e configuração ínsita no artigo 16º. da petição, que onera o prédio da ré identificado no artigo 13º da petição;
c) A ré seja condenada a repor a identificada servidão de passagem no local exacto em que se encontra, referido no artigo 16º. da petição, e se abstenha de praticar actos que limitem ou obstem ao exercício dessa servidão pelos autores;
d) A ré seja condenada a demolir o muro construído na serventia, numa faixa de 3,00 metros, correspondente à largura da servidão de passagem constituída a favor dos prédios dos autores e que constitui a entrada para os prédios destes;
e) A ré (seja) condenada a construir uma rampa de acesso para os prédios dos autores, junto ao identificado acesso referido na alínea antecedente, atento o desnivelamento de cotas entre os prédios dos autores e ré, em resultado das obras realizadas, por esta no seu prédio identificado no artigo 13º da petição;
f) A ré seja condenada a construir as infra-estruturas necessárias para a captação de águas que escorrem do seu prédio identificado no artigo 13º. da petição para os prédios dos autores;
g) A ré seja condenada a pagar os danos ocasionados no edifício contíguo aos prédios dos autores, propriedade também destes, onde se encontram implementadas as garagens referidas no artigo 23º da petição em resultado da entrada indiscriminada de água no prédio da ré para o prédio dos autores, relegando-se a sua quantificação para a sede de execução de sentença;
h) A ré seja condenada nas custas e demais acréscimos legais.
Para o efeito alegaram que nos fundamentos melhor expostos na petição inicial e que aqui se dão por reproduzidos.
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Regularmente citada, a ré deduziu contestação, nos termos e com os fundamentos que aqui se dão por reproduzidos, concluindo, por conseguinte, pela sua absolvição do pedido com as demais consequências legais.
Nessa decorrência foi deduzida réplica, nos termos e pelos fundamentos que aqui se dão por integralmente por reproduzidos.
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Foi proferido despacho saneador, com elaboração de base instrutória (em 5.9.2012).
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Entretanto, pelas partes foi requerida, por diversas vezes, a suspensão de instância a fim de pôr fim ao processo, por transacção, não se tendo logrado atingir tal desiderato
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Realizou-se a Audiência final, com obediência aos trâmites legais.
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Na sequência foi proferida a seguinte sentença:

“Decisão:

Face ao exposto, julgo procedente a presente acção declarativa e, por consequência, decido condenar a ré, nos seguintes termos:

a). Condenar a ré “X – Construções, Limitada” a reconhecer que os prédios rústicos, respectivamente, o prédio composto de terreno de cultura, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças sob o artigo matricial 72, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob a descrição 111 e o prédio composto de terreno de cultura, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças, sob o artigo matricial 33, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição nº. 555, são propriedade dos autores.
b). Condenar a Ré a reconhecer que a favor dos prédios dos autores, descritos na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob os n.ºs 111 e 555, existiu e existe, constituída por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de máquinas/alfaias agrícolas constituída a favor dos autores, correspondendo a uma faixa de terreno com a largura de pelo menos 3 metros, implantada na extrema nascente do prédio dos AA, atravessando em todo o comprimento o prédio da Ré, descrevendo uma curva discreta até ao prédio dos AA identificado nos pontos 1 e 3 dos factos provados, numa extensão de metros correspondente ao comprimento do aludido prédio.
c). Condenar a Ré a demolir o muro construído na serventia, numa faixa de pelo menos 3 metros, correspondente à largura do leito da servidão constituída a favor dos autores e que constitui a entrada para os prédios destes.
d). Condenar a ré a construir uma rampa de acesso para os prédios dos autores, junto do acesso descrito em c)., em virtude do desnivelamento de cotas entre os terrenos, nomeadamente, os prédios dos autores e da ré, em consequência da construção do parte de estacionamento.
e). Condenar a Ré a construir as infra-estruturas necessárias para a captação de águas que escorrem do seu prédio inscrito na matriz predial do Serviço de Finanças, sob o artigo matricial nº. 70 registado na Conservatória do Registo Predial, sob a descrição … (Matriz).
f). Condenar a Ré a abster-se de praticar qualquer acto que perturbe, impeça ou diminua livre utilização por toda a gente da supracitada servidão de passagem.
g). Por último, condeno a Ré a pagar os danos que se vierem a apurar e que sejam ocasionados no edifício contíguo aos prédios rústicos dos autores e propriedade também destes, onde se encontram implementadas as garagens referidas no 19 dos factos provados, em resultado da humidades e empolamentos das paredes das garagens e provocados pela concentração de águas no terreno, relegando-se a sua quantificação para a sede de incidente de liquidação…”.
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É justamente desta decisão que a Ré veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES

Na sentença sob recurso decidiu-se que a servidão de passagem reclamada pelos AA., foi constituída por usucapião, na sequência, aliás, do que os mesmos alegam no art. 41º da sua petição e do que resulta do facto provado 24);
Todavia, para que assim fosse validamente decidido, os AA. teriam de invocar e provar o requisito do elemento psicológico necessário à constituição da servidão pelo referido instituto, quanto é a convicção, o chamado “animus”, que não foi alegado e muito menos provado, sendo que era a eles que competia a respectiva alegação e prova, pelo que, não podia o tribunal “a quo” concluir pela existência da reclamada servidão constituída por usucapião;
Para além disso, tal qual resulta dos autos de vistoria juntos ao processo e, bem assim, do depoimento da testemunha Joaquim, inexistem no local e inexistiam à data da construção do parque de estacionamento, quaisquer sinais visíveis da existência da servidão;
Ora, não podendo as servidões não aparentes – aquelas que não se revelam por sinais visíveis e permanentes –, serem constituídas por usucapião, não pode a sua existência ser decretada pelo tribunal, que apenas poderia pronunciar-se pela constituição ex novo de uma servidão com as características da reclamada pelos AA., pedido que estes não deduziram;
A construção da escada a que se refere o facto provado 25) e a circunstância de os prédios dos AA. serem de pequena dimensão (cerca de 435 m2), é uma evidência de que estes pretenderam instalar um acesso directo da sua garagem àqueles prédios, o que configura um acto de renúncia à servidão que reclamam, tal como previsto na al. d), do nº 1, do art. 1569º, do Cód. Civil, sendo que, como se sabe, a renuncia tanto podia ser expressa, como tácita e que esta “(…) pode resultar de factos de onde a mesma se deduzisse claramente”. (Mário Tavarela Lobo, Manual do Direito das Águas, Vol. II, 2ª Ed., pag. 321);
O mesmo é dizer que, a construção pelos AA. daquela escada há dezenas de anos, a partir da garagem que lhes pertence, não pode ser entendida de outra forma, que não seja a de renuncia tácita à servidão que invocam, o que resulta também do depoimento da testemunha J. M.;
Sem prejuízo do que se vem de dizer quanto à impossibilidade legal de constituição da reclamada servidão, a verdade é que todas as testemunhas ouvidas e cujos depoimentos atrás de transcreveram na parte relevante, afirmaram que os AA. acediam até aos seus prédios com carrinhos de mão, a partir da Avª … – J. M., V. P., M. C. e outras –, mais adiantando que nunca lá viram máquinas ou outras alfaias, fossem motocultivadoras, tratores ou outras;
Ora, um carrinho de mão não tem uma largura superior a 1 metro, pelo que, nada justifica que, a reconhecer-se, por hipótese académica, a existência da servidão, a mesma esteja constituída por uma faixa de terreno de 3 metros, tal como, em nosso entender, desajustadamente, foi decidido pela Mª Juiz “a quo”.
Do que se vem até agora de referir quanto à ausência dos requisitos legais para a constituição da reclamada servidão pelo instituto da usucapião, seja pelo facto de os AA. não terem invocado e provado o “animus”, seja porque as servidões não aparentes não podem ser constituídas pelo referido instituto legal, o tribunal não podia dar como provado o facto do ponto 16) da epígrafe factos provados;
10ª Mas mesmo que assim não fosse, em nenhum caso o tribunal podia dar como provada a existência de uma servidão com a largura de 3 metros, pois que, a prova testemunhal produzida referiu unanimemente que as pessoas passavam por aquele local com carrinhos de mão, que não têm largura superior a 1 metro/1,5 metros;
11ª Não foi produzida qualquer prova no tocante ao facto provado 19). Antes pelo contrário, consta do auto de vistoria de 20 de Outubro de 2016 que a ré construiu uma meia cana para a recolha e condução das águas provenientes do parque de estacionamento, de modo a impedir que as mesmas se dirijam aos prédios confinantes;
12ª Também, a este respeito, foi atestado pelas testemunhas M. P., à data da construção do parque de estacionamento Vereador das Obras Particulares da Câmara Municipal e, bem assim, pela testemunha Joaquim, que participou na construção do parque para a ré, que no local foi construído pela recorrente um sistema de recolha, drenagem e condução das águas existentes no local, para o colector público existente na Avª …;
13ª Aliás, a primeira das referidas testemunhas referiu que a concentração de águas no prédios de AA. e ré é muito anterior à construção do parque de estacionamento;
14ª E a segunda testemunha afirmou que com a construção do redito sistema de recolha, drenagem e condução de águas, aqueles prédios ficaram em muito melhor condições do que antes;
15ª Para além disso, a separar o parque de estacionamento da parcela de terreno contígua, a ré edificou um muro com cerca de 0.83 metros de altura, em cuja base se encontra a meia cana referenciada no auto de vistoria de 20 de Outubro de 2016, muro que também constitui um obstáculo à passagem das águas para a dita parcela;
16ª Ainda com respeito a esta matéria do facto provado 19), a Mmª Juiz “a quo” refere apenas o depoimento da testemunha Sofia, sem, contudo, fazer qualquer referência na fundamentação de facto, ao segmento desse depoimento que para tanto foi considerado e, muito menos, estabelece qualquer raciocínio lógico que sustente a redita relação causa/efeito;
17ª Não foi produzida qualquer prova, nem pericial, nem qualquer outra, que permitisse provar que os empolamentos, salitre e humidades existentes na garagem dos AA, decorrem das águas que escorrem para os prédios das als. A) a D), por força do desnível de cotas entre esses prédios e o parque de estacionamento, pelo que, deve tal facto ser julgado não provado, sendo ainda certo, que nas vistorias ao local tal relação não resultou, sequer, indiciada – vide autos de vistoria ao local;
18ª Para além disso, quanto aos factos provados 20) a 22), impugnam-se apenas parcialmente, na medida seguinte:

