Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
777/07.2TBBCL-B.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: EXECUÇÃO
INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
DIREITO DE HABITAÇÃO DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO AO USO DO RECHEIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Numa execução movida unicamente contra um dos cônjuges, penhorado um determinado bem comum do casal, citado o outro cônjuge ao abrigo do disposto no art. 825º do anterior C.P.C. (actual art. 740º), das duas uma: a) o cônjuge do executado não requer a separação de meações, nem junta certidão de acção pendente, e a execução prossegue contra o bem penhorado, para a sua venda ou adjudicação na acção executiva; b) requer a separação de meações ou junta certidão comprovativa de processo de separação de bens já instaurado, suspendendo-se a execução nos bens comuns até à partilha.

II- No processo de inventário para separação de meações o cônjuge do executado tem o direito de escolher os bens com que há-de ser formada a sua meação. Caso exerça este direito, havendo reclamação dos credores e avaliação dos bens que modifique o seu valor pode vir a desistir da escolha. Não tendo usado tal direito as meações são adjudicadas por meio de sorteio.

III- Se o bem penhorado é adjudicado ao executado a execução prossegue seus termos relativamente a tal, se é adjudicado ao seu cônjuge podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.

IV- Num inventário para separação de meações, ainda que um dos cônjuges tenha falecido, não tem o outro cônjuge direito a que lhe seja atribuída a habitação da casa de morada de família e o uso do respectivo recheio ao abrigo do disposto no art. 2103º-A do C.C..
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa instaurada por Cooperativa Agrícola ..., CRL contra M. M., J. N. e A. T., que teve como título executivo documento de reconhecimento de dívida no valor de € 469.771,93, e em que se mostram penhorados bens do executado, veio o cônjuge deste, M. B. requerer inventário para separação de bens comuns.
Foram tomadas declarações ao cabeça de casal tendo este esclarecido que o regime de bens é o da comunhão geral.
Foi junta relação de bens (fls. 18 a 20).
Procedeu-se a conferência de interessados em 29/05/2012, na qual se deliberou adjudicar os bens sob as verbas nº 1 (prédio urbano), 5 (prédio rústico) à interessada M. B. e os bens sob as verbas nº 2, 4, 5 e 7 (prédios rústicos) ao interessado A. T., mas tendo havido reclamação da credora exequente quanto às escolhas e dos valores foi ordenada a avaliação das verbas 1, 2, 4 a 7.
Foi junto o relatório da avaliação que foi objecto de reclamação e pedido de esclarecimentos.
Os autos foram suspensos por óbito do interessado/executado A. T..
Os herdeiros do falecido e seus filhos, M. T. e M. M., foram habilitados (a viúva M. B. repudiou à herança).
A exequente, em face do falecimento do executado, veio requerer a extinção da execução por impossibilidade da lide.
Por decisão de 13/09/2017 foi indeferida a requerida extinção da instância.
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Procedeu-se a conferência de interessados em 18/10/2017.
Nesta foi decidido atender aos valores que foram atribuídos aos bens no referido relatório pericial.
A requerente M. B. desistiu das escolhas que fez na anterior conferência de interessados requerendo a atribuição do direito de habitação da casa de morada de família e do direito do uso do recheio nos termos do art. 2103º a) do C.C. e art. 1406º do anterior C.P.C..
Os demais interessados e a exequente nada opuseram.
Face a esta desistência foi decidido que ficavam sem efeito as adjudicações dessa conferência e as respectivas meações seriam adjudicadas por sorteio para o que se constituíram dois lotes – lote nº 1: verbas nº 1; lote nº 2: verbas nº 2, 4, 5, 6 e 7. Feito o sorteio à agora cabeça de casal e requerente coube o lote nº 2 e aos habilitados em representação do falecido o lote nº 1, o que lhes foi adjudicado.
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Por decisão de 09/03/2018 foi dada a forma à partilha.

Aí consta o seguinte:

“(…) a partilha deve proceder-se da seguinte forma:
- O valor dos bens relacionados (373.250,00 €) será dividido em duas partes iguais (186.625,00 €), constituindo cada uma delas a meação de cada um dos cônjuges e que, como tal, se lhes adjudica.
- No preenchimento dos quinhões será tido em conta o sorteio supra referido.

A este respeito desde já se consigna que na separação de meações devido a penhora de bens comuns, não cabe a atribuição do direito à habitação da casa de morada de família e do uso do seu recheio ao cônjuge sobrevivo, previsto no artigo 2103º-A do Código Civil para o cônjuge sobrevivo, na partilha mortis causa. Na verdade, aqui não se pode presumir o eventual conflito de interesses, que fundamenta a faculdade daquele artigo 2103º-A.
(…)
Assim, sendo determino que no preenchimento do quinhão do cônjuge do executado não lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada de família e do direito do uso do recheio nos termos do disposto no artº 2103, alínea a) do C.C. e 1406º do anterior CPC.”
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A ora cabeça de casal e requerente veio interpor recurso de apelação por discordar da forma à partilha.
Este recurso não foi admitido por não ser susceptível de impugnação autónoma.
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Foi elaborado Mapa da Partilha.
Por se ter verificado excesso de quinhão procedeu-se à notificação prevista no art. 1377º nº 1 do C.P.C. tendo a requerente reclamado o pagamento de tornas, as quais não foram depositadas pelos interessados habilitados M. M. e M. T..
Foi ordenado que se procedesse à organização definitiva do Mapa da Partilha conforme despacho.
Procedeu-se novo Mapa da Partilha que não foi objecto de reclamação.
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Por sentença de 25/06/2019 foi homologada por sentença a partilha constante deste último mapa e foram adjudicados a cada um dos interessados os quinhões que aí lhes coube.
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Não se conformando com esta sentença, bem como com a decisão de 09/03/2018, veio a requerente M. B. interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1-O presente recurso vem interposto da douta sentença homologatória de partilha, datada de 25.06.2019, notificada, bem como das decisões interlocutórias e em especial do douto despacho de 09.03.2018, que determina a forma à partilha, em especial na parte em que não reconhece o direito, na separação de meações, à atribuição do direito de habitação da casa de morada de família.
2-Assim, face ao exposto, o recurso deve ser processado como de apelação, a subir, imediatamente e nos próprios autos, com efeito suspensivo, pois que outro regime lhe poderia retirar o efeito útil e até colocaria a recorrente em situação de impossibilidade de uso da sua habitação, bem como de ser ressarcida dos prejuízos no caso de vencimento do recurso e tendo presente o disposto no artigo 647º, n.º 3 alínea b) in fine do CPC, por estar em causa a subsistência da casa de habitação da recorrente
3-Na verdade, apresentada a relação de bens e efectuada a conferência de interessados a apelante e o seu marido A. T. visaram concluir um acordo de partilha dos bens comuns, como resulta da conferência de interessados de 29.05.2012.
4-Porém, a Cooperativa Agrícola ... (então exequente) veio a insurgir-se contra tal partilha, porquanto não concordou com os valores atribuídos às verbas em causa, sendo realizada avaliação.
5-Entretanto, faleceu o marido da apelante no decurso do processo, sendo habilitados como seus sucessores os dois filhos, M. M. (já executada) e o seu irmão M. T., pois que a apelante renunciou ao seu direito hereditário, enquanto viúva e herdeira legitimária, ficando meramente titular do direito à meação dos bens comuns, que integram todos os bens relacionados e objecto da partilha de meações.
6-Por requerimento com a referência Citius 26892884, de 28.09.2017, a exequente Cooperativa veio até requerer a extinção da lide, face ao falecimento daquele executado, sem prejuízo dos herdeiros, apelante e filhos, requererem a partilha em inventário próprio e não por apenso aos autos de execução. Porém, o Tribunal assim não entendeu, mandando prosseguir os autos para conferência de interessados.
7-Ora, na Conferência de Interessados de 18.10.2017, que agora também está em causa, cujo teor aqui se dá por reproduzido, pela cabeça de casal, aqui apelante, foi requerida a atribuição a si, do direito de habitação da casa de morada de família e do direito ao uso do recheio do mesmo, nos termos do disposto no artigo 2103, alínea a) do C. Civil e 1406º do anterior CPC, tendo para o efeito efectuado a declaração de que a sua data de nascimento era 23.04.1938 (hoje com 81 anos), para efeitos de cálculo do seu valor.
8-Os demais herdeiros presentes nada opuseram àquele requerimento e exercício do direito por parte da cabeça de casal, que, aliás, salvo melhor opinião, é um direito potestativo, que não depende de autorização dos demais herdeiros, nem da exequente.
9-Aliás, nem a própria exequente se opôs a tal requerimento e exercício do direito por parte da apelante, que é inquestionável à luz daquelas disposições legais.
10-Ora, quer a cabeça de casal, aqui apelante, quer os demais herdeiros actuaram da forma descrita por estarem convictos de que à Apelante cabia, sem dúvida ou reserva, o direito de requerer e de lhe ser adjudicado o direito de habitação em causa.
11-Também a exequente nada reclamou ou requereu em contrário, pelo que tal matéria era por todos tida como pacífica e assente também por acordo, além do mais por nada ter sido requerido em contrário.
