Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7373/12.0TBBRG-C.G1
Relator: JOAQUIM ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTO DEFEITUOSO
CONSUMIDOR
RESPONSABILIDADE
PRODUTOR
FORNECEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Tendo-se provado nos autos, mais tarde, que o produtor real do produto defeituoso não é a 2ª Ré, e esta não ter sido notificada para os termos do artigo 2.º nº 2 al. b) do DL. 383/89 de 6/11, não pode considerar-se responsável como fornecedora de produtos anónimos, pelo que não se justifica manter-se na instância para o apuramento da responsabilidade dos danos causados pelo defeito do produto, impondo-se a extinção da instância, relativamente a ela e à sua seguradora, por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no artigo 277 al e) do CPC.

2. A 2ª Ré, como fornecedora do produto defeituoso, apenas é responsável subsidiária e não primária, uma vez que podia desonerar-se se tivesse sido notificada (o que não foi) para os termos do disposto no artigo 2º n.º 2 al b) do DL. 383/89 de 6/11 e identificasse, no prazo de 3 meses, o produtor comunitário, importador ou qualquer fornecedor precedente.
Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães
J. P. demandou a Casa de Saúde X S.A. e a J. J. pedindo uma indemnização por danos patrimoniais e morais sofridos com a rutura de uma prótese da anca que lhe foi aplicada na primeira e produzida e fornecida pela segunda.

As rés contestaram a ação, identificando, a segunda, a empresa produtora da prótese e requereu a Intervenção Principal Provocada da Seguradora Y Limited, que veio a ser admitida.

A 7 de dezembro de 2017 a rés, através de articulado superveniente, vieram alegar que foi proposta uma ação, pelo autor, contra a produtora da prótese, com os mesmos fundamentos da que lhes foi movida, pedindo, além do mais, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

O autor opôs-se, alegando, em síntese, que as ações têm fundamentos diferentes, pugnando pelo indeferimento.

O tribunal julgou procedente o articulado superveniente, após ter ordenado a apensação da ação movida pelo autor contra a produtora da prótese, declarando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, uma vez que foi identificada a produtora da prótese, estando a ser demandada pelo autor, não se justificando a manutenção da ação contra as rés.

Inconformado com o decidido, o autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

I- A douta sentença ao ter declarado extinta por inutilidade superveniente da lide a presente acção, quanto às Rés Y Limitede e J. J. Lda., ressalvado melhor entendimento por este Alto Tribunal, fez errada interpretação e aplicação da lei.
II- O consignado no artigo 19º da contestação apresentada, nos autos, pela demandada “J. J. Lda." , não satisfaz a exigência prevista na alínea b) , do nº 2, do artigo 2º do Dec. Lei nº 383/89, de 6 de Novembro, para efeitos da exclusão da responsabilidade prevista na alínea c), segunda parte – “qualquer outra forma de distribuição com um objetivo económico”- do artigo 5º do referido Dec. Lei.
A douta sentença ao assim não ter considerado violou na alínea c), segunda parte, do artigo 5º do supracitado decreto lei.
III- O facto de estar comprovada nos autos, no âmbito do apenso - A, a qualidade de produtor real da prótese em causa nos autos da empresa “D. F. SAS”, não constitui facto superveniente extintivo do direito do autor pelo que a douta sentença, ao assim ter considerado, violou o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 588 do CPC.
IV- Mostrando-se alegado no artigo 5º da presente acção que a prótese ortopédica aplicada ao autor, aqui recorrente, pela primeira Ré, havia sido fabricada e fornecida a esta, a título oneroso, pela segunda Ré, deverá manter-se esta nos autos, na qualidade de produtora, na vertente de fornecedora ou comercializadora da prótese em apreço.
V- O facto de no artigo lº, da petição Inicial dos autos que correm termos no mesmo Juízo Local Cível sob o número 5735/15.0T8BRG constar que a Ré “D. F. SAS” se dedica com caracter de regularidade e escopo lucrativo, entre outras atividades ao fabrico e comercialização, no mercado europeu de próteses ortopédicas, apenas resultou do conhecimento havido na referida contestação apresentada ora apelada J. J. Lda., isto é , em data posterior à apresentação da Petição Inicial destes autos em juízo, e por efeito daquele conhecimento.
VI- O apelante, em consequência do conhecimento do real fabricante, procurou, nos presentes autos, alterar o pedido e a causa de pedir no tocante à imputação do produtor real.
VII- No entender do recorrente deverá manter-se nos autos, a Ré “J. J. Lda.” pelo facto de ter sido a comercializadora e fornecedora da referida prótese à primeira Ré, com as legais consequências.
VIII- Consequentemente, em discordância com a douta sentença, nos presentes atos a apelada “J. J. Lda. “não assume a qualidade de responsável subsidiária, antes solidária e principal pelo que, a douta sentença violou o disposto no nº 1 do artigo 6º do aludido Dec. Lei 383/89 de 6 de Novembro.
IX- As acções em apreço são distintas, como distinto é o fundamento ou a causa de pedir e os pedidos que deram origem às lides.
X- O recorrente discorda da interpretação que faça equivaler a identificação, na contestação, do produtor real à “notificação" prevista na alínea b) , do referido artigo 2º daquele Dec. Lei, uma vez que de verdadeira notificação se não trata e ainda porque tal entendimento permitiria que “medio tempore", o produtor real beneficiasse dos institutos da prescrição e da caducidade, previstos nos artigos 11º e 12º do referido Dec. Lei 383/89, de 6 de Novembro, sem que o apelante tivesse podido conhecer a sua identidade, pelo que a douta sentença violou o disposto na alínea b) do artigo 2º do aludido Dec. Lei 383/89, de 6 de Novembro.
XI- Seria sumamente injusto que o “produtor”, entendido nos termos em que a douta sentença o fez, se pudesse eximir à responsabilidade de ter posto em circulação um produto causador de dano, mediante eventual caducidade do direito ao ressarcimento, se apenas pudesse sem culpa do apelante, ser demandado, no limite, decorridos mais de 10 anos sobre a data em que o produtor pôs em circulação o produto causador do dano!
XII- Tal interpretação alcançada na douta sentença, à luz do disposto no artigo 12º daquele Dec. Lei, conduz a que o recorrente deixe de ter assegurado o Acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, desse modo tendo sido violado o Princípio da Justiça, o respeito e garantia de efetivação de direitos fundamentais, consagrados nos artigos 1º,2º, 20º , nºs 1, 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
XIII- Ora, sob pena de grave injustiça, para os indicados efeitos, deverá ter-se presente que a Ré “J. J. Lda." , através de actos de distribuição e comercialização relativamente à primeira Ré e ao apelante, também fez circular o produto causador do dano, não devendo ser desconsiderado que a sua manutenção nos autos constitui a única possibilidade de se assegurar a unidade e coerência sistemática do Instituto da responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos.
XIV- A douta sentença ao considerar que a comprovação, nos autos, da identidade real do produtor constitui facto extintivo do direito do recorrente relativamente à recorrida e interveniente principal Y, violou na alínea e), do artigo 277 do CPC, o disposto no artigo 9º do Código Civil, e ainda pelas enunciadas razões, os preceitos constitucionais directa e imediatamente aplicáveis consignados na conclusão XI supra.
Consequentemente, deverá a douta decisão impugnada, que ordenou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide na parte respeitante à Ré “J. J. Lda” e sua seguradora Y ser revogada e substituída por outra que ordene, quanto a estas, a prossecução da instância.”.

Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões:

1. Se a decisão recorrida, ao declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide violou o disposto no artigo 588 n.º 1 e 2 e artigo 277 al. e), ambos do CPC.
2. Se a contestação da ré J. J., ao identificar o produtor da prótese, funciona como uma notificação nos termos do artigo 2 n.º 2 al b) do DL 383/89 de 6/11.
3. Se a responsabilidade da ré J. J. é solidária nos termos do artigo 6.º do DL 383/89 de 6/11.
4 Se a decisão recorrida viola o direito do autor ao acesso à justiça.

Vamos conhecer das questões enunciadas.

Damos como assente os factos acima relatados.

1.Se a decisão recorrida, ao declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide violou o disposto no artigo 588 n.º 1 e 2 e artigo 277 al. e), ambos do CPC.

Esta questão incide sobre a superveniência do conhecimento, por parte do autor, do produtor real da prótese que lhe foi aplicada na primeira ré e fornecida pela segunda. E isto, porque o autor, quando propôs a ação, estava convencido que a segunda ré era produtora de próteses e forneceu à primeira ré a que lhe fora aplicada. É o que resulta da leitura do artigo 2.º e 5º da petição inicial, onde consta que “ A 2ª ré é pessoa coletiva que se dedica, com carácter de regularidade e escopo lucrativo, entre outros, ao fabrico e comercialização de próteses ortopédicas” e “A prótese ortopédica aplicada ao A. pela 1ª Ré havia sido fabricada e fornecida a esta, a título oneroso, pela 2ª Ré”. Estes factos foram impugnados pela 2ª ré que identificou, no artigo 19 da sua contestação, o produtor da prótese em causa (D. F. SAS, com sede na …, França). O autor, com a notificação da contestação ficou a saber a identidade do produtor, e veio a demandar, em ação própria, a produtora, o que se traduz num facto superveniente.

Este facto, ao dizer respeito à identidade do produtor da prótese que se desintegrou e causou os danos que fundamentam a ação, que levou à propositura da ação contra a produtora, revela-se extintivo do direito do autor em demandar a 2ª ré, na medida em que foi identificado o responsável pela criação e colocação no mercado da prótese, através da segunda ré.

Pelo simples facto de se ter identificado o produtor real da prótese, e ter sido demandado e confessado, na sua contestação, que produziu e vendeu, à segunda ré, a prótese em causa, não se justifica que a ação continue a correr contra a ré e a sua seguradora.

O conceito amplo de produtor previsto no artigo 2º do DL. 383/89 de 6/11 visa proteger o consumidor, para lhe facilitar a tarefa de provar quem é responsável pelos danos provenientes de qualquer defeito do produto colocado em circuito económico. Na alínea b) inclui o fornecedor do produto, mas condicionando-o à sua notificação, por parte do lesado, por escrito, a solicitar a identificação do produtor. E, para afastar a sua responsabilidade, terá de comunicar-lhe, no prazo de 3 meses, também por escrito, a identificação do produtor real, importador ou fornecedor precedente. Se o não fizer, será considerado produtor nos termos deste normativo.

O autor não alegou ter notificado a 2ª ré para que lhe fornecesse a identidade do produtor. Pelo contrário, considerou-a produtora da respetiva prótese. Daí que a tenha demandado não como fornecedora, mas como produtora da prótese, como se reflete no artigo 2º e 5º da petição inicial. Assim, este normativo não se aplica ao caso em apreço, na medida em que a 2ª ré foi fornecedora e não foi notificada para identificar o real produtor, importador ou fornecedor precedente.

O que nos leva a concluir que a 2ª ré não é equiparada a produtor dentro do conceito amplo do artigo 2º do DL. 383/89 de 6/11, pelo que não é responsável pelos danos sofridos pelo autor, não se justificando manter-se em juízo para o apuramento do direito invocado pelo autor.

2. Se a contestação da ré J. J., ao identificar o produtor da prótese, funciona como uma notificação nos termos do artigo 2 n.º 2 al b) do DL 383/89 de 6/11.

A contestação, em si, não se identifica com a notificação prevista no artigo 2.º al b) do DL. 383/89 de 6/11 na medida em que se traduz numa iniciativa de defesa da 2º ré para se desonerar da responsabilidade pelo defeito da prótese que forneceu à 1ª ré, como mera fornecedora e não como produtora, ao identificar o produtor real da prótese.

A notificação prevista no normativo citado pressupõe uma notificação do lesado ao fornecedor, (quando o produto não identifique o produtor comunitário ou importador), a solicitar a identificação do produtor, importador ou fornecedor precedente, com vista a descobrir o ou eventuais responsáveis pela produção e comercialização do produto defeituoso. E o fornecedor de produto anónimo, para se exonerar da responsabilidade de produtor, tem de, no prazo de 3 meses, comunicar, por escrito, ao lesado, a identidade do produtor comunitário ou do importador ou ainda algum fornecedor precedente.

Como não foi notificada, para o efeito, por parte do autor, fê-lo na contestação, o que é permitido, uma vez que o diploma privilegia a responsabilização do produtor real ou aparente previsto no artigo 2º n.º 1 e 2 al a). O fornecedor só é equiparado a produtor com vista a proteger o consumidor lesado numa situação de produto anónimo, em que não há identificação do produtor comunitário ou importador. O normativo funciona como meio de pressão sobre o fornecedor para identificar o produtor, o importador ou qualquer fornecedor precedente, para que o consumidor tenha pistas concretas para identificar o real responsável pelo defeito. Daí a obrigação que tem em responder à notificação do lesado no prazo de 3 meses. Se este circunstancialismo não se verificar, isto é, o lesado não o notificar para os termos do normativo em causa, e vier a ser demandado como produtor real, como foi neste caso, tem todo o direito em defender-se, identificando o produtor real (conferir: Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Colecção Teses, Almedina, 1990, pag. 560 a 570).

3. Se a responsabilidade da ré J. J. é solidária nos termos do artigo 6.º do DL 383/89 de 6/11.

O artigo em causa consagra a responsabilidade solidária quando existam vários responsáveis, produtores reais ou aparentes, que contribuam para o defeito no produto, que venha a causar danos ao consumidor. No caso da 2ª Ré estamos perante um fornecedor de produtos anónimos, que não participou na cadeia de produção do produto, sendo considerado pela lei como produtor de recurso, com responsabilidade subsidiária, sancionatória, isto é, se não responder à notificação do lesado no prazo de 3 meses a identificar um produtor real ou aparente ou fornecedor precedente. Se o fizer, ou não for notificado para o efeito, não pode ser considerado como produtor, responsável pelo dano, uma vez que a sua responsabilidade não é primária (Calvão da Silva Responsabilidade Civil do Produtor, Colecção Teses, Almedina, 1990, pag. 560 a 570).

Como o referimos acima, a 2ª Ré é mera fornecedora da prótese e, quando foi confrontada com a petição inicial, logo na sua contestação, identificou o produtor real do produto defeituoso, desonerando-se de qualquer responsabilidade que lhe foi imputada, uma vez que foi identificado o produtor real, objetivo essencial do DL. 383/89 de 6/11.

Assim não pode ser considerado responsável solidário, como o refere o autor/apelante, nas suas alegações.

4 Se a decisão recorrida viola o direito do autor ao acesso à justiça.

O autor/apelante questiona o seu direito de acesso à justiça face à decisão impugnada ao afastar a 2ª ré da ação, com a declaração da extinção da instância relativamente a ela e à sua seguradora, porque, com a demanda, neste momento, do produtor real, este pode suscitar o instituto da prescrição e da caducidade previstos nos artigos 11 e 12, respetivamente, do DL. 383/89 de 6/11.

O autor/apelante não ficou inibido de exercer o seu direito contra o produtor real. Ao ter conhecimento da sua identidade propôs-lhe uma ação a pedir-lhe uma indemnização, com fundamento no defeito da prótese e nos danos que lhe provocaram. O seu direito a aceder à justiça, aos tribunais concretizou-se. O demandado também tem direito ao contraditório, deduzir toda a sua defesa permitida por lei. Não é pelo facto de ter sido demandado, há pouco tempo, que deixa de poder defender-se com os institutos que estão ao seu alcance, e o tribunal, em face desta possibilidade, não possa cumprir a lei.

A questão da demanda tardia é imputável ao autor, na medida em que não foi diligente ao não notificar a 2ª Ré, logo que teve conhecimento do dano e do defeito do produto, para, em três meses, identificar o produtor, uma vez que se estava perante um produto anónimo. Se o tivesse feito, e a Ré não cumprisse o preceito legal (artigo 2º n.º 2 al b) do DL. 383/89 de 6/11), não poderia, aquando da ação, desonerar-se da sua responsabilidade subsidiária, mesmo que viesse identificar, mais tarde, o produtor real. Como o não fez, não pode queixar-se da sua negligência e das consequências que daí possam advir para o exercício dos seus direitos.

Concluindo: 1. Tendo-se provado nos autos, mais tarde, que o produtor real do produto defeituoso não é a 2ª Ré, e esta não ter sido notificada para os termos do artigo 2.º nº 2 al. b) do DL. 383/89 de 6/11, não pode considerar-se responsável como fornecedora de produtos anónimos, pelo que não se justifica manter-se na instância para o apuramento da responsabilidade dos danos causados pelo defeito do produto, impondo-se a extinção da instância, relativamente a ela e à sua seguradora, por inutilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no artigo 277 al e) do CPC.
2. A 2ª Ré, como fornecedora do produto defeituoso, apenas é responsável subsidiária e não primária, uma vez que podia desonerar-se se tivesse sido notificada (o que não foi) para os termos do disposto no artigo 2º n.º 2 al b) do DL. 383/89 de 6/11 e identificasse, no prazo de 3 meses, o produtor comunitário, importador ou qualquer fornecedor precedente.

Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo do apelante.
Guimarães, 14/3/2019

Joaquim Espinheira Baltar
Eva Almeida
Maria Santos