Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1263/16.5T8GMR.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE COMODATO
BENFEITORIA
PRIVAÇÃO DO USO DE IMÓVEL
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Como ficou a constar da “Exposição de Motivos”, foi intenção confessada do legislador reforçar os poderes da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, concedendo o primado ao apuramento da verdade material, pressuposto que é de uma decisão justa. Devendo a Relação formar a sua própria convicção, cumpre-lhe avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem que esteja sujeita às indicações dadas pelo recorrente e pelo recorrido.

II - Os depoimentos das testemunhas estão sujeitos à livre apreciação do tribunal, não sendo suficiente, para abalar a credibilidade de uma testemunha, apenas os laços familiares ou de amizade com uma das partes do processo.

III – No enriquecimento sem causa, para se aferir o objecto da obrigação de restituir, nos termos do disposto no art.º 479.º do C.C., haverá que determinar primariamente, consoante a categoria de enriquecimento sem causa, o que se obteve à custa de outrem, para depois se averiguar se o enriquecimento ainda subsiste no momento do conhecimento da sua ausência. Assim, numa situação de enriquecimento por prestação, em se tratando de prestação de coisa o “obtido à custa de outrem” deve ser “o próprio objecto prestado” e na impossibilidade de restituição em espécie, haverá que restituir o valor correspondente, determinado através do seu preço comum no mercado. Já no enriquecimento por intervenção o que deve ser restituído é o valor da exploração e não os ganhos patrimoniais do interventor. E no enriquecimento por despesas efectuadas, deve ser restituído não apenas o objecto ou o direito primariamente adquirido sem causa, como também todo o commodum ex re, o qual abrange os frutos da coisa ou outras vantagens obtidas com ela, e os sub-rogados da coisa ou do direito, como aquilo que se adquiriu por virtude do direito obtido, ou como indemnização ou compensação pela perda ou deterioração da coisa.
No que se refere à restituição de valor, ele deve ser calculado de acordo com o valor de mercado.

IV- Definindo-se a benfeitoria útil como aquela que eleva o valor da coisa, o aumento deve ser apreciado em termos objectivos atendendo à vantagem concretamente produzida, ou seja, confrontando o valor da coisa antes e depois do melhoramento, sendo esta diferença para mais que consubstancia o enriquecimento e não o montante despendido pelo benfeitorizante.

V - Não pode invocar-se melhoramentos como benfeitorias úteis, nem invocar-se que o respectivo valor enriquece injustificadamente, se o “anexo” em que foram realizadas, estando licenciado como “de apoio agrícola”, está a ser utilizado para habitação, o que constitui uma contraordenação punida pelo RJUE.

VI – A simples privação do imóvel reivindicado, dado que consubstancia uma restrição ilegítima do direito de propriedade, é susceptível de gerar o direito à indemnização, pelo que, mesmo não se provando que da ocupação indevida tenha resultado um concreto prejuízo para o seu proprietário, ainda assim este deve ser indemnizado, sendo o montante indemnizatório fixado, em último termo, com recurso à equidade.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- B. A. e marido, C. M., com residência na Travessa …, Guimarães, instauraram contra J. A. e mulher, Maria, residentes no n.º … (Anexo) da referida Travessa …, a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação destes Réus a reconhecerem-nos, a eles, Autores, os proprietários do prédio que melhor identificam na p.i., e a entregarem-lhes uma dependência que integra esse prédio, livre de pessoas e bens, e ainda a pagarem-lhes uma indemnização pela ocupação ilegítima do espaço, calculada à razão de € 10 diários, a contar da data da propositura da presente acção até efectiva entrega da dependência.

Alegam, para tanto e em síntese, serem donos e legítimos proprietários de um imóvel, que identificam, imóvel esse composto por um edifício e três dependências, sendo que há alguns anos eles, Autores, permitiram que os Réus habitassem gratuitamente numa dessas dependências. Porém, tendo reclamado destes a entrega do espaço, os mesmos não o fizeram, continuando a ocupar a dependência vinda de referir, contra a sua vontade.

Regularmente citados, contestaram os Réus reconhecendo a propriedade dos Autores sobre o imóvel reivindicado mas acrescentando que o ocupam ao abrigo de uma relação arrendatícia (ainda que meramente verbal), já que desde o início do gozo do anexo (que situam em 1980/1981) que eles, Réus, pagam uma contraprestação mensal, que inicialmente foi fixada nos 2.000$00, vindo a ser actualizada para os € 25 aquando da mudança do escudo para o euro; por esse motivo, excepcionaram igualmente o erro na forma de processo.

Deduziram ainda os Réus pedido reconvencional pedindo, para a eventualidade da procedência da acção, a condenação dos Autores a pagarem-lhes a importância de € 32.000, que é o valor correspondente às benfeitorias que realizaram no imóvel reivindicado, bem como a permitir-lhes o levantamento de outras benfeitorias, que identificam.

Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que:

i) - julgou a acção parcialmente procedente, condenando os Réus:

- a reconhecer serem os Autores os proprietários do prédio urbano composto por edifício de r/c, com a área de 156 m2, 3 dependências (uma com 38 m2, outra com 56 m2 e a terceira com 120 m2) e logradouro, com a área de 2.435 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... da freguesia de …;
- a entregarem aos Autores a dependência que ocupam, livre de pessoas e bens;
- a pagarem aos Autores uma indemnização pela ocupação ilegítima do espaço, calculada à razão de € 3 diários contados desde a data da propositura da presente acção até efectiva entrega da dependência;

ii) julgou o pedido reconvencional improcedente por não provado;

iii) julgou improcedentes os pedidos de condenação dos Autores e dos Réus como litigantes de má fé.

Inconformados, trazem os Réus o presente recurso pedindo a reapreciação da decisão de facto e a revogação da decisão de condenação.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II.- Os Réus/Apelantes formularam as seguintes conclusões:

I. No âmbito do presente processo foi proferida sentença julgando totalmente procedente a ação, onde se peticionava a entrega do imóvel livre de pessoas e bens e o pagamento de uma indemnização pela privação do uso e julgou parcialmente procedente a reconvenção, ao permitir o levantamento das benfeitorias realizadas pelo R.
II. Porém, o R. não se poderá conformar com este dispositivo, porquanto foi produzida abundante prova que, se devidamente ponderada, teria conduzido a uma decisão em sentido diverso.
III. Sob o ponto c) da matéria de facto assente considerou o tribunal que a utilização da dependência aqui em causa, da propriedade dos AA., foi cedida ao R. a título gratuito.
IV. Porquanto considerava que cabia ao R. o ónus da demonstração de uma relação arrendatícia.
V. Porém, assentando a petição inicial na existência de um contrato de comodato entre as partes, recaía sobre os AA. o ónus de comprovar esse vínculo entre as partes.
VI. Verdade é que os AA. não trouxeram um único documento que titulasse ou demonstrasse a existência de um contrato de comodato, bem como nenhuma das testemunhas por si arroladas tinha conhecimento pessoal da alegada cedência gratuita da dependência dos AA. ao R.
VII. Os elementos de gratuitidade, entrega de um bem imóvel a outrem e a respetiva restituição constituem pressupostos/requisitos fundamentais e que caracterizam um contrato de comodato.
VIII. Como resulta explícito do aresto aqui em análise, os AA. não lograram fazer prova destes elementos. Não o tendo feito, deveria ter improcedido a ação.
IX. O Tribunal a quo fez uma errada e grosseira análise dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR, em especial as suas filhas Olinda e Engrácia e do seu genro Artur.
X. Até porque (sem considerarmos os AA.) as filhas dos RR são os únicos com conhecimento direto dos factos aqui em questão.
XI. Em sede dos depoimentos das testemunhas filhas dos RR, bem como as testemunhas Alzira, M. C. e Custódia, as mesmas conseguiram descrever com algum rigor e pormenor as obras que foram efetuadas, desde o momento em que os RR foram para lá morar com a sua família.
XII. Obras que foram amplamente descritas de igual forma pela testemunha Artur.
XIII. Tendo a prova aqui produzida sido apenas considerada para dar factos como não provados, ao invés do oposto.
XIV. O facto de pagamento de renda ao longo dos anos foi igualmente corroborado de forma consistente pelas testemunhas Olinda, Engrácia e Artur, tendo estes sido completamente obliterado do juízo do Tribunal a quo.
XV. Neste sentido, o Tribunal a quo não efetuou o julgamento da matéria de facto de forma correta, criteriosa, exigente e ponderada atento o princípio da livre apreciação da prova.
XVI. Por essa razão, com a decisão ora recorrida, violou o art.º 607.º do CPC, o que, consequentemente, levou a que o Tribunal erradamente tivesse dado como provado o ponto 4. – “A utilização foi permitida pelos Autores a título gratuito”.
XVII. O Tribunal a quo, ao considerar que cabia ao R. a demonstração da existência de uma relação arrendatícia, violou a regra vertida no art.º 342.º do C.C.
XVIII. Na eventualidade de não se considerar que entre os AA. e RR. foi celebrado um contrato de arrendamento, ainda que verbal, mas sim um contrato de comodato, no que se não concede, não deixam os RR. de ter direito a ser compensados pelas benfeitorias necessárias e úteis, também.
XIX. Não é razoável, à luz das regras de experiência comum, que uma qualquer edificação permaneça sem qualquer melhoramento ou intervenção e manutenção por mais de 30 anos.
XX. Ao invés do que as testemunhas dos AA., aqui recorridos, vieram afirmar, as testemunhas arroladas pelos RR. vieram com precisão e pormenor descrever os trabalhos e obras necessárias, não só de expansão, mas sobretudo de conservação que efetuou ao longo do tempo.
XXI. Esta consideração pode ser perfeitamente ancorada nos depoimentos das filhas Olinda e Engrácia e também no depoimento da testemunha Artur, a quem o R. adjudicou a maioria das referidas obras,
XXII. Sendo que as obras foram também relatadas com alguma precisão pelas testemunhas Alzira, M. C. e Custódia.
XXIII. Face a tal produção de prova, dificilmente se compreende a decisão de não indemnizar o R. pelas benfeitorias realizadas.
XXIV. Em primeiro lugar porque se tratam de benfeitorias úteis, integradas na coisa imóvel e, por definição, insuscetíveis de levantamento.
XXV. Em segundo lugar porque o valor das benfeitorias não se afere pela utilidade conferida tanto ao possuidor, como ao proprietário.
XXVI. Mas num critério objetivo, oferecido pelo art.º 216.º do Código Civil, de valorização do bem onde se integram e não de planos de ordem volitiva dos proprietários.
XXVII. Ao não decretar o pagamento de uma indemnização pelas benfeitorias úteis realizadas e não passíveis de levantamento, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 562.º; 566.º e 1273.º, todos do Código Civil, adotando um conceito erróneo e não corroborado pela leitura do art.º 216.º do mesmo diploma.
XXVIII. Nesta conformidade, deverá a resposta à matéria de facto ser alterada, nos termos do artigo 640º e 662º do Código de Processo Civil, contemplando esta o facto de todas as obras realizadas no anexo terem-no sido a expensas do R. que despendeu aproximadamente mil contos (à data).
XXIX. Devendo, consequentemente e subsidiariamente, ser alterada a decisão no sentido de ser devida uma indemnização ao R. no valor de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros), acrescido de juros calculados à taxa aplicável às obrigações civis, desde a notificação aos AA. da presente reconvenção e até integral e efetivo cumprimento.
XXX. Sem conceder e ainda que se venha a considerar procedente tudo o peticionado pelos AA., nunca se poderá acompanhar a sentença ora recorrida na parte dispositiva referente à indemnização pela privação do uso do imóvel.
XXXI. A decisão recorrida não fundamentou qualquer dano em concreto sofrido pelos AA, porquanto o mesmo não resultou provado no elenco dos factos provados.
XXXII. Dano esse que é condição essencial à procedência de qualquer pedido indemnizatório, conforme resulta do disposto no art.º 483.º do C.C.
XXXIII. Ainda que no limite se viesse a acolher a tese da simples privação do uso como dano indemnizável, sempre teremos de recorrer a critérios de equidade para quantificar essa lesão na medida equivalente.
XXXIV. Ora, como foram os AA. incapazes de demonstrar que utilidade económica advinha da parcela ocupada pelos RR., não se alcança que medida equivalente foi tomada em consideração pelo Tribunal a quo.
XXXV. O artº 566, nº 2 do Código Civil refere-nos que a indemnização em dinheiro se afere pela diferença entre a situação patrimonial caso não tivesse ocorrido o dano e a situação patrimonial atual.
XXXVI. O nº 3 do mesmo preceito estatui que “Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o Tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.”.
XXXVII. Porém, na sua decisão, o Tribunal não respeitou os limites que havia traçado como provados no início do aresto, ignorando que considerou como não provada a intenção de venda por parte dos AA. e como provada a sua intenção de demolição.
XXXVIII. Resumidamente, se os AA. nada pretendem fazer relativamente ao imóvel cuja posse e propriedade reivindicam, não poderão posteriormente lograr sustentar um pedido de indemnização pela privação do uso.
XXXIX. Pelo que, ao decretar semelhante indemnização, o Tribunal a quo infringiu o disposto nos artigos 483.º e 566.º, todos do Código Civil, pelo que deverá a sentença ser revogada quanto a este ponto.
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III.- Os Autores formularam as conclusões que seguem:

A- A decisão sobre a matéria de facto só deve ser alterada se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, ou seja, deve-se especificar não meios de prova que admitam, permitam ou consintam decisão diversa da recorrida, mas sim que imponham decisão diversa da impugnada.
B- Considerando a forma concreta, exaustiva, ponderada, prudente e fundamentada como se analisou criticamente as provas relativamente a todos os factos alegados, pertinentes para a boa decisão da causa, nada há a apontar, em nosso entender, quanto à decisão que sobre ela lhe foi dada pelo tribunal a quo, a qual não se revela deficiente, obscura ou contraditória.
C- Assim sendo, a matéria dada como provada, e não provada, na 1ª instância não deve ser modificada pelo tribunal ad quem, pelo que a mesma tem que ser tida como definitivamente assente.
D- Ao invés do que alega o Apelante, designadamente que a petição inicial assenta na existência de um contrato de comodato entre as partes, cabendo, por essa ordem de ideias, aos AA. o ónus de comprovar esse vínculo, a verdade é que a presente acção se traduz numa acção de reivindicação (cfr. 1311º CC).
E- Recaindo sobre o reivindicante o ónus de provar que é proprietário da coisa e que a mesma se encontra na posse do Réu, o que os Autores provaram.
F- Cabia ao Réu o ónus de prova de que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitimasse a recusa da restituição do anexo, o que manifestamente não logrou fazer, como lhe competia (cfr. art.º 342º CC).
G- A obrigação de indemnização pela realização de benfeitorias está sujeita ao regime legal do instituto do enriquecimento sem causa.
H- Competia ao Recorrente apresentar os factos demonstrativos dos pressupostos desse instituto, designadamente que por força da realização de tais despesas o prédio dos AA., e não o anexo, ficou valorizado, para efeitos de classificação da obra realizada como benfeitoria útil, o que não logrou fazer.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:

- reapreciar a decisão da matéria de facto, nos segmentos impugnados;
- reapreciar a decisão de mérito.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

V.- Como se deixou referido, os Apelantes impugnam a decisão de facto.

a) O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.

Conquanto o não tenham mencionado expressis verbis, resulta das alegações e das conclusões que os Apelantes impugnam a decisão da matéria de facto no segmento da alínea c), parte final, da facticidade provada, (gratuitidade da ocupação), que pretendem não ter ficado provado, e quanto aos factos julgados não provados, enunciados de a) a g) do ponto 1.2, da sentença, que propugnam sejam, nesta sede de recurso, e após reapreciação das provas testemunhais que indicam, julgados provados.

Nas alegações fazem a transcrição das passagens dos depoimentos em que fundam o seu dissenso, situando-as no tempo da gravação.
Têm-se, pois, por cumpridos os ónus impostos aos Apelantes, quer pelo n.º 1, quer pela alínea a) do n.º 2 daquele art.º 640.º, com o que não há obstáculo legal a que se reaprecie a decisão de facto, nos segmentos fácticos impugnados.

b) Na reapreciação da decisão da matéria de facto cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., tendo presente que, como consta da “Exposição de Motivos”, foi intenção do legislador reforçar os poderes da Relação, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, para formar a sua própria convicção.

Como refere o art.º 341.º do Código Civil (C.C.) as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Não se podendo exigir que esta demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que sempre seria impossível de atingir), quem tem o ónus da prova de um facto terá de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como referem ANTUNES VARELA et AL. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).

Se, depois de reapreciadas as provas, subsistir a dúvida quanto à realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, decide-se contra a parte a quem o facto aproveita, segundo o princípio consagrado no art.º 414.º do C.P.C..
Ainda de acordo com o que dispõe o art.º 349.º do C.C., desde que seja admitida a prova testemunhal, é igualmente admissível o recurso às presunções judiciais, que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, baseado nas regras da experiência comum, no que normalmente acontece.

c) Posto que a presente acção vem configurada como de reivindicação, cumpre convocar o estabelecido no art.º 1311.º do Código Civil (C.C.).
Uma vez que o proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso e fruição das coisas que lhe pertencem, nos termos do art.º 1305.º do C.C., a acção de reivindicação funda-se na existência do direito de propriedade, sendo a sua finalidade a de obter a coisa objecto desse direito.
Daí o afirmar-se que nesta acção o pedido do reconhecimento do direito concorre com o da restituição da coisa objecto desse direito, sem embargo de este já conter, de forma implícita, aquele, sendo que a sua procedência fica dependente da verificação de um requisito subjectivo, que consiste em ser o reivindicante o proprietário da coisa reivindicada, e da verificação de um requisito objectivo, que se traduz na identidade entre a coisa reivindicada e a possuída pela pessoa de quem se reivindica.
A causa de pedir não é o direito de propriedade mas sim o acto ou facto jurídico que justifica aquele direito (cfr. ALBERTO DOS REIS, in R.L.J., ano 84º., págs. 138).

Deste modo, e de acordo com os princípios estabelecidos no art.º 342.º do C.C., o reivindicante tem o ónus da prova daquele acto ou facto jurídico, por ser constitutivo do direito que invoca.
Provado o direito de propriedade da coisa, ela deve ser entregue ao seu titular, que é quem tem o poder exclusivo de a usar, fruir e dispor dela.
Sem embargo, a lei prevê situações que permitem ao possuidor ou detentor da coisa recusar a restituição, cabendo, pois, a este o ónus da prova do direito real ou obrigacional que o legitima a permanecer com ela – cfr. n.º 2 do art.º 342.º, já referido.
Em resumo, na situação sub judicio, cabe aos Autores provar o direito de propriedade sobre o anexo que reivindicam e que este se encontra na posse ou na detenção dos Réus, ora Apelantes.
A estes cabe provar o contrato de arrendamento que invocam, e os legitima a permanecer na posse ou detenção do mesmo anexo.
O contrato de comodato, posto que (só) vem alegado pelos Autores (que não pelos Apelantes/Réus), não é essencial à procedência do pedido principal.
A sua relevância para os autos residirá, quando muito, na função de contraprova do contrato de arrendamento, no qual os Réus, ora Apelantes, fundam a sua oposição à entrega do “Anexo” pretendida pelos Autores.
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V.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

a) Encontra-se registada a favor da A. mulher, casada em regime de comunhão de adquiridos com o A. marido, pela ap. 22 de 22.05.1981, por compra, a propriedade do prédio urbano composto por edifício de r/c, com a área de 156 m2, três dependências (uma com 38 m2, outra com 56 m2 e a terceira com 120 m2) e logradouro, com a área de 2.435 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... da freguesia de ...;
b) Há mais de 20 e 30 anos que os AA., ininterruptamente e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, incluindo dos RR., e com o ânimo de o fazer seu, na convicção de não lesarem direitos de outrem, sem violência alguma, vêm usando e fruindo o prédio descrito em a), de modo permanente, pagando as construções que lhe respeitam;
c) Há mais de 30 anos os AA. permitiram que os RR. habitassem a dependência com a área de 120 m2 do prédio descrito em a), gratuitamente;
d) Por carta registada com A/R recepcionada pelos RR. em 24.08.2015 os AA. comunicaram aos demandados que necessitavam do anexo referido em c), concedendo-lhes um prazo de 180 dias para que o desocupassem voluntariamente;
e) Os RR. colocaram azulejos na cozinha e na casa de banho da dependência bem como mosaico no exterior que lhe está imediatamente adjacente.

ii) julgou não provado que:

a) Que tenha sido acordado verbalmente entre A. mulher e R. marido que este pagaria àquela um valor mensal a título de renda pela utilização da dependência referida em 1.1.c);
b) Que inicialmente o valor mensal estipulado tenha sido de 2.000$00;
c) Que com a mudança do escudo para o euro o valor mensal referido em 1.2.a) tenha sido actualizado para os € 25 mensais;
d) Que os valores referidos em 1.2.b) e 1.2.c) fossem pagos ora em numerário, ora através de prestações de trabalho;
e) Que tenha sido o R. marido quem, a expensas próprias e com o auxílio de trabalhadores contratados para o efeito, erigiu as paredes, colocou o telhado, rebocou as divisões, aplicou o chão à casa bem como as loiças sanitárias, as janelas e as portas da dependência mencionada em 1.1.c);
f) Que o referido em 1.2.d) tenha custado, em 1980, cerca de 1.200.000$00;
g) Que os RR. tenham substituído as janelas por outras de alumínio de melhor condição e tenham substituído as louças sanitárias, despendendo € 4.000 nestas substituições.
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VI.- Os Apelantes fundam a sua pretensão de alteração da decisão de facto na valoração dos depoimentos testemunhais oposta à do Tribunal a quo, defendendo a total credibilidade das testemunhas por si arroladas e tentam descredibilizar as testemunhas arroladas pelos Autores, defendendo que apenas aquelas têm conhecimento directo dos factos, ao passo que estas, segundo o que declararam, se limitaram a reproduzir o que lhes foi dito pela Autora.
Os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal – cfr. art.º 396.º do C.C..

ALBERTO DOS REIS referindo-se ao princípio da liberdade de apreciação da força probatória dos depoimentos das testemunhas escreveu: “o tribunal julga segundo a sua consciência ou segundo a convicção que formou; a convicção forma-a, não em obediência a regras legais preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas através da influência que no seu espírito exerceram as provas produzidas, avaliadas segundo o seu juízo e a sua experiência.”. Assim, acrescenta, “no sistema da prova livre nada obsta a que o julgador se determine, na formação da sua convicção, precisamente pelo testemunho de parente ou amigo da parte a quem esse testemunho aproveita” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, págs. 358-359).

As testemunhas a que se referem os Apelantes são, essencialmente, as suas próprias filhas, que, à partida, poderão ser tidas como, também, interessadas no desfecho da causa.

Sem embargo, se é inegável que, por vezes, os laços familiares estreitos, ou até relações de amizade, podem levar a que uma testemunha oculte saberes e/ou dê uma versão dos factos mais consentânea com o que considera serem os interesses do seu familiar ou amigo, também não deixa de ser certo que estas situações são as mais das vezes detectáveis pelas frases dúbias, pelas hesitações, pelas pequenas contradições, e até pelo nervosismo que a testemunha deixa transparecer.

Muito embora a Relação disponha apenas da imediação mitigada que é proporcionada pelas gravações, uma cuidada atenção aos depoimentos, avaliando no seu conjunto a razão de ciência da testemunha, o método que utiliza quem a questiona, as respostas que dá, e a forma como as dá, permite uma avaliação correcta da credibilidade do depoimento.

E pelo que foi dado ouvir e percepcionar através dos referidos registos, desde já se adianta que a apreciação que fez o Tribunal a quo dos depoimentos prestados em audiência é a antítese da que vem qualificada na conclusão IX.

Com efeito, ao longo das quatro páginas da fundamentação de facto, a Meritíssima Juiz faz uma análise fiel dos depoimentos de cada uma das testemunhas, e aprecia-os individualizadamente, explicando as razões do seu convencimento quanto à credibilidade que lhe mereceram.

Aceita-se que as testemunhas B. S., e M. F., que são primas da Autora e do ora Apelante, e José, marido da primeira, e, de certa forma, também S. V., que, por volta de 2000/2001, prestou serviços de advocacia à Autora, apresentaram uma versão dos factos que é oposta à versão trazida pelas testemunhas O. O. e Engrácia, ambas filhas dos ora Apelantes, que, em certa medida, é corroborada pelas testemunhas Artur, genro dos ora Apelantes, casado com a primeira, e Custódia, irmã da Autora e do ora Apelante, estando de relações cortadas com a primeira.

Outras testemunhas depuseram, cujos depoimentos também foram revisitados, mas que, por falta de assertividade, ou pela vagueza dos seus dizeres, não se revelam merecedoras de um registo especial – ex. Sónia; Alzira; e M. C., a primeira prima em segundo grau da Autora, a qual pretendeu reproduzir “conversas” que disse ter ouvido à Autora e ao seu avô, que era tio e padrinho daquela; e as segundas que se apresentaram claramente apenas para afirmarem que os ora Apelantes «são bons vizinhos».

Dos dois blocos de depoimentos em confronto o primeiro revelou-se mais credível porque as testemunhas falaram desapaixonadamente, e de forma coerente quer com a sua razão de ciência quer com as regras da experiência comum, pelo que o seu grau de convencimento foi maior.

Já as testemunhas do segundo bloco mostraram-se partes interessadas no desfecho da acção e produziram afirmações que à luz das regras da experiência comum são difíceis de aceitar, tendo, sobretudo as testemunhas Olinda e Engrácia, caído em contradições, entre si (como por ex. relativamente à evolução dos valores da renda; aos tempos de trabalho da mãe, que poderiam justificar a importância em dinheiro, que é muito elevada para a altura, que afirmaram aquela ter levantado no Banco para pagar as segundas obras de beneficiação do edifício; e relativamente a um pormenor que, sendo perfeitamente lateral à facticidade em causa, não deixa de ser também revelador – contradisseram-se sobre quem dormia em casa da Autora quando o pai, avô delas, estava lá a viver por estar doente) e com a versão dos factos trazida pelos próprios pais ao processo (o que estes afirmam, designadamente nos artigos 75. e sgs. da contestação, é que por o prédio rústico comprado pela Autora “ter dimensão considerável” e por esta “estar numa situação financeira mais desafogada, o seu pai pediu-lhe que ajudasse os seus irmãos e lhes cedesse uma parte do terreno para construírem uma casa. Assim, “e por vontade da família (…) foram distribuídas parcelas do referido imóvel ao R. marido e ao referido José.

Para tanto, os Réus aceitariam edificar um anexo/”dependência” contíguo à habitação dos AA., tornando-o adequado para habitação própria”) o que influenciou negativamente o juízo sobre a sua credibilidade.

Julga-se, por isso, corresponder à realidade dos factos que foi por iniciativa do pai da Autora e do ora Apelante que este e a esposa foram habitar no anexo que, para o efeito, foi construído e pago pela Autora, numa altura em que eles precisavam de arranjar uma casa, visto terem de sair daquela onde habitavam, isto para os ajudar, atentas as suas pequenas posses financeiras, e a boa posição da Autora, emigrada na Bélgica, e porque a família era muito unida. A par disso, o ora Apelante ficou sempre a cultivar o terreno.

Até à morte do pai da Autora e do ora Apelante, aquele foi procurador dela, tendo poderes para tratar de todos os assuntos, incluindo os de fazer levantamentos de dinheiro, e afirmou, designadamente, à testemunha B. S. que «era a filha que pagava» todas as despesas relativas à construção do anexo.

Depois da morte dele, quem ficou procurador da Autora foi o ora Apelante, tendo sido com ele, em representação daquela, que a testemunha Susana Vilarinho tratou das questões (de despejo) de que tinha sido incumbida pela Autora, à qual o ora Apelante (em conversa ocorrida em 2002/2003) confidenciou que «a irmã (Autora) os ajudou muito» e que «o pai também os ajudou bastante. Sem eles nunca faria nada». Isto mesmo é confirmado pela testemunha M. F. quando afirma ter ouvido «da boca do Joaquim» (ora Apelante) que «a irmã que o ajudava ao máximo» e «qualquer coisa que ele precisasse de melhoramentos para a casa ela nunca se opôs», tendo afirmado ainda que o próprio Apelante lhe disse que «tudo aquilo que ele comprou a minha prima pagou – material que fosse preciso para a casa».

Perante tudo isto, e porque está em coerência com as afirmações produzidas, crê-se corresponder à realidade que os Apelantes não pagavam qualquer contrapartida a título de renda, pela ocupação do anexo.

As testemunhas Olinda e Engrácia, confirmando que “o pai” foi até não há muito tempo procurador da Autora, estranhamente, não referiram nenhum episódio em que este tenha dado contas da “procuradoria”, antes afirmaram que quem “acertava as contas” era “a mãe”, que pagava a “contribuição e a luz” e “compensava” com as rendas, e afirmaram ainda que quem pagava a renda era sempre e só a mãe, o que racionalmente é estranho porquanto o procurador era “o pai”. Já, porém, a testemunha Artur, afirmou «o meu sogro pagava a luz e a contribuição e quando eles vinham cá de férias ajustavam as contas», afirmando ter assistido «a isso algumas vezes».

Relativamente às obras, como refere o Tribunal a quo, a forma convicta como esta testemunha descreveu os trabalhos que fez, reconhecendo que «quando era solteiro» os «sogros» lhe pagaram «em dinheiro», e «depois de casado eu não levava nada», e que lhes “levou” «menos que três contos por dia», porque fez um desconto, afirmando ainda que «quem (lhe) pagou foi o sogro», tornaram-no credor de credibilidade.

Relativamente a obras, e para além das referidas na alínea e) de 1.1, afirmou apenas que «mudaram a louça da casa de banho – tiraram a banheira p’ra por uma base, que lhes dava mais jeito» (o que não releva para a decisão), e referiu o calcetamento do caminho de acesso às habitações (da Autora e aos anexos), que vem mencionado como “aplicação de pavimento na zona exterior (logradouro comum), havendo referido que a Autora pagou metade da despesa e os Apelantes pagaram um quarto, tendo a parte restante sido paga pelo “tio Zé”. Não foi capaz de indicar um valor para estas obras, nem sequer por aproximação.

Perguntado quem comprou os materiais para as obras, respondeu «foi o meu sogro que o pagou», e perguntado se sabe se ele «fez contas» com a Autora, respondeu «não sei. Não sei se acertaram contas».

Perguntado sobre a contrapartida do uso do anexo, respondeu «por favor não estavam. E além disso eles cultivavam o quintal». Refere-se esta resposta porquanto também as testemunhas Engrácia e Olinda mencionaram este “trabalho” como fazendo parte do “pagamento”, mas ninguém fez a mais leve referência à existência de um acordo fixo quanto à “partilha” dos produtos produzidos pelo quintal (o que também podia ser entendido como contrapartida do fabrico do quintal), apenas a testemunha Engrácia disse que após a morte do avô «o vinho era todo feito na garagem da tia e todos se serviam», o que é muito pouco explícito.

Igualmente por falta de explicações ficou sem se saber que trabalhos eram feitos pelo Apelante para a Apelada e, se alguns fez, qual a intenção que o moveu: para entrar no “pagamento da renda” ou por espírito de gratidão.
De quanto vem de ser referido se conclui não haver fundamento suficientemente consistente para alterar a decisão da matéria de facto que, por isso, dever ser confirmada.

Sem embargo, uma vez que nas alegações os Apelantes referem terem hoje os Autores “um anexo absolutamente funcional e autónomo, passível de gerar rendimento através do arrendamento” (cfr. fls. 372), crê-se haver utilidade em levar à matéria de facto o teor do alvará de utilização do anexo, cuja cópia foi junta por eles próprios aos autos, e, uma vez que a sua fidedignidade não foi posta em causa, tem a força probatória plena do original, por ser um documento autêntico, nos termos dos art.os 371.º e 368.º do Código Civil (C.C.).
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VII.- Nos termos expostos, adita-se à facticidade provada – ponto 1.1 - a alínea:

f) Em 11 de Novembro de 2005 a Câmara Municipal emitiu o alvará de utilização n.º …/2005, em nome da A. O., dando autorização da utilização do anexo referido em c), considerando-o como “UM ANEXO DE APOIO AGRÍCOLA”, de acordo com o que consta do documento de fls. 133, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
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VIII.- Sendo agora incontrovertida a propriedade dos Autores sobre o anexo reivindicado, o qual os Apelantes vêm usando e fruindo, em princípio, e como já foi referido, impõe-se a sua restituição àqueles.

Não lograram os Apelantes fazer a prova do vínculo obrigacional – contrato de arrendamento – em que fundaram a recusa da entrega do aludido anexo aos Autores.
Da facticidade apurada, designadamente da alínea c) do ponto 1.1, resulta que os Apelantes vêm fruindo o referido anexo a título gratuito, do que resulta ser, afinal, um contrato de comodato o título que legitima essa fruição, nos termos do art.º 1129.º do C.C..
Os Autores puseram termo a este contrato pela interpelação referida na alínea d) do ponto 1.1.

De acordo com o disposto no art.º 1138.º do C.C., o comodatário (como, de resto, o arrendatário,) é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé, pelo que tem direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias e, bem assim, a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela, de acordo com o que dispõe o n.º 1 do art.º 1273.º do mesmo Cód..
Quando não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, tão somente, para se evitarem estragos na coisa objecto do comodato, o comodante (titular do direito) pagará ao comodatário o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, de acordo com o estabelecido no n.º 2 daquele art.º 1273.º.
Estas regras vêm plasmadas no art.º 479.º do C.C..

Refere MENEZES LEITÃO que a doutrina de que “a pretensão de enriquecimento se encontra duplamente limitada pelo enriquecimento e pelo empobrecimento assenta numa generalização que conduz ao erro, uma vez que só através da análise das diferentes razões que determinam o carácter injustificado do enriquecimento é que se pode determinar o que é objecto da obrigação de restituir”.

Deste modo, “há que determinar primariamente, consoante a categoria de enriquecimento sem causa, o que se obteve à custa de outrem, para depois se averiguar se o enriquecimento ainda subsiste no momento do conhecimento da sua ausência (art. 479º, nº 2)”. Assim, defende, numa situação de “enriquecimento por prestação”, em se tratando de prestação de coisa o “obtido à custa de outrem” deve ser “o próprio objecto prestado” e na impossibilidade de restituição em espécie, haverá que restituir “o valor correspondente, determinado através do seu preço comum no mercado”. Já no “enriquecimento por intervenção” o que deve ser restituído é “o valor da exploração e não os ganhos patrimoniais do interventor”. E no “enriquecimento por despesas efectuadas”, deve ser restituído “não apenas o objecto ou o direito primariamente adquirido sem causa, mas também todo o commodum ex re, o qual abrange os frutos da coisa ou outras vantagens obtidas com ela, e os sub-rogados da coisa ou do direito, como aquilo que se adquiriu por virtude do direito obtido, ou como indemnização ou compensação pela perda ou deterioração da coisa”.

No que se refere à restituição de valor, seguindo a doutrina alemã, propugna o mesmo Autor pelo entendimento desta obrigação “num sentido objectivo, ou seja, calculado de acordo com o valor de mercado do bem sem consideração do seu valor no património do adquirente” (in “Direito das Obrigações”, Almedina, 2017 – 14.ª ed., vol. I, págs. 460-466).

Na situação sub judicio poder-se-ia dizer que a data em que os Autores (que são, alegadamente, os enriquecidos pelas obras e materiais aplicados) tiveram conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento há-de coincidir com aquela em que interpelaram os Réus/Apelantes para lhes fazerem a entrega do Anexo – como ficou provado, 24/08/2015 (alínea d) do ponto 1.1).

Partindo da definição dos conceitos das três espécies de benfeitorias, constantes do art.º 216.º, n.º 3 do C.C., sendo claro que as obras invocadamente efectuadas pelos Apelantes/Réus no Anexo, e os materiais (janelas e portas) que alegaram ter aplicado não se destinaram a impedir o desmoronamento ou a degradação do mesmo Anexo, aquelas e estes só poderiam integrar o conceito de “benfeitoria útil” que, por definição, é aquela que eleva o valor da coisa.

Como defende MARTA SÁ REBELO, congregando jurisprudência e doutrina que cita, “o aumento deve ser apreciado em termos objectivos atendendo à vantagem concretamente produzida, ou seja, confrontando o valor da coisa antes e depois do melhoramento. É esta diferença para mais que consubstancia o enriquecimento e não o montante despendido pelo benfeitorizante”.

Benfeitorias voluptuárias, segundo a mesma Autora são “os melhoramentos que não se demonstre impedirem a perda ou deterioração da coisa ou aumentarem objectivamente o respectivo valor”. De todo o modo, continua, “devem traduzir um benefício para a coisa, ainda que avaliado pelo seu autor em termos subjectivos, não podendo diminuir-lhe o valor, caso em que seriam deteriorações”, sendo, por isso, de excluir do conceito as obras de adaptação (in “Comentário ao Código Civil – Parte Geral”, Universidade Católica Editora, pág. 485).

Na situação sub judicio, dos trabalhos e materiais referidos na alínea e) do ponto 1.1, cabem neste conceito de benfeitorias voluptuárias a colocação de mosaico na parte exterior do Anexo, no terreno que lhe está imediatamente adjacente, cuja função, em termos normais (e outra não foi invocada), e pelo que as fotografias juntas aos autos (consultaram-se os originais, a cores, no processo digital) foi a de criar um espaço limpo de terra, para convívio e lazer das pessoas, objectivo este que não deixaria de ser atingido com um simples estrado em madeira amovível (a mesma classificação mereceria a falada pavimentação em calceta do acesso ao edifício do Anexo, cuja extensão e custo efectivamente suportado pelos Apelantes ninguém referiu).

Relativamente à colocação de azulejos na cozinha e na casa de banho, se é certo que o efeito procurado, se não o do singelo embelezamento, é o do favorecimento das condições de limpeza e higiene, na situação sub judicio a única fotografia da cozinha (e não há da casa de banho) não permite, sequer, avaliar se os azulejos aplicados conseguiram atingir este objectivo.

De qualquer modo, é inequívoco não poderem os referidos azulejos serem levantados sem se danificar as paredes onde foram aplicados pelo que os Autores (comodantes) só teriam de pagar aos Apelantes (os comodatários) o valor deles, a calcular segundo as regras acima referidas, se fosse possível integrá-los no conceito de benfeitorias úteis.

Ora, nem os Apelantes nem os próprios autos fornecem elementos fácticos suficientes para se concluir, com segurança, que a aplicação dos azulejos traduzem um efectivo melhoramento para o Anexo. Com efeito, para se poder assegurar que houve um efectivo aumento do seu valor tinham de se conhecer diversas premissas, dentre as quais a qualidade dos azulejos efectivamente colocados, a técnica usada na aplicação (que ilustra a boa ou má execução) e ainda as zonas das paredes abrangidas pela aplicação, que são os aspectos que um comprador normal do prédio valoraria.
Mas, não fora este obstáculo outro se levantaria à pretensão dos Apelantes.
Com efeito, e como ficou a constar da matéria de facto, o anexo em questão foi licenciado como “anexo de apoio agrícola”, de acordo com o Alvará de Utilização de fls. 133.

Como dispõe o Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Fevereiro, sendo da competência exclusiva das Câmaras Municipais “disciplinar os aspectos relativos à segurança, funcionalidade, economia, harmonia, equilíbrio socioambiental, estética, qualidade, conservação e utilização dos edifícios, suas fracções e demais construções e instalações – cfr. alínea d) do n.º 2 do art.º 3.º - o alvará de utilização só é concedido quando se verifique que os edifícios estão construídos em conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis – cfr. art.º 67.º -, constituindo uma contraordenação a utilização de um edifício em desacordo com o respectivo alvará - cfr. alínea d) do n.º 1 do art.º 98.º.

Não se ignora que há situações pontuais em que um edifício adaptado a habitação (v.g., nas grandes herdades para acomodar os trabalhadores sazonais, ou quando o contrato de arrendamento rural inclua a casa de habitação do arrendatário – cfr. art.os 2.º, n.º 3 da LARUR (Dec.-Lei n.º 294/2009, de 13/10 e art.º 1066.º do C.C.) se pode considerar destinar-se a “apoio agrícola”, mas o normal é que se trate de edifícios destinados a guardar alfaias e produtos agrícolas, ou a acomodar os animais, e, até por isso, de qualidade de construção inferior.
Tanto quanto os autos permitem aferir, é a segunda a utilização que se poderia considerar relativamente ao Anexo em causa.
Assim, o alvará que lhe foi concedido não permite a sua utilização como casa de habitação pelo que as obras em causa não lhe acrescentam valor.

Não pode, pois, invocar-se os referidos melhoramentos (ainda que assim pudessem ser considerados) como “benfeitorias úteis, nem invocar-se que o respectivo valor enriquece injustificadamente” o aludido “anexo”, como decidiu o S.T.J. no Ac. de 05/07/2012 (ut Proc.º 329/05.1TCSNT.L1.S1, in www.dgsi.pt). O mesmo sentido de decisão se extrai do Ac. do S.T.J. de 10/09/2009, (ut Proc.º 375/1999.C1.S1, in www.dgsi.pt).

Deste modo, também por esta via se teria de excluir a procedência do pedido indemnizatório formulado pelos Apelantes com fundamento nas alegadas “benfeitorias”.
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IX.- A última questão a dirimir é a relativa à indemnização atribuída pela ocupação (indevida) do Anexo.
O pedido de indemnização vem fundamentado na privação da possibilidade de dele dispor (ao que parece, para o demolir) ou fruir, vindo peticionados € 10 por dia a contar da data da propositura da acção.
O Tribunal a quo considerou proceder o direito à indemnização com fundamento na simples privação do uso e disposição do Anexo.

Na fixação do valor que arbitrou - € 3/dia -, desconsiderou o valor locativo porque os próprios Autores alegam a intenção de o demolir (e também só o podiam locar como apoio agrícola, o que diminui consideravelmente o respectivo valor) porque ele desvaloriza a propriedade, e considerou a área – 120 m2 – e as condições estruturais, recorrendo à equidade.
Os Apelantes discordam da atribuição de uma indemnização apenas com o fundamento na privação do imóvel, e porque não ficou provado que da sua utilização tenha resultado qualquer dano, sendo este um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, esta não pode ter-se por constituída.

Como é pacífico, a fonte da indemnização só pode residir, in casu, na responsabilidade extracontratual, enunciando o art.º 483.º do C.C. os pressupostos respectivos: a verificação do facto; a ilicitude do facto; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano; e o nexo causal entre o facto e o dano.
O facto é aqui traduzido pela ocupação do Anexo.

A ilicitude, que se traduz na desconformidade entre a conduta devida (conduta considerada no sentido objectivo), in casu, o respeito pela propriedade de outrem, e a conduta assumida pelo agente, que aqui se traduz na ocupação do Anexo contra a vontade dos seus proprietários, sendo, consequentemente, violador do direito de propriedade destes.

Na culpa aprecia-se a conduta no sentido subjectivo – reconduz-se a um juízo de censura ou de reprovação que é dirigido ao obrigado que, atentas as circunstâncias do caso, podia e devia ter agido de outro modo.
A culpa, como nexo de imputação subjectiva ao agente, desdobra-se em duas vertentes: o dolo, que é a adesão da vontade ao comportamento ilícito, e a negligência, ou mera culpa, caracterizada por uma actuação sem a diligência ou o discernimento exigíveis ao agente.

De acordo com o art.º 487.º, n.º 2, do C.C. a culpa é apreciada de acordo com um padrão objectivo dado pela diligência de um bom pai de família.

Na situação sub judicio temos de reconhecer que, por mais fundadas que fossem as expectativas dos Apelantes, atendendo ao longo tempo decorrido e às (durante longos anos, muito boas) relações familiares próximas com os Autores, aqueles não podiam olvidar que a sua permanência no Anexo estava sempre dependente da boa vontade destes, já que só eles, enquanto proprietários, têm o poder de disposição sobre o imóvel. Assim, a sua recusa na entrega que lhes foi solicitada consubstancia, pelo menos, a negligência consciente.

Relativamente aos danos, eles são toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, sendo indemnizáveis tanto os danos emergentes como os lucros cessantes, de acordo com o art.º 564.º, n.º 1, do C.C..
Não vindo alegados nem uns nem os outros, a questão que se coloca é a de saber se a simples privação do imóvel, dado que consubstancia uma restrição ilegítima do direito de propriedade, é susceptível de gerar o direito à indemnização.
O Tribunal a quo equacionou as duas teses em confronto e, fundadamente, respondeu à questão no sentido afirmativo, com o que discordam os Apelantes.

O S.T.J., no Ac. de 28/05/2009, citando ABRANTES GERALDES, refere:
“ desde que a violação do direito de propriedade e a decorrente privação do uso derivem da prática de acto ilícito, a par do pedido de reivindicação, nos termos do art. 1311º do CC, pode ser formulado o pedido de indemnização, como forma de repor a situação anterior e de reparar os prejuízos decorrentes da privação, como ocorre quando esta atinge bens imóveis; se se provar que a indisponibilidade foi causa directa de prejuízos resultantes da redução ou perda de receitas, da perda de oportunidades de negócio ou da desvalorização do bem, não se questiona o direito de indemnização atinente aos lucros cessantes. Mas mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, o lesado deve ser compensado monetariamente pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição. A simples falta de prova (ou de alegação) desses danos concretos não conduz necessariamente à denegação da pretensão indemnizatória. Sem embargo da prova que possa ser feita da total ausência de danos, não deve descartar-se o recurso à equidade para encontrar, no balanceamento dos factos e das regras de experiência, um valor razoável e justo. Não é imprescindível que o lesado invariavelmente alegue e prove a existência de danos efectivos. Decerto tais danos podem ser invocados. E, uma vez provados, podem servir para, com mais rigor, quantificar a indemnização ou permitir a atribuição de um quantitativo superior” (ut Proc.º n.º 160/09.5YFLSB, in www.dgsi.pt).

Aderimos in totum a esta posição, tanto mais que o art.º 569.º do C.C. permite que o lesado, ao exigir a indemnização, não indique a importância exacta em que avalia os danos, permitindo-lhe igualmente que, no decurso da acção, reclame quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores, visando, deste modo, garantir que se cumpra a finalidade da indemnização – reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, nos termos do artº. 562º., do C.C..
Se não se puder averiguar o valor exacto dos danos, porque não pode deixar de se satisfazer o direito do lesado à indemnização, o tribunal julgará equitativamente, nos termos do nº. 3 do artº. 566º., do C.C..

Deste modo, se o lesado não prova os factos essenciais conducentes à averiguação do valor exacto dos danos sujeita-se a receber uma indemnização cujo valor não corresponda ao valor dos danos que realmente sofreu.

Interpretando aquela disposição legal, escreveu VAZ SERRA, que quando o artº. 566º., nº. 3, dispõe que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, deve o tribunal julgar equitativamente «dentro dos limites que tiver por provados», limita-se a acentuar que, se o tribunal tiver por provados limites do valor dos danos, deve a fixação judicial desse valor ser feita dentro de tais limites”, fundando-se o referido preceito legal na consideração de que “podendo ser impossível a fixação do valor exacto dos danos a indemnizar, não deve esse facto excluir a efectivação do direito à indemnização, cometendo, assim, ao tribunal uma fixação equitativa em face das circunstâncias do caso concreto”, e, prossegue, “se, porém, o tribunal tiver por provados limites, dentro deles deverá efectuar a fixação do valor dos danos”.

Defende ainda o mesmo conceituado Mestre que ainda que o autor não tenha alegado ou provado factos que permitam o juízo de equidade, o referido artº. 566º., nº. 3 “impõe ao tribunal que julgue equitativamente …” (in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 108, págs. 224 e 227).

Na situação sub judicio, atendendo à intenção de demolição do Anexo manifestada pelos Autores, alegadamente porque desvaloriza o prédio, crê-se que um critério que poderia ser adoptado para fixar o valor justo da indemnização seria o do possível aumento dos custos de demolição, ou o valor da desvalorização, ditado pela variação dos preços no mercado imobiliário.

Não há elementos nem para fixar um nem o outro, sendo certo que tendo a acção sido proposta em 26/02/2016, como é sabido, de então para cá, os preços de venda dos imóveis conheceram até um aumento significativo, mas também é sabido que o custo dos trabalhos relacionados com a construção civil (mão-de-obra e materiais) também subiram.

O valor locativo do prédio poderia ser um elemento a equacionar para a formação do juízo sobre o montante justo a atribuir (e a obrigar os Apelantes a suportar), a par daqueles de que o Tribunal a quo se socorreu – a dimensão e as fracas condições estruturais -, sem olvidar que o valor locativo teria sempre de ser aferido pelo “destino” para que o anexo está licenciado – apoio agrícola.

Isto considerado, e tendo em conta o tempo em que se iniciou a ocupação (provadamente há mais de 30 anos), impõe-se baixar o montante indemnizatório para os € 1,5 (um euro e meio) diários, como se decidiu, desde a data da propositura da acção até efectiva entrega do Anexo.
Este segmento do pedido recursório merece, assim, provimento, na medida que vem de ser decidida.
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C) DECISÃO

Atendendo a quanto acima fica exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, consequentemente confirmando e mantendo a decisão impugnada, apenas se alterando o segmento condenatório referente ao montante da indemnização pela ocupação ilegítima do Anexo, que se fixa agora em € 1,5 (um euro e meio) por dia.
Custas da acção e da apelação na proporção já fixada de 1/5 para os Autores. Caberia aos Apelantes/Réus suportar os restantes 4/5 não fora o apoio judiciário que lhes foi concedido.
Guimarães, 24/05/2018
(escrito em computador e revisto)


(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)