… Quanto ao facto 20), na parte em que se refere (…) deixando naquele uma abertura com pelo menos 3,00 de largura, para aqueles prédios, por forma a garantir que os AA. pudessem aceder aos prédios identificados em A) a C);
… Quanto ao facto 21), na parte em que se refere (…) impossibilitando os AA. de aceder aos prédios identificados em A) a C), fazendo a travessia através da faixa de terreno referida em 10º;
… Quanto ao facto 22), na parte em que se refere (…) de forma a obstruir qualquer tentativa dos AA. reporem a situação que existia inicialmente;
19ª Quanto ao facto 20), a Mma. Juiz funda a sua convicção no depoimento da filha dos AA. Sofia; quanto ao facto 21), salvo lapso da nossa parte, não fundamenta a sua convicção; e, quanto ao facto 22), a Mma. Juiz considera-o provado, na sequência do que decorre dos factos 19) e 20).
20º Todavia, não resultou minimamente credível da prova produzida, que a ré tivesse deixado a abertura de 3 metros no muro que construiu, de modo a assegurar o trânsito dos AA. para as suas parcelas de terreno. A verdade é que a ré apenas ali deixou uma abertura com cerca de 1 metro, de modo a permitir o acesso à parcela de terreno contígua, propriedade de Manuel Ribas, tal como descreve nos arts. 25º a 28º da contestação, o que comprova com a decisão proferida pelo Ministério Público que junta àquela peça como “doc 9”, documento que não foi valorado pelo tribunal, decisão essa proferida no inquérito que teve lugar, na sequência da demolição parcial daquele muro por terceiro(s).
21ª Do que, salvo o devido respeito, daqueles pontos da matéria de facto provada, apenas deve constar o seguinte:

20) No âmbito do processo de obras referido em F), a Ré construiu um muro, pelo lado poente, implantado na faixa de terreno referida em 10º, deixando naquele uma abertura com pelo menos 1,00 metro.
21) No dia 7 de Maio de 2011, na sequência da demolição parcial do muro por terceiros, fechou com tijolo o referido acesso.
22) E junto ao qual fizeram estacionar duas viaturas, de forma a obstar a novas demolições de terceiros e a impedir que por ali passassem pessoas estranhas.

Acresce que:
22ª Quanto à matéria dos nºs. 23) e 24) dos factos provados, damos aqui por reproduzido tudo quanto já se disse no tocante à inexistência da servidão, seja pela falta de requisitos para a sua constituição por usucapião, seja pela renúncia traduzida na construção da escada descrita no ponto 25) da mesma epígrafe e, bem assim, o que também já se afirmou quanto às características da servidão, cuja largura não pode exceder 1,5 metros, para o caso, que se equaciona por cautela de patrocínio, de se considerar que tem existência jurídica. São, quanto a nós e salvo o devido respeito, razões suficientes para eliminar aqueles factos do rol dos factos provados.

Finalmente:
23ª No que concerne á matéria do ponto 26) dos factos provados, apenas resultou provado que “No final da década de oitenta que a propriedade identificada em E) foi vedada por uma rede, em todo o seu perímetro, tendo sido colocado um portão.”.
24ª Aliás, quanto a este concreto ponto, como a outros já aqui repassados, pese embora a Mma. Juiz “a quo” refira aquele ponto na fundamentação de facto da sentença, a verdade é que não chega a concretizar como formou a sua convicção para o dar como provado;
25ª Na verdade, salvo qualquer erro ou omissão da nossa parte, nenhuma prova existe no processo – documental, testemunhal, ou outra –, que permitisse ter como provada a parte final daquele ponto 26), ou seja, que o portão existente na vedação do prédio da ré, se destinava (…) a permitir o acesso, a quem quer que fosse.
26ª A decisão sob recurso viola, entre outros, o disposto nos arts. 1547º e 1548º do Cód. Civil, o nº 3 e 4 do art. 607º do CPC, sendo ainda nula, face ao disposto nas als. b) e d), do nº 1, do art. 615º também do CPC, aqui no tocante ao facto provado 19)”.
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Foram apresentadas contra-alegações pelos Recorridos/AA, onde pugnam pela improcedência do Recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca as seguintes questões que importa apreciar:

1- Saber se a decisão proferida é nula, face ao disposto nas als. b) e d), do nº 1, do art. 615º do CPC, no tocante ao facto provado 19).
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2. Determinar se o tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, e, consequentemente, se, reponderado esse julgamento:

-Devem considerar-se não provados os factos que a sentença de primeira Instância considerou como provados nos pontos 16 e 19;
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-Devem os factos dados como provados nos pontos 20 a 22 ser alterados, passando antes constar desses pontos a seguinte factualidade:

20) No âmbito do processo de obras referido em F), a Ré construiu um muro, pelo lado poente, implantado na faixa de terreno referida em 10º, deixando naquele uma abertura com pelo menos 1,00 metro.
21) No dia 7 de Maio de 2011, na sequência da demolição parcial do muro por terceiros, fechou com tijolo o referido acesso.
22) E junto ao qual fizeram estacionar duas viaturas, de forma a obstar a novas demolições de terceiros e a impedir que por ali passassem pessoas estranhas.
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--Devem considerar-se não provados os factos que a sentença de primeira Instância considerou como provados nos pontos 23 e 24;
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- Deve a matéria de facto contante do ponto 26) dos factos provados ser alterado, passando a constar do mesmo que apenas resultou provado que “No final da década de oitenta que a propriedade identificada em E) foi vedada por uma rede, em todo o seu perímetro, tendo sido colocado um portão.”.
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3. Finalmente, saber se, sendo modificada a matéria de facto no sentido propugnado pela Recorrente, a presente acção tem de improceder.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

Fundamentos de Facto:
Da produção de prova resultaram demonstrados e com interesse para a presente decisão os seguintes factos:

1). Por escritura de compra e venda outorgada em 30-12-1990, exarada no Cartório Notarial, L. C., na qualidade de vendedora, declarou vender a José, aqui autor, casado com Maria, aqui autora, no regime de comunhão geral de bens, um prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito na Rua …, antiga Rua …, freguesia e concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 111.
2). Tal prédio encontra-se inscrito a favor do Autor na respectiva matriz sob o artigo 72 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 111 e situa-se na Rua …, anterior Rua da ….
3). Encontra-se inscrito a favor do Autor na respectiva matriz sob o artigo 33 um prédio rústico, composto de terreno de cultura, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 555, sito na Rua …, anterior Rua da ….
4). Por escritura pública de justificação celebrada no dia 16-04-2009 no Cartório Notarial, figurando o autor, por si e na qualidade de procurador da sua mulher Maria, como primeiros outorgantes, e R. R., J. M. e João, como segundo outorgantes, o primeiro outorgante, por si e na qualidade de procurador da sua mulher, declarou que ele e a sua representada são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito no lugar da …, freguesia de Caminha (Matriz), concelho de Caminha, com a área de trezentos e vinte e cinco metros quadrados (325 m2), a confrontar do norte com José e caminho de servidão, do sul com M. A. e António, do nascente com A. V. e Ana e do poente com Vítor, A. M., M. B., J. L., José e S. B., não descrito na Conservatória do Registo Predial, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 33, e que o referido prédio rústico foi adquirido pelos justificantes, no ano de mil novecentos e setenta e dois, em dia e mês que não conseguem precisar, por compra verbal não formalizada, feita a E. M.. Mais declarou que desde logo entraram na posse e fruição do referido bem, em nome próprio, posse que assim detêm há mais de vinte anos, sem interrupção ou ocultação de quem quer que seja; que a posse foi adquirida e mantida sem violência e sem oposição, ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, em nome próprio e com aproveitamento de todas as utilidades do prédio, limpando-o, cultivando-o e agindo sempre de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, quer usufruindo como tal o imóvel quer suportando os respectivos encargos.
5). Encontra-se registada a favor da Ré a propriedade de um prédio rústico, sito na Avenida de …, freguesia e concelho de Caminha, composto de terreno de cultura, com a área de 1300 m2, a confrontar do norte com a Avenida …, do sul com rego foreiro, de nascente com Alexandre e do poente com Augusto, inscrito na matriz predial respectiva do serviço de Finanças sob o artigo matricial nº 70, registado na Conservatória do Registo Predial sob a descrição 320 – Caminha (Matriz).
6). Sobre o prédio identificado em 5) a Ré encontra-se a erigir um parque de estacionamento de superfície, o qual foi licenciado pela Câmara Municipal, no âmbito do processo de obra nº 58/2009.
7). Para o que procedeu a obras de remodelação do indicado terreno, terraplanando-o e pavimentando-o.
8). A anterior Rua … corresponde à actual Rua ….
9). A ré murou o prédio identificado em 5) na sequência das obras de construção do parque de estacionamento e deixou uma abertura no muro de vedação.
10). Os prédios identificados em 1) a 3) fazem parte de um prédio mãe, descrito na CRP sob o nº ..., a que correspondia o artigo matricial rústico nº 35.
11). Os AA. construíram um edifício, em regime de propriedade horizontal, numa área destacada de 650 m2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ....
12). Esse destacamento deu origem, no ano de 1972, a uma nova descrição com o nº ... do Registo Predial, passando aquela parcela de terreno destacada a ter a natureza de prédio urbano.
13). Há mais de 20 anos que os AA., por si e seus antecessores, cultivam os prédios referidos em A) a C), semeando as mais diversas culturas, e aí colocando os mais diversos objectos, pagando as respectivas contribuições e IMI e gozando todas as suas utilidades, à vista de toda a gente, sem interrupção temporal e sem oposição de quem quer que seja, na convicção de se exercer o direito de propriedade sobre os referidos prédios (resposta positiva aos nº.s 1 a 5 da base instrutória).
14). Os prédios referidos em A) a C) são contíguos entre si (resposta positiva ao nº. 6 da base instrutória).
15). O prédio referido em E) situa-se a nascente dos prédios referidos em A) a C)., sendo contíguos entre si (resposta positiva e conjunta aos nºs. 7 e 8 da base instrutória).
16). O acesso aos prédios dos AA. a pé e através de máquinas/alfaias agrícolas sempre foi feito a partir da Avenida …, através de parte prédio identificado em E)., por uma faixa de terreno com uma largura aproximada de pelo menos 3,00 metros, implantada na extrema nascente do prédio referido em E), atravessando em todo o comprimento este prédio, descrevendo uma curva discreta, chegando assim ao prédio dos AA que não possuem qualquer outro acesso para esses prédios para neles fazer introduzir alfaias e máquinas agrícolas (resposta conjunta aos pontos 9, 10 e 24 da B.I.).
17). Tal faixa de terreno era em terra batida (resposta positiva ao nº. 11 da B.I).
18). Em resultado da obra executada pela ré, referida em F), o prédio identificado em E) ficou elevado a uma cota superior à que possuía, criando um desnível acentuado em relação aos prédios identificados em A) a C)., impossibilitando o acesso dos AA. aos prédios referidos em A) a C) (resposta conjunta e positiva aos nºs. 12 e 13 da B.I.).
19). Esse desnível de cotas permitiu e permite que as águas escorram para os prédios referidos em A) a C), propriedade dos autores, invadindo-os e alagando-os, causando empolamentos, salitre e humidades nas paredes das garagens contíguas ali existentes (resposta conjunta, mas restritiva aos nºs. 14 e 15 da B.I.) (1).
20). No âmbito do processo de obra referido em F), a Ré construiu um muro, pelo lado poente, implantado na faixa de terreno referida em 10º, delimitando os prédios identificados em A) a C) do prédio identificado em E), deixando naquele uma abertura com pelo menos 3,00 de largura, para aqueles prédios, por forma a garantir que os AA. pudessem aceder aos prédios identificados em A) a C). (resposta conjunta aos nºs. 17 e 18 da B.I.).
21). No dia 7 de Maio de 2011, a Ré, através dos seus representantes legais, fechou com tijolo o referido acesso, impossibilitando os AA. de aceder aos prédios identificados em A) a C)., fazendo a travessia através da faixa de terreno referida em 10º. (resposta positiva e conjunta aos nºs. 19 e 25 da B.I.).
22). E junto ao qual fizeram estacionar duas viaturas, de forma a obstruir qualquer tentativa dos AA. reporem a situação que existia inicialmente (resposta positiva aos nº. 20 da B.I.).
23). Desde então que os AA. estão impossibilitados de fazer a travessia para os prédios identificados em A) e C), através da faixa de terreno referida em 10) e de aceder a pé e com alfaias e máquinas agrícolas para os referidos prédios, para aí os limpar, lavrar e cultivar e não possuem qualquer outro acesso para esses prédios, para neles fazer introduzir alfaias e máquinas agrícolas (resposta conjunta aos nºs. 22, 23 e 24 da B.I.).
24). Tal faixa de terreno, desde tempos que excedem a memória humana, foi usada pelos AA. e seus antepossuidores para aceder aos prédios referidos em A) a C), continuamente, com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse (resposta positiva e conjunta aos nº.s 26, 27 e 28 da B.I.).
25). Após a construção do edifício os AA. criaram um acesso para os prédios referidos em A) a C), construindo uma escada exterior de aproximadamente de pelo menos 1 metro de largura, através do interior de uma das garagens localizadas atrás e que permite aceder às parcelas (resposta explicativa e restritiva ao nº. 33 da B.I.).
26). No final da década de oitenta que a propriedade identificada em E) foi vedada por uma rede, em todo o seu perímetro, tendo sido colocado um portão para permitir o acesso, a quem quer que fosse (resposta restritiva ao nº. 34 da B.I.).
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiram em cima as questões que importa apreciar e decidir.
Comecemos por apreciar se se verificam as arguidas nulidades.
Entende a Recorrente que a sentença proferida seria nula com fundamento nas als. b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Para tanto alegam que:

“… com respeito a esta matéria do facto provado 19), a Mmª Juiz “a quo” refere apenas o depoimento da testemunha Sofia, sem, contudo, fazer qualquer referência na fundamentação de facto, ao segmento desse depoimento que para tanto foi considerado e, muito menos, estabelece qualquer raciocínio lógico que sustente a redita relação causa/efeito;
Não foi produzida qualquer prova, nem pericial, nem qualquer outra, que permitisse provar que os empolamentos, salitre e humidades existentes na garagem dos AA, decorrem das águas que escorrem para os prédios das als. A) a D), por força do desnível de cotas entre esses prédios e o parque de estacionamento, pelo que, deve tal facto ser julgado não provado, sendo ainda certo, que nas vistorias ao local tal relação não resultou, sequer, indiciada – vide autos de vistoria ao local (…)
A decisão sob recurso viola, entre outros, o disposto nos arts. 1547º e 1548º do Cód. Civil, o nº 3 e 4 do art. 607º do CPC, sendo ainda nula, face ao disposto nas als. b) e d), do nº 1, do art. 615º também do CPC, aqui no tocante ao facto provado 19).
*
Cumpre decidir.
Em primeiro lugar, importa dizer que a arguição de nulidade por parte da Recorrente não é muito clara, desde logo, porque é manifestamente conclusiva, não se logrando atingir da sua parca argumentação de onde retira as nulidades invocadas.
Procurando dar algum sentido útil à arguição da Recorrente, julga-se que o que a mesma pretenderá será defender que o Tribunal não fundamentou a decisão sobre a matéria de facto proferida sob o ponto 19 dos factos provados.
Entende que essa alegada falta de fundamentação seria enquadrável nos vícios de nulidade previstos na al. b) (não especificação dos fundamentos de facto) e d) (omissão de pronúncia) do nº 1 do art. 615º do CPC
Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, é manifesto que a decisão não padece do vício invocado (e não nos estamos a referir às nulidades invocadas sobre as quais nos pronunciaremos a seguir), pois que, conforme decorre da motivação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal Recorrido apresentou fundamentação pertinente e suficiente para justificar, de uma forma inequívoca, a resposta que deu à matéria de facto questionada.
Improcederia só por aí a argumentação da Recorrente.
Mas mais do que isso, importa referir que a Recorrente, ao invocar os vícios de nulidade da sentença, errou o alvo, pois que aquilo que fundamenta essa sua arguição não contende com aqueles vícios, mas sim com a invocação do vício de falta de fundamentação de determinado ponto da matéria de facto.
Com efeito, o vício que a Recorrente aponta à decisão, não é a nulidade a que alude a al. b) ou a al. d) do art. 615º do CPC, mas sim aquele que contende com a invocação da nulidade da decisão proferida por falta de fundamentação de determinados pontos da matéria de facto.
Como é sabido, uma coisa é a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, outra coisa é nulidade da sentença quando não especifique os fundamentos, de facto e de direito que justificam a decisão (al. b) do citado artigo 615.º nº 1 do CPC) ou a omissão de pronúncia (al. d) do art. 615º do CPC).
A nulidade decorrente da falta de fundamentação de facto e de direito (e a também invocada omissão de pronúncia) está relacionada com o comando do artigo 607º, nº 3 do CPC, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, nestes casos só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade (2).
Portanto, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão (3).
Nessa medida, trata-se de uma situação que manifestamente não se verifica no caso concreto, pois que o Tribunal Recorrido não omitiu a pronúncia sobre qualquer um dos factos que se mostravam controvertidos (cfr. base instrutória), desde logo, sobre o ponto 19 aqui questionado.
Não se verifica, assim, qualquer nulidade da sentença, nomeadamente, as arguidas pela Recorrente que, como se acaba de referir, foram alegadas sem pertinência.
Na verdade, resulta da argumentação da Recorrente que o que a mesma pretende é arguir a falta de motivação da resposta dada ao ponto 19 da matéria de facto provada.
Ora, como decorre do exposto, se a questão colocada é a falta de motivação da decisão sobre a matéria de facto (sobre determinado ponto da matéria de facto), não estamos perante uma nulidade da sentença, mas sim de uma patologia ou vício da decisão da matéria de facto (que não corresponde também a erro de julgamento).
Vejamos, então, em que termos se deve entender como cumprido este dever de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto que inclusivamente tem assento constitucional- art. 205º da CRP.

Como é sabido, o tribunal aprecia as provas sujeitas à livre apreciação do julgador, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
A decisão sobre a matéria de facto controvertida deve reflectir o resultado da conjugação dos vários elementos de prova produzidos na audiência ou em momento anterior.
A decisão da matéria de facto compõe-se de duas partes: na primeira, declaram-se quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados; na segunda, faz-se a análise crítica das provas e especificam-se os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (607º, nº 3 e 4 do CPC).
Por força desta segunda parte, o juiz tem, assim, o dever de indicar, de modo objectivo, as razões que o levaram a dar como provados determinados factos e como não provados outros. Ou seja, tem de analisar criticamente a prova, explicando por que motivo deu mais valor ao depoimento de certa testemunha, por que motivo considerou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, por que motivo achou satisfatória, ou não, a prova resultante de documentos (4).
Segundo Teixeira de Sousa (5), “… o Tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente…”.
Destas considerações resulta, assim, que o tribunal não tem que ser exaustivo na indicação dos fundamentos que o levaram a decidir a matéria de facto em certo sentido.
Na verdade, “… não se trata de catalogar as razões que se foram revelando no decurso da Audiência e que determinaram, uma a uma, que se formasse a convicção do Tribunal, mas apontar selectivamente, entre as razões que “decidiram”, aquela ou aquelas que tiveram a maior força persuasiva…” (6).
Decorre, pois, do que se acaba de expor que a fundamentação não tem de ser exaustiva.
“Basta que nela se externem, de forma clara e suficiente, os motivos que levaram o julgador a decidir em determinado sentido e não noutro.”
(7).
E por assim ser é que se entende que o n.º 4 do art. 607º do CPC não exige que a fundamentação das respostas aos quesitos tenha de ser indicada separadamente em relação a cada um deles, podendo essa fundamentação ser realizada de uma forma genérica (8).

Por outro lado, se um facto, dado, sem fundamentação, como provado ou não provado, não se revelar concretamente essencial para a decisão da causa, a exigência “a posteriori” da fundamentação, em via de recurso, é inútil (9).
Como é sabido, no domínio do anterior CPC havia uma cisão entre o julgamento de facto e o julgamento de Direito.
E na fase do julgamento de facto, depois de o juiz proferir a decisão sobre a matéria de facto, as partes podiam reclamar contra ela por deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou, ainda, contra a falta da sua motivação (art. 653º, n.º 4 do anterior CPC).

Entendia-se que:
-existia deficiência quando determinado ponto da matéria de facto ou algum segmento não tinha sido objecto de resposta positiva ou negativa (10).
-que havia obscuridade quando as respostas dadas eram ininteligíveis, equívocas ou imprecisas.
-que ocorria o vício da contradição quando se verificava oposição entre respostas dadas a pontos de facto controvertidos ou entre tais respostas e a plataforma da factualidade dada como assente.
-Finalmente, entendia-se que a falta de fundamentação se dava quando o tribunal não especificava as razões em que fundara as respostas, podendo dirigir-se à completa omissão de motivação da decisão sobre a matéria de facto, como à falta de motivação quanto a determinados pontos concretos da mesma.
A mera discordância quanto aos argumentos invocados para a formação da convicção não constituía motivo de reclamação (11).
Ora, embora no Novo CPC aqui aplicável, esta fase da reclamação tenha desaparecido, estas considerações não deixam de continuar a ser pertinentes para o que aqui se discute.
Aqui chegados, importa, então, verificar se, efectivamente, pode imputar-se este vício ou patologia à decisão aqui posta em crise- sendo certo que se assim for a consequência será “ (se se tratar de um facto essencial para a decisão da causa) determinar a remessa dos autos ao Tribunal de Primeira Instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas, ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto…” (12) - art. 662º, nº 2, al. d) do CPC.
Ora, compulsada a decisão sobre a matéria de facto proferida, e a respectiva motivação, pode-se concluir que inexiste, como já se referiu, o vício apontado pela Recorrente.
Na verdade, quanto ao ponto 19 da matéria de facto provada (e quanto aos demais factos) o Tribunal Recorrido apresentou, de modo objectivo, as razões que o levaram a dar como provado esse(s) facto(s), tendo apresentado selectivamente os meios de prova que o levaram a decidir nesse sentido.
Na verdade, quanto a esta factualidade o Tribunal fundou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de Audiência Final, na prova documental (reproduções fotográficas e outros elementos documentais), na inspecção judicial e na análise crítica que efectuou dos mesmos, invocando, de uma forma concreta e lógica, as razões da sua convicção.

Nesta medida, fácil será de concluir que não se verifica o vício apontado.
Com efeito, não temos dúvidas em afirmar que a fundamentação apresentada pelo Tribunal Recorrido satisfaz integralmente os requisitos do citado dispositivo legal, na medida em que indica não só os concretos meios probatórios, como ainda as razões ou motivos por que eles se tornaram credíveis e decisivos para a formação da convicção do julgador (veja-se que na motivação apresentada na decisão, o Tribunal Recorrido esclarece, em termos conclusivos, que “…Os factos descritos nos pontos 19 a 20 da base instrutória resultaram também provados, com base fundamentalmente, no depoimento prestado por Sofia que teve intervenção directa cujas declarações, apesar, de ser filha dos autores foram credíveis e isentas, atendendo ao relato objectivo efectuado e que foram conjugadas com as reproduções fotográficas juntas aos autos a fls. 28, 29, 30 que, quase como um detalhe cronológico, nos permitiram concluir, por um lado, que o muro de vedação construído e, contrariamente àquilo que ocorre na actualidade e conforme foi percepcionado com a inspecção judicial realizada, tinha uma abertura sensivelmente de 3,00 para permitir o acesso dos autores às suas parcelas apesar do desnível existente após a realização das obras. Aliás, tal finalidade dessa abertura é compaginável com o procedimento anteriormente já adoptado pela ré que tendo colocado uma rede de vedação no terreno- conforme teor do documento nº. 7 de fls. 66 – que tinha um portão que permitia que o acesso dos autores às suas parcelas de terreno ainda continuasse a ser efectuado. Das reproduções fotográficas de fls. 36 e de fls. 80 é perceptível que a abertura existente no muro de vedação, em 07.05.2011 já se encontrava tapada. …”).
Nesta conformidade, considerando-se cumpridas as exigências de motivação do facto considerado provado no ponto 19 (e dos outros factos), tem que se concluir necessariamente pela improcedência do Recurso nesta parte.
Na sequência do exposto (erro no vício apontado), improcedem também os vícios de nulidade da sentença arguidos.
*
Ultrapassada esta questão, entremos agora na apreciação da Impugnação da matéria de facto.
Compulsado o Recurso interposto, pode-se concluir que, como resulta do corpo das alegações e das respectivas conclusões, a Ré/ Recorrente impugnou a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPC, pois que, faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida.
Da mesma forma, indica, quanto a todos os pontos da matéria de facto, os meios de prova que imporiam a decisão que sobre eles deveria ser proferida (contrariamente ao defendido pelos Recorridos).
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, importa verificar, pois, se se pode dar razão à Recorrente, quanto aos questionados pontos da matéria de facto.
Importa, antes de entrar directamente na apreciação das discordâncias alegadas, referir qual deve ser o âmbito de apreciação da matéria de facto que incumbe ao Tribunal da Relação em sede de Recurso.
Na verdade, o âmbito dessa apreciação não contende com a ideia de que o Tribunal da Relação deve realizar, em sede de recurso, um novo julgamento na 2ª Instância, prescrevendo-se tão só “ … a reapreciação dos concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados… “ (13).

Assim, o legislador, no art. 662º, nº1 do CPC, “ … ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios… pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise… “ (14).
Destas considerações, resulta, de uma forma clara, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:

a) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes) (15).
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (16), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (17).
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (18).
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (19).
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada- quando nessa prova se funde o recurso-, conclua, com a necessária segurança (20), no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
*
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento do recurso da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
(…)
(…)
*
Aqui chegados, e tendo-se procedido à ponderação dos elementos probatórios pertinentes à averiguação da matéria de facto aqui questionada, ou seja, tendo-se analisado de uma forma crítica e conjugada a prova produzida, da conjugação de todos estes elementos probatórios, a conclusão a que se tem chegar é justamente aquela a que chegou o Tribunal de Primeira Instância (excepto quanto ao ponto 19 da matéria de facto provada, cuja redacção se alterou, pelas razões amplamente explanadas atrás).
Na verdade, fazendo a análise crítica e conjugada dos aludidos elementos probatórios, não pode o presente Tribunal divergir do juízo probatório efectuado pelo Tribunal de Primeira Instância, quanto à restante matéria de facto que havia sido impugnada.

Assim, em face destes elementos probatórios, pode o presente Tribunal concluir que o juízo fáctico efectuado pelo Tribunal de Primeira Instância mostra-se conforme, em geral, com a prova produzida.
Na verdade, da valoração conjugada de todos estes elementos probatórios, resulta que, contrariamente ao que pretende a Recorrente, esta não logrou convencer o presente Tribunal, com excepção do aludido ponto 19, a alterar a impugnada matéria de facto pelas razões já amplamente expostas.

Aqui chegados, pode-se, assim, concluir quanto à presente Impugnação da matéria de facto que, à luz do antes exposto, e com base nos meios de prova antes citados, a convicção (autónoma) deste tribunal, em sede de reapreciação da matéria de facto é coincidente com a que formou o tribunal recorrido, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, com excepção do que ficou referido quanto ao ponto 19 da matéria de facto provada, cuja redacção se alterou no sentido atrás exposto.
Na verdade, e não obstante as críticas que lhe são dirigidas pela ora Recorrente, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados, um qualquer (outro) erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.
Ao invés, a convicção do julgador colhe, a nosso ver, apoio nos ditos meios de prova produzidos, sendo, portanto, de manter a factualidade provada e não provada, tal como decidido pelo tribunal recorrido, com excepção do ponto 19 da matéria de facto provada.
Conclui-se, pois, que compulsada a prova produzida, tendo em conta as regras do ónus da prova, não podem restar dúvidas que os demais factos constantes da matéria de facto devem manter-se inalterados, confirmando-se a análise crítica efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância quanto a essa factualidade
Em consequência, mantendo-se a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal, apenas se altera o ponto 19 da matéria de facto provada no sentido já mencionado.
*
Aqui chegados, importa verificar se, apesar de se ter procedido àquela alteração, se deve manter a apreciação de mérito efectuada pela Decisão Recorrida, em face da restante matéria de facto dada como provada.
Deixaremos as implicações da referida alteração da matéria de facto para o fim, começando por apreciar as questões de direito levantadas pela Ré no que concerne à constituição e exercício do direito de servidão de passagem invocado pelos AA.

Invoca, neste ponto, a Recorrente três questões de direito.
Todas contendem com os requisitos de afirmação da Usucapião no caso concreto.
A primeira tem a ver com a omissão de alegação (e prova) dos factos respeitantes ao elemento “animus” exigido como requisito do preenchimento da Usucapião.
A segunda dirige-se à questão da impossibilidade de tal instituto funcionar nos casos em que a Servidão é não aparente (cfr. art. 1548º, nº 1 do CC).

Finalmente, a terceira refere-se à possibilidade de poder entender-se que os AA. renunciaram (ainda que tacitamente) ao direito de servidão de passagem, pelo facto de terem construído as escadas a que a matéria de facto faz referência.
Vejamos a primeira questão.
Como é sabido, o conceito de servidão encontra-se expresso no artigo 1543º do CC que preceitua que “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente”.
Acrescenta o art. 1544º do CC, que podem “ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”.
Logo, compreende-se que se afirme que são “quatro as notas destacadas neste conceito legal: a) a servidão é um encargo; b) o encargo recai sobre um prédio; c) e aproveita exclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios pertencer a donos diferentes”.
Precisando, trata-se “de um encargo que recai sobre o prédio, de um encargo imposto num prédio, de uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão”.
Incidindo “em princípio sobre o prédio, considerado como um todo”, haverá “muitas vezes que distinguir ente o objecto da servidão, que é o prédio, e o local do exercício dela, que pode ser uma parte limitada do prédio. Sempre que se verifique esta última hipótese, para certos efeitos (vide, por ex., o art. 1546º e o nº 4 do art. 1555º) tudo se passa como se a servidão incidisse apenas sobre a parte do prédio sujeita ao seu exercício” (21).
Logo, a servidão predial constitui uma restrição ou limitação do direito de propriedade do dono do prédio onerado, ao gozo efectivo do mesmo, que assim fica inibido de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão. Esta consiste num retirar de utilidade do prédio serviente, de uma vantagem, que pode ou não aumentar o valor do prédio dominante, mas que o torna mais aprazível, mais cómodo ou mais ameno. De todo o modo, a utilidade derivada da servidão sempre terá de ser proporcionada e gozada através dos prédios serviente e dominante, traduzindo um ónus e um poder directo e imediato sobre eles, o que explica o princípio da inseparabilidade das servidões (art. 1545º do CC).
Como bem refere Rui Pinto Duarte (22), a definição legal “… perspectiva a situação jurídica em causa do ponto de vista do prédio serviente – e não do ponto de vista do prédio dominante. Por outro lado, “coisifica” a situação, na medida em que omite qualquer referência aos sujeitos intervenientes, como se a relação estabelecida fosse entre coisas e não entre pessoas... É verdade que a relação de servidão predial se estabelece entre os titulares dos prédios em causa por força dessa titularidade – daí derivando a sua natureza real. As relações jurídicas, porém, estabelecem-se entre pessoas e não entre coisas!” “O que, obviamente…”, continua o Autor em nota, ”…os autores materiais do Código Civil bem sabiam. Pires de Lima, que incluiu no seu anteprojecto um preceito quase igual ao que foi adoptado no art. 1543º, antecipou-se à crítica, escrevendo, além do mais: “Nunca poderá ser dado à lei um entendimento absurdo, e a circunstância de se mencionarem especialmente os prédios e não os respectivos donos, tem a vantagem de pôr no seu devido relevo o estado de inerência ou sujeição económica dum prédio em relação ao outro, e a consequente inseparabilidade dos respectivos direitos e obrigações” (Servidões, cit., pág. 6)” (23).
Rui Pinto Duarte sugere, então, como definição de servidão predial a seguinte: “direito que o titular de um direito real sobre um certo prédio (dito prédio dominante) tem de utilizar um prédio alheio (dito prédio serviente) para melhor aproveitamento do prédio dominante” (24).
A constituição de uma servidão predial implica, portanto, uma relação entre diferentes titulares de direitos reais sobre diferentes prédios.
As servidões podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família – art.º 1547.º, n.º 1 do CC.
A doutrina costuma aqui fazer uma distinção entre servidões voluntárias e servidões legais (ou coactivas).
Todas as servidões têm a sua fonte na lei. Nessa medida, a servidão voluntária constitui uma servidão legal. Todavia, enquanto a servidão voluntária resulta do funcionamento da autonomia privada, sendo, portanto, o produto de uma decisão livre das partes concretizada por via negocial (contrato ou testamento), a servidão legal propriamente dita atribui ao beneficiário um direito potestativo à sua constituição.

Assim, nestas situações se o titular do direito real do prédio adstrito à constituição da servidão não colaborar na sua constituição, outorgando o negócio jurídico respectivo, o beneficiário da servidão pode impô-la coactivamente, com recurso à via judicial ou administrativa (art. 1547º, nº 2 do CC). Daí que alguns autores prefiram falar em servidão coactiva (25).
“Assim, se as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou acto voluntário, já não é correcto identificar as servidões legais como as constituídas por lei (pode ser constituída por sentença judicial ou por decisão administrativa) … Servidão legal, hoc sensu, é, pois, a que pode ser constituída coercivamente” (26).
Entre as servidões legais (ou coactivas) encontra-se a servidão legal de passagem (arts. 1550º e ss. do CC).
Esta deriva da faculdade que os titulares de prédios, que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la, têm de exigir a sua constituição sobre os prédios rústicos vizinhos (art. 1550º, nº 1 do CC).
Quando não haja materialmente comunicação com a via pública, o encrave diz-se absoluto; é relativo quando essa comunicação exista, mas seja economicamente inviável. Em qualquer dos casos, para o efeito de se conceder a servidão legal de passagem, o prédio considera-se encravado.
Neste caso, a passagem, em princípio, deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados (art. 1553º do CC).
No caso concreto, a servidão de passagem ter-se-á constituído por usucapião.

Vejamos.
Como é consabido, a posse dos direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
Assim dispõe o art. 1287º CC, definindo aquela forma de aquisição originária do direito de servidão.
A posse, por sua vez, na definição fornecida pelo art. 1251º do mesmo Código, constitui-se por dois elementos: o “corpus”, que se traduz no conteúdo da relação material do sujeito com a coisa (poder ou domínio de facto efectivamente exercido), e o “animus” ou elemento psicológico, a revelar-se pela intenção de actuar de modo correspondente à titularidade do respectivo direito real.
De facto, atenta a concepção subjectivista da posse consagrada no nosso Código Civil, para que haja posse, é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto; é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela (27).
Acresce, ainda, como se extrai da conjugação do preceituado nos arts. 1258º a 1262º e 1294º a 1297º, todos do CC, a posse boa para usucapião há-de revestir-se das características enunciadas no primeiro grupo de preceitos – pública, pacífica, de boa ou má-fé, com justo título e registo de mera posse ou sem eles -, elementos que não excluem a posse, mas influenciam na determinação do prazo (termo inicial e final) para a consolidação e aquisição do direito correspondente.
É de referir, neste ponto, que, de facto, só a posse exercida de forma pública e pacífica acaba por ser efectivamente relevante para efeitos de aquisição do direito por usucapião, pois que no citado art. 1297º expressamente se impede o início do curso do prazo prescricional quando a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente.
A Recorrente, no caso concreto, levanta- com alguma pertinência (mas sem ter retirado as consequências) - a questão de saber se pode ser reconhecida a constituição da servidão predial de passagem por usucapião, sem que os AA. tenham logrado provar os factos respeitantes ao elemento “animus” exigido, como se referiu, como requisito do preenchimento da Usucapião.
Com se referiu, para que o direito invocado pelos AA. pudesse ser constituído por Usucapião, em princípio, teriam aqueles que alegar e provar o referido elemento psicológico da posse, ou seja, o “animus”, que, como se disse, consiste na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
Sucede que o legislador, no art. 1252º, nº 2 do CPC, reconhecendo que muitas vezes é difícil a prova daquela intenção subjectiva, estabelece que, em “caso de dúvida, presume-se a posse naquela que exerce o poder de facto”.
Ou seja, “cuidadoso, o legislador reequilibrou esta solução (da concepção subjectivista) procurando suprir insuficiências, com várias presunções legais, com as quais se afasta, no essencial, o espectro da incerteza- v. o art. 1252º, nº2, 1254º, 1257º, nº 2- o que leva a alguma aproximação à visão objectiva…” (28).
“A razão de ser da presunção (do art. 1252º, nº 2 do CC) reside na quase impossibilidade prática de se fazer prova do próprio direito, o qual pode inclusive não existir…” (29).
Daqui que, dentro da tese, por si, defendida (v. Nota 39), Rui Ataíde (30) conclui que “ … a impraticabilidade do subjectivismo psicológico é, então confirmada pela própria prática judiciária. Confrontados com a exigência impossível de afirmar por via directa o “animus” do agente, os Tribunais portugueses recorrem à presunção estabelecida no art. 1252º, nº 2 do CC, segundo a qual, em caso de dúvida, se infere a posse daquele que exerce o poder de facto…”.
Está-se, assim, naquele preceito legal (no art. 1252º, nº 2) perante uma verdadeira presunção legal, isto é, uma ilação que a lei tira de um facto conhecido, o facto-base da presunção (no caso, o exercício do poder de facto sobre uma coisa) para firmar um facto desconhecido, o facto presumido (no caso, a efectiva existência de um animus sibi possidendi), conforme art. 349º do CC.
Ora, quem “tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz” (art. 350º, nº 1 do CC), pelo que quem detém o poder de facto sobre uma coisa, podendo fazê-lo, não tem porém de provar que exerce esse poder convicto que corresponde ao exercício de um direito real de que seja titular.
“As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos caso em que a lei o proibir” (art. 350º, nº 2 do CC).
Essa prova do contrário pressupõe, não apenas a mera e simples contraprova, destinada a tornar duvidoso o facto presumido, decidindo-se então a questão contra a parte onerada inicialmente com a sua prova (art. 346º do CC), mas a efectiva demonstração de que o facto presumido não corresponde à realidade (art. 347º do CC)
Fala-se, então de uma presunção legal relativa, assim se qualificando a contida no art. 1252º, nº 2 do CC, já que a mesma não proíbe a respectiva ilisão.
Pretendendo, pois, realizá-la, terá o interessado que: ou demonstrar não ser verdadeiro o facto-base da presunção (isto é, não estarem a ser exercidos poderes de facto sobre uma coisa), ou demonstrar não ser verdadeiro o facto presumido (actuar quem exerce tais poderes sem a convicção de que os mesmos dizem respeito à titularidade do correspondente direito real) (31).
Ou seja, por força da presunção estabelecida no art. 1252º, nº2 do CC “… cabe portanto a quem se arroga a posse, provar que o detentor não é possuidor, podendo fazê-lo por qualquer meio, nomeadamente pela exibição do título que exclua a posse do detentor, demonstrando que este possui em nome alheio…” (32).
Daí que, conforme decorre do exposto, tenha prevalecido na prática judiciária este entendimento, tendo até sido proferido, em 14 de Maio de 1996, pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que determinou que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (33).
Contudo, nada dispõe - ou impõe - sobre o objecto dessa aquisição (isto é, sobre o direito real cuja aquisição seja assim permitida), ou a forma de ilisão da presunção legal de posse.
Considera-se, porém, estarem aqui potencialmente em causa direitos como a propriedade, o usufruto, o uso e a habitação, o direito de superfície e as servidões (34).
E, por outro lado, julga-se que a forma de ilisão da presunção só poderá ocorrer pela invocação das situações atrás mencionadas.
Aqui chegados, importa reverter para o caso concreto.
Ora, não há dúvidas que, no caso concreto, os AA. lograram provar que detinham um poder de facto sobre a faixa de terreno sobre a qual exerciam o seu direito de passagem (de servidão de passagem), pelo que se pode presumir, nos termos expostos, que o faziam com o “animus” correspondente ao direito que exerciam.
Nesta medida, incumbia à Ré ilidir tal presunção, seja invocando- e provando- que os AA. não exerceram os correspondentes poderes de facto, seja demonstrando que os AA. exerciam tais poderes de facto sem a convicção de que os mesmos corresponderiam à titularidade do direito real correspondente ao exercício que faziam deles (servidão de passagem).
Ora, a verdade é que, como se disse, a Ré não logrou ilidir esta presunção legal de que beneficiavam os AA. enquanto detentores do poder de facto sobre a coisa por onde se efectivava a passagem para os seus terrenos.
E sendo assim, só nos resta concluir que se tem que considerar que se mostram preenchidos integralmente os aludidos requisitos legais que permitem aos AA. ver reconhecido o direito de servidão de passagem, por usucapião.
Improcede, pois, esta argumentação da Recorrente.
*
Entremos agora na segunda questão.
Já se referiu em cima que a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o prédio que dela beneficia – art. 1543º do CC.
No que tange à constituição das servidões prediais, resulta do art. 1547º, nº 1 do Cód. Civil que uma das formas pela qual ela pode ser constituída é por usucapião.
Importa, no entanto, atender a que no que, em especial, respeita às servidões prediais, como é o caso da servidão de passagem em apreço nos autos, exige ainda a lei, que elas sejam aparentes, característica que a mesma lei identifica com a circunstância de se revelarem por sinais visíveis e permanentes, assim afastando a clandestinidade do seu exercício ou utilização - art. 1548º do CC.

Neste sentido, refere L. Menezes Leitão (35), que “as servidões (prediais) podem igualmente ser constituídas por usucapião, mas apenas no caso das servidões aparentes, atenta a proibição de se constituírem por usucapião as servidões não aparentes (art. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1) ”.
Trata-se de um regime que se compreende, atenta a circunstância de as servidões não aparentes (isto é que não se revelem por sinais visíveis e permanentes), poderem estar a ser exercidas na ignorância do proprietário do prédio serviente, ou serem confundidas com actos de mera tolerância deste (36).
No que se refere a estes sinais visíveis e permanentes (exigidos, como se viu, para a constituição de qualquer servidão predial, como é o caso da servidão de passagem), refere L. Menezes Leitão, a págs. 401, que a “visibilidade dos sinais significa que os mesmos devem manifestar a servidão erga omnes, podendo não apenas o dono do prédio serviente mas também qualquer outra pessoa observar esses sinais. A permanência dos sinais significa que os mesmos existem sempre, mesmo que se possa verificar a sua substituição ou transformação. Um exemplo de sinal visível e permanente será, na servidão de passagem, a existência de uma abertura ou carreiro, pelo qual a passagem se exerce. Qualquer pessoa pode ver esse sinal e o mesmo permanece, ainda que a abertura ou carreiro possam ser modificados”.
No mesmo sentido, ensinam também A. Varela/ P. Lima, a págs. 630 que, a “distinção entre as servidões aparentes e não aparentes baseia-se na diversa forma por que a relação entre os prédios se apresenta externamente. Para que seja aparente, não basta que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores. É necessário que, além de visíveis (sendo a visibilidade destinada a garantir a não clandestinidade), os sinais reveladores da servidão sejam permanentes”.
“A permanência da obra ou sinal torna seguro que não se trata de um acto praticado a título precário, mas de um encargo preciso, de caracter estável ou duradouro...”.
No caso particular da servidão de passagem, no que respeita à existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, apontam os citados Profs., respectivamente, a págs. 401 e págs. 630, como exemplos, a existência de uma abertura ou carreiro, de um caminho, uma entrada, uma porta ou portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente.
Qualquer pessoa pode ver esse sinal (incluindo, o próprio proprietário do prédio serviente), daí a sua aparência, e o mesmo permanece, ainda que a abertura, carreiro, caminho, porta ou portal possam, no decurso do tempo, ser modificados.
Em suma, “a razão pela qual apenas as servidões aparentes podem constituir-se por usucapião é a circunstância de um dos requisitos para a aquisição de um direito por usucapião ser o exercício da posse pública, à luz do art. 1297º do CC (…); nas servidões aparentes, a posse, nos termos do direito de servidão é exercida publicamente, isto é, de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262º) …” (37).
Feito este enquadramento prévio, temos que, à luz da factualidade provada, nenhumas dúvidas existem quanto à verificação dos pressupostos legais exigíveis à constituição da servidão de passagem reconhecida/declarada na sentença recorrida.
Como se referiu, entre as servidões legais (ou coactivas), encontra-se a servidão legal de passagem (arts. 1550º e ss. do CC).
Esta deriva da faculdade que os titulares de prédios, que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la, têm de exigir a sua constituição sobre os prédios rústicos vizinhos (art. 1550º, nº 1 do CC).
Ora, na situação sub judicio, ao invés do sustentado pela Recorrente, fez-se prova inequívoca que, desde há, pelo menos, 20 anos, esse acesso do prédio dos AA. é (era) efectuado por um caminho constituído sobre uma faixa de terreno com a largura de 3, 00 m, faixa esta que integrava, em parte, o prédio da Ré.
Na verdade, conforme decorre da matéria de facto considerada provada nos pontos 16 e 17:

16) O acesso aos prédios dos AA. a pé e através de máquinas/alfaias agrícolas sempre foi feito a partir da Avenida …, através de parte prédio identificado em E)., por uma faixa de terreno com uma largura aproximada de pelo menos 3,00 metros, implantada na extrema nascente do prédio referido em E), atravessando em todo o comprimento este prédio, descrevendo uma curva discreta, chegando assim ao prédio dos AA que não possuem qualquer outro acesso para esses prédios para neles fazer introduzir alfaias e máquinas agrícolas (resposta conjunta aos pontos 9, 10 e 24 da B.I.).
17). Tal faixa de terreno era em terra batida (resposta positiva ao nº. 11 da B.I).”
Constituem, portanto, este caminho ou carreiro, com as aludidas características físicas de largura, para efeitos legais, sinais permanentes e visíveis, reveladores ou inequívocos quanto à existência de uma servidão de passagem sobre o dito prédio da Ré e a favor dos prédios dos AA. (38).

Por outro lado, como ainda se evidencia da mesma factualidade, esse acesso assim se processa há, pelo menos, 20 anos, a pé e através de máquinas/alfaias agrícolas, sendo efectuado pelos AA., ininterruptamente, de forma pública («à vista de toda a gente»), de forma pacífica (sem oposição de ninguém»), com animus possidendi ou animus domini («na convicção de estarem a exercer um direito próprio»)- nos termos em que atrás se concluiu, ou seja, por presunção legal- e de boa-fé («na convicção de não estarem a lesar os RR.»)..
É, assim, de concluir, à luz do quadro factual apurado, e do antes exposto enquadramento jurídico, e tal como se sustenta na sentença recorrida, que se mostra constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a favor do prédio dos AA., onerando, em parte, o prédio da Ré, e com as características acima enunciadas.
Importa referir, finalmente, que a tudo isto que aqui se afirma não pode constituir obstáculo o facto de actualmente tal caminho não ser visível.
Na verdade, tal decorre tão simplesmente do facto de, com a construção do muro, a Ré ter interrompido abusiva e ilegalmente o exercício do direito dos AA., ao obstruir totalmente o leito do caminho de servidão, impedindo-os de transitar através dele e de ter acesso às suas “leiras”, o que obviamente produziu o crescimento de vegetação que impossibilita a continuação da verificação da aparência exigida dos sinais de exercício do direito de servidão de passagem, aqui peticionado.
Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, não se pode deixar de concordar com a fundamentação de direito aduzida pelo Tribunal de Primeira Instância, quando aí se refere o seguinte:

“… é de reconhecer que as parcelas dos autores carecem de total comunicação com a via pública, estando pois numa situação de encrave e que durante 20 anos, os autores e já os seus antecessores, para acederem aos seus prédios, seguiam pelo leito do caminho com uma largura de aproximada de pelo menos 3,00 metros existente desde a Avenida … e que atravessava em todo os comprimento, no lado nascente todo o prédio da ré, descrevendo uma ligeira curva, a pé de máquinas e alfaias agrícolas.
O exercício da passagem através do descrito caminho, sempre foi efectuado pelos autores e já antes pelos seus transmissores, continuamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, na plena convicção de que exerciam um direito próprio. Donde, sem qualquer dúvida se pode concluir pela constituição, por usucapião, de uma servidão legal de passagem, sendo que o prédio da ré é serviente e os dos autores dominantes
Sendo, pois, de concluir estar verificado o requisito essencial para se constituir uma servidão legal de passagem.
E, sendo de reconhecer que sobre o prédio da ré existia um encargo em proveito dos autores decorrente da existência da servidão de passagem, o certo é, que a construção do parque de estacionamento com o inerente desnível constatado entre as cotas entre os prédios temos que cabe à Ré repor aquele leito de passagem - caminho de servidão - com a configuração – desenho que teve na data do início da posse onde se estriba a aquisição um caminho que esteve assinalado no solo e delimitado em toda a sua largura e extensão, de forma visível, pela passagem de pessoas e máquinas/alfaias agrícolas – art.1288º. do CC (cfr. Ac. STJ de 05.11.2015, em que foi Relator o Cons. Pires da Rosa), de forma a permitir que os autores continuem a semear, colher e fruir de todas as utilidades que há mais de vinte anos eles e os seus antecessores têm colhido através da utilização daquele caminho. Foram estes factos, que estiveram na génese e no nascimento da posse que conduziu à aquisição por usucapião – um caminho sempre marcado no solo e assinalado e delimitado em toda a sua largura e extensão, de forma visível, pela passagem a pé e de máquinas e alfaias - as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título – e 1565º, nº1 – o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação.
Só que com a construção do parque de estacionamento, não só, os autores ficaram impedidos de fruir das utilidades dos seus prédios, utilizando o caminho para a eles acederem pelo que devendo ser reconhecido tal direito necessariamente tem a ré repor aquela passagem no local exacto onde a mesma se encontrava, devendo para esse efeito demolir o muro construído no leito do caminho de serventia, numa largura correspondente a 3,00, por ser equivalente à largura da serventia que ali existia.

Por outro lado, necessariamente tem que proceder ainda a condenação da ré a construir uma rampa que atenue o desnível verificado entre as cotas das parcelas dos autores e o prédio da ré após a construção do parque de estacionamento”.
*
Pelo exposto, julga-se, esta argumentação da Recorrente, também, improcedente.
*
Entremos, agora, na última questão levantada pelos Recorrentes: a de saber se se pode entender que, pelo facto dos AA. terem construído as escadas no seu prédio, os mesmos renunciaram, ainda que tacitamente, à servidão de passagem pelo prédio da Ré.
É verdade que, uma das formas previstas na lei para a extinção das servidões, é, precisamente, a renúncia – art. 1569º, nº 1, al. d) do CC.
A renúncia é um negócio puramente unilateral que se traduz na perda voluntária de um direito que o renunciante demite de si, sem o atribuir ou ceder a outrem, e que tem como efeito a expansão do direito de propriedade do prédio onerado pela servidão.
O actual Código Civil deixou de a considerar negócio formal, o que significa que a renúncia pode ser provada por qualquer meio (39).
A renúncia pode ser expressa ou tácita, sendo que esta última modalidade se concretiza através de factos donde a mesma claramente se possa deduzir, ou seja, a renúncia tácita da extinção da servidão tem de deduzir-se de factos incompatíveis com a sua subsistência. Necessário é, neste caso, que essa incompatibilidade se deduza necessariamente do facto, visto o princípio de que a renúncia não se presume.
Já a renúncia expressa “… opera pela mera comunicação ao proprietário do prédio serviente…”.
“São exemplos de renúncia as situações previstas no art. 1555º, nºs 2 e 4” (40).
Importa, ainda, referir que a renúncia, como causa extintiva da servidão, não requer aceitação do proprietário do prédio serviente – v. nº 5 do art. 1569º do CC. Basta provar o facto da renúncia para que a servidão se considere extinta, não se tornando necessária a prova da aceitação dessa renúncia pelo proprietário do prédio serviente para que a vontade que por ela se manifesta se torne definitiva e irrevogável (41).
Ora, revertendo para o caso concreto, pode-se concluir, com facilidade, que os factos provados não permitem afirmar que os AA., em algum momento, tenham renunciado ao exercício da servidão, e, muito menos, que tal possa decorrer do facto de terem construído as escadas aqui mencionadas.
Como decorre da matéria de facto (e da prova produzida), não há dúvidas que estas escadas não permitiam, dada a sua dimensão (inferior a 1 metro), satisfazer as utilidades que os AA. obtinham com a servidão de passagem que se mostrava constituída pelo prédio da Ré.
Nessa medida, de forma alguma, se pode aqui atender à pretensão da Ré de considerar que, face àquela construção das escadas, os AA. teriam renunciado, ainda que tacitamente, ao direito de servidão de passagem.
Com efeito, não existem factos concretos donde se possa extrair uma atitude clara de renúncia por parte dos AA. em relação ao exercício do direito de passagem pelo prédio da Ré. Ou, por outras palavras, não existe nenhum facto que seja incompatível com a subsistência da citada servidão de passagem.
Conclui-se, pois, sem necessidade de mais alongadas considerações, pela improcedência desta argumentação da Recorrente.
*
Aqui chegados, entremos finalmente na questão dos alegados danos.

Conforme resulta da sentença proferida a Ré foi ainda condenada a:

- a construir as infra-estruturas necessárias para a captação de águas que escorrem do seu prédio inscrito na matriz predial do Serviço de Finanças, sob o artigo matricial nº. 70 registado na Conservatória do Registo Predial, sob a descrição 320 – Caminha (Matriz)- al e) da decisão;
(…)
-e a pagar os danos que se vierem a apurar e que sejam ocasionados no edifício contíguo aos prédios rústicos dos autores e propriedade também destes, onde se encontram implementadas as garagens referidas no 19 dos factos provados, em resultado da humidades e empolamentos das paredes das garagens e provocados pela concentração de águas no terreno, relegando-se a sua quantificação para a sede de incidente de liquidação- al g) da decisão.
Sucede que essa condenação tinha como sustentáculo a factualidade que se havia considerado provada e que constava do ponto 19 da matéria de facto.
Na verdade, aí tinha ficado mencionado que o “desnível de cotas permitiu e permite que as águas escorram para os prédios referidos em A) a C), propriedade dos autores, invadindo-os e alagando-os, causando empolamentos, salitre e humidades nas paredes das garagens contíguas ali existentes (resposta conjunta, mas restritiva aos nºs. 14 e 15 da B.I.)”
Sucede que, conforme resulta do exposto, considerou-se no presente Acórdão que afinal, de acordo com a valoração que aqui se efectuou da prova produzida, os AA. não lograram provar essa factualidade.
Ora, uma vez que lhes incumbia o respectivo ónus de prova (art. 342º, nº 1 do CC), e não tendo os AA. logrado cumprir esse ónus, importa, pois, concluir que as aludidas condenações não se podem aqui manter.
Na verdade, não tendo aqueles logrado provar que os referidos danos tenham sido causados pela conduta da Ré (nomeadamente, que tenham resultado, em termos de nexo de causalidade, da construção do parque de estacionamento), tem que se considerar que não se mostram reunidos os requisitos de afirmação da responsabilidade civil (arts. 483º e ss. do CC) - desde logo, como se disse, o requisito da existência de nexo de causalidade entre os factos (ilícitos e culposos) praticados e os danos considerados provados.
Nesta conformidade, face à alteração introduzida na matéria de facto provada, e como decorre do exposto, importa concluir pela improcedência destas pretensões dos AA..
Nestes termos, importa alterar a decisão proferida pelo Tribunal Recorrido e, julgando os referidos pedidos improcedentes, absolver a Ré dos mesmos.
*
III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
-o Recurso interposto pela Ré parcialmente procedente, e, em consequência, decide-se alterar a decisão do Tribunal Recorrido nos seguintes termos:

a) Condenar a Ré “X – Construções, Limitada” a reconhecer que os prédios rústicos, respectivamente, o prédio composto de terreno de cultura, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças sob o artigo matricial 72, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob a descrição 111 e o prédio composto de terreno de cultura, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças, sob o artigo matricial 33, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição nº. 555, são propriedade dos Autores.
b). Condenar a Ré a reconhecer que a favor dos prédios dos Autores, descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs 111 e 555, existiu e existe, constituída por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de máquinas/alfaias agrícolas constituída a favor dos Autores, correspondendo a uma faixa de terreno com a largura de pelo menos 3 metros, implantada na extrema nascente do prédio dos Autores, atravessando em todo o comprimento o prédio da Ré, descrevendo uma curva discreta até ao prédio dos Autores identificado nos pontos 1 e 3 dos factos provados, numa extensão de metros correspondente ao comprimento do aludido prédio.
c). Condenar a Ré a demolir o muro construído na serventia, numa faixa de pelo menos 3 metros, correspondente à largura do leito da servidão constituída a favor dos Autores e que constitui a entrada para os prédios destes.
d). Condenar a Ré a construir uma rampa de acesso para os prédios dos Autores, junto do acesso descrito em c)., em virtude do desnivelamento de cotas entre os terrenos, nomeadamente, os prédios dos Autores e da Ré, em consequência da construção do parte de estacionamento.
e). Condenar a Ré a abster-se de praticar qualquer acto que perturbe, impeça ou diminua livre utilização por toda a gente da supracitada servidão de passagem.
No mais, absolver a Ré dos pedidos.
*
Custas pela Recorrente e pelos Recorridos, na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente (artigo 527.º, nº 1 do CPC).
*
Guimarães, 1 de Março de 2018

Pedro Alexandre Damião e Cunha
Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Moreira Dias


1. E ao item 16 da base instrutória.
2. Neste sentido, v. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado”, vol. V, pág. 140 e Antunes Varela, in, “Manual de Processo Civil”, pág. 669.
3. Cfr. Antunes Varela, obra citada pág. 670.
4. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, pág. 265;
5. In “Estudos de processo civil”, pág. 348.
6. Azevedo Brito citado por A. Geraldes, in “Temas da reforma do processo civil”, Vol. II, pág. 242.
7. Henrique Araújo, in “A matéria de facto no processo civil (da petição ao julgamento”.
8. V., por exemplo, Ac. do STJ de 25.03.2004 (relator: Santos Bernardino) in dgsi.pt
9. V. por ex. Ac. do STJ de 14.06.1972, in BMJ 218, pág. 208
10. Abrantes Geraldes, ob. cit., II Volume, pág. 263.
11. Abrantes Geraldes, ob. cit., II Volume, pág. 264.
12. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, pág. 266;
13. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 133;
14. v. Ac. do Stj de 24.9.2013 (relator: Azevedo Ramos) publicado na DGSI e comentado por Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs. 29 e ss.;
15. Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b));
16. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
17. Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 348.
18. Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
19. Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
20. Segundo Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” (nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas) Vol. I, pág. 609 “ Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte… “ ; no mesmo sentido, v. Miguel Teixeira de Sousa, in “Blog IPPC” (jurisprudência 623- anotação ao ac. da RC de 7/2/2017) onde refere: “É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida. Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância. É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”;
21. Antunes Varela/P. Lima, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, págs.. 613 a 615
22. In “Curso de Direitos Reais”, pág. 214.
23. Rui Pinto Duarte, in “Curso de Direitos Reais”, nota 628.
24. Rui Pinto Duarte, in “Curso de Direitos Reais”, pág. 214.
25. José Alberto Vieira, in “Direitos Reais”, págs. 729 e 730; Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, págs. 399 e 400.
26. Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais”, pág. 464.
27. Vide, neste sentido, por todos, A. Varela/ P. Lima, in “ Código Civil Anotado “, III vol., pág. 5. Perfilhando já uma concepção objectivista da posse, mas em boa verdade, sem prescindir do aludido «animus possidendi» ou «animus domini», vide, por todos, L. CARVALHO FERNANDES, in “Lições de Direitos Reias”, págs. 289-291 e L. Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, págs. 122 a 124; Rui Pinto/Cláudia Trindade, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. II, págs. 18 defendem, por seu lado, que “na nossa opinião, no CC português está consagrada uma concepção subjectivista moderada…”. V. ainda, Rui Ataíde, in “Posse e detenção”, págs. 21 e ss. que defende, após explanar todas as teorias doutrinárias portuguesas, que “a única intenção relevante para a aquisição da posse consiste em se querer obter o controlo material da coisa. Nesta medida, o animus é imanente ao corpus, nada lhe acrescentando, pois não cabe admitir que alguém possa constituir um poder de controlo sobre uma coisa sem o querer adquirir…”.
28. Rui Pinto/Cláudia Trindade, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. II, pág. 20.
29. Rui Ataíde, in “Posse e detenção”, pág. 16; no mesmo sentido, A. Varela/P. Lima, in CC anotado, Vol. III, pág. 8.
30. In “Posse e detenção”, pág. 41.
31. Cfr. o ac. da RG de 17.11.2016 (relator: Maria João Matos).
32. Rui Ataíde, in “Posse e detenção”, pág. 16.
33. (relator: Amâncio Ferreira) Publicado no DR, II Série, de 24 de Junho de 1996, e no BMJ 457, p. 55, e acessível in.dgsi.pt. Segundo Rui Ataíde, in “Posse e detenção”, pág. 42 o Supremo Tribunal de Justiça com este entendimento “…revelou que o proclamado subjectivismo só se revela viável pela demonstração do exercício de facto que constitui, ironicamente, o elemento nuclear da orientação objectivista…”. Entretanto, esta posição tem vindo a ser mantida pelos Tribunais, v. por ex. o ac. do Stj de 4.12.2007 (relator: Azevedo Ramos) onde se refere o seguinte: “Provou-se o corpus da posse, por se ter apurado que, pelo menos partir de 1983, primeiro, o réu e, depois, ele e sua mulher, passaram a cultivar e a colher os frutos do prédio, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, e ainda que, também pelo menos a partir de 1983, os réus iniciaram a construção de uma casa de habitação no terreno do questionado prédio, que se prolongou por vários anos. Embora não tivesse resultado provado que os réus praticassem tais actos com ânimo de exercerem o direito de propriedade sobre o mesmo prédio, como tinham invocado (resposta restritiva ao quesito 9º da base instrutória), sempre se poderá afirmar que subsiste uma situação de dúvida, por também não se ter apurado que tenham agido como simples detentores (Anotação do Prof. Henrique Mesquita ao Acórdão do S.T.J. de 9-1-97, R.L.J. Ano 132 - pág. 23 e segs). Assim, é de presumir que os réus agiram como verdadeiros possuidores, nos termos do art. 1252º, nº2, do C.C., pois, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto” e o ac. do Stj de 25.3.2010 (relator: Sousa Leite), in dgsi.pt.
34. Antunes Varela/P. Lima, in “Código Civil Anotado”, Volume III, p. 2.
35. In “Direitos Reais”, pág. 403.
36. Vide, neste sentido, ainda, A. Varela/ P. Lima, págs. 628-631.
37. Rui Pinto/Cláudia Trindade, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. II, págs. 415 e 416.
38. Vide, assim, por todos, AC RG de 15.10.2013 (relator: Filipe Caroço) e AC RG de 10.07.2014, (relator: Fernando Freitas), ambos in dgsi.pt.
39. Neste sentido, o ac. da RP 20.3.2007 (relator: Henrique Araújo), in Dgsi.pt. citando v. Norman de Mascarenhas, “Constituição e Extinção das Servidões Prediais”, Livraria Cruz – Braga, 1982, págs. 17 e seguintes.
40. Rui Pinto/Cláudia Trindade, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. II, pág. 446..
41. Seguindo, de perto, o ac. da RP 20.3.2007 (relator: Henrique Araújo), in Dgsi.pt.