Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6991 17.5T8VNF-A.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SUSTAÇÃO DA GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- Face a um título executivo constituído por um contrato, há que distinguir se se pretende executar as obrigações que constituem o seu objeto ou se se pretende executar outras obrigações previstas para o caso do seu incumprimento definitivo, sucedâneas daquelas, com objetivos indemnizatórios, porque estas últimas não resultam direta e suficientemente do encontro de vontades explanado no contrato, mas da análise de factos à luz de um conjunto de normas que permitem que seja caracterizado como um incumprimento definitivo e culposo, o que, por sua vez, despoleta a aplicação das normas relativas à responsabilidade civil contratual, de forma a estipular-se um crédito indemnizatório (mesmo que antecipadamente previsto nos termos do 810º do Código Civil), não apresentando a certeza que subjaz à necessidade de apresentação de um título executivo para a instauração da execução.

.2- No que toca ao contrato promessa de compra e venda, a sanção pelo não cumprimento do contrato não resulta diretamente do próprio título: haverá sempre que verificar se ocorreu um conjunto de eventos que levam a que se caracterize a falta de celebração do contrato definitivo, objeto do contrato promessa, como um incumprimento definitivo e culposo, afastando uma situação de simples mora; apurado o incumprimento definitivo, haverá ainda que verificar quais são as suas consequências estipuladas nas normas para tal evento.

.3- O titular de crédito que beneficie de garantia real sobre os bens penhorados, mas que não disponha de título executivo, pode requerer que a graduação de créditos aguarde pela obtenção desse título, nos termos do artigo 792º, nº 1 do Código de Processo Civil.

.4- Caso o mesmo, em vez de fazer tal requerimento, apresente reclamação, invocando que o documento que detém constitui título executivo, quando o mesmo não tem força executória, deve o tribunal conhecer oficiosamente dessa falta e não admitir a reclamação; não pode é convolar a mesma para requerimento de sustação da decisão previsto no artigo 792º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante e reclamante- X - Imobiliária, S. A., com sede na Rua … Esposende

Apelados:
Exequente- Y, Lda, com o nif NIF: ……;
Executada- W. - Construções, SA , com sede na Rua … Esposende;

Reclamante- Estado (representada pelo Ministério Público);

Autos de apelação (em reclamação dos Créditos por apenso a execução para pagamento de quantia certa)

I- Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, veio a ora apelante reclamar um crédito no valor de 65.000,00€ (sessenta e cinco mil euros), acrescido dos juros de mora vincendos, pedindo que seja graduado com preferência sobre os demais credores.
Invocou, para tanto e em síntese, que a executada lhe prometeu vender a fração autónoma penhorada, tendo a reclamante entregue a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 20.000,00 €, contrato a que atribuíram eficácia real e que inscreveram no registo predial. Mais invocou que a reclamante possui tal fração, a qual não dispõe de licença de habitabilidade e que em virtude do incumprimento definitivo e culposo desse contrato, goza do direito de retenção sobre a fração autónoma penhorada, a qual tem o valor de 120.000,00 €.Justifica o crédito reclamado com a dedução a este valor do preço convencionado no contrato promessa celebrado, o que perfaz, 60 000,00 €, somado à a restituição do sinal que entregou, que agora afirma que ascendeu a 5.000,00 €.
A exequente, notificada, veio impugnar o crédito reclamado, invocando, em síntese, a falta de título exequível, salientando que o legislador estabeleceu um regime processual específico para os casos em que o credor não esteja munido de título exequível, que tem procedimentos e ritos distintos, e de que a Reclamante preferiu não lançar mão; que a Reclamante se limita a pedir a verificação do seu suposto crédito, o qual, no seu entender, deverá ser graduado com preferência sobre os demais credores, efeito que jamais lhe poderá ser concedido, pois falta o pedido e consequente reconhecimento judicial do seu inerente pressuposto: o direito de retenção. Impugna também o crédito invocado, mencionando, além do mais, que a validade e efeitos do contrato promessa estão a ser objeto do processo n.º 216/16.8T8VNF, porquanto o contrato é nulo por visar defraudar credores.
A Reclamante respondeu.
Foi proferida sentença na qual se decidiu, na parte que aqui releva, julgar improcedente, por falta de título executivo, a reclamação dos créditos apresentada pela Recorrente, condenando-a nas respetivas custas.

