Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
119/21.4GAVNF.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
NOTIFICAÇÃO DE ARGUIDO PRESO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Apurando-se, aquando das diligências tendentes à notificação da sentença ao arguido, que o mesmo já se encontrava preso na data em que foi expedida a carta destinada a dar-lhe conhecimento do despacho que recebeu a acusação e designou data e hora para a realização da audiência de julgamento, carta essa depositada na morada por ele indicada aquando da prestação do TIR, não pode considerar-se o arguido regularmente notificado da data designada para julgamento, concluindo-se, sem mais, que teve conhecimento do teor da notificação.
II - Em matéria de notificações, o legislador teve em consideração a situação especial daquele que se encontra preso, determinando o artigo 114.º, n.º 1, do C.P.P. que «a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao diretor do estabelecimento prisional respetivo e efetuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado».
III - Estando em causa uma norma especial que afasta necessariamente a aplicação da norma geral constante do artigo 113.º, não tendo o arguido sido notificado nos referidos termos e comparecido na audiência de julgamento, não pode deixar de concluir-se que, ao ter sido julgado na ausência, se verifica a nulidade insanável, prevista no citado artigo 119.º, n.º 1, al. c) do C. P. P.
IV - A obrigação de não mudar de residência, nem dela se ausentar por mais de cinco dias, sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado, prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 196.º do C. P. P., tem como pressuposto que a alteração de residência resulte de um ato voluntário do arguido.
V – O que não sucede com o arguido preso em que a sua ausência da morada constante do TIR decorre da situação de reclusão imposta pelo Estado.
VI - Neste circunstancialismo, afigura-se excessivo fazer impender sobre o arguido a obrigação de comunicar aos processos que tiver pendentes a sua atual situação prisional, atentas as limitações em que se encontra decorrentes da sua situação de reclusão.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.
Nos presentes autos de processo abreviado, com data de 30/6/2021, foi proferido um despacho, de acordo com o qual, na sequência de promoção anterior do Ministério Público e para cujo respetivo teor se remeteu, o arguido foi considerado regularmente notificado da data designada para a audiência de julgamento, determinando-se, em conformidade, a notificação ao mesmo da sentença proferida através do estabelecimento prisional.

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, admitido por despacho de fls. 177, proferido em 6/9/2021, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«A. Por via do presente recurso, pretende-se colocar em crise o despacho proferido a dia 30.06.2021, não notificado até presente data ao Arguido e sua Defensora, do qual tomaram conhecimento presentemente e de forma unilateral, por meio de consulta do histórico do processo na plataforma Citius, e o qual assenta no teor do referido Despacho, nos termos do qual, se determina a regular notificação do arguido para a morada constante do TIR.
B. Nos presentes autos foi realizada audiência de discussão e julgamento a dia 17 de junho de 2021, sendo que a audiência de julgamento iniciou-se e completou-se na ausência do arguido, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º do CPP.
C. Realizada a respetiva audiência de julgamento e proferida a sentença que condenou o arguido pela prática do crime que vinha acusado, foi determinada a notificação da sentença a este último.
D. Em prol da impossibilidade de notificação do arguido da sentença proferida, foi feita a respetiva busca pela consulta online de recluso, nos termos do qual foi possível verificar que o arguido se encontrava á data da audiência de discussão e julgamento detido no estabelecimento prisional de braga,
E. Carreada essa informação aos autos, foi proferido despacho determinando que, tendo a notificação do arguido sido remetida para a morada dos autos, se considerava o mesmo regulamente.
F. Com efeito, a regular notificação exigida pelo nº 1 do artº 333º do CPP, pressupõe a observância das formalidades contempladas no nº 3 do artº 113 do CPP, tendo além do mais em conta a residência declarada pelo arguido aquando da prestação do TIR.
G. In casu, encontrando-se o arguido preso, no âmbito de outro processo, como foi possível averiguar, impunha-se a notificação do recorrente, nos termos do artº 114º, nº 1, do CPP, e, não tendo o arguido sido notificado de harmonia com o citado preceito legal, não pode ter-se por regularmente notificado para julgamento, tendo assim, sido cometida a nulidade prevista na alínea c) do artº 119º, do CPP.
H. O que invalidou o direito do Arguido de comparecer na audiência de discussão e julgamento, de prestar declarações se assim fosse a sua vontade, de assistir à produção de prova.
I. Pelo que, considerando que, à data da audiência de discussão e julgamento o Arguido encontrava-se impedido de comparecer de forma espontânea por se encontrar detido no Estabelecimento Prisional de Braga, à ordem de outro processo, não tendo este sido notificado da data de julgamento, nem determinada a deslocação do Arguido ao tribunal para comparecer na audiência de discussão de julgamento, não pode ter-se por regularmente notificado para julgamento, tendo assim, sido cometida a nulidade prevista na alínea c) do artº 119º, do CPP.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO DESPACHO PROFERIDO, NOS TERMOS DO QUAL VALIDA COMO REGULAR A NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO PARA COMPARECER EM AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO, SENDO SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DETERMINE A ANULAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO E CONSEQUENTE SENTENÇA PROFERIDA, DETERMINANDO A REPETIÇÃO DA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO DE JULGAMENTO, E DETERMINADO A NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL DE BRAGA, QUE DEVERÁ GARANTIR A SUA PRESENÇA. FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA».

3.
A Exma Procuradora da República na primeira instância veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Alegou, para o efeito, que:
“(…)
À data da referida audiência, desconhecia-se nos autos que o arguido se encontrava preso no EP de Braga à ordem de outro processo.
Na verdade, o arguido foi notificado do despacho que recebeu a acusação e designou dia para a audiência de julgamento na morada do TIR por si prestado. Assim, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, al. c), n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Penal, a aludida notificação feita ao arguido foi regular. Veja-se que foi, no início da audiência de julgamento, proferido despacho no qual se considerou o arguido regularmente notificado.
De acordo com o artigo 196.º, n.º 2 e n.º 3, al. c) e d), do Código de Processo Penal, o arguido indicou a morada nos autos para onde queria ser notificado e foi advertido de que as posteriores notificações seriam feitas para a morada indicada, excepto se o mesmo comunicasse outra.
Ora, o arguido não comunicou aos autos, como podia e devia, o facto de ter sido preso, sendo que a condição de reclusão não é por si só impeditiva de o mesmo comunicar aos processos que sabe ter pendentes tal situação.
Com efeito, ocorreu, por facto imputável ao arguido, o incumprimento previsto na al. d), do citado preceito legal, o que legitimou a realização da audiência de julgamento na sua ausência, nos termos do artigo 333.º, do CPP.
Ademais, o conhecimento de que o arguido, à data da realização do julgamento, se encontrava preso no EP adveio aos autos em momento posterior à realização do mesmo, isto é, nas diligências empreendidas tendentes à notificação pessoal da sentença proferida.
Nesta sequência, o despacho recorrido não merece censura ao ter determinado a notificação do arguido mediante requisição da sentença proferida, dado que já se tinha considerado que o arguido foi regularmente notificado da data da realização da audiência de julgamento.
(…)».
5.
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6.
Foi cumprido o disposto no art. 417º,nº2, do C.P.P., não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.

7.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº3, al.c), do diploma citado.

Cumpre decidir

II. Fundamentação

Definindo-se o recurso pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir passa apenas por saber se o arguido foi regularmente notificado do despacho que designou o dia para a realização da audiência de julgamento.
Alegando que a sua notificação da data designada para a audiência de julgamento não foi válida e regular, pretende o recorrente a anulação da audiência de julgamento e da sentença proferida, com a consequente designação de nova data para a sua realização e a sua notificação através do Estabelecimento Prisional, a fim de poder garantir a sua presença na mesma.
Em causa está assim saber se tendo a audiência de julgamento sido realizada na ausência do arguido, que não compareceu à mesma, impõe-se ou não a sua anulação, o que pressupõe resolvida a questão supra enunciada, ou seja, a de saber se a notificação ao arguido do despacho que designou a audiência de julgamento pode ser considerada válida e regular após o conhecimento de que a essa data se encontrava preso preventivamente à ordem de outro processo, como foi considerado no despacho recorrido
Para a apreciação da presente questão importa ter presente as seguintes disposições legais.

Artigo 61º (Direitos e deveres processuais)

1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:
a) Estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito;
(...)
6 - Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:
a) Comparecer perante o juiz, o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado;
(...).

Artigo 113º (Regras gerais sobre notificações)
10 - As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado; neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.

Artigo 196º (Termo de identidade e residência)
1 – (…)
2 - Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do nº 1, do artigo 113º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
3 - Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento:
a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no nº 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333º.
4 – (...)

Artigo 332º (Presença do arguido)
1 – É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos nos nºs 1 e 2, do art.333º e nºs 1 e 2 do art. 334.

Artigo 333º (Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência)
1 – Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 – Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida na s alíneas b) e c) do artigo 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efetuar no rol apresentado, a as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no nº. 6 do artigo 117º.
3 – No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do nº 2 do artigo 312.
4 – O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do nº2, do artigo 334.
5 – No caso previsto nos nos 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença.

Artigo 118º (Princípio da legalidade)
1 – A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.
2 – Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular.
3 – (...)

Artigo 119º (Nulidades insanáveis)
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.

Artigo 122º (Efeitos da declaração de nulidade):
1 – As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 – A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 – Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

Exposto o quadro legal aplicável e revertendo ao caso concreto, importa ter presente o que de relevante consta do processo:

Vejamos então.

- Em 3 de março de 2021, o arguido prestou Termo de Identidade e Residência, nele tendo mencionado como sua residência a «Rua …”, residência essa a indicada para receber notificações.
- Nessa altura, e em conformidade com o n.º 3 do artigo 196.º do Código de Processo Penal, o arguido tomou conhecimento:
«a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado.
b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada, exceto se este comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada aos serviços onde os autos se encontrarem a correr nesse momento.
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legítima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º.
e) De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com extinção da pena.»
- Por despacho de 5 de maio de 2021 foi designado o dia 17 de junho de 2021, pelas 09h30, para a realização de audiência de discussão e julgamento e, em caso de adiamento, o dia 24 de junho de 2021, pelas 09h30. (Fls. 72).
- Em 18 de maio de 2021 foi expedida ao arguido carta de notificação por via postal simples com prova de depósito, para a «Rua … (Fls.119), tendo o Distribuidor Postal declarado que no dia 21/5/2021, «depositou no recetáculo postal domiciliário da morada acima descrita a notificação a ele referente.» (Fls. 122).
- Em 17 de junho de 2021 foi iniciada a realização da audiência de discussão e julgamento, tendo sido consignada a falta do arguido e proferido o seguinte despacho:
«Atendendo que o arguido se encontra regularmente notificado para a presente audiência, e não compareceu à mesma, vai o mesmo condenado em multa, que se fixa no mínimo legal.
Uma vez que a sua presença não é essencial desde o início da audiência de julgamento, o Tribunal irá dar lugar à mesma». (Fls.125/126).
- Realizada a audiência de julgamento, foi de imediato proferida a sentença, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º,nº1, do C.Penal, na pena de 60(sessenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00.
- No mesmo dia 17/6/2021 foi solicitado à autoridade policial competente a notificação da sentença ao arguido, vindo aquela a informar que não foi possível proceder ao cumprimento do mandado para notificação, em virtude de o arguido se encontrar detido no E.P. de Braga (Fls. 165/167).
- Na sequência do expediente remetido aos autos pela autoridade policial, veio o tribunal a ter conhecimento que o arguido se encontrava em prisão preventiva à ordem do processo 8/91.2GABCL - Juízo de Instrução Criminal de Braga - desde 8/4/2021.
- O arguido veio a ser notificado da sentença no Estabelecimento Prisional, em 2/7/2021 (Fls.170).
- O arguido encontra-se ininterruptamente preso desde o dia 8/4/2021 à ordem do identificado processo, de acordo com informação solicitada por este Tribunal da Relação em 7 /12/2021.
Ora, no que respeita à fase da audiência de julgamento, resulta da lei processual penal a regra geral da obrigatoriedade da presença do arguido, nos termos do citado artigo 332.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, só podendo o julgamento decorrer na sua ausência nos casos previsto nos artigos 333.º, n.ºs 1 e 2 e 334.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma.
Todavia, mesmo nestes casos, a possibilidade da realização da audiência na ausência do arguido está sempre dependente da sua prévia e regular notificação para comparecer e da advertência da possibilidade de a audiência se realizar na sua ausência, mesmo que não compareça.
Tal decorre, desde logo, do direito que o arguido tem de estar presente em todos os atos processuais que lhe digam respeito e de prestar declarações até ao encerramento da audiência.
Tudo em conformidade com o que estabelecem os artigos 61.º, n.º 1, alínea a) e 333.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, respetivamente.
Tem-se por assente que o arguido foi julgado na ausência, nos termos do citado artigo 333º, nº2, cujo figurino se entendeu como preenchido, como resulta da ata da audiência de julgamento.
E tal assim aconteceu porque o tribunal partiu do pressuposto de que o arguido estava regularmente notificado, razão pela qual deu início à audiência de julgamento.
Regularidade que assentou no facto de a carta enviada para o notificar da data designada para a realização da audiência de julgamento ter sido depositada, como foi, na morada declarada pelo arguido aquando da prestação do TIR.
E efetuada assim a notificação, a lei presume que o destinatário da carta depositada pelo serviço postal a recebeu e tomou conhecimento do respetivo conteúdo, pese embora tal presunção seja ilidível, podendo sempre o interessado demonstrar que não tomou conhecimento do conteúdo da notificação por motivos alheios ao incumprimento dos deveres decorrentes do TIR, como se assinalou no Ac. do Tribunal Constitucional nº109/2012, DR nº72/2012, Série II, de 11/4/2012.

No caso vertente, à primeira vista, mostravam-se cumpridas as formalidades para a notificação do arguido e, em consequência, deveria o mesmo ter-se como regularmente notificado, tal como foi.
Porém, aquando das diligências tendentes à notificação da sentença ao arguido, veio o tribunal a ter conhecimento de uma realidade diferente, ou seja, que o arguido ficou em prisão preventiva em 8/4/2021, situação em que já se encontrava aquando da expedição da carta destinada a dar-lhe conhecimento do despacho que recebeu a acusação e designou data e hora para a realização da audiência de julgamento, a qual veio a ser depositada em 21/5/2021, na morada por si indicada aquando da prestação do TIR.
E, deste modo, não vemos como continuar considerá-lo regularmente notificado da data designada para julgamento, como se concluiu no despacho recorrido, ainda que por remissão para a promoção do Ministério Público, mas que não lhe confere a natureza de despacho de mero expediente, entendimento perfilhado pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto pois, nessa parte, pôs em causa um direito processual do arguido.
O arguido estava preso a essa data no estabelecimento prisional e, portanto, não pode concluir-se, sem mais, que teve conhecimento do teor da notificação.
Em matéria de notificações, o legislador teve em consideração a situação especial daquele que se encontra preso, determinando o artigo 114º, nº1, do C.P.P. que “ a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao diretor do estabelecimento prisional respetivo e efetuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado”.
Dispõe também o artigo 332º, nº2, do mesmo diploma, que “o arguido que deva responder perante determinado tribunal, segundo as normas gerais da competência, e estiver preso em comarca diferente pela prática de outro crime, é requisitado à entidade que o tiver à sua ordem”.
Tudo a apontar no sentido de que a norma constante do citado artigo 114º, sob a epígrafe “Casos Especiais”, trata-se de uma norma especial que afasta necessariamente a aplicação da norma geral constante do artigo 113º.
Ora, não tendo o arguido sido notificado por funcionário, nem tendo sido requisitada a sua comparência ao estabelecimento onde se encontrava preso, parece-nos que tanto basta para que se conclua que o arguido não foi “regularmente notificado”, pressuposto exigido pelo citado artigo 333º,nº1, para o seu julgamento na ausência.
Por conseguinte, não tendo o arguido sido notificado nos termos referidos e comparecido na audiência de julgamento, não pode deixar de concluir-se que ao ter sido julgado na ausência, verifica-se a nulidade insanável prevista no citado artigo 119º, nº1, al. c).
É certo que tendo o arguido prestado TIR, o mesmo ficou obrigado a não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado, como resulta do citado artigo 196º, nº1, al.c), do C.P.P..
Mas será que o arguido estava obrigado a proceder à tal comunicação?
Cremos seguramente que não.
Tal obrigação tem como pressuposto, quanto a nós, que tal alteração de residência resulte de um ato voluntário do arguido, o que não ocorreu no caso vertente, pois o arguido mantém a residência constante do TIR, tendo a ausência desta sido “forçada”, decorrente do facto de ter sido preso preventivamente à ordem de outro processo.
Para além disso, neste circunstancialismo, parece-nos excessivo fazer impender sobre o arguido a obrigação de comunicar aos processos que tiver pendentes a sua atual situação prisional, atentas as limitações em que se encontra, decorrentes da sua situação de reclusão.
É certo que o tribunal não tinha conhecimento desta conjuntura quando enviou a notificação, mas isso em nada altera a situação, uma vez que foi o próprio Estado que, emaranhado nas teias da burocracia que ele próprio desenvolve, não criou as condições para que esse conhecimento estivesse ao alcance do Órgão Tribunal, que era a entidade competente para levar a cabo a mesma. E disso não tem o arguido culpa.
Aliás, o próprio Estado reconhece que, estando alguém preso as regras da notificação têm que sofrer alterações: é o que resulta do nº 1, do artº 114º, onde se determina que “a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao director do estabelecimento prisional respectivo e efectuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado” (Acórdão da Relação de Coimbra de 9/2/2011, proc.522/01.6TACBR, in dgsi.pt).

Como também se fez constar no acórdão desse mesmo Tribunal, de 29/5/2013, proc.336/09.5PBCVL.C1, relatora Olga Maurício, in www.dgsi.pt:

“No caso, e independentemente de o arguido morar, ou não, no local que indicou no TIR, está provado que está preso desde 10/12/2010.
Isto significa que a ausência do arguido não é voluntária, não dependeu de ato de vontade do arguido. Ao invés, trata-se de uma ausência imposta pelo Estado português, aos cuidados de quem o arguido está desde aquela data.
Assim sendo, não é aceitável que se trate esta situação como se de ausência voluntária se tratasse, se onere o arguido com a obrigação de comunicação da ausência da residência e, mais, se tenha o arguido como validamente notificado, quer da acusação, quer do despacho que designou dia para julgamento.
É que estando o arguido aos cuidados do Estado desde dezembro de 2010 o razoável é que o próprio Estado que o deteve informasse os demais serviços públicos da situação daquele cidadão.
Aliás, e isto é tanto assim quanto resulta que a detenção se deveu ao sistema de justiça que, entretanto, o procurou, sem êxito, para o notificar”.
Não comungamos assim do entendimento seguido no acórdão trazido à liça pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer (Ac. da Relação de Lisboa, de 6/4/2015, processo3/03.3IELSB), antes perfilhando do adotado nos acórdãos desta Relação de Guimarães, de 18/12/2012, proferido no processo 706/08.6GAFLG.G1, relator Cruz Bucho, de 25/10/2021, proc. 505/18.7GASEI, relator Armando Azevedo, nos acórdãos da Relação de Coimbra, já citados e da Relação do Porto de 4/7/2012, proc.765/09.4PRPRT, relator Joaquim Gomes, todos disponíveis in dgsi.pt.
Aqui chegados, sem necessidade de outras considerações, não se verificando os pressupostos do julgamento na ausência, a presença do arguido era obrigatória (art.332, CPP), pelo que, ao realizar-se o julgamento sem a sua presença, foi cometida a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c), do CPP, a qual, conforme entendimento uniforme na doutrina e jurisprudência, ocorre também nos casos em que o arguido está ausente processualmente, em virtude de não lhe ter sido garantido o direito de estar presente, por não ter sido regularmente notificado da data designada para a realização da audiência de julgamento.
Tal nulidade, arguida pelo recorrente, mas que pode ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, torna inválido o ato em que se verificou, bem como os que dela dependem, o que importa a anulação do julgamento e do subsequente processado com ele relacionado, conforme disposto no citado artigo 122º, nº1.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso e, consequentemente:

- Revogar o despacho recorrido.
- Declarar nulo o julgamento efetuado na ausência do arguido, bem como todo o processado posterior que com ele está relacionado.
- Determinar que seja proferido despacho designando novas datas para a realização da audiência de julgamento, seguindo os autos os termos processuais posteriores.

Sem tributação.
(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 16 de dezembro de 2021

A Juiz Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
O Juiz Desembargador Adjunto
António Teixeira