12-Assim, viola aquelas disposições legais o douto despacho em causa, ao decidir que, contra a vontade das partes, “ não cabe a atribuição do direito de habitação da casa de morada de família… previsto no artigo 2103º-A do C. Civil…”.
13-O processo para separação de bens e partilha de meações, ao abrigo do disposto no artigo 825º do CPC, visa garantir o direito do cônjuge não executado de separar a sua meação dos bens penhorados e eventualmente sujeitos a venda em processo executivo, de modo a salvaguardar o seu direito a não ver o seu património diminuído por dívidas que responsabilizem somente o outro cônjuge.
14-Porém, em nada pode ver diminuída a sua capacidade de reivindicar outros direitos enquanto viúva, no caso – o dos autos – do seu marido falecer no decurso da acção / execução.
15-É que no momento do falecimento do seu marido o património do casal, que ate aí era comum, passa todo a integrar uma herança ilíquida e indivisa, que pode somente ser partilhada ou dividida pelos herdeiros que a ela concorrem, no caso a apelante, como viúva e os seus filhos M. M. (também executada) e filho M. T..
16-Ora, com o falecimento do executado A. T., marido da Apelante, nasce um novo direito para a apelante, não existente anteriormente, ou seja o seu direito potestativo de requerer a atribuição da casa de morada de família, também com o seu recheio, nos termos dos artigos 2103º-A e 2103º- B, estando somente obrigada a conferir e a pagar tornas, se forem devidas.
17-Aliás, dada a pendência da execução e do apenso para partilha de meações e transitado em julgado o despacho que não declara a inutilidade da lide, está vedado à apelante e aos filhos daquele A. T., falecido, requerer processo de inventário para partilha dos bens, pois que a tal obsta a pendência destes autos.
18-Ora, a apelante não pode ver negado um direito que depende unicamente da sua declaração de vontade, mas que neste caso especial até mereceu a aceitação dos demais herdeiros e a não oposição da exequente.
19-Entender em sentido contrário constituiria uma violação inadmissível do direito da apelante e consignado naqueles artigos 2103º-A e 2103º-B do C. Civil, que, após a morte do executado A. T., só neste processo pode ser exercido.
20-Sob pena de ser igualmente violado o disposto no artigo 1406º do então CPC vigente, que não estabelece esta excepção pretendida pelo Tribunal, com violação também do direito constitucional à habitação do artigo 65º da CRP e do direito em que foi encabeçada a apelante na data da morte do seu marido (executado), data da abertura da sucessão e partilha, direito esse, sem reservas, de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respectivo recheio.
21- Ao consolidar estas violações, por decisões anteriores e interlocutórias, a douta sentença viola igualmente aquelas disposições legais e direito da Recorrente.
22-Este recurso tem assim como âmbito a questão suscitada e por isso o valor do recurso reduz-se ao prejuízo ou benefício económico para a recorrente do valor presumível do direito de habitação, que se computa em cerca de 25.000 €, face á sua idade, ao valor do imóvel e à tabela legal de cálculo (10%).
23-Foram violadas, por isso, as disposições legais citadas, devendo ser julgado procedente o recurso e no sentido das conclusões, revogando-se nessa parte a douta sentença homologatória e o douto despacho recorrido que não reconheceu o direito de habitação á recorrente, reconhecendo-se o direito da Apelante em ser encabeçada, por direito que se constituiu após o falecimento do marido e na data do falecimento deste, no direito de atribuição da habitação da casa de morada de família e de uso do respectivo recheio, ordenando-se, em conformidade, que se rectifique a forma à partilha e o mapa de partilha.
Pugna pela revogando-se a douta sentença homologatória e o douto despacho recorrido que não reconheceu o direito de habitação à recorrente, reconhecendo-se o direito da apelante em ser encabeçada, por direito que se constituiu após o falecimento do marido e na data do falecimento deste, no direito de atribuição da habitação da casa de morada de família e de uso do respectivo recheio, ordenando-se, em conformidade, que se rectifique a forma à partilha e o mapa de partilha.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., a questão a decidir é saber se, num inventário para separação de meações instaurado por apenso a acção executiva em que são penhorados bens comuns do casal, pode o cônjuge não executado, que desistiu do direito de escolha dos bens que há-de compor a sua meação e viu a casa de morada de família adjudicada ao outro interessado, requerer o direito de habitação da mesma e de uso do seu recheio ao abrigo do disposto no art. 2103º-A do C.C..
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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Nos presentes autos de execução, em que apenas é executado A. T., foram penhorados bens comuns do casal constituído por ele e pela ora requerente, M. B., pelo que foi esta citada nos termos do art. 864º nº 3 a) e 825º nº 1 do C.P.C. então vigente (actuais art.786º nº 1 a) e 740º nº 1) para, querendo, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência da acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena da execução prosseguir sobre os bens comuns.

Veio M. B., por apenso à referida execução, instaurar o presente inventário para separação de meações pelo que a execução foi declarada suspensa até à partilha - art. 825º nº 7 do anterior C.P.C.. Nos termos deste preceito se, no inventário, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.

O processo de inventário para separação de meações segue os termos do art. 1406º do então C.P.C. designadamente com as seguintes especialidades: o exequente tem o direito de promover o andamento deste processo e o cônjuge do executado tem o direito de escolher os bens com que há-de ser formada a sua meação.

Refere Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. III, Almedina, 1991, p. 434: “Substancialmente, a escolha não tem outros limites que não sejam respeitantes ao valor da meação do optante, dentro desse limite este tem plena liberdade de fazer indicação concreta dos bens que a hão-de constituir. Quer isto dizer que nesta fase não há que tomar em consideração a natureza deles e que as meações não têm que necessariamente formadas por bens da mesma espécie e qualidade. Este segundo aspecto só é de levar em conta quando inexiste direito de escolha ou quando sobrevém a desistência dele, hipótese em que se procederá a sorteio”.
A ratio deste direito de escolha dos bens que hão-de formar a meação radica na protecção da família. Contrariamente à incerteza do sorteio concede-se, assim, ao cônjuge não executado o direito a escolher os bens que considere que sejam absolutamente indispensáveis àquela. Neste sentido Lopes Cardoso, ob. cit., p. 433, citando Alberto dos Reis, Breve Estudo, p. 727.
Mas, caso o cônjuge exerça este direito são notificados da escolha os credores que podem reclamar contra ela, fundamentando a sua reclamação apenas no valor desses bens e quando a avaliação modifique o seu valor o cônjuge do executado pode declarar que desiste da escolha e, nesse caso, ou não tendo ele usado do direito de escolha, as meações são adjudicadas por meio de sorteio (nº 2 e 3).
Refere aquele autor, ob. cit., p. 436: “(…) o escopo legal foi o de permitir ao cônjuge escolher bens sem prejuízo dos interesses dos credores, isto é, permitir-lhe que levante aqueles que mais lhe agradam mas pelo seu justo valor.”

No caso em apreço verificou-se esta situação.

Com efeito, a requerente escolheu a verba nº 1 constituída pelo prédio urbano sito no Lugar …, inscrito na matriz predial sob o art. ..º e descrito na C.R. Predial de …, freguesia de …, com o nº …. e a verba nº 5 constituída por um prédio rústico inscrito na matriz sob o art. …º e descrito na C.R. Predial de …, freguesia …, com o nº ….
A credora exequente reclamou do valor pelos quais a requerente pretende a adjudicação pelo que foi ordenada a avaliação da totalidade dos bens.
Entretanto, tendo falecido A. T., procedeu-se, no Apenso E, à habilitação dos sucessores: os filhos, M. T. e M. M., pois o cônjuge e aqui requerente repudiou a herança.
Os autos prosseguiram seus termos e, tendo a avaliação modificado o valor dos bens, a requerente desistiu da escolha feita. Nesse momento requereu que lhe fosse atribuído o direito de habitação da casa morada de família e do direito de uso do seu recheio nos termos do art. 2103º a) do C.C..
Foram formados dois lotes de bens que foram sorteados tendo sido adjudicado à requerente o lote constituído por prédios rústicos e aos herdeiros de A. T. o lote constituído pelo prédio urbano, casa de morada de família.
Foi então proferido despacho recorrido que deu forma a partilha que não reconheceu à requerente a atribuição dos referidos direitos de habitação da casa morada de família e de uso do seu recheio nos termos do art. 2103º a) do C.C..

Quid iuris?

Andou bem o tribunal recorrido, pois o disposto neste artigo 2103º a) do C.C. não é aplicável ao caso em apreço.
Os art. 2103º-A a 2103º-C do C.C. foram introduzidos neste diploma, na secção da partilha da herança, com o Dec.-Lei nº 496/77 de 25/11 tendo como propósito garantir, no momento da partilha, em caso de necessidade, o encabeçamento do cônjuge sobrevivo – herdeiro a quem não tocou a propriedade da casa - em dois direitos de enorme importância para a continuidade do lar conjugal: o direito de habitação da casa de morada de família e o direito de uso do respectivo recheio.
Com efeito, sendo a casa bem próprio do de cujus ou bem comum a mesmo integra a herança. No caso de tal bem não ser adjudicado ao cônjuge herdeiro tem este a faculdade de ver constituído ex novo um direito real de gozo do sobre coisa alheia. Mas, exercida esta faculdade, o quinhão do cônjuge não é ampliado dado que o valor de tais direitos integra a eventual meação e quinhão hereditário e no caso de ultrapassar o valor destes terá o cônjuge que pagar tornas. Neste sentido vide, entre outros, Ac. da R.P. de 12/01/2006 (Fernando Baptista), in www.dgsi.pt.
Revertendo ao caso em apreço, verificamos que, não obstante o executado A. T. ter entretanto falecido, não nos encontramos, nem nos poderíamos encontrar, perante um inventário para partilha da herança deixada por aquele, mas tão só perante um inventário para separação das meações instaurado pelo cônjuge do executado com vista a evitar que os bens que viessem a integrar a sua meação respondam na execução em apenso.
Neste inventário, ao abrigo do disposto no art. 1406º c) do C.P.C., foi facultado à requerente o direito de escolher os bens a integrar a sua meação, o que ela fez num primeiro momento escolhendo a casa de morada de família e outro bem. Posteriormente, na sequência de avaliação dos bens, aquela desistiu da escolha efectuada e sujeitou-se ao risco do sorteio. Se neste aquele bem não coube na sua meação apenas a si deve tal decisão.
O disposto no art. 2103º-A do C.C. é inaplicável ao caso em apreço, desde logo, porque não nos encontramos perante inventário para partilha da herança deixada por A. T. e, além do mais, a requerente nem tem a qualidade de herdeira por ter repudiado a herança do marido.
Encontramo-nos perante uma questão de direito apreciada pelo tribunal recorrido sendo irrelevante a posição das partes de não oposição ao requerido.
Aos herdeiros do falecido – mas não à requerente por não ter esta qualidade - não está vedada a instauração de inventário para partilha entre si da herança daquele.

Assim sendo, inexiste a invocada violação do disposto nos art. 2103º-A do C.C. e 1406º do anterior C.P.C.. Inexiste igualmente violação do art. 65º da C.R.P., que é, aliás, uma mera disposição programática dirigida ao Estado

Pelo exposto, mantem-se as decisões recorridas improcedente a apelação.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Numa execução movida unicamente contra um dos cônjuges, penhorado um determinado bem comum do casal, citado o outro cônjuge ao abrigo do disposto no art. 825º do anterior C.P.C. (actual art. 740º), das duas uma: a) o cônjuge do executado não requer a separação de meações, nem junta certidão de acção pendente, e a execução prossegue contra o bem penhorado, para a sua venda ou adjudicação na acção executiva; b) requer a separação de meações ou junta certidão comprovativa de processo de separação de bens já instaurado, suspendendo-se a execução nos bens comuns até à partilha.
II – No processo de inventário para separação de meações o cônjuge do executado tem o direito de escolher os bens com que há-de ser formada a sua meação. Caso exerça este direito, havendo reclamação dos credores e avaliação dos bens que modifique o seu valor pode vir a desistir da escolha. Não tendo usado tal direito as meações são adjudicadas por meio de sorteio.
III – Se o bem penhorado é adjudicado ao executado a execução prossegue seus termos relativamente a tal, se é adjudicado ao seu cônjuge podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.
IV – Num inventário para separação de meações, ainda que um dos cônjuges tenha falecido, não tem o outro cônjuge direito a que lhe seja atribuída a habitação da casa de morada de família e o uso do respectivo recheio ao abrigo do disposto no art. 2103º-A do C.C..
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmam as decisões recorridas.
Custas pela apelante.
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Guimarães, 30/01/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade