Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6324/17.0T8GMR-A.G1
Relator: EDUARDO AZEVEDO
Descritores: ACÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator)

1- Apenas as pessoas colectivas referidas nos artºs 52º da CRP e 2º, nº 1 da Lei 83/95 têm legitimidade para proporem a acção popular civil.

2- O artº 2º, nº 1 (parte final) não amplia as categorias das pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães

Banco (…) Sa, intentou acção com processo comum, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 5, da comarca de Braga, contra (…) e esposa, (..) que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca DE (…)

Pediu:

“a) Ser reconhecida à A., como parte interessada e legítima neste pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 1281.º do Código Civil, o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º deste articulado, condenando-se os RR. no reconhecimento desse direito;
b) Serem os RR. condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A., a demolir o muro construído no mesmo caminho e a abster-se de praticar quaisquer outros factos que impeçam ou condicionem o acesso ao prédio do A., assim cessando a violação do direito de propriedade e posse do A.;
c) Serem os RR. condenados a pagar à A. uma indemnização, no valor de Eur 385,00 por cada mês de ocupação do imóvel, que se computa, à presente data, em Eur 16.170,00, acrescida de igual valor por cada um dos meses que intermediar entre a data da remoção do portão e demolição do muro”.

Alegou, em síntese: sendo proprietária do prédio em causa, o acesso de pessoas e viaturas ao mesmo e ao dos RR é através de um caminho público, a nascente; e estes RR., ou alguém a seu mando, construíram um muro, no sítio adjacente ao local onde confrontam ambos os prédios, e um portão, no dito caminho público, que, quando fechado, veda o acesso aos prédios.
Atribuiu o valor à causa de 69.601,58€.
Os RR contestaram, alegando em súmula: não se estava perante um caminho público; foi por si construído há cerca de 30 anos num terreno que era da sua propriedade; na hipótese de existência de caminho público seria tão só até ao seu prédio, jamais chegando ao da A; e, jamais o acesso ao prédio da A, foi por tal portão.

Em 27.11.2018 foi proferido despacho:

“Nos presentes autos propostos como acção comum, a Autora pede, entre outras coisas, sejam os Réus …condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A. (…).
Na sequência de convite dirigido pelo tribunal por despacho de 11.09.2018, veio a Autora aperfeiçoar a sua petição inicial (fls. 73 e ss.) alegando os pressupostos de facto de que depende a qualificação do caminho em apreço como público.
Uma vez que a pretensão a Autora compreende o reconhecimento da natureza pública de um caminho, questão que se encontra protegida pela previsão legal do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto que regula o direito de participação procedimental e de acção popular, o processo deve seguir as especificidades previstas neste diploma legal.

Termos em que, ao abrigo do disposto no art.º 6º, n.º 2 do C.P.C., determino:

- a alteração da espécie dos presentes autos para acção popular;
- a realização das citações previstas nos artigos 15º (que deve abranger, para além dos interessados incertos, a União das Freguesias de … e …, na pessoa do seu Presidente) e 16º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.
(…).
Em 09.04.2019 foi proferido despacho:
“Nos termos que constam do despacho proferido a 27.11.2018, cumpra-se a citação ao M.º P.º prevista no artigo 16º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.”.

O MºPº contestou, alegando genericamente: a falta dos requisitos legais do direito de ação popular (por falta de objeto de tutela e legimidade ativa); pelo que os aludidos despachos “bem como as respectivas citações ordenadas e levadas a cabo nos termos ordenados, devem ser declarados nulos nos termos dos artigos 195º, nº 1 e 2, 199º e 200º, nº 3, nulidade que, aqui, expressamente se argui, uma vez que foram praticados e ordenados atos em clara violação das normas citadas e que podem influir na decisão da causa”; o valor a fixar à causa devia ser o valor contido na alª c) do pedido, ou seja, o valor do dano invocado, nos termos do artº 303º, nº 3, do Código de Processo Civil e artº 22º, da Lei 83/95, de 31.08, pelo que devia ser fixado o valor de 16.170,00€; independentemente, desse valor, sempre o tribunal territorialmente para conhecer de tal acção seria o Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão, tribunal do domicílio dos RR, “nos termos dos artigos 80º, nº 1, do Código de Processo Civil e 130º, nºs 1, alínea a) e 2, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto”.
Na oportunidade da condensação e saneamento foi proferido despacho:
“Da nulidade do despacho proferido a 27.11.2018
*
Na presente acção declarativa proposta com processo comum e convertida em acção popular em obediência ao despacho proferido a 27.11.2018 (fls. 78), veio o Digno Magistrado do Ministério Público, na contestação (fls. 89 e ss.), arguir a nulidade daquele despacho por falta dos requisitos legais do direito de acção popular, alegando que carece de objecto de tutela e que o Autor não tem legitimidade activa para o efeito.
Não foi exercido o contraditório.

São duas as vias argumentativas usadas pelo Ministério Público para sustentar a nulidade do despacho em epígrafe:

- a acção carece de objecto de tutela da acção popular; e
- o Autor não tem legitimidade activa para a propor.
a)
Relativamente à falta de objecto de tutela da acção popular, o pedido deduzido pelo Autor da acção compreende, entre outras coisas, que sejam os Réus …condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A. (…).

O artigo 52º da Constituição da República Portuguesa prevê que:

1. Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação. (...)
3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.

O objecto da acção popular é, assim, antes de mais, a defesa de interesses difusos, interesses da comunidade, global e complexivamente considerada.
No tocante aos direitos individuais homogéneos, muito embora a lei atribua legitimidade processual às pessoas singulares para intentarem a acção popular, os direitos tutelados deverão ter objectivamente um carácter comunitário, isto é, um valor plurisubjectivo e os interesses subjacentes a tais acções deverão assumir um cunho metaindividual, pois é necessário que o interesse comum seja suficientemente difuso e geral para não se identificar com os interesses pessoais e directos em que assenta, em regra, a legitimidade e a titularidade do direito da acção judicial.
Na petição inicial aperfeiçoada (fls. 73 e ss.), o Autor estriba o pedido do reconhecimento do carácter público do caminho, no seu uso … pelo público desde tempos imemoriais (…) pela população local e por quem mais ao lugar assoma (…) e, como tal, satisfaz a necessidade colectiva de acesso a tal local da freguesia (…) donde, está afecto à utilidade pública (…) ao que acresce que o caminho tem denominação toponímica, Travessa …, que lhe foi atribuída pela Assembleia de Freguesia de ….
Resulta, assim, alegado o uso e o interesse comum, público, da população local, na circulação pelo caminho alegadamente obstruído por acção dos Réus.
b)
Sustenta ainda o Digno Procurador da República, que o Autor “Banco ..., S.A.”, na qualidade de pessoa colectiva que é, carece de legitimidade activa por se não mostrar abrangido pela letra da lei – artigo 2º, n.º 1 da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto (cuja redacção se acolhe em termos próximos no artigo 31º do CPC) – que regulamenta o exercício do direito de acção popular e prevê:
São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
A interpretação do teor da norma em apreço à luz do regime geral da legitimidade vigente na nossa ordem jurídica, conduzir-nos-á a conclusão distinta da propugnada pelo Digno Procurador da República.
Efectivamente, a leitura atenta da parte final do n.º 1 do artigo 2º da Lei 83/95, onde consta …independentemente de terem ou não interesse direto na demanda… dá-nos um vislumbre da intenção do legislador que, por força do especial interesse público na tutela dos valores protegidos pela acção popular, entendeu atribuir legitimidade a entidades que não poderiam propor a acção se nos ativéssemos ao regime mais estrito previsto pelo artigo 30º do CPC, onde se exige um interesse próprio e directo do autor na demanda judicial.
Por isso, as regras sobre legitimidade previstas pela Lei 83/95 devem ser tidas como complementares do regime previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil, conferindo a possibilidade de zelar pela tutela jurídica de interesses supra individuais, não apenas aos interessados directos que, como o Autor, têm simultaneamente um interesse no reconhecimento da condição pública do caminho, também a outros cidadãos e entidades públicas (associações, fundações, órgãos da administração local e também ao M.ºP.º, entre outros).
Este é, salvo mais avisado entendimento, o sentido que melhor se adequa à letra e ao espírito do artigo do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa – que alude “…a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa…” (sublinhado meu), sem distinguir entre pessoa singular ou colectiva - e da Lei n.º 83/95 que, como bem lembra o M.º P.º no artigo 13º da douta contestação, abriu “… portas larguíssimas ao exercício de acção popular para protecção dos interesses previstos no n.º 2 do artigo 1º da LAP” (sublinhado meu).
O Autor, enquanto sociedade comercial, não é um cidadão - indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre -, nem uma associação ou fundação defensora do interesse na manutenção da utilização do caminho.
Porém, é uma pessoa jurídica colectiva, proprietária de um prédio que beneficia do acesso pelo caminho que sustenta ser público e, como tal, titular de um interesse próprio na manutenção da sua utilização colectiva. Tem, por isso, um interesse pessoal e directo no reconhecimento do carácter público do caminho, na medida em daí resulta um benefício próprio para acesso ao prédio de que é proprietário.
Deste modo, assiste ao Autor “Banco ...” legitimidade activa para a propositura de acção popular.
Termos em que julgo improcedente a nulidade invocada na contestação do M.ºP.º.
*
Do incidente do valor da causa.
*
Vem ainda o M.º P.º suscitar incidente do valor da acção, mantendo que deve ser fixado em € 16.170,00 e não nos € 69.601,58 indicados pelo Autor com a petição inicial, por ser aquele o correspondente ao dano alegadamente sofrido pelo Autor, cuja reparação vem reclamada na alínea c) do pedido.
Cumpre apreciar (artigo 306º, nºs. 1 e 2 do CPC).
Uma vez que a pretensão do Autor, nos termos expressos na alínea a) do pedido, compreende, para além da indemnização do prejuízo a que se reporta a aludida alínea c), também o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1º da p.i., o valor da acção, em obediência ao critério do número 2 do artigo 297º e do número 1 do artigo 302º do CPC, corresponde à soma do valor daquele imóvel ao valor da apontada indemnização.
Tomando como referência que se reputa válida por ter sido apurada no ano de 2014, o valor patrimonial tributário do imóvel (cfr. caderneta predial urbana junta a fls. 8 dos autos), o prédio urbano a que se reporta a alínea a) do pedido tem o valor de € 69.601,58, pelo que, acrescido do valor indemnizatório de € 16.170,00, reclamado na alínea c) do pedido, o valor da acção se cifra em € 85.771,58.
Termos em que fixo em € 85.771,58 o valor da presente acção.
(…)
Da competência do tribunal em razão do valor
*
Atento o valor fixado à acção no despacho precedente, a competência para a respectiva tramitação é do Juízo Central Cível de Guimarães, da comarca de Braga, nos termos do artigo 117º, n.º 1 da Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, na redacção mais recente, conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12).
Termos em que julgo improcedente a excepção de incompetência, em razão do valor, do Juízo Central Cível de Guimarães, suscitada pelo M.º P.º.”.

O MºPº recorreu e concluiu:

“1º - Ao sustentar na douta decisão recorrida que o A. na presente causa “ Banco ..., S.A. “ tinha legitimidade ativa para propor a presente ação popular, nos termos dos artigos 2º, nº 1, da Lei nº 83/95, de 31 de agosto, 31º, do Código de Processo Civil e 52º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, o Mº Juiz “ a quo “ fez errada interpretação de tais preceitos, violando-os, bem como violou o artº 9º, do Código Civil;
2º - Na verdade tal interpretação não tem qualquer apoio na letra de tais normativos, por rudimentar que seja, nem na sua teleologia;
3º - De tais preceitos resulta claro e expressamente que a legitimação ativa para propor ações populares pertence a quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e às associações e fundações defensoras dos interesses previstos, independentemente de terem ou não interesse direto na causa;
4º - E nunca a pessoas coletivas/sociedades comerciais como é o caso do A. “ Banco ..., S.A. “;
5º - Devendo, por isso, ser revogado, o douto despacho recorrido que não atendeu a nulidade pelo recorrente oportunamente suscitada do despacho exarado a 27/11/18, que determinou a conversão da ação declarativa de condenação com processo comum contra os RR. em ação popular, depois de convidar o A. a alegar factos sobre a natureza pública do caminho, numa ação popular, por violação daqueles preceitos e determinar a prática de atos que a lei não consente;
6º - Para além disso, o despacho que determinou a competência do Juízo Central Cível de Guimarães, ao abrigo do disposto no artº 117º, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, depois de o Sr. Juiz considerar estar perante uma ação popular, deve ser revogado, pois viola tal normativo, no seu nº 1, alínea a) e o disposto no artigos 40º e 130º, nº 1, alínea a) e nº 2, da mesma lei e os artigos 66º, 80º, nº 1, 546º, nºs 1 e 2, e 549º, todos do Código de Processo Civil e artºs 12º e seguintes, todos da Lei nº 83/95, de 31 de agosto;
7º - Com efeito, estando nós, seguindo o Mº Juiz, perante uma ação popular que é uma ação especial a que se aplicam as normas processuais estabelecidas nos artigos 12º e seguintes, todos da Lei nº 83/95, de 31 de agosto, supletivamente, as disposições gerais e comuns e subsidiariamente, nos casos omissos numas e noutras, observa-se o que se ache estabelecido para o processo comum;
8º - Ora, tratando-se de uma ação especial a sua preparação e julgamento não compete ao Juízo Central cível de Guimarães, nos termos do artº 117º, nº 1, alínea a), da Lei nº 62/2013, de agosto, independentemente do valor da ação, porquanto tal normativo, conjugado com o disposto no artº 66º, do Código de Processo Civil, consagra apenas a competência para a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis com processo comum de valor superior a € 50.000,00 dos Juízos Centrais Cíveis;
9º - E compete tal preparação e julgamento nos termos do artº 130º, nºs 1, alínea a) e 2 ao Juízo Local Cível;
10º - E como os RR têm domicílio na área de competência do Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão é este o Juízo competente para conhecer da presente acção, o que deve ser declarado, revogando-se o douto despacho recorrido.
Deve, assim, o recurso interposto ser julgado procedente, por provado, e em consequência a douta decisão recorrida, ser revogada e substituída por outra, que decrete a nulidade do despacho proferido 27/11/2018, que converteu a ação declarativa de condenação proposta pelo A. numa ação popular, sem que o A. tivesse legitimação ativa apara propor tal tipo de ação, mesmo que a impulso do tribunal e de todos os demais atos seguidamente praticados na sequência de tal despacho e cuja prática a lei não consente, ou caso assim se não entenda e entenda estarmos perante uma ação popular deve ser revogada a douta decisão recorrida que julga competente o Juízo Central Cível de Guimarães para conhecer da presente causa, e substituída por outra que julgue competente para conhecer da causa o Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão”.
Não se contra-alegou.
***
Cumpre decidir.

As questões a conhecer revertem para a titularidade do direito de acção popular e, no caso disso, a incompetência do tribunal.
A matéria a considerar é a que objectivamente resulta do relatório.
****
A acção popular tem como fim a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções de interesses previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (artº 1º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08) ou, ainda, nas palavras daquele normativo, a promoção, o asseguramento e a defesa dos mesmos.
Quem está legitimado para promover a acção popular, a par da participação procedimental em procedimentos administrativos, segundo o disposto no artº 2º da Lei 83/95, de 31.08, sob a epígrafe “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, são os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses previstos quer no artº 52º, nº 3 da CRP quer no artº 1ª da mesma lei.
Os interesses prosseguidos pelo artº 52º, nº 3 da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular”são: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
Na Lei 83/95, directamente, identificam-se grosso modo os mesmos interesses, ainda que de forma não taxativa e inteiramente coincidente em termos nominais: a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
Este é o objecto da tutela da acção popular.
Mas o que da conjugação destas normas resulta seguramente, depois do nº 1 do citado artº 52 referir-se a “todos os cidadãos” e no seu nº 3 a “a todos, pessoalmente” é que para além dos cidadãos, pessoas singulares no gozo dos direitos civis e políticos apenas as pessoas colectivas que representem aqueles, as referidas no nº 3 do preceito constitucional e do nº 1 do artº 2º estão autorizadas a instaurar e mover esta espécie processual, ou seja, “associações de defesa dos interesses em causa” ou “as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior”, consoante o preceito, e, atento à natureza de alguns desses interesses naturalmente, segundo o nº 2 do artº 2º, “as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
Acresce, no domínio da tutela dos interesses difusos, a legitimidade para a as acções e procedimentos cautelares é configurada em termos idênticos no artº 31º do CPC.

Segundo ele, sob a epígrafe “Acções para a tutela de interesses difusos”:

“Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”.
Desta previsão especial resulta que apenas secundariamente viria ao caso aludir ao disposto no artº 30º do CPC que define o conceito de legitimidade em termos genéricos, assim, para qualquer procedimento judicial.
No despacho em que se decidiu pela improcedência da nulidade arguida pelo recorrente, reconhece-se a legitimidade da A para propor a acção popular através da causa de pedir que alegou, embora a considere uma sociedade comercial e não um cidadão, nem uma associação ou fundação defensora do interesse na manutenção da utilização do caminho.

Para o efeito, socorre-se do artº 2º, nº 1 (parte final) que legitima a titularidade do direito procedimental de participação popular e do direito à acção popular independentemente de se ter ou não interesse directo na demanda:

“Efectivamente, a leitura atenta da parte final do n.º 1 do artigo 2º da Lei 83/95, onde consta …independentemente de terem ou não interesse direto na demanda… dá-nos um vislumbre da intenção do legislador que, por força do especial interesse público na tutela dos valores protegidos pela acção popular, entendeu atribuir legitimidade a entidades que não poderiam propor a acção se nos ativéssemos ao regime mais estrito previsto pelo artigo 30º do CPC, onde se exige um interesse próprio e directo do autor na demanda judicial.
Por isso, as regras sobre legitimidade previstas pela Lei 83/95 devem ser tidas como complementares do regime previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil, conferindo a possibilidade de zelar pela tutela jurídica de interesses supra individuais, não apenas aos interessados directos que, como o Autor, têm simultaneamente um interesse no reconhecimento da condição pública do caminho, também a outros cidadãos e entidades públicas (associações, fundações, órgãos da administração local e também ao M.ºP.º, entre outros).
Este é, salvo mais avisado entendimento, o sentido que melhor se adequa à letra e ao espírito do artigo do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa – que alude “…a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa…” (sublinhado meu), sem distinguir entre pessoa singular ou colectiva - e da Lei n.º 83/95 que, como bem lembra o M.º P.º no artigo 13º da douta contestação, abriu “… portas larguíssimas ao exercício de acção popular para protecção dos interesses previstos no n.º 2 do artigo 1º da LAP” (sublinhado meu).”
Não podemos concordar com estas asserções.
É que nesta parte do normativo o legislador não amplia as categorias de pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.
Unicamente confere legitimidade a quem directamente refere e que não tendo qualquer benefício pessoal com a tutela do interesse difuso não deixa de prosseguir um interesse pluri-subjectivo como fim primeiro e principal.

Nos termos do decidido no acórdão do STA de 12.07.2016, (procº 0838/16;www.dgsi.pt):

“Expõe-se, lapidarmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.04.2003, processo n.º 047545:

“I - A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa.
II - O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos. A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.
II - Sobre um determinado bem pode incidir um interesse individual, ou seja, um direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo, um interesse público ou interesse geral, subjectivado como interesse do próprio Estado e de outras pessoas colectivas, um interesse difuso, que é a refracção em cada indivíduo de interesses da comunidade e um interesse colectivo, quando se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias.”

O mesmo se defende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005, no processo n° 05B2578:

“Não é, portanto, qualquer interesse meramente individual e egoístico que pode estar na base de uma acção popular.
Muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular para intentar tal acção popular, os direitos que se pretende ver tutelados deverão ter um carácter comunitário, ou seja, um valor pluri-subjectivo e os interesses subjacentes devem assumir um cunho meta-individual.”
Ou seja, a expressão “independentemente de terem ou não interesse directo na demanda” significa que o autor pode não ter interesse directo na demanda. Não significa que só o autor tenha um interesse directo da demanda.
Pressuposto essencial para poder ser usado o meio “acção popular” é que haja um interesse difuso ou colectivo a defender que pode coincidir ou não com o interesse individual.
O simples interesse individual legitima o uso de outros meios processuais que não a acção popular.
Em concreto em relação às pessoas colectivas — e em consonância com a ideia mestra de que a acção popular serve para defender em juízo interesses difusos ou colectivos - a lei refere que só têm legitimidade activa as pessoas colectivas que, tendo personalidade jurídico, “incluírem nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate” – alíneas a) e b) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.
O que não é o caso da autora Construções A..., Lda., uma sociedade industrial, com fins lucrativos e que, por isso, não tem por objecto social a defesa de interesses difusos ou colectivos.
A lei exclui, de resto, do leque de pessoas colectivas com legitimidade para intentarem a acção popular as que exerçam “qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais” — alínea c) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.
O que bem se compreende, para evitar que sob o capa da defesa de interesses colectivos se vise, em exclusivo, a defesa de interesses particulares, concorrentes com outros igualmente particulares, beneficiando das vantagens que a acção popular traz, em particular no que diz respeito a custas – artigo 20º da Lei 83/95.”.

E, conforme citação no acórdão do TRL de 04.12.2018 (procº 7074/15.8T8LSB. L1-1; www.dgsi.pt), referindo Rui Machete (Algumas Notas sobre os Interesses Difusos o Procedimento e o Processo in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, FDUL, 1995):

Em matéria de legitimidade, depois de referir que “não se exige interesse directo em demandar” (p. 659), refere o autor:
“Por outro lado, muitos dos interesses difusos estão conexos com interesses individuais que se traduzem, do ponto de vista do ordenamento, em situações subjectivas de direitos ou de interesses legítimos. É, por isso, absolutamente necessário sermos precisos quanto às fronteiras de acção popular e quanto à delimitação do objecto do processo. É preciso também regular por forma clara as relações de conexão entre as acções populares e os processos em que se fazem valer, através dos correspondentes direitos ou interesses protegidos, interesses individuais” (p. 661).
Acrescente-se que a jurisprudência dos tribunais superiores que se mostra publicada dá nota de inúmeras ações interpostas por cidadãos com vista, exclusivamente, a fazer valer os respetivos direitos individuais, ainda que a coberto da ação popular, o que não é admissível; não é essa a questão que se coloca nos presentes autos.”.
Ora, a A é uma sociedade comercial cujo objecto social principal é a actividade bancária, obviamente com intuito lucrativo.
Por seu turno, na acção está em causa a alegada existência de caminho público de acesso ao seu prédio e a construção pelos RR de um muro e a colocação pelos mesmos de um portão nesse domínio público que condiciona o trânsito de pessoas e viaturas a esse prédio.
Ainda que assim seja, o reconhecimento da existência desse caminho é meramente instrumental do interesse e fim prosseguido pelo A que se esgota na sua esfera privada: manter incólumes as faculdades que o direito de propriedade lhe pode proporcionar, como, de resto, o confirma a ultima pretensão no sentido da compensação económica em virtude da violação estrita desse direito. Por um lado constata-se o intuito e o objectivo de se exercer e efectivar um direito individual, subjectivo. Por outro lado, sem qualquer cunho comunitário, colectivo ou supra individual, como exige o objecto de tutela da acção popular.
Por tudo isto a A nunca teria legitimidade para intentar qualquer acção popular civil (artº 12º, nº 2 da Lei 83/95) com os fundamentos que arrolou.

Pelo exposto deve ser julgado procedente o recurso na parte em que pretende a revogação do primeiro despacho recorrido, sendo certo que o conhecimento da segunda parte do recurso encontra-se prejudicado já que a respectiva pretensão é formulada subsidiariamente (artºs 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, in fine, do CPC).

Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogando a decisão que julgou improcedente a arguição pelo recorrente de nulidade do despacho de 27.11.2018, o qual converteu a acção declarativa com processo comum numa acção popular, julgam nulo este ultimo despacho e, em conformidade, todos os demais actos dele dependente incompatíveis com a tramitação processual que até aí se procedia, prosseguindo os autos os demais termos até final.
Sem custas.
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17.12.2019