É desta decisão que a embargante apela, pugnando para que:

se reconheça o crédito que reclamou, para ser pago com preferência ao crédito do credor exequente,
ou, se assim não se entender, reconhecer-se a sua qualidade de credora e ordenar-se a produção de prova para liquidação do seu crédito, que para ser pago com preferência ao crédito do credor exequente,
ou, no mínimo, reconhecer-se o direito de retenção da reclamante sobre a fração penhorada na execução apensa e, por via disso, admitir-lhe a faculdade de não entregar a fração até recebimento do seu crédito e de ser paga com preferência sobre o credor exequente, apresentando, para tanto, as seguintes
conclusões:

“1ª. O Tribunal não esteve bem ao rejeitar liminarmente a reclamação dos créditos apresentada, uma vez que a recorrente tem legitimidade para reclamar o crédito, nos termos em que o fez - vd. al. b) n.º 1 art.º 786.º e n.º 1 art.º 788.º do CPC
2ª. A recorrente tem legitimidade para reclamar o crédito, pressuposto que é titular de um crédito com garantia real sobre o bem penhorado na execução apensa e que dispõe de um documento particular autenticado (contrato promessa) no qual a executada se vincula à obrigação de indemnizar a recorrente em caso de incumprimento contratual - vd. vd. al. b) do n.º 1 do art. 786.º, nºs. 1 e 2 do art. 788.º do Código de Processo Civil;- vd. al. b) do n.º 1 do art. 703.º do CC e art. 707.º do Código de Processo Civil;- vd. contrato promessa junto à reclamação dos créditos;- vd. Ac. STJ, de 16.09.2008, proc. n.º 08B2427;- vd. Ac. TR Coimbra, de 14.09.2010, proc. n.º 2658/06.8TBLRA.C1
3ª. Ao contrário do que foi afirmado pelo Tribunal a quo, do título executivo consta expressamente uma cláusula aplicável às situações de incumprimento contratual, na qual a executada se vincula a pagamento de uma indemnização “por todos os prejuízos causados e por todas as despejas, judiciais e extrajudiciais, que o seu incumprimento determinar”- vd. cláusula quinta do contrato promessa junto à reclamação dos créditos.
4ª. A penhora da fração autónoma “A” concretizada na execução apensa conduz ao incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado entre a reclamante e a executada. Tal incumprimento resulta ainda do facto de a executada não ter logrado obter licença de habitabilidade, não ter cancelado os ónus e encargos incidentes sobre a fração e não se ter, em sede de impugnação de créditos reclamados, oposto ao incumprimento definitivo, atempadamente invocado pela recorrente - vd. arts. 798.º e 801.º do CC
5ª. Não existindo dúvidas quanto ao incumprimento definitivo então, não se pode negar que deve ser reconhecida a constituição da obrigação de indemnizar a recorrente
6ª. Uma vez que o contrato celebrado reveste a figura tipo de um contrato promessa de compra e venda, sempre será necessário considerar que ao mesmo são aplicáveis, na falta de convenção em contrário, as disposições genéricas deste tipo de negócios, pelo que a recorrente terá direito a receber da executada o valor da coisa (ou do direito a constituir sobre ela), com dedução do preço convencionado, a que acresce o valor pago a título do sinal e a parte do preço já pago, tudo perfazendo o montante de € 120 000,00 - vd. n.º 2 in fine do art. 442.º do CC
7ª. Subsidiariamente, considerando o direito conferido pelo contrato promessa à recorrente, sempre deve a sentença ser revogada e ordenada a produção de prova para liquidar a indemnização devida pelos prejuízos e despesas causados, em virtude do incumprimento preconizado pela executada.
8ª. A reclamante obteve a tradição da fração autónoma penhorada, a que se refere o contrato prometido, gozando, por isso, do direito de retenção sobre a mesma, pelo que tem a faculdade de não entregar a fração, de a executar nos mesmos termos que o credor hipotecário e de ser paga com preferência aos demais credores do devedor - vd. al. f) do n.º 1 do art.º 755.º, 2.ª parte do n.º 2 do art.º 442.º e art. 759.º do Código Civil”
Não foi apresentada resposta.

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1, 5º, nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou sejam de conhecimento oficioso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º, nº 2 do mesmo diploma.

Face ao teor das conclusões importa verificar:

- se a reclamação de créditos apresentada devia ter sido admitida.

III- Fundamentação de Facto

A sentença recorrida vem com a seguinte matéria de facto provada:

1. A autoridade tributária emitiu a certidão de dívida que consta a fls. 4 a 9, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2. A reclamante X apresentou reclamação dos créditos, nos termos que constam da petição inicial de fls.11 e ss., cujo teor aqui se dá por reproduzido, apresentando, como título executivo, o documento autenticado, intitulado “Contrato-Promessa de Compra e Venda”, datado de 26.06.2015, junto a fls. 17 a 19 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, do qual consta a executada como promitente vendedora e a credora reclamante “X” como promitente comparadora, contendo, entre outras, as seguintes cláusulas:
CLÁUSULA SEGUNDA
Pelo presente contrato a Primeira Outorgante, em nome da sua representada, promete vender à segunda outorgante, que por sua vez lhe promete comprar, as identificadas frações autónomas, pelos seguintes valores:
.a- fração autónoma "A", pelo valor de € 60000,00 (sessenta mil euros)
.b- fração autónoma "B", pelo valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros)
.c - fração autónoma "F”, pelo valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros)
.d - fração autónoma "H", pelo valor de € 60.000,00 (sessenta mil euros)
CLÁUSULA TERCEIRA
O pagamento do preço convencionado para a prometida' venda, no total de € 200.000,00 (duzentos mil euros), será pago pela segunda outorgante à primeira outorgante nos termos e prazos seguintes:
1. Na data da assinatura do presente contrato-promessa a quantia de € 20000,00 (vinte mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento que a primeiro outorgante declara ter recebido da segunda e de que dá quitação.
2. O remanescente do preço. no montante de € 180 000,00 (cento e oitenta mil euros) será pago pela promitente compradora no ato da escritura definitiva de compra e venda de cada uma das indicadas frações autónomas
CLÁUSULA QUARTA
A escritura definitiva de compra e venda das referidas frações autónomas deverá efetuar-se quando se verificarem concluídas todas as obras e licenças necessárias, e sempre no prazo máximo de três (3) anos a contar da data do presente contrato-promessa.
§ Um: A escritura de compra e venda será marcada pela promitente compradora. devendo para o efeito avisar a promitente vendedora, por meio de carta registada com aviso de receção, com a antecedência de trinta (30) dias, do cartório notarial onde a mesma se realizará.
§ Dois: correm por conta da segunda outorgante todos os encargos e despesas inerentes à transmissão, designadamente com IMT é imposto de selo, escritura de compra e venda, registo de transmissão ou outros encargos de natureza fiscal vigentes à data da escritura e que sejam da sua responsabilidade legal.
CLÁUSULA QUINTA
O outorgante não faltoso poderá em alternativa, requerer a execução específica deste. contrato. nos termos do artigo 830° do Código Civil, sendo o outorgante faltoso responsável pelo pagamento de todos os prejuízos efetivamente causados ao outorgante não faltoso e por todas as despesas judiciais e extrajudiciais, que o seu incumprimento determina
4. Nos autos da execução, foi penhorada a fração autónoma designada pela letra “A” do prédio descrito na CRPredial de … sob o n.º …-A, estando tal penhora registada sob a …, de 30.11.2017, mediante conversão de arresto registado sob a ap. …, de 26.08.2016,
5. Sendo que do registo predial da mesma fração consta ainda o registo de promessa de alienação a favor da reclamante “X”, sob a ap. 2239, de 26.06.2015.

IV- Fundamentação de Direito

a) Dos requisitos da reclamação dos créditos

Nem todos os credores que têm o seu direito garantido pelo património penhorado na execução podem nesta reclamar o pagamento do seu crédito, permitindo a lei que intervenham apenas aqueles que podem ser francamente prejudicados pelo facto da venda executiva libertar os bens transmitidos dos direitos de garantia que os oneram, nos termos do artigo 824º, nº 2 do Código Civil.

A lei, para tanto, estipulou os seguintes requisitos para a reclamação dos créditos, exigindo, cumulativamente:

1 - que o crédito goze de garantia real sobre os bens penhorados (artigo 788º, nº 1, do Código de Processo Civil);
2 - que o crédito esteja documentado num título executivo (artigo 788º, nº 2, do Código de Processo Civil);
3 - que tenha sido tempestivamente reclamado (se ocorreu a citação do credor para o efeito, nos prazo de 15 dias a contar dessa data – artigo 788º, nº 2 do Código de Processo Civil-, existindo, no entanto, outros casos que justificam reclamações posteriores, a mais importante das quais referida infra);
4- que, sendo a garantia um privilégio creditório geral, não detido por trabalhador, não se verifique qualquer uma destas circunstâncias: a) A penhora tenha incidido sobre bem só parcialmente penhorável, nos termos do artigo 738.º, renda, outro rendimento periódico, veículo automóvel, ou bens móveis de valor inferior a 25 UC; b) Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda corrente, nacional ou estrangeira, depósito bancário em dinheiro ou este tenha requerido, antes de convocados os credores, a consignação de rendimentos, ou a adjudicação, em dação em cumprimento, do direito de crédito no qual a penhora tenha incidido penhorados (artigo 788º, nºs 4 e 6 do Código de Processo Civil).
Assim, cumpridos tais requisitos, pode o credor reclamar os seus créditos, mesmo que não vencidos. No entanto, se as obrigações forem incertas ou ilíquidas, tem que obter tal certeza e liquidação, recorrendo aos meios previstos para a obrigação exequenda (artigo 788º, nº 7 do Código de Processo Civil).
Por outro lado, o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados, mas não dispuser de título executivo, pode requerer que a graduação dos créditos (relativa a tais bens) aguarde pela obtenção do título (artigo 792º, nº 1 do Código de Processo Civil), para o que tem que, caso o seu crédito seja impugnado, demonstrar em 20 dias que requereu a intervenção principal, na ação pendente, do exequente e demais credores (e do executado caso não seja réu) ou que intentou a ação contra estes e o executado (artigo 792º, nº 1 a 7 do Código de Processo Civil). Nas circunstâncias previstas no artigo 792º, nº 3, do Código de Processo Civil, na falta de impugnação, considera-se formado o título executivo.

b) Do título executivo

O artigo 703º do Código de Processo Civil apresenta uma enumeração taxativa dos títulos executivos que podem servir de base a uma ação executiva.

Do seu elenco constam os seguintes:

“As sentenças condenatórias; Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.”
Está aqui em causa um documento autenticado por notário.
Para que este seja título executivo tem que importar a “constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”. Este segmento reproduziu o que já dispunha o artigo 50.º do anterior Código de Processo Civil.
Esclarece ainda o artigo 707º do atual Código de Processo Civil que os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
Assim, exige-se que os títulos sejam de constituição originária da obrigação ou que apresentem um reconhecimento de uma obrigação pré-existente (o que ocorre, neste segundo caso quando há a confissão de um ato, de um facto ou uma dívida, face aos artigos 352.º, 358.º n.º 2, 364.º e 458.º do Código Civil).
Há que salientar que os títulos executivos são «documentos com força probatória especial, que indiciam com grande probabilidade a existência da obrigação por eles constituída ou neles certificada. Os títulos executivos são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório» … «provando a constituição ou a existência da obrigação e do direito subjetivo correspondente, o título prova, ainda, em princípio, até prova em contrário, a violação da obrigação, visto ser ao devedor que incumbe alegar e provar os factos modificativos ou extintivos dela, tal como os factos impeditivos. A lei presume, por conseguinte, uma vez provada a constituição da obrigação, a inexistência de causas impeditivas, modificativas ou extintivas dela», como Antunes Varela os retrata in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora 1985, p. 78 .
No Acórdão proferido no processo nº 4488/14.4T8LOU-B.P1.S1, em 03/22/2018, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano) também se explana, quanto às características destes títulos, no que aqui nos interessa sobremaneira:O título executivo é, por regra, auto-suficiente no que concerne à determinação do objeto e da finalidade da execução, e revela por si só os sujeitos ativo e passivo da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de assegurar, com apreciável grau de probabilidade, a existência e conteúdo da obrigação. A sua análise demonstra, de forma quase sempre imediata, tanto os aspetos de ordem objetiva ligados ao fim e aos limites da ação executiva (art. 45.°), como os de ordem subjetiva atinentes à identidade e qualificação jurídica dos sujeitos (art. 55.°)».
Enfim, como a ação executiva visa a realização coativa de uma prestação (ou de um seu equivalente pecuniário), a mesmo tem que estar diretamente demonstrado no título que a funda, revelando-se, seja pela sua constituição, seja pelo seu reconhecimento.
Porque “Para que seja executivo o título tem de constituir ou certificar a existência da obrigação, não bastando que se preveja a constituição desta”, “o documento [particular] em que se fixe uma cláusula penal correspondente ao não cumprimento de qualquer obrigação contratual não constitui título executivo em relação á quantia da indemnização ou da cláusula penal estabelecida por não fornecer prova sobre a constituição da respetiva obrigação”, como esclarece Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pag. 74-75.
Está aqui em discussão se se pode considerar como estando constituída ou reconhecida no próprio contrato promessa de compra e venda, em que ocorreu a constituição de sinal, a obrigação prevista no artigo 442º, nº 2 do Código Civil, resultante do incumprimento definitivo, por causa que seja imputável a quem o recebeu (como a obrigação do pagamento do dobro do sinal ou o seu valor determinado objetivamente à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, mas com a restituição do já pago).
Ora, tal sanção pelo não cumprimento do contrato não resulta do próprio título, mas da análise de um conjunto de factos que cumpre caracterizar à luz de um conjunto de normas e que, por sua vez, despoletam a aplicação da norma sancionatória que constitui tal crédito. Há que verificar se ocorreu um conjunto de eventos que levam a que se qualifique a falta de celebração do contrato definitivo, objeto do contrato promessa, como um incumprimento definitivo e culposo, não uma situação de simples mora. Apurado o incumprimento definitivo, há que verificar quais são as suas consequências estipuladas nas normas para tal evento.
Assim, há que distinguir, no que toca a este tipo de títulos executivos, se se pretende executar as obrigações que constituem o objeto do contrato ou se se pretende, por impossibilidade de cumprir o contrato, executar outras obrigações, sucedâneas daquelas, com objetivos indemnizatórios, previstas para o caso do seu incumprimento, não para os casos de mora no incumprimento. Aquelas, despoletadas pelo incumprimento definitivo, porque dependentes da análise de um conjunto de factos e normas que permitam classificar tal inadimplemento do contrato e que determinam a indemnização ou sanções que deste advêm, não gozam da executoriedade do título particular que traga apenas a sua previsão, porque não se podem considerar constituídas ou reconhecidas diretamente no contrato.
Enfim, no presente caso, a obrigação que a reclamante pretende fazer valer decorre já, não da execução do contrato, com a efetivação das prestações nele estipuladas como sendo o seu cumprimento, mas do seu incumprimento. Assim, a obrigação reclamada não foi constituído pelo título apresentado, fixando-se no mesmo apenas mediatamente, por se segurar nas consequências da resolução do contrato; tem natureza indemnizatória: o crédito do promitente comprador não tem origem no contratado, mas no incumprimento do contrato que beneficiou da tradição.
Como se disse no recente acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no processo nº 2548/16.6T8SNT-A.L1-2, em 01/11/2018 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano): “É que, ainda que os pressupostos abstratos da obrigação de indemnização decorrente do incumprimento contratual se encontrem inseridos no contrato, a sua concretização exige a alegação e prova de factos, retirando à documentação apresentada o grau de certeza e de segurança próprios do título executivo.”, sumariado da seguinte forma “o contrato não constitui, porém, título executivo com relação a eventuais indemnizações resultantes do alegado incumprimento contratual, posto que essa obrigação sucedânea é qualitativa e quantitativamente diversa da obrigação principal, exigindo maiores indagações que se não satisfazem com a mera junção do documento que titula o contrato, nem com a alegação dos factos em que se funda o invocado incumprimento contratual”.
As obrigações que resultam do contrato promessa consistem na obrigação de celebrar o contrato definitivo, sendo certo que “Não se exclui que, dentro da liberdade contratual conferida às partes pelo artº 405º do Cód. Civil, possa, a par da obrigação principal de vender/comprar, resultar do clausulado de um contrato promessa de compra e venda a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias. Embora na 2ª parte do nº 2 do artº 442º do Cód. Civil se estabeleça que, sendo o incumprimento do contrato devido ao contraente que recebeu o sinal, tem o outro a faculdade de exigir o dobro do que prestou, daí não decorre que ao outorgar o contrato promessa o promitente vendedor esteja a assumir automaticamente essa obrigação de restituição. Para que nasça essa obrigação tem de haver incumprimento definitivo e culposo por parte do contraente que recebeu o sinal. E, a não ser que o próprio, em documento por si assinado, os reconheça – caso em que, verdadeiramente, o título executivo seria esse documento, ainda que coadjuvado pelo contrato promessa – o reconhecimento do incumprimento definitivo e da culpa passa necessariamente pela intervenção do tribunal, em ação declarativa de condenação [artº 4º, nºs 1 e 2, al. c)], vindo o título executivo a ser integrado pela sentença condenatória proferida.”, como tão bem se explicou no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 05/15/2012, no processo 710/11.7TBCTB-A.C1), sumariado, de forma que se mostra pacífica: “O contrato promessa de compra e venda de imóvel não constitui título executivo suscetível de servir de base a execução em que, com a alegação de que os executados (promitentes vendedores) não querem cumprir as obrigações assumidas, se visa a cobrança coerciva de uma quantia correspondente ao dobro do sinal que oportunamente lhes havia sido entregue”.
Com efeito, entende-se que não se pode entender que flui do contrato promessa a constituição da obrigação que se invocou, nem tão pouco o seu reconhecimento, como também se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/16/1997, no processo 0008242: “Um contrato promessa não assume a natureza de título executivo, mesmo quando reforçado por arresto preventivo dependendo de ação para a respetiva execução específica, pelo que não pode servir de base a reclamação de créditos apensa a processo executivo”. Da mesma forma se decidiu no Agravo n.º 4248/06 - 6.ª Secção (in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=25107&codarea=1) “I - O contrato-promessa de compra e venda de imóvel assinado pelos promitentes, vendedores e compradores, é um documento particular que não importa o reconhecimento de obrigação pecuniária, pelo que não constitui título executivo, nos termos do disposto no art. 46.º, n.º 1, al. c), do CPC. II - O promitente-comprador, perante um incumprimento do promitente-vendedor, tem que intentar ação declarativa de condenação, em que obtenha sentença que condene o promitente-vendedor a pagar-lhe como indemnização o dobro do sinal entregue. Só esta sentença condenatória constitui título executivo e não o contrato-promessa.”
Concluindo, a reclamante não é detentora de título executivo que lhe permitisse reclamar o crédito, como fez.

Enfim, nada do que peticiona pode ter lugar nestes autos, nesta fase processual, por completa falta de título executivo que demonstre suficientemente a existência de qualquer crédito de que seja titular, para além do direito à celebração do contrato definitivo:
não se pode reconhecer o crédito pecuniário que reclamou, nem ordenar-se a produção de prova para a sua liquidação, nem reconhecer-se um direito de retenção sobre a fração penhorada e a faculdade de não a entregar até recebimento desse (não demonstrado) crédito.

c) Da faculdade de requerer a suspensão da graduação de créditos e as consequências de não ter recorrido a tal requerimento

É certo, como se viu, que a lei não é insensível ao direito do credor que não tenha ainda um título executivo que lhe permita reclamar o seu crédito que goze de garantia real sobre os bens penhorados.
Deve o mesmo requerer que a graduação de créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta, como expressamente determina o artigo 792º, nº 1 do Código de Processo Civil. Pode até obter título executivo, nos termos do artigo 792º, nº 3, desse normativo, caso o executado reconheça tal crédito, sem prejuízo da sua impugnação pelo exequente e restantes credores, após a notificação a que se refere o nº 2.
No entanto, no presente caso, o credor reclamante não acionou este mecanismo.
Entende-se que o tribunal não pode convolar a reclamação de créditos para este instrumento processual: o mesmo implica, nos termos do nº 4 deste artigo 792º do Código de Processo Civil, a disponibilidade para propor uma ação autónoma, que o tribunal não pode presumir, antes pelo contrário, resultando do teor da reclamação em causa (e do recurso interposto) que não está disposto a tanto, por o não peticionar, defendendo, arreigadamente, a existência de título executivo.
Com efeito, o princípio da gestão processual, com consagração expressa no art.º 6.º do Código de Processo Civil, o qual se concretiza como um poder-dever do juiz, permitindo maior flexibilização do processo, ainda tem no Código de Processo Civil como fronteira o princípio do dispositivo, como decorre do teor desta norma (“sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes”).
Assim, não se mostra possível ao tribunal, sem mais, proceder à alteração do pedido ou convidar a parte a requerer que a reclamação, na parte respeitante aos bens que garantem o crédito, aguarde a obtenção de título executivo, se necessário mediante a dedução de ação contra o executado, exequente e demais credores reclamantes, porquanto o que é solicitado é que nos autos logo se reconheça e gradue o crédito, defendendo-se a existência de título executivo, demonstrando, até, ao invés do que se poderia ser o objeto do convite, a intenção de não deduzir nova ação, por desnecessária.
Não se trataria aqui de alterar a forma do processo que foi intentado, situação típica e legalmente prevista, nem a sanação da falta de um pressuposto processual que possa ser obtido no próprio processo, mas o convite para formular requerimento que vai contra a vontade implícita do próprio reclamante, por poder implicar a dedução de ação autónoma.
Embora seja certo que “o que identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico” (cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/07/2016, no processo nº 842/10.9TBPNF.P2.S1), aqui não se obteria com tal convite o efeito pretendido pelo reclamante.
Não se estaria apenas a adequar o meio utilizado à pretensão adjetiva pretendida pela parte (o que constituí um poder-dever, especialmente previsto, nos casos mais relevantes, para o erro na forma do processo, nos termos dos artigos 193º, nº 3, tal como também está previsto para e para o suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação 6º, nº 2 do Código de Processo Civil), nem tão pouco uma alteração da pretensão adjetiva expressa pelas partes, alteração esta, é consabido, apenas viável em certas situações, muito contadas e excecionais (cf neste sentido o acórdão supra mencionado) mas a ir mais além, convidando-a a efetuar atos que são ou podem ser, para o nosso processo, extra-processuais e que vão contra o que esta demonstra pretender.
Aliás, a lei comina expressamente a falta de apresentação do título executivo com o indeferimento liminar (pelo menos quando a parte defende que apresenta documento que tem tal força e o tribunal assim o não entende, não se verificando simples lapso que pode ser suprido), determinando que o juiz profira despacho nesse sentido, como expõe o artigo 726º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
Em concretização do que acabámos de dizer decidiu também o Acórdão proferido no processo nº 4488/14.4T8LOU-B.P1.S1, em 03/22/2018: “Como se vê, à saciedade, não foi acionado no presente processo o mecanismo legal do artº 792º do CPC, sendo certo que tal mecanismo não é de aplicação oficiosa do tribunal, mas antes cabendo o respetivo impulso processual ao Credor/Reclamante, como expressis et apertis verbis ressalta da própria letra da lei, onde se lê no nº 1 do citado preceito que «o credor que não esteja munido de título exequível pode requerer…».
Não dependendo da atividade oficiosa do Tribunal, tal mecanismo legal fica, portanto, dependente exclusivamente do impulso processual do credor, que in casu é o Banco recorrente que está devidamente patrocinado, fazer uso atempado do citado dispositivo legal, o que, no caso sub judicio não aconteceu.”
O tribunal a quo, concluiu, bem, pela inexistência de título executivo, e pela falta manifesta dos pressupostos da admissão da reclamação de créditos, o que podia legitimar a rejeição liminar da reclamação.
A consequência natural da verificação da falta de um pressuposto processual para a reclamação de créditos é, conforme o momento em que se verifique, a sua rejeição ou a absolvição da instância, pelo que nunca poderia a mesma proceder.
Assim, é nesse sentido que se pode manter ao decisório alcançado na sentença ao “Julgar improcedente, por falta de título executivo, a reclamação de créditos apresentada pela reclamante “X”.
Termos em que improcede o recurso.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente (artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil)
Guimarães, 2020-04-23

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes