Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
474/20.3T8PRG.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
MEIOS OPONÍVEIS
PROIBIÇÃO DA INDEFESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
LEGISLAÇÃO COVID-19
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O incidente de despejo imediato admite a dedução pelo arrendatário de qualquer meio defesa susceptível de demonstrar o pagamento ou a inexigibilidade das rendas vencidas na pendência da ação.
II- A obrigação de pagar tais rendas apenas se suspende ou extingue nos casos especificamente previstos no regime do arrendamento.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

Na acção proposta por J. J. contra X, Sociedade Unipessoal Lda, foi deduzido pedido de despejo da ré do prédio urbano sito na Avª. …, constituído em propriedade total sem andares nem divisões susceptível de utilização independente, afecto à habitação inscrito na matriz predial respectiva da União de Freguesias de … e …, sob o artigo …, para o efeito sendo invocado, como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, a falta de pagamento de rendas a partir do mês de Julho de 2020.
Na pendência da acção, face à falta de depósitos das rendas vencidas desde a instauração do processo, o autor deduziu incidente de despejo imediato.
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Na contestação ao incidente, a Ré admitiu que não depositou as rendas e alegou que o autor autorizou a suspensão da renda, com base no acordo estabelecido de diferimento do pagamento das rendas respeitantes aos meses de Julho a Novembro de 2020 para o início do ano de 2021, o que foi impugnado pelo Autor.
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Tendo o A. informado que a ré se mantém em incumprimento quanto ao pagamento das rendas vencidas desde a propositura da acção, veio requerer a notificação da Ré nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4, do art. 14.º do NRAU, e com a cominação correspondente ao disposto no n.º 5 do mesmo preceito legal, ou seja, no prazo de dez dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas vencidas desde a propositura da acção e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, com advertência de que, em caso de incumprimento, o autor poderia requerer o despejo imediato.
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A Ré, notificada, alegando dificuldades financeiras na decorrência da situação epidemiológica, que levou ao encerramento do seu estabelecimento, veio requerer a prorrogação do prazo, por mais 5 (cinco) dias, mais requerendo, no âmbito deste incidente, a prestação de depoimento do Autor, ao abrigo do art.º 452.º do CPC.
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Concedido o prazo requerido com a anuência do A., sem que o tivesse feito, ouvida a Ré veio manter o requerido depoimento do Autor, para prova do acordo com o Senhorio quanto ao deferimento do pagamento das rendas vencidas, na pendência da acção, dando-lhe este mais prazo para o pagamento das mesmas, como forma de evitar um despejo que lhe provocará uma situação de especial vulnerabilidade.
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Respondeu o A., mantendo a sua posição e acrescentando que, por se tratar de uma sociedade, tal não é compatível com a necessidade de uma habitação.
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Proferida decisão, julgou-se procedente o incidente de despejo imediato e, em consequência, condenou-se a Ré a despejar imediatamente o locado e a proceder à sua entrega ao Autor livre e devoluto de pessoas e bens.
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II - Objecto do recurso

A Ré, não se conformando com o teor dessa decisão veio recorrer, concluindo nos seguintes termos:
1. A Douta Sentença datada de 14/10/2021, que determinou que, no âmbito do incidente de despejo imediato, o arrendatário apenas poderá obstar ao respetivo decretamento pagando ou depositando (ainda que a título condicional) o valor das rendas vencidas na pendência da causa e da indemnização legal, não lhe sendo consentido, por via de regra, um outro tipo de defesa para obstar ao decretamento do despejo imediato. Porém, ainda que se se entendesse em sentido contrário, e admitindo-se o alegado pela ré de que o autor consentiu no deposito deferido para momento futuro das rendas vencidas, sempre tal argumento esbarraria na posição do autor que nega tal facto, sendo por isso inútil proceder à sua inquirição”, não faz a correta aplicação do direito aos factos.

Pela seguinte ordem de considerações:
2. A defesa da Recorrente em sede de oposição ao deferimento do incidente de despejo imediato foi de que o Senhorio autorizou a suspensão das rendas, permitindo o deferimento das rendas vencidas na pendência da ação para mais tarde, onde requereu o depoimento do Senhorio para provar tal facto.
3. Acontece que, este Tribunal a quo não teve em conta que, apesar de figurar como Autor, o Recorrido, J. J., a ação de despejo e respetivo incidente foi, na verdade, requerido pelo seu filho, J. E., em sua representação, com base em procuração que por ele lhe foi outorgada.
4. A posição do autor assumida neste processo, não é, de todo, a posição do Senhorio, J. J., mas antes, a posição do seu filho, J. E., que é a verdadeira parte processual, que é o real sujeito que age e dita os factos, que comandado o processo, o Senhorio desconhece que a Recorrente está na iminência do despejo.
5. Logo, não poderia este Tribunal ter ignorado tal circunstância, indeferindo o pedido da Recorrente de ouvir o Recorrido, quando a sua inquirição era essencial para ficar provado que o mesmo consentiu no depósito deferido das rendas vencidas na pendência da ação.
6. Aliás, na própria contestação à ação de despejo a Recorrente alega o deferimento das rendas vencidas para o ano 2021, na sequência de uma acordo assumido entre arrendatária e senhorio, em virtude de ter ficado sem remuneração, pelo facto da sua atividade económica (restauração) ter sido reduzida e encerrada na decorrência das limitações impostas pela situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
7. Portanto, o Tribunal a quo ao decidir desta forma, à revelia do que a Recorrente alegou em sede de contestação à ação de despejo e respectiva oposição ao incidente, acabou por dar provimento ao despejo da Recorrente, tornando, atualmente, a discussão da ação principal absolutamente inútil, uma vez que o fim pretendido pela parte na instauração da ação de despejo já foi concretizado, ao ter sido gerado pelo Tribunal a quo uma nova forma de resolução do contrato de arrendamento da arrendatária com o respetivo despejo, sem lhe ter dado oportunidade de uma verdadeira defesa.
8. Motivo pelo qual não deveria ter sido deferido o Incidente de Despejo Imediato, antes de ser dada a possibilidade à Recorrente de fazer a prova, como aliás requereu, de que existiu um acordo entre arrendatária e senhorio no sentido de deferir as rendas vencidas para mais tarde.
9. Com efeito, a rapidez que se pretende que caracterize o incidente de despejo imediato não poderá jamais resultar na limitação dos direitos de defesa do arrendatário ao pagamento ou depósito das rendas vencidas e da indemnização devida pelo não pagamento atempado.
10. Aliás, o próprio n.º 3 do artigo 14.º, do NRAU, quando conjugado como o n.º 4, impõe se considere o regime geral de pagamento de rendas, excluindo qualquer cominatório autónomo decorrente da notificação que o n.º 4 prevê.
11. No regime do RAU (similar ao atual), foi aliás tirado o acórdão 673/2005, do Tribunal Constitucional, “no qual se decidiu que na apreciação da questão o parâmetro constitucional mais pertinente se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma vez iniciado, para concluir que pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”.
12. Já na vigência do NRAU (na redacção da Lei 31/2012, de 14 de agosto) o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre questão similar no acórdão 327/2018, em idêntico sentido.
13. “Em que o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, deve, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, ser interpretado em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto a outras questões, que não digam exclusivamente respeito à falta de pagamento de rendas, o réu não está impedido de exercer o contraditório mediante a utilização de outros meios de defesa”.
14. Como explica MARIA OLINDA GARCIA, ao passar a referir a expressão “em caso de deferimento”, parece conduzir à conclusão de acordo com a qual o despejo imediato não é consequência direta e necessária do não pagamento ou depósito das rendas vencidas, carecendo antes de ponderação e análise do julgador…”
15. Portanto, é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do art.º 14º, nº 4, do NRAU, no sentido de, no incidente de despejo imediato, apenas pode ser admitida como defesa a prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.
16. Com efeito, o entendimento segundo o qual o arrendatário, na resposta ao incidente de despejo imediato, apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósitos das rendas, não lhe sendo permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas e impeditivas do pagamento, viola os princípios do Estado de Direito democrático (artigos 2.º da CRP), da igualdade (artigo 13.º da CRP), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP).
17. Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efetividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.° da CRP.
18. Deve assim julgar-se inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma do artigo 14.º n.º 4 do NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27/02), segundo a qual, no incidente de despejo imediato o único meio de defesa consiste na apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que o arrendatário procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida, quando existe controvérsia acerca da exigibilidade das mesmas, face à existência de um acordo assumido entre a Arrendatária e o Senhorio no sentido de deferir essas rendas para mais tarde, requerendo a Recorrente o depoimento do Senhorio, visto ser a única forma de provar tal facto, já que o Senhorio não é a verdadeira parte processual, mas sim, o seu filho, que comanda e age no processo em sua representação.
19. A sentença recorrida, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos artigos 14º n.º 4 e 5 da NRAU e artigos 2.º, 13.º, 18.º e 20.º da CRP.
20. Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo a sentença recorrida revogada, alterando-se a decisão proferida, no sentido de, por qualquer um dos argumentos aduzidos supra, ser indeferido o despejo imediato da Recorrente e dada a possibilidade da Requerente provar o acordo de deferimento de rendas através do depoimento do Senhorio.

TERMOS EM QUE V. EXAS CONCEDENDO PROVIMENTO AO RECURSO E ALTERANDO A DOUTA DECISÃO RECORRIDA NOS TERMOS PUGNADOS NAS PRESENTES ALEGAÇÕES,
Farão inteira JUSTIÇA!
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O A. veio apresentar as suas contra - alegações, concluindo pela sua inadmissibilidade e infundada posição recursiva da R. e, assim, pela conformidade legal da decisão recorrida, no sentido de se dever julgar o mesmo improcedente, com as devidas consequências legais.
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III-O Direito

Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, importa apurar se se violou o princípio da proibição da indefesa e se, assim, se não deveria ter sido deferido o incidente de despejo imediato, mas determinado a prova requerida.
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A – Fundamentação de facto

A instrumentalidade fáctico-jurídica elencada no ponto I, respeitante ao relatório elaborado.
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B - Fundamentação Jurídica

Relativamente à questão suscitada de inadmissibilidade do recurso interposto, tem a mesma de decair face ao que se dispõe no art. 629.º, n.º 3, al. a), do Cód. Proc. Civil, daí se ter admitido liminarmente a impugnação apresentada.
Já quanto ao cerne da questão, o despejo imediato está actualmente regulado no art. 14.º, n.ºs 3 a 5 do NRAU, constante da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, que preceitua o seguinte:
“ 3. Na pendência da acção de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais.
4. Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5. Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do art. 15.º e nos artigos15.º-J, 15.ºK e 15.ºM a 15.ºO.”

Com tal procedimento enxertado na acção de despejo o legislador pretende acautelar os interesses do senhorio susceptíveis de serem afectados pela morosidade na apreciação da questão principal, evitando que, não obstante uma eventual procedência da acção, o senhorio possa vir a perder definitivamente aquelas rendas, em virtude de, no momento do despejo efectivo o arrendatário não possuir meios suficientes para as pagar, tendo, entretanto, permanecido no imóvel arrendado durante todo o período de pendência da acção.
Assim, considerando o teor literal do que se dispõe no n.º 4, do citado artigo 14.º da actual Lei 6/2006, poderia afirmar-se que ao requerido no incidente apenas é admissível defender-se do despejo imediato pagando ou depositando as rendas e a indemnização devida.
Tal entendimento foi defendido por alguns autores, nomeadamente, Miguel Teixeira de Sousa, in a Acção de Despejo, Lex 1991, p. 64, bem como, por uma corrente jurisprudencial mais antiga, segundo a qual a prova documental do pagamento ou depósito das rendas era a única forma de defesa relevante - vidé, a este propósito Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 1124 e1125, onde se citam vários arestos nesse sentido.
Acontece que essa limitação dos meios oponíveis ao despejo imediato suscitou problemas de constitucionalidade, tendo-se, através do acórdão n.º 673/2005, ainda na vigência do RAU, decidido que na apreciação da questão o parâmetro constitucional mais pertinente se centrava no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, concluindo: “pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, da norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.”
E já na vigência do NRAU (na redação da Lei 31/2012, de 14 de Agosto) o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre questão similar no acórdão 327/2018, em idêntico sentido, indicando o sentido interpretativo da norma, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC.
Aí se decidiu “i[I]nterpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na acção de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa.”

Ora, in casu, a Ré na sua oposição ao incidente veio invocar um acordo de suspensão de pagamento das rendas devidas de Julho a Novembro de 2020, que permitia o seu pagamento apenas em 2021, mencionando que a posição do A. não é a do seu pai, pelo que devia este ser ouvido, por forma a decidir-se sem tornar a acção inútil e a salvaguardar a sua defesa.
Quanto à violação do princípio da proibição da indefesa alegada pela Ré, é certo que se no art. 3.º, do CPC, se consagra que o «tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição» (n.º 1), só «em casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida» (n.º 2); e o «juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem» (n.º 3).
Reconhece-se aqui que, estando em causa conflitos de natureza privada, o Tribunal apenas intervém para os dirimir se previamente solicitado por uma parte, que lhe traz os factos sobre que versa o litígio e formula o pedido de tutela jurisdicional pretendido (princípio do dispositivo); e tendo depois a parte contrária o direito de sobre eles se pronunciar, sendo porém dever do Tribunal assegurar a possibilidade do seu exercício (princípio do contraditório).
Sendo estes dois princípios basilares de todo o processo civil (ínsitos ao «processo equitativo» que o n.º 4, do art. 20.º, da CRP consagra como direito), o princípio do contraditório surge consagrado na lei processual civil quer na sua versão geral quer na sua vertente especial proibitiva, de emissão de qualquer decisão-surpresa de questões de direito.
Considera-se, deste modo, que só a permanente audição de ambas as partes permite que, simultaneamente: se apure a verdade (material) e se alcance a justa composição do litígio (art. 411.º, do CPC); e se controle o modo como o Tribunal exerce a sua actividade, com vista precisamente a alcançar esse fim.
Só por «manifesta desnecessidade», a título excepcional, quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 20), será de dispensar a audição da parte contrária.
No caso de se ter omitido a audição da parte contrária, tal consubstanciará uma nulidade secundária, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC, quando assim a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, pelo que, não se tratando de uma nulidade de conhecimento oficioso (conforme art. 196.º, do CPC), só poderá a mesma ser conhecida sob reclamação do interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto (art. 197.º, n.º 2, do CPC).
Ora, no presente caso, a Ré foi ouvida, pronunciou-se e obteve até deferimento quanto à sua pretensão de prorrogação do prazo requerido para pagar, o que não fez, mantendo, no entanto, mesmo depois disso, o seu pedido de audição do A., por considerar que quem o representa, não assume a posição deste, quanto ao alegado acordo de deferimento do pagamento das rendas de Julho a Novembro de 2020.
Como tal, não se mostra violado esse seu direito ao contraditório, plenamente exercido, mas sim a verificação de uma decisão contrária à posição por si assumida.
De qualquer das formas, mesmo que assim não fosse, a mesma teria de ser invocada pelo interessado na observância da formalidade omitida junto do tribunal a quo e aí decidida, sob pena de não lhe assistir legitimidade para a respectiva invocação nesta sede, o que a recorrente não fez.
Já quanto à posição do A. que diz ser diferente da do filho que o representa, o certo é que foi junta aos autos uma procuração que o legitima a litigar em juízo, propondo a respectiva acção, sem que tivesse sido arguida qualquer irregularidade quanto a essa representação.
E, como se sabe, na representação voluntária, os poderes do representante procedem da vontade do representado, exteriorizada numa declaração negocial designada por procuração (cfr. artigo 261.° do CC), sendo a mesma um negócio jurídico unilateral através do qual o “dominus” outorgam ao procurador, poderes de representação. Nessa sequência, “os actos praticados pelo procurador no exercício desses poderes produzem efeitos jurídicos directamente na esfera jurídica do “dominus” – Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, reimpressão, 2012, págs. 52/53.
É também um negócio abstracto cujo efeito é a outorga de poder representativo ao procurador, ficando o procurador investido nesse poder (cfr. art. 262.º n.º 1 CC), em que a autonomia do procurador constitui até uma característica essencial da procuração pois se ela não existir, estamos antes perante a figura do núncio (a que se alude no art. 250.º CC).
Face ao exposto, produzindo os actos que o procurador pratica na esfera do dominus, aqui A., não se pode deixar de atentar no facto do A., representado, ter vindo contrariar a posição da Ré, negando os factos que alegou de um acordo de deferimento do pagamento das rendas, pelo que inútil seria considerar o pedido de audição daquele.
E, mesmo que se pretendesse obter uma eventual confissão, o certo é que não se pode deixar de atentar no facto de, no incidente de despejo imediato, não estarem em causa as rendas antes da propositura da acção, mas as pendentes após a sua instauração.
Assim, inexistindo causa justificativa para tal falta de pagamento das rendas estão verificados os pressupostos para o despejo imediato.
Passando à abordagem da questão quanto às medidas excepcionais adoptadas na sequência da pandemia, é certo que o regime do arrendamento urbano foi uma das diversas áreas de intervenção legislativa, no quadro do estado de emergência e do estado de calamidade. As medidas legislativas dirigidas ao sector do arrendamento urbano visaram, essencialmente, a protecção da estabilidade do gozo do imóvel, quer destinado a habitação quer a fins não habitacionais.
Dada a natureza temporária das alterações introduzidas pela denominada “legislação COVID-19” no regime (substantivo e processual) do arrendamento urbano, o legislador não operou qualquer alteração aos diplomas que estabelecem os normais regimes substantivos e processuais do arrendamento urbano, essencialmente, o Código Civil e a Lei n.º 6/2006.
Assim, o cumprimento da obrigação de pagar a renda foi objeto de legislação especial, pressupondo o legislador que a crise de saúde pública, com as inerentes consequências económicas, implicaria (direta ou indiretamente) a diminuição da capacidade financeira de alguns arrendatários (tanto no arrendamento habitacional, como no não habitacional) para cumprirem pontualmente o seu dever principal. Tal matéria foi regulada pela Lei n.º 4-C/2020 (de 6 de Abril), alterada pela Lei n.º 17/2020 (de 29 de Maio).
Contudo, não se tratou de uma intervenção legislativa destinada à generalidade dos arrendatários, mas apenas aos que se encontravam em determinadas circunstâncias de perda de rendimento.
Assim, pretendendo beneficiar deste regime excepcional, o arrendatário devia informar o locador, nos termos do art. 6.º da Lei n.º 4-C/2020 e da Portaria n.º 91/2020, de que se encontrava na situação prevista pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 3.º (comprovando documentalmente a sua quebra de rendimentos). O cumprimento de tal dever, permitiria ao locador, que se encontrasse na situação prevista nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 3.º, pedir o apoio financeiro a que se refere o art. 5.º (quando o arrendatário não o faça).
No entanto, o valor das rendas em dívida (respeitante aos meses de Abril, Maio e Junho de 2020) constituiria uma quantia fixa e prédeterminada, sendo apenas o seu pagamento fraccionado em 12 prestações ou duodécimos (o decurso do tempo não influenciaria, portanto, o montante total a pagar pelo arrendatário).
Deve ainda ser tido em conta que a obrigação de retomar os pagamentos das rendas, acrescidas dos duodécimos, não pressupunha que os rendimentos do arrendatário e do seu agregado familiar tivessem retomado os níveis anteriores à aplicação do regime excecional.
Assim, decorridos que fossem três meses de incumprimento, o senhorio poderia invocar a resolução do contrato, com base no art. 1083.º, n.º 3, do Cód. Civil, tendo o arrendatário o prazo de um mês para pagar o valor em atraso, nos termos do art. 1084.º, n.º 3, do mesmo diploma.
No âmbito deste regime excepcional, que retomou a contagem dos prazo e a realização da generalidade das diligências processuais, permaneceram, porém, suspensos alguns prazos e alguns actos processuais em matéria de arrendamento, ao dispor-se no n.º 6 do art. 6.º-A, que: “Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório: (…) c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 4-A/2020 (de 6 de Abril), esta previsão normativa passou a constar do n.º 11 do art. 7.º, o qual acrescentou a “outra razão social imperiosa”. Esta redação foi mantida pela Lei n.º 16/2020 (de 29 de Maio), localizada no novo art. 6.º-A, n.º 6 (tendo sido revogado o art. 7.º) da Lei n.º 1-A/2020.
Todavia, esta norma não estabeleceu uma suspensão total nem automática de todas as diligências a praticar nestes processos, mas apenas das diligências que corresponderem à ressalva formulada na parte final desse preceito. Ressalva esta cujo alcance não é fácil de delimitar. Parece que apenas a “decisão judicial final a proferir” será de suspender, podendo, portanto, prosseguir a marcha processual quanto aos demais atos processuais a praticar. Mas mesmo a prolação dessa decisão judicial final só deverá ser suspensa quando o seu sentido decisório possa ter como consequência direta colocar o arrendatário “em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Outra das dúvidas que a interpretação dessa norma suscitou (depois da alteração introduzida pela Lei n.º 4-A/2020) foi a de saber se a suspensão de diligências nela previstas respeita apenas ao arrendamento para habitação ou se pode incluir também arrendamentos para fins não habitacionais. Face à nova redação, tem sido entendido que tal norma se continua a aplicar apenas, porquanto a expressão “outra razão social imperiosa” já se encontrava na legislação processual do arrendamento, respeitando apenas aos arrendamentos para habitação. Assim acontecia no art. 15-N da Lei n.º 6/2006 e no art. 864.º do CPC. Todavia, é difícil afirmar (sem maior reflexão) que o legislador excluiu em absoluto a aplicação desta norma a arrendamentos para fins não habitacionais.
Também, por força do disposto nos artigos 7.º a 9.º da Lei n.º 4-C/2020 (de 6 de Abril), o legislador estabeleceu um regime excepcional para as situações de mora no pagamento de rendas respeitantes a contratos de arrendamento para fins não habitacionais.
Encontrando-se o arrendatário em mora quanto ao pagamento das rendas vencidas depois de 1 de Abril de 2020, e não cumprindo o dever que o art. 8.º-A lhe impõe de comunicar ao senhorio que pretende aderir ao regime legal da moratória (nem havendo acordo entre as partes), o senhorio passa a poder invocar a resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, conferindo o seu n.º 2 a faculdade do arrendatário propor ao senhorio um acordo para regularização das rendas em atraso, como alternativa ao regime legal da moratória. A lei não controla o conteúdo substantivo de tal proposta (que pode ser um pedido de redução de renda, uma dilação superior à legalmente prevista, uma dação em pagamento, etc.), mas exige a observância do conteúdo formal previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 3, sem o qual a proposta do arrendatário é ineficaz. Tem, assim, o arrendatário o dever de informar expressamente o senhorio de que lhe cabe responder no prazo de 10 dias, e que a ausência de resposta atempada equivale à proposta apresentada pelo arrendatário; devendo ainda informá-lo de que, na sua resposta, pode formular uma contraproposta.
Ora, nenhuma dessas situações se encontra alegada e demonstrada, pelo que também esse regime excepcional não seria de aplicar, tanto mais que no caso concreto o que está em causa são as rendas vencidas na pendência da acção.
Por conseguinte, falecendo os meios de defesa invocados pela Ré para fundamentar a inexigibilidade do pagamento das rendas em dívida, e verificando-se que, à data do requerimento de despejo apresentado pelas sucessoras/habilitadas do A., estavam em dívida há mais de sessenta dias várias rendas vencidas na pendência da acção, é forçoso concluir pela verificação dos requisitos legais do despejo imediato.
A decisão recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo as conclusões da apelante.
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IV-Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar o recurso improcedente, devendo, em consequência, ser mantida a decisão em conformidade com o exposto.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Guimarães, 13.1.2022
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser quanto a transcrições das partes que o tenham adoptado, e é por todos assinado electronicamente)

Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida