Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3268/17.0T8BRG.G2
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: PRINCÍPIO DA LIBERDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE GARANTIA
GARANTIA ADICIONAL
RESPONSABILIDADE DO GARANTE
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - O princípio da liberdade contratual tem ínsita a liberdade de modelação do conteúdo contratual – perspetivando a escolha do tipo de negócio atinente à melhor e mais eficaz satisfação dos interesses das partes e à maneira de preencher o seu conteúdo concreto.
II - O contrato de garantia não se confunde com uma transferência de responsabilidade do vendedor, que mantém a sua responsabilidade contratual para com o comprador nos termos da lei, o que se verifica é a existência de uma garantia adicional, cujos termos, extensão e demais conteúdo é definido exclusivamente pelo contrato.
III - A responsabilidade do garante para com o beneficiário é exclusivamente de índole contratual, constituindo as cláusulas que enformam o acordo um sistema autónomo, com vocação autossuficiente, não sendo de chamar à colação institutos que estão previstos para o fornecimento de bens defeituosos (lei do consumo, venda de bens defeituosos e normas da compra e venda), que apenas são aplicáveis na relação vendedor-comprador.
IV - O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (artigo 798.º do Código Civil).
V - A pretensão indemnizatória no quadro da responsabilidade contratual encontra o seu fundamento não diretamente no cumprimento de uma obrigação contratual mas antes no incumprimento contratual da obrigação emergente do contrato.
VI - A violação deste dever configura uma perturbação da relação contratual que não se reconduz à inobservância do dever de prestar, mas que acarreta, ou pode acarretar, danos autónomos relevantes.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

O Autor S. N. intentou a presente ação declarativa comum contra a Ré X – Garantia e Assistência Automóvel, SA, pedindo:

- seja reconhecida a existência de uma avaria ou desconformidade no veículo automóvel identificado na inicial;
- a condenação da Ré a reparar o referido veículo;
- a condenação da Ré a pagar ao Autor uma indemnização no montante de 2 190,00 €, a título de indemnização pela privação do uso e danos não patrimoniais;
- declarar como nulas as cláusulas contratuais gerais da garantia assumida pela Ré quando interpretadas no sentido de excluir ou limitar os direitos do Autor nos termos do artº 10º do Dec-Lei 62/2003, de 8 de Abril,
- a condenação da Ré nos juros de mora vincendos.

Alega, em síntese, que, em 4.03.16, adquiriu à Y Unipessoal, Lda, veículo automóvel, tendo sido celebrado com a Ré o contrato de garantia corporizado no documento que junta. O veículo que, na data da sua aquisição, se encontrava em boas condições de funcionamento, uns meses depois começou a apresentar barulho ao nível do eixo dianteiro, acompanhado de trepidação ao nível da direção do veículo, diagnosticada na concessionária da Volkswagen, a que o Autor recorreu, como uma anomalia na caxa de direção. O Autor em 26.12.2016 comunicou a avaria à Ré e solicitado a respetiva reparação. A Ré, após peritagens efetuadas, em 4.01.2017 e em 12.01.2017, declinou a sua responsabilidade pela reparação.
Em face da conduta da Ré, o Autor está privado do uso do veículo, cuja circulação põe em causa a sua segurança e do seu agregado, contabilizando a indemnização a este título devida em 10 €/por dia, desde 6.01.2017. Mais alega que perdeu dias de trabalho em deslocações à oficina, sofreu os transtornos decorrentes da necessidade de arranjar alternativas para a deslocação do seu agregado familiar, sente-se desgastado psicologicamente com toda a situação, o que consubstancia danos não patrimoniais, cujo ressarcimento quantifica em 500 €.
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A Ré contestou, alegando que a responsabilidade para si emergente da celebração do contrato de garantia, é cumulativa com a entidade vendedora, mas apenas nos termos expressamente previstos no contrato.
Mais invoca que, tendo recebido em 26.12.2016 orçamento da oficina para proceder à substituição da caixa de direcção do veículo, diligenciou a realização de peritagem ao veículo, que concluiu inexistir anomalia na caixa de direcção, sustentando que sem que o Autor identifique devidamente a avaria não pode ser reconhecida a existência de uma avaria abrangida pela garantia, que abrange apenas as peças identificadas na cláusula quinta e com as limitações aí referidas.
Impugna a indemnização peticionada a título de privação de uso, bem como os danos morais invocados, a cujo ressarcimento não está contratualmente obrigada, nem decorre da sua conduta.
Concluiu pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
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Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, consequentemente, declarou a existência da anomalia no veículo e condenou a Ré a proceder à reparação da mesma, condenou, ainda, a Ré a pagar ao Autor a quantia de 1.500,00 € (mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento.
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Inconformada com a sentença veio a Ré interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A sentença recorrida fez errada apreciação da Prova carreada para os autos e, consequentemente, encerrando decisão errada sobre a matéria de facto.
2. A sentença recorrida fez errada apreciação da prova carreada para os autos, nomeadamente dos documentos juntos, dos depoimentos e declarações prestados em audiência de julgamento, pelo que, encerrou errada decisão sobre a matéria de facto, quanto a os factos que considerou provados, designadamente sob os números 1.14, 1.24, 1.25 e 1,26
3. Quanto ao Facto 1.14, 1.ª parte – relativo à existência de ruído e trepidação não podia o Tribunal a quo ter dado como provada a existência de trepidação, uma vez que, em documento algum, ou nas declarações do A. que se deixaram parcialmente transcritas, foi mencionada trepidação na direção.
4. Aliás, do relatório de peritagem junto com a PI sob o n.º 10, resulta que o seguinte “na nossa segunda analise foi possível concluir que a fonte de ruído não se transmite até ao volante, nem através de vibrações nem de outros movimentos anómalos. – Parágrafo 5.º da página 2 do relatório sob o título “conclusão das intervenções técnicas”.
5. Pelo que, não podia a sentença ora em crise ter dado como provado mais do que um ruído ténue audível apenas em piso irregular ou acidentado, como se impõe da análise dos relatórios periciais, assim como do depoimento da testemunha S. C., L. S. e A. M..
6.Quanto à 2.ª parte do facto 1.14 – existência ou não de uma anomalia na caixa de direção, a ponderação da prova constitui um erro grosseiro de julgamento por parte do Tribunal a quo.
7. Importa salientar que é este facto constitutivo do direito do A. à reparação peticionada assim como do seu direito às indemnizações que acabou por ver atendidas, pelo que, à luz das regras basilares quanto ao ónus d aprova, de harmonia com o prescrito no art.º 342.º do Código Civil, cabia ao A. fazer prova desta avaria na caixa de direção.
8. Ora, o A. não fez essa prova.
9. Esmiuçando o relatório de peritagem feito por empresa independente da R. e juntos até pelo A. na sua petição inicial, sob o n.º 10. não obtiveram por parte do Tribunal a valoração devida.
10. Das duas intervenções técnicas minuciosamente documentadas e cujas conclusões se transcreveram retirou a sentença recorrida apenas que ” Das peritagens feitas pela R (e que constam dos documentos juntos na p.i.) resulta que não existe essa anomalia” cfr motivação deste facto; desvalorizando todas as diligências~, testes e conclusões levadas a cabo pelos técnicos peritos, apesar de até corroboradas pelo A. nas suas declarações.
11.Mais desvalorizou a sentença recorrida o depoimento da testemunha L. S., A. M. e S. C..
12.Também quanto ao depoimento deste último, também a sentença recorrida não o valorou devidamente, já que este relatou de forma clara, pormenorizada e desinteressada os vários procedimentos que realizou no carro para despistar arda existência da alegada avaria na caixa de direção, tendo sido perentório, ao afirmar repetidamente que a caixa de direção não apresentava avaria, negando essa existência com firmeza suportada, legitimada pelos testes que realizou e conclusões que dos mesmos tirou.
13. A oficina que suporta a tese do A., a M. e C., ouvida na pessoa da testemunha A. G. não procedeu á desmontagem da caixa de direção para suportar que a mesma apresenta avaria e não conseguiu demostra-la de qualquer outra forma.
14. Cabia ao Tribunal a quo, fazer recair a exigência de tal procedimento ao A.,a quem compete provar a existência da avaria, em obediência o ao disposto no art.º 342.º do Código Civil.
15. Em reflexão sobre as declarações de parte do A., valoradas pelo Tribunal a quo, não só para suporte do juízo de mérito do facto n.º 1.14, mas dos demais factos dados como provados, importa dizer que, com todo o respeito, um julgador minimamente atento, teria percebido que o A. falta à verdade quando inquirido em sede de audiência de julgamento.
16. Deixámos transcritos algumas passagens das quais esta conclusão resulta incontornável, pelo que não podem pois as declarações de parte do A. ser valoradas naquilo que as mesmas o possam beneficiar, já que é flagrante a falta de verdade emprestada às mesmas.
17. E quanto ao depoimento da testemunha A. G., que a sentença recorrida também elegeu para suportara condenação da R. importa concluir que carece de consistência para esse efeito:
18. Resulta evidente do depoimento daquela testemunha que não tem memória do caso presente, tendo, de forma abstrata descrito os procedimentos normais de verificação de avaria na caixa de direção e a sintomatologia, em abstrato, deste tipo de avaria.
19. É elevado o grau de incerteza que resulta do depoimento desta testemunha, por não lograr demostrar a sua posição, sendo esta a única, das arroladas pelo A., a prestar depoimento de natureza técnica com vista a suportar a sua tese trazida a juízo.
20. Esta é voz dissonante em contraponto com a tese da R. suportada por dois relatórios técnicos e três testemunhas com conhecimentos técnicos a validar a sua razão de ciência, todas com demonstrações de certeza e credibilidade bastante superiores àquela.
21. Não pode ser isto que o Tribunal a quo valora como adequado ou suficiente para dar provimento ao pedido do A.
22. Não pode a sentença recorrida acolhere valorar esta “não prova.”
23. E dos demais documentos juntos pelo A., nos quais a sentença recorrida também faz recair a motivação da sua decisão, (Docs 11 a 14 da sua PI, mais não se retira do que versão do A., reiterada pelo próprio, a reiterar a opinião da oficina M. e C., como se deixou dito, sem suporte técnico ou outro, adicional, para o efeito.
24. Destes documentos também não é possível retirar elemento que permita concluir no sentido da existência de avaria na caixa de direção.
25.Não podia a sentença recorrida ter feito tábua rasa de 2 relatórios feitos por empresa reputada no mercado, independente, assim como da opinião sustentada das testemunhas, técnicos, A. M., L. S. e S. C..
26. Isolando o depoimento da testemunha A. G., sem suporte, com interesse em reparar a viatura, como aliás já antes acontecera, a expensas da R., conforme declarado pelo A. nos primeiros minutos das suas declarações, nenhuma prova faz o A. da avaria da viatura.
27. O facto de a oficina onde trabalha a testemunha A. G. ter apresentado orçamento para a respetiva reparação, como motivação em abono da tese do A.,no sentido da verificação da avaria, tem de relevar até para ilustrar o interesse daquela oficina em proceder à reparação, por ser este o objeto a que se dedica com fins lucrativos.
28. Não podendo o Tribunal ter como inócuo que a defesa da existência de avaria venha de quem interesse na decisão da causa – o A. por aqui ser parte e pretender a substituição de peça de desgaste ainda na vigência da em garantia, e a oficina que visa fazer a reparação a expensas da R.
29. A D., responsável pelas duas peritagens feitas à viatura é entidade independente, assim como o é a oficina ...car, representada pela testemunha S. C. que, se interesse tivesse, seria o de pugnar pela existência de avaria para que pudesse repara-la, já que é também esta a sua atividade.
30 A viatura em causa não foi reparada até aos dias de hoje.
31. E continua a circular, como resulta do facto de continuar a fazer revisões periódicas na oficina M. e C..
32. E esta “nuance” é demonstrativa de que o tribunal a quo valorou mal prova carreada para os autos.
33. Se a viatura padecesse da alegada avaria, não poderia ter continuar a circular sem que a situação se tivesse agravado e que tivesse já sido impedida a sua circulação no âmbito das várias inspeções periódicas obrigatórias (anuais) que já fez desde Janeiro de 2017.
34. Tudo o que se deixou evidenciado, impõe que o facto dado como provado sob o n.º 1.14 seja dado como não provado.
35. E o mesmo se impõe concluir quanto ao facto 14 da matéria dada como assente: - Conduzir o veículo (sem reparar o defeito) é um risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
36. A carrinha sub judice não padecia de avaria na caixa de direção, nunca se verificou qualquer risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
37. Se a carrinha neste momento se encontra a circular, 4 anos depois de se ter verificado o ruído, conforme resulta aceite, o perigo ou falta de de segurança nunca existiu, conforme esclarecido pelas testemunhas A. M. e S. C..
38. A. mandou realizar 3 perícias à viatura em causa, a duas entidades diferentes.
39.Quanto ao facto dado como provado sob o n.º1.24,diga-se ainda, em abono da verdade que o A. não estava sequer obrigado a comparecer às peritagens; o veículo encontrava-se nas oficinas que participaram a avaria à R., pelo que, se o A. aí se deslocou foi porque assim entendeu.
40.Assim como a realização das peritagens não é de forma alguma é imputável à R. a título de dano por qualquer incumprimento contratual.
41. E não o poderiam ser a qualquer outro título conforme decorre do disposto no clausulado do contrato garantia, reconhecido pela sentença recorrida, pelo que, nesta medida o Tribunal recorrido não fez só errada apreciação da prova como também falhou na respetiva subsunção ao Direito.
42. Ficou demonstrado por assumido pelas testemunhas A. B. e M. R. e pelo próprio que estes tinham outros dois carros, um com capacidade para transportar 5 pessoas e outro par transportar duas, pelo que o A. não teve de arranjar soluções para transportar o seu agregado familiar.
43. Ainda assim, estes alegados “danos” não seriam nunca imputáveis à R. já que ela cumpriu todas as suas obrigações contratuais.
44. Não podia o Tribunal a quo ter dado como provados os factos supra elencados, impondo-se que os mesmos recebam decisão no sentido da sua não prova.
45. Quanto ao facto 1.25 e considerando que a carrinha sub judice não padecia de avaria na caixa de direção, nunca se verificou qualquer risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
46. Se a carrinha neste momento se encontra a circular, 4 anos depois de se ter verificado o ruído, conforme resulta aceite, e até à data nenhum problema relacionado com a segurança do A. e do seu agregado familiar se verifica, não pode deixar de conclui-se que durante o mesmo perigo nunca existiu.
47. As testemunhas A. M. e S. C. foram unânimes a dizer que o ruído que a carrinha apresentava é insuscetível de por em risco a segurança do agregado familiar do A.
48. O A. não logrou também fazer qualquer prova quanto a esse facto, não tendo a motivação oferecida pelo Tribunal a quo quanto a essa matéria qualquer suporte.
49. A prova da imobilização do veículo ou da sua utilização residual é facto constitutivo do direito de indemnização que o A. que se arroga, pelo que lhe incumbe e o A. não apresentou nos autos, nem com os articulados, prova de quantos quilómetros tem a carrinha desde que foi auditada pelos peritos da D..
50. Uma fotografia do conta-quilómetros da carrinha seria suficiente e apta a demostrar que a mesma “está lá parada à porta de casa” como alega o A.
51. Os depoimentos da co proprietária da viatura A. B. e da sua mãe, com claro e indesmentível interesse na decisão da causa, não podem ter-se como aptos a suportar a sua veracidade, tanto mais que prestaram depoimentos que, quanto a esta matéria se revelaram manifestamente orquestrados: as referências ao máximo de 2 Km percorridos; e onde? Ao supermercado da freguesia!!!
52. A carrinha não esteve parada nem dela foi feita utilização residual ou limitada e a realização há pouco tempo, de revisões na oficina da marca é sinal inequívoco de que a viatura circula normalmente.
Ainda que tivesse estado, o que sói por hipótese de raciocínio se equaciona, sempre o seria por vontade do A. e não por causa imputável à R. de harmonia com tudo o que se deixou demonstrado, já que a carrinha estava em perfeitas condições de funcionamento.
53. Por tudo o que se deixou sobejamente demonstrado, impunha-se ao Tribunal recorrido ter dado como provado que a caixa de direção se encontrava em perfeitas condições de funcionamento.
54.A sentença recorrida encerra decisão errada, assente numa inverdade do A. que, de forma oportunista pretende trocar a caixa de direção da sua viatura usada, que comprou com 130.000Kms e 5 anos, aproveitando a vigência do contrato de garantia celebrado com a R. ora recorrente, bem sabendo que a mesma não padece de avaria fortuita.
55. Sendo certo que o Tribunal se rege pelo princípio da livre apreciação da prova, não pode essa liberdade constituir arbitrariedade e falta de rigor.
56.Por fim, a sentença recorrida fez incorreta subsunção dos factos ao Direito e decisão que encerra está mesmo em contradição com a matéria que considerou provada
57. Deu a sentença recorrida como provado sob os n.ºs 16 e 17 a seguinte matéria clausulas do contrato garantia veio a condenar a R. sem que a viatura do A. padecesse de avaria fortuita, nos termos das cláusulas contratuais supra.
58. Não se verificou no caso dos autos, incapacidade de uma peça garantida de funcionar conforme as especificações do construtor, resultante de uma falha mecânica ou elétrica.
59. Pela verificação de um ruído ténue, não persistente, na parte da frente do carro do A., de origem desconhecida, não pode a R. ser condenada, por extravasar as condições contratuais à data vigentes entre as partes.
60. Era ao A. que incumbia, atento o direito que se arroga, demonstrar existência da avaria e a sua origem, nos termos do disposto no art.º 342.º do Código Civil, o que o A. manifestamente não logrou fazer.
61. Pelo que a ação tem de improceder, com a absolvição da R. de todos os pedidos deduzidos pelo A.
Pugna a Recorrente pela revogação da sentença substituindo-se a mesma por decisão que absolva a Ré do pedido.
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O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação da Ré.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, são:
- Da impugnação da decisão matéria de facto;
- Do enquadramento jurídico.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. OS FACTOS
3.1.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1.1. O Autor é dono e legítimo proprietário do veículo da marca VOLKWAGEN modelo SHARAN, do ano de 2011, com a matrícula MM, tendo adquirido o mesmo no dia 24 de Março de 2016 à Y Unipessoal, Lda. (DUA).
1.2 - A sociedade unipessoal por quotas Y Unipessoal Lda. dedica-se, com intuito lucrativo, ao comércio de veículos automóveis ligeiros.
1.3. A ora R. é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços aos automobilistas, assistência, reparação, manutenção e peritagem e prestação de garantia adicional a automóveis e outros veículos motorizados.
1.4. No exercício desta sua actividade, a ora R. negoceia com entidades vendedoras de veículos automóveis a venda de contratos de garantia.
1.5. Aquando da aquisição do veículo MM pelo Autor, foi celebrado entre Autor, na qualidade de beneficiário, e a Ré, na qualidade de entidade garante, o contrato de garantia n.º …., cujas condições constam do doc. n.º 3 junto aos autos com a P.I., cujo teor se dá por reproduzido,
1.6. Dispõe a cláusula primeira do referido contrato de garantia que: “O presente contrato tem por objecto as eventuais reparações (peças e mão de obra) causadas por uma avaria mecânica ou eléctrica de origem fortuita e que se tornem necessárias à reposição de um veículo no estado anterior à avaria, sem prejuízo do desgaste inerente à sua utilização e nos termos, com os limites e condições previstas neste contrato.”
1.7. E a cláusula segunda: “Entende-se por avaria mecânica ou eléctrica, a incapacidade de uma peça garantida de funcionar conforme as especificações do construtor, resultante de uma falha mecânica ou eléctrica. Não é considerada avaria a redução gradual do rendimento de uma peça devida à idade, uso e quilometragem do veículo. O presente contrato não cobre quaisquer danos e prejuízos directos ou indirectos, mesmo que sejam causados por uma avaria coberta pela garantia.”
1.8. A cláusula 5ª do mesmo contrato estipula que estão cobertos pela presente garantia as peças dos órgãos do veículo aí enunciadas (Motor, Colaça, Sistema de arrefecimento, Caixa de velocidades manual, Caixa de velocidades automática, Diferencial, Cárteres, Transmissões, Circuito Eléctrico, Circuito Electrónico, Alimentação e Injecção, Sistema de direcção (aqui incluída, entre outras, a caixa de direcção), sistema de travagem, embraiagem, sistema de climatização.
1.9. Nos termos do disposto na cláusula 6.1:
Cada reparação/intervenção está sujeita aos seguintes limites:
a) Viaturas até 4 anos e menos de 90.000 Kms na data da venda:
- No limite de 3000 Euros (IVA incluído) por intervenção.
b) Viaturas até 6 anos e menos de 120.000 Kms na data da venda
- No limite de 2250 Euros (IVA incluído) por intervenção.
c) Viaturas até 8 anos e menos de 160.000 Kms na data da venda:
- No limite de 1800 Euros (IVA incluído) por intervenção.”
1.10. Dispõe a cláusula sétima do mesmo contrato: “A X reserva-se o direito de aplicar sobre as peças garantidas (peças novas ou reconstruídas), os seguintes coeficientes de desvalorização: (…) Veículos de 120.001 a com mais de 150.000 Kms: 40% (quilómetros reais à data da avaria)”.
1.11. Costa da cláusula 9ª “Procedimentos para as autorizações da reparação: A garantia é aplicável cada vez que surja uma avaria fortuita durante o período de validade do contrato e sempre que se justifique a intervenção da X, nos limites e condições previstas no presente contrato.
O montante das reparações será estimado através de um orçamento elaborado pelo reparador autorizado pela entidade vendedora, que será analisado pelo departamento técnico da X, incluindo casos que requeiram relatório de peritagem requerido pela X , sendo formulada uma resposta dirigida ao reparador(…)”.
1.12. O veículo referido, aquando da sua aquisição pelo Autor encontrava-se em perfeitas condições de aparência e de funcionamento.
1.13. Foi principal motivo a compra do veículo o facto de o agregado familiar do Autor ter crescido para 6 (seis) pessoas, entre as quais 3 (três) menores, visando suprir as necessidade familiares de uma família composta por 6 (seis) pessoas. O veículo foi adquirido para uso pessoal e familiar.
1.14. Em Dezembro de 2016, o veículo começou a produzir um ruído em andamento e a trepidar o volante, o que tem a sua origem numa anomalia/avaria na caixa de direcção.
1.15. O A. colocou o veículo na oficina concessionária da marca, tendo sido remetido à Ré, em 28.12.2016, para accionamento da garantia, orçamento, elaborado na referida oficina, para reparação da avaria.
1.16. O custo da reparação da anomalia, incluindo mão-de-obra, é de 1. 724,73€, conforme o orçamento acima referido.
1.17. Na sequência da recepção desse orçamento, a Ré solicitou à empresa “D.” a realização de uma peritagem ao veículo, que foi efectuada, tendo sido elaborado o relatório junto sob o doc. nº 10 com a contestação que aqui se dá por reproduzido, e no qual se concluiu “A oficina deverá realizar um exame mais rigoroso, de forma a apurar a real anomalia na viatura, porque o sistema de direcção não oferece nenhuns indícios de anomalias.”
1.18. Em 4.01.2017, a ora R. comunicou à oficina M. e C. que a caixa de direcção não apresentava qualquer anomalia de origem fortuita que se enquadre no âmbito do contrato e desta forma considerava o processo sem efeito.
1.19. Em 6.01.2017, o Autor remeteu novo e-mail à aqui Ré, indicando que peritagem realizada ao veículo se limitou a analisar externamente o veículo, insistindo junto da Ré pela reparação, assinalando que o veículo se encontrava parado.
1.20. Em 09/01/2017, a “D.”, a pedido da Ré, na pessoa do seu técnico J. C., voltou a inspeccionar o veículo, elaborando o relatório junto sob o doc, 10 com a inicial, sob a epígrafe “conclusões das intervenções técnicas”, concluindo pela inexistência de defeito ao nível do sistema de direcção.
1.21. Em 12.01.2017, a ora R. comunicou à oficina M. e C., em 12/01/2017, que a caixa de direcção não apresenta qualquer anomalia de origem fortuita, encontrando-se em perfeitas condições de funcionamento, motivo pelo qual se não responsabilizava pelo pagamento da reparação solicitada.
1.22. Em 4 de Maio de 2017 o Autor voltou a insistir junto da Ré pela reparação, o que a Ré recusou, por comunicação de 22.05.2017, mantendo a sua posição, com base na verificação da viatura no período de vigência do contrato, entretanto terminado em 29.03.2017.
1.23. Por carta de 7.06.17, o Autor, através do seu Mandatário, interpelou novamente a Ré para efectuar a reparação do veículo, não tendo obtido resposta desta.
1.24. O A. acompanhou as duas peritagens, perdeu dias de trabalho para acompanhar o veículo às peritagens, tendo sempre de arranjar alternativas para conseguir transportar 3 crianças, a sua esposa e a sua sogra, quando, de facto, havia comprado o veículo em causa com a finalidade de facilitar o dia-a-dia da sua numerosa família, sentindo-se desgastado com toda esta situação
1.25. Conduzir o veículo (sem reparar o defeito) é um risco para a segurança do A. e do seu agregado familiar.
1.26. O A., desde Janeiro de 2017 até ao presente tem feito uma utilização residual do veículo, restrito a pequenas deslocações esporádicas, não o utilizando para transportar os membros do seu agregado familiar.
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3.1.2. Factos Não Provados

2.1. A vendedora Y Unipessoal, Lda tenha transferido para a Ré a sua responsabilidade
2.2. O custo da reparação do veículo ascenda a três mil euros.
2.3. O veículo esteja completamente parado desde 6.01.2017
2.4. O Autor experimente embaraço perante amigos, familiares e colegas de trabalho.
2.5. A caixa de direcção encontrava-se em perfeitas condições de funcionamento, não tendo sofrido avaria.
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3.2. O DIREITO

3.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto
Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais se não observados conduzem à sua rejeição.

Assim, o artigo 640º, CPC impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser assente, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto, e saber claramente em que sentido pretende que a matéria de facto provada seja alterada.
No caso, considera a Recorrente que foram incorretamente julgados os pontos 1.14, 1.24, 1.25 e 1.26 dados como provados.
A factualidade em causa prende-se com a comprovação da existência de uma anomalia na direção do veículo e os danos decorrentes para o Autor.
Quanto à existência de uma anomalia/avaria na caixa de direção, a prova produzida a este respeito consistiu nas declarações do Autor e no depoimento das testemunhas M. R., M. B. e, sobretudo da testemunha A. J., chefe de oficina da M. e C., SA, concessionária da Volkswagen, onde o veículo foi colocado para exame e que elaborou o orçamento remetido à Ré para acionamento da garantia.
A referida testemunha descreveu os procedimentos adotados para diagnóstico da anomalia, designadamente teste em estrada, análise de diversos componentes do veículo colocado para o efeito em elevador, teste efetuado, com o veículo em elevador e após retirada da blindagem, que permitiu determinar que o ruido tinha a sua origem na caixa de direção. Como se salienta na decisão a testemunha, com a experiência advinda de 21 anos de atividade como chefe de oficina de concessionária da marca, foi perentória em diagnosticar a avaria da caixa de direção, a demandar a sua substituição.
Há que notar, sob outro ângulo, que este depoimento não foi infirmado pelo teor dos relatórios de peritagem juntos pela Ré e das testemunhas L. S. e A. M..
A análise do teor dos relatórios não conduz de forma segura ao afastamento de uma anomalia na caixa de direção ou, como se ressalva na decisão, de a ter como não demonstrada, tanto mais que se não indica a causa/origem do ruído detetado.
As testemunhas L. S. e A. M., não tiveram intervenção direta nas averiguações, nem procederam ao exame do veículo, baseando as conclusões que exprimiram na leitura que fizeram dos relatórios efetuados pelo perito que as levou a cabo e contactos tidos com este. As testemunhas indicadas pela Ré, reconhecendo a existência de ruido produzido pelo veículo quando em circulação (embora contestando a amplitude), afastam a existência de anomalia na caixa de direção, no entanto, não apresentam uma explicação técnica para a existência do ruído que confirmam ocorrer.
O resultado destes meios de prova foi suficiente para a demonstração da existência de anomalia e da sua origem.
Quanto aos danos, explicou o Autor, de forma clara e concisa, os inconvenientes e limitações que a situação causou no dia-a-dia familiar, bem como os receios em utilizar o veículo naquelas condições, o seu desgaste pela demora na resolução e o ponto insustentável em que a situação chegou face às necessidades do quotidiano. As suas declarações foram consistentemente corroboradas pelo depoimento das testemunhas A. B. e M. R..
Os riscos para a segurança de conduzir com anomalias na caixa de direção foram elucidados pelas testemunhas A. G. e S. C..
Ademais, apresenta-se plausível e justificado, face ao ruido e trepidação sentida e ao diagnóstico efetuado na oficina concessionária da marca, o receio experimentado pelo Autor, quanto à circulação em segurança do veículo, sem estar reparado, a obstar a sua utilização normal, designadamente para o transporte do seu agregado familiar.
Exigia-se da parte da Recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo tribunal foi declarado.
Na verdade, a impugnante não aportou argumentos válidos nem provas bastantes que conduzam a diferente convicção, indicando excertos de depoimentos que foram tidos em conta pelo tribunal na sua motivação.
Resulta, pois, do exposto, que não houve uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, improcedendo a impugnação da decisão da matéria de facto.
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3.2.2. Enquadramento jurídico

O negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia da vontade ou princípio da autonomia privada, subjacente a todo o direito privado. A autonomia da vontade consiste no poder reconhecido aos particulares de autorregulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica (1).
Quando o negócio é constituído por duas ou mais declarações de vontade convergentes, tendentes à produção de um resultado jurídico unitário, estamos perante um contrato (negócio jurídico bilateral).
A autonomia da vontade encontra no domínio dos contratos como fontes das obrigações a sua mais ampla dimensão, merecendo o principio da liberdade contratual consagração formal no artigo 405º, do Código Civil.
As partes dentro dos limites da lei podem celebrar contratos diferentes dos típicos, modificar os tipos legais incluindo neles as cláusulas que lhes aprouver e misturarem no mesmo contrato regras de dois ou mais tipos.
O princípio da liberdade contratual desdobra-se em liberdade de celebração ou conclusão dos contratos – liberdade de contratar, como faculdade de realizar ou não determinado contrato – e liberdade de modelação do conteúdo contratual – perspetivando a escolha do tipo de negócio atinente à melhor e mais eficaz satisfação dos seus interesses e à maneira de preencher o seu conteúdo concreto. Deste principio resultam quatro faculdades: livre opção de escolha de qualquer tipo contratual, com submissão às suas regras imperativas; livre opção de celebrar contratos diferentes dos típicos; possibilidade de introdução no tipo contratual de cláusulas defensivas dos interesses das partes, mas que não quebram a função sócio económica assumida pelo respetivo tipo e reunião no mesmo contrato de dois ou mais contratos típicos (contratos mistos). (2)
Os contratos devem ser analisados e qualificados, não apenas com base na sua configuração formal, mas também em função das circunstâncias em que se enquadram e dos objetivos que visam realizar. Nos dizeres de Pedro Pais de Vasconcelos “os tipos contratuais são simplesmente modelos e não esgotam de modo algum a matéria contratual.” (3)
Analisados os termos da relação contratual estabelecida entre as partes, a mesma configura um contrato de garantia assumindo-se o Autor como beneficiário e a Ré como entidade garante, tendo por objeto o veículo Volkswagen, Sharan, com a matrícula MM.
No âmbito desse contrato, a Ré obrigou-se para com o Autor a garantir a reparação do veículo causada por avaria mecânica de origem fortuita.
Não se confunde este contrato com uma transferência de responsabilidade do vendedor. O vendedor mantém a sua responsabilidade contratual para com o comprador nos termos da lei e que emerge de um contrato de compra e venda. O que ocorre com a celebração do contrato sob análise é a existência de uma garantia adicional (mas não excluidora da responsabilidade da vendedora), cujos termos, extensão e demais conteúdo é definido exclusivamente pelo contrato. Dito de outro modo, a responsabilidade do garante para com o beneficiário é única e exclusivamente de índole contratual e será nos exatos termos do clausulado que se terá de aferir da bondade da pretensão formulada.
As cláusulas que enformam o acordo constituem um sistema autónomo, com vocação autossuficiente e não uma mera concretização da referência às qualidades da coisa.
Não será assim de chamar à colação institutos que estão previstos para o fornecimento de bens defeituosos (lei do consumo, venda de bens defeituosos e normas da compra e venda), que apenas são aplicáveis na relação vendedor-comprador.

A fonte obrigacional assenta no contrato de garantia, dele emergindo um regime autossuficiente e exclusivo de responsabilização.
Demonstrada a existência de uma anomalia/avaria na caixa de direção do veículo, no período de vigência da garantia, subsume-se a situação nas cláusulas 1.ª, 2.ª e 5.ª, pelo que a entidade garante, por via do contrato de garantia, tem o dever de reparar.
Com efeito, trata-se de situação coberta pela garantia contratada, que confere ao beneficiário o direito de exigir da entidade garante a reparação da avaria e faz impender sobre esta a correlativa obrigação, como expressamente decorre do contrato.
A pretensão de reparação do veículo é, pois, procedente.
Não tendo realizado a prestação a que estava vinculada, a reparação, a devedora incorreu num ilícito contratual (artigo 762.º Código Civil) que se presume culposo (artigo 799.º Código Civil), respondendo pelos prejuízos que causou ao credor (artigo 798.º Código Civil).
Insurge-se a Recorrente contra o arbitramento de qualquer indemnização a este título, lembrando que a cláusula segunda dispõe que o contrato não cobre quaisquer danos e prejuízos diretos ou indiretos, mesmo que sejam causados por uma avaria coberta pela garantia.
Todavia, como se considerou na decisão recorrida, a pretensão indemnizatória deste tipo de danos, quando em causa está a responsabilidade contratual, encontra o seu fundamento não diretamente no cumprimento de uma obrigação contratual – na medida em que o risco não foi expressamente previsto no contrato – mas antes no incumprimento contratual das obrigações emergentes do contrato.
Embora o contrato que une as partes seja um contrato de garantia, a questão não se centra no âmbito do contrato, na medida em que os danos em causa não emergem da avaria. Por isso, não cremos ser atendível o argumento de que, não tendo sido pelas partes contratado, ficam excluídos da garantia os chamados danos indiretos derivados por exemplo da privação do gozo ou uso do bem.
Tal argumento tem a sua validade restringida à prestação principal do contrato e ao que concretamente nele foi convencionado pelas partes. Mas, não é desses danos que aqui se cura. Aquilo que se reclama não é que o garante, em cumprimento do contrato de garantia, indemnize o beneficiário por danos resultantes do evento que não foram convencionados, mas sim dos danos resultantes do não cumprimento pontual do contrato, o que são coisas distintas.
Concretizando, a indemnização em causa não tem a ver com danos emergentes direta ou indiretamente da avaria, mas com os prejuízos – danos emergentes ou lucros cessantes - ocasionados pelo incumprimento contratual do garante do dever de reparar.
No seio da relação obrigacional, ao lado do estrito dever de prestar convergem uma série de outros deveres que embora secundários são essenciais ao seu correto processamento. Exprimem estes deveres a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adotar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal (4).
A relação contratual não é constituída apenas por aquilo em que as partes, no exercício da sua autonomia negocial, se comprometeram. Ela inclui níveis não negociais resultantes de um contacto social fáctico e qualificado: tem uma dimensão quase-negocial ou, mais amplamente, de ato juridicamente relevante. É este o plano dos deveres acessórios.
Por outro lado, ainda, há um outro tipo de deveres denominados mais comummente de laterais que se caracterizam por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa ou aos bens da outra parte contra o risco de danos concomitantes. Trata-se de deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa fé em vista do fim do contrato, dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, e que variam conforme as circunstâncias concretas (5). A violação destes deveres configura uma perturbação da relação contratual que não se reconduz à inobservância do dever de prestar, mas que acarreta, ou pode acarretar, danos autónomos relevantes.
Impõe-se, pois, que aquele que vier a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, seja obrigado a indemnizar o dano positivo que resultou para a contraparte, como previsto no artigo 798.º, n.º1 do Código Civil.
No quadro especial de um contrato de garantia a oportuna apatia ou ilegítima recusa do garante acaba por falsear o objetivo do negócio e desequilibrar o jogo das prestações consignado, isto é, o programa contratual. Como é sabido, a prestação ou o seu incumprimento têm de ser considerados no contexto do programa obrigacional e em função deste. A assunção de comportamento abstraído deste contexto, como simples ritual que não cumpre ou implementa um dado programa obrigacional, não será a prestação devida, mas um aliud. (6)
O sancionamento deste comportamento é impelido por razões de justiça material, campo em que o princípio da boa fé, como critério normativo, revela todo o seu potencial jurisgénico e traduz a dimensão de justiça social e materialmente fundada (7).

Isto posto.

O Tribunal a quo, apreciando a ressarcibilidade e o enquadramento jurídico do dano patrimonial e não patrimonial, considerou que:

«Relativamente à privação de uso do veículo, não tendo ficado provado que o mesmo tenha ficado totalmente parado, provou-se, no entanto, que o Autor está privado de o usufruir integralmente as suas utilidades, e que motivaram a sua aquisição, designadamente de nele transportar o seu agregado familiar, fazendo do veículo, desde então e até ao presente, uma utilização esporádica, restrita a pequenas deslocações, que não impliquem o transporte daqueles seus familiares, atento o receio que a existência da anomalia justificadamente cria quanto à segurança da circulação do veículo.
Como também constituiu hoje jurisprudência consolidada, a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário de exercer os poderes correspondentes ao seu direito - . Cf., nesta matéria, Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pag. 269.

No caso em apreço, não obstante o veículo ter continuado a circular de forma esporádica e residual, ficou o Autor limitado nos plenos direitos de uso e fruição decorrentes da sua qualidade de proprietário (artº 1305º do CC).
Atenta a impossibilidade de reconstituição natural, importa ressarcir os danos para o Autor decorrentes da privação do pleno uso do seu veículo mediante a atribuição de equivalente pecuniário, com recurso à equidade - cfr. neste sentido, autores e locs citados.
Considerando o período a ter em consideração, as características do veículo, o uso e utilidade que o Autor dele retirava e os transtornos e incómodos que a privação do seu uso pleno acarretou, considera-se equitativo, tendo já em conta a ampliação do pedido formulada, fixar a indemnização a este título devida na quantia de 1 000,00 €
No que se refere aos danos não patrimoniais, sendo hoje inquestionável a sua ressarcibilidade em sede de responsabilidade contratual, referira-se que, como ficou provado, o Autor viu-se na contingência de enviar vários mails, assistir a peritagens, contratar advogado, perder dias de trabalho, arranjar alternativas de transporte para a família, para além de se ver frustrada as expectativas que presidiram à aquisição do veículo, o que tudo é causa de danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (artº 496º do CC), e que, atento as concretas circunstâncias apuradas e tendo ainda em conta a componente ressarcitória, mas também punitiva e de prevenção da indemnização a fixar, se considera adequado, com recurso à equidade, fixar no valor de 500€».
Sufraga-se integralmente a decisão no segmento indemnizatório.
Pelo exposto, improcede a apelação.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 16 de Dezembro de 2021

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes



1. Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição atualizada, pag. 89.
2. Neste sentido, Manuel Lopes Madeira Pinto, “A jurisprudência modera a liberdade contratual?”, Revista Julgar Online, janeiro de 2019, pag. 3.
3. In Contratos Atípicos, Almedina, pag. 226.
4. Neste sentido pode ver-se Manuel Carneiro da Frada, in Contrato e Deveres de Proteção, pág. 39.
5. Mota Pinto, in Cessão da Posição Contratual, pág. 357.
6. A propósito do conceito alargado de prestação Batista Machado, in Risco Contratual e Mora do Credor, Obra Dispersa, pag. 264 e segs.
7. Neste sentido, MotaPpinto, ob. cit., pág. 124.