Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
213/21.1GBGMR.G1
Relator: ANABELA VARIZO MARTINS
Descritores: CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FISCALIZAÇÃO DE CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – A regra é que a detecção e a quantificação do álcool relativa à circulação rodoviária fazem-se através de teste no ar expirado.
II – Apenas no caso de impossibilidade de realização deste teste é que o examinando deve efectuar análise de sangue.
III – Estando em causa a fiscalização de um condutor interveniente em acidente de viação, a impossibilidade de realização de teste no ar expirado deve resultar do concreto circunstancialismo, designadamente da necessidade de o transportar ao hospital para receber tratamento médico de que careça.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

No Processo Abreviado com o nº 213/21.1GBGMR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães - Juiz 3, realizado julgamento, foi proferida sentença, no dia 26 de Outubro de 2021, em que foi decidido:

a) Condenar o arguido C. E., pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, condicionando-se a suspensão da execução da pena de prisão à regra de conduta de o arguido submeter-se, durante o período da suspensão, a consultas de alcoologia e necessários tratamentos com vista à desabituação de consumo de bebidas alcoólicas e até que seja julgado desnecessário esse acompanhamento, sendo que a DGRS ficará incumbida de apoiar e fiscalizar o arguido na execução da referida regra de conduta, tudo nos termos do artigo 52º, nº 1, do Código Penal e 495º, nº 1 e 4, do CPP.
b) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 (dez) meses, nos termos do disposto no artigo 69º nº 1 alínea a) do Código Penal.

Inconformado com tal sentença, dela veio o arguido interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que finaliza com as conclusões que a seguir se transcrevem:

“1.ª Nos presentes autos, foi o recorrente condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
2.ª Resulta da acusação pública no dia - de Abril de 2021, pelas 11h30, na Calçada de …, …, conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ZA tendo sido interveniente em acidente de viação, por despiste da viatura, sendo que, atentos os alegados ferimentos sofridos pelo arguido, foi o mesmo transportado ao hospital, motivo pelo qual não efectuou o teste de pesquisa no álcool no sangue através do ar expirado, e após ter sido submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, através da respectiva colheita, apresentou uma taxa de álcool de 2,51g/l.;
3.ª Foi em virtude da amostra recolhida e do respectivo resultado do exame realizado, que a sentença recorrida condenou o arguido, sustentando que “relevante foi, ainda, o resultado da análise ao sangue com vista à detecção/quantificação da TAS, que consta de fls. 6.”;
4.ª Em caso de acidente, quer os condutores, quer os peões que intervenham no acidente, devem ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 156.º, n.º1 do Código da Estrada, remetendo, esta norma, para os requisitos legais da realização deste exame nos termos previstos no artigo 153.º do mesmo diploma, isto é, para o regime geral da fiscalização da condução sob a influência do álcool por ar expirado;
5.ª O recorrente foi sujeito à recolha de uma amostra de sangue para a realização desse exame sem que resultasse que essa era a única hipótese possível e viável, dadas as circunstâncias decorrentes do acidente;
6.ª Para sustentar a validade deste exame, resulta da acusação e dos factos provados que “Atentos os ferimentos sofridos pelo arguido, foi o mesmo transportado ao hospital, motivo pelo qual não efetuou o teste de pesquisa no álcool no sangue através do ar expirado (…)”;
7.ª Não resulta da acusação, nem tampouco da prova produzida em audiência de julgamento, quais foram os ferimentos que levaram a concluir-se pelo estando incapacitante do recorrente, impedindo-o de realizar o exame nos termos do n.º 1 do artigo 156.º do Código da Estrada.
8.ª Porquanto, para sustentar e validar a realização do exame ao álcool através da recolha da amostra de sangue era, pois, necessário que fossem descritos quais os ferimentos sofridos pelo recorrente e qual o seu estado de saúde decorrente desses mesmos ferimentos;
9.ª O recorrente referiu expressa e inequivocamente que, quando conduzido ao hospital, estava “consciente”, pelo que, não tendo sido indicados, nem provados, os ditos “ferimentos sofridos pelo arguido”, não se vislumbra de que factos se socorreu o Tribunal à quo para dar como preenchidos os pressupostos para a aplicação do regime estatuído no artigo 156.º, n.º 2 do Código da estrada;
10.ª Não se concede, nem se concebe, que para fundamentar o preenchimento dos pressupostos da aplicação do regime excepcional, o douto Tribunal sustente a decisão aqui em crise referindo que “tornava-se impossível sujeitar o arguido ao Posto de modo a sujeitá-lo a exame quantitativo através do método do ar expirado ou mesmo sujeitá-lo a este tipo de teste no Hospital”, uma vez que a detecção da presença de álcool no sangue pode ser feita por meio de analisador qualitativo – ou quantitativo – de ar expirado;
11.ª A sentença partiu de um facto desconhecido – existência de álcool – para chegar a um conhecido: a necessidade de deslocação ao Posto de autoridade para a realização do exame quantitativo;
12.ª Acresce, ainda, que, não se pode partir, apenas e só, do facto do recorrente ter sido encaminhado para o hospital, para se presumir que o mesmo se encontrava num estado impeditivo de realização do exame por ar expirado;
13.ª Assim, a prova em que assentaram estes autos constitui prova ilegal, inválida ou nula, não podendo produzir efeitos, dado que a recolha de sangue ao recorrente constituiu um meio de obtenção de prova não legal por não estarem preenchidos os pressupostos que a lei faz depender para a sua aplicação, culminando, a violação dos artigos dos artigos 152.º, n.ºs 1 e 2 e156.º do Código da Estrada e artigos 1.º, n.ºs 1 e 3 e 4.º, n.º 1 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, na obtenção de um meio de prova não válido – veja-se, neste sentido, o decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 34/17.6GCGMR.G1, datado de 05-02-2018, do qual foi relatora Ana Teixeira e cujo objecto de recurso é em tudo semelhante ao dos presentes autos;
14.ª Quando o recorrente deu entrada nos serviços de urgência do hospital para o qual foi transportado, assumiu um estatuto próprio e igual aos demais pacientes: o estatuto de doente;
15.ª Aquando da recolha de uma amostra de sangue a um doente, este não sabe, nem tampouco vai presumir, que está perante um acto de recolha de prova criminal e não um acto médico para seu benefício, porquanto, a recolha da amostra de sangue para posterior exame ao álcool no sangue tem de ser informada ao doente para que este saiba que aquele acto não é um acto médico, mas sim um procedimento de recolha de prova;
16.ª Tal como o recorrente afirmou em audiência de julgamento, em nenhum momento lhe foi dado a conhecer que havia sido recolhida uma amostra de sangue para posterior análise à taxa de álcool no sangue;
17.ª O recorrente, apesar de ter confessado os factos relativos à prática do crime de condução em estado de embriaguez, os quais, só lhe foram imputados em virtude da prova recolhida, em nenhum momento referiu esses alegados ferimentos sofridos o impediram de realizar o exame ao álcool pela via do ar expirado, até porque os mesmos nem sequer foram vertidos na acusação deduzida;
18.ª Acresce que, a douta sentença recorrida, parte de um facto conhecido – de que o recorrente não se apercebeu da realização do procedimento médico – para justificar o seu alegado estado incapacitante;
19.ª Porém, o facto do recorrente não se ter apercebido da realização da recolha da amostra de sangue não é a demonstração de que estava num estado incapacitante nomeadamente porque quando foi conduzido ao hospital este estava consciente (como disse em audiência de julgamento);
20.ª Resulta, assim, à saciedade que, a prova recolhida constitui um meio de obtenção de prova ilegal por violar o direito à informação do recorrente, constituindo, o respectivo, resultado, um meio de prova não válido;
21.ª Uma vez que, quer a acusação, quer a sentença recorrida basearam a imputação e a condenação do recorrente numa prova nula por ter sido a mesma obtida por meios não válidos, violando o princípio da legalidade da obtenção de prova e dos trâmites legalmente previstos para a sua obtenção, violando o disposto nos artigos dos artigos 152.º, n.ºs 1 e 2 e156.º do Código da Estrada e artigos 1.º, n.ºs 1 e 3 e 4.º, n.º 1 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio;
22.ª Determina o artigo 152.º, n.º 3 do Código da Estrada que, “As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência”.
23.ª O recorrente poderia, caso tivesse conhecimento, ter-se recusado a realizar o exame para a detecção do álcool;
24.ª Porém a recolha da amostra de sangue do recorrente foi realizada sem que em algum momento este fosse informado da prática desta diligência de prova;
25.ª No caso sub judice, por o mesmo não ter sido informado de que foi feita tal diligência, este não teve sequer a oportunidade de se opor à mesma, solicitando a destruição da amostra recolhida para tais fins;
26.ª Desta feita, foi sonegada tal possibilidade, em violação do princípio da não auto-incriminação e das normas do código da estrada;
27.ª Apesar do recorrente não seguir o perfilhamento jurisprudencial maioritário que se posiciona no sentido de que não decorre da letra da lei a necessidade do consentimento dos examinandos para a validade da prova recolhida, certo é que esta corrente jurisprudencial não deixa de entender, também, que se encontram excluídas, nesta matéria, os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição através da sua possibilidade de recusa;
28.ª Compulsado o vindo de dizer, deve o recorrente ser absolvido da prática do crime de que vem condenado por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2 e 32.º, n.ºs 1 e 7 da Constituição da República Portuguesa.
29.ª Determina o artigo 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”;
30.ª Nos presentes autos, nenhuma prova foi produzida, nem examinados quaisquer documentos em audiência de julgamento, ressalvando-se, neste quadro, as declarações prestadas pelo recorrente e a inquirição da única testemunha arrolada pela defesa;
31.ª Sucede, porém, que, o Mmo. Juiz do Tribunal recorrido não fundamentou a douta sentença recorrida em nenhuma das provas ali indicadas, mas sim, no que resultava das fls. 4 e 6 dos autos;
32.ª Não tendo sido tais provas produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, a sentença é nula por violar o disposto no artigo 355.º, n.º1 do Código de Processo Penal.”
O Mº Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida, alegando, no essencial, que a recolha de amostra de sangue ao arguido, no presente caso, constituiu um meio de obtenção de prova legal, sendo o respectivo resultado meio de prova válido e, portanto, a considerar nestes autos.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer, no sentido de que o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência, na decorrência dos termos propugnados na resposta ao recurso.
Cumprido o art.º 417º, nº 2 do C. P. Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado - artigo 419º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1 – OBJECTO DO RECURSO.

Dispõe o art.º 412º, nº 1 do C. Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

As conclusões delimitam, assim, o objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso. (1)

Deste modo, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as seguintes:

1. A invalidade da prova obtida por recolha e análise de amostra de sangue para quantificação da taxa de alcoolemia;
2. A sentença é nula por violar o disposto no artigo 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

2. ECISÃO RECORRIDA

Factos provados, não provados e fundamentação de facto (transcrição):

“FACTOS PROVADOS:
Da acusação:

1) No dia - de Abril de 2021, pelas 11h30, na Calçada de …, área desta instância local de Guimarães, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ZA.
2) Previamente à condução, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas, em quantidade e de qualidade não apuradas.
3) Na ocasião indicada, foi o arguido interveniente em acidente de viação, por despiste da viatura que conduzia, tendo acorrido ao local uma patrulha da GNR, que tomou conta da ocorrência.
4) Atentos os ferimentos sofridos pelo arguido, foi o mesmo transportado ao hospital, motivo pelo qual não efetuou o teste de pesquisa no álcool no sangue através do ar expirado, sendo que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, através da respetiva colheita, apresentou uma taxa de álcool no sangue de 2,51 g/l.
5) O arguido tinha conhecimento dos factos descritos e quis conduzir o veículo supra referido na via pública, sabendo que tinha uma taxa de álcool no sangue superior ao máximo permitido pela lei penal.
6) O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
*
7) O arguido confessou de forma integral e sem reservas os factos.

Da situação pessoal e económica do arguido:

8) O arguido internou-se voluntariamente numa Comunidade Terapêutica, para tratamento do alcoolismo, não tendo, contudo, terminado o programa.
9) O arguido, que é pasteleiro, há muitos anos, encontra-se desempregado, por sua iniciativa, verbalizando não ter condições psicológicas para trabalhar, relacionada com as mudanças na sua vida, designadamente a dissolução, por divórcio, do seu casamento.
10) Vive em casa da mãe.
11) É tido como pessoa trabalhadora, que nunca faltou ao sustento da família.
12) Tem uma filha, de 21 anos de idade.
13) O arguido concluiu o 6º ano de escolaridade.
14) O arguido respondeu no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 5/17.2PTGMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – J3, pela prática, a 23-12-2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 01-04-2019, transitada em julgado em 14-10-2019, a pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 e pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 meses.

III MOTIVAÇÃO:

A convicção do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido que confessou de forma integral e sem reservas os factos imputados, tendo ainda esclarecido a sua situação económica, profissional e familiar, nos termos dados como provados.
Referiu o arguido que no dia dos factos, teve uma discussão com o seu patrão, o que o deixou abalado e que o embate do veículo que conduzia no muro, foi uma tentativa de suicídio.
Mais admitiu o arguido, de forma espontânea, ter um problema de consumo excessivo de álcool, o que o levou a ingressar numa Comunidade Terapêutica, com vista a curar-se de tal vício, que, contudo, acabou por não concluir.
A testemunha A. S., filha do arguido, descreveu o arguido como bom pai, que sempre trabalhou para dar todas as condições materiais à família, chegando a ter dois trabalhos.
Relevante foi, ainda, o resultado da análise ao sangue com vista à detecção/quantificação da TAS, que consta de fls. 6.
Importa, neste conspecto, tecer algumas considerações, na medida em que, em sede de alegações, a defesa entende que tal meio de prova não é válido (nulo) porque o arguido não consentiu na realização da colheita do sangue, não tendo, sequer, sido informado a que se destinava tal recolha.
Os artigos 152º, nº 1, alínea a), 153º e 156º, do Código da Estrada, estabelecem que os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas. Sendo que, em caso de acidente, quando o estado de saúde do condutor não permitir a realização de exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool e, se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, deve então proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
Assim, o exame de sangue constitui a via excepcional para a recolha de prova admitida na lei para os indicados fins, apenas admissível em casos expressamente tipificados.
In casu, resulta dos autos que o arguido foi interveniente num acidente de viação quando conduzia na via pública um veículo ligeiro de passageiros. Do acidente, resultaram para o arguido ferimentos, tendo sido encaminhado para o Hospital de Guimarães, a fim de lhe serem ministrados os cuidados médicos necessários. Como o arguido, no Hospital, se encontrava a receber tratamento médico, foi realizada colheita de sangue para posterior análise e pesquisa de álcool no sangue (fls. 4).
Ora, perante isto afigura-se-nos que estão preenchidos os pressupostos previstos no artigo 156º, nº 2, do Código da Estrada para realização do exame através de recolha de sangue. Aliás, notar-se-á que o arguido, por um lado, confessou os factos (incluindo-se aqueles que se reportam aos ferimentos e a necessidade de ser transportado para o Hospital, não podendo ser submetido a pesquisa de álcool no sangue através do método do ar expirado), e, por outro lado, admitiu que, por momentos, quase que se apagou, só tendo percebido depois que já lhe tinha sido colocado um cateter, o que é bem revelador do seu estado físico/psicológico na altura e aponta, salvo melhor opinião, para a conclusão de que tornava-se impossível sujeitar o arguido ao Posto de modo a sujeitá-lo a exame quantitativo através do método do ar expirado ou mesmo sujeitá-lo a este tipo de exame no Hospital.
É certo que dos autos não resulta que o arguido haja dado o seu consentimento para a colheita de sangue. Contudo, os autos também não espelham que a colheita de sangue tenha sido efectuada contra a vontade do arguido.
Assim, não tendo havido oposição, manifestada através da simples recusa de sujeição à recolha de sangue, cremos ser irrelevante a inexistência de consentimento expresso para a validade da respectiva prova, por esse meio obtida, tanto mais que, percorrida toda a legislação e regulamentação da matéria (designadamente a Lei 18/2007, de 17 de Maio – Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas), verifica-se que em momento algum exige ou impõe o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível, sendo, quanto a nós, irrelevante que não tenha sido explicado ao arguido, previamente à recolha do sangue, a que a mesma se destinava.
Veja-se, ainda, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 05-06-2017, publicado em www.dgsi.pt: “I) O exame de sangue é a via excecional de recolha de prova admitida na lei para deteção de álcool, apenas admissível em casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. II) Em momento algum a lei impõe ou exige o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, pelo que, nesta matéria, se encontram apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em sujeitar-se ao exame.”
De resto, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 418/2013, pronunciou-se directamente sobre a questão da desnecessidade do consentimento para a colheita de amostra de sangue destinada a perícia à taxa de álcool: “não julgar inconstitucional a interpretação normativa, extraída da conjugação do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, e do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, segundo a qual o condutor, interveniente em acidente de viação, que se encontre fisicamente incapaz de realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser sujeito a colheita de amostra de sangue, por médico de estabelecimento oficial de saúde, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, nomeadamente para efeitos da sua responsabilização criminal, ainda que o seu estado não lhe permita prestar ou recusar o consentimento a tal colheita.”
Face ao exposto, a recolha de amostra de sangue à arguida, no presente caso, constituiu um meio de obtenção de prova legal, sendo o respectivo resultado meio de prova válido e, portanto, a considerar nestes autos.
Os antecedentes criminais resultam do CRC junto aos autos. “

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO.

Cumpre apreciar as questões suscitadas.

3.1. A invalidade da prova obtida por recolha e análise de amostra de sangue para quantificação da taxa de alcoolemia.

O recorrente assenta, no essencial, a 1ª questão da invalidade da prova em dois fundamentos:
1º Não resulta da acusação, nem da prova produzida em audiência de julgamento, quais foram os ferimentos que levaram a concluir-se pelo estando incapacitante do recorrente que o impedisse de realizar o exame nos termos do n.º 1 do artigo 156.º do Código da Estrada.
2º A recolha da amostra de sangue do recorrente foi realizada sem que em algum momento fosse informado da prática desta diligência de prova e sem lhe ter sido dada oportunidade de se opor à mesma.

Comecemos pela análise do primeiro:
Prevê o art.º 125º do C. P. Penal que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.
«Estabelece-se nesta norma uma das duas “liberdades” consagradas nas “disposições gerais” sobre a prova- a outra é, naturalmente, a relativa à apreciação dela (artº 127º)» (2)
Este princípio reflecte, por um lado, a atipicidade dos meios de prova, isto é, há uma liberdade da prova, pois são permitidas todas as provas que não forem proibidas e, por outro, as proibições de prova, pois existem meios e temas que são proibidos, bem como métodos que atentam contra Direitos, Liberdades e Garantias e Princípios Fundamentais.
O art.º 126º do C. P. Penal, por sua vez, densifica na lei ordinária uma das garantias do processo criminal previstas no artigo 32.º n.º 8 da CRP, que prevê que, “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
De referir que este artigo trata dos meios de obtenção de prova mais paradigmáticos, contudo, nunca poderá ser taxativo sendo apenas meramente enunciativo ou exemplificativo (3).
O que tanto o preceito constitucional como o preceito ordinário protegem, são todos os métodos que atentem contra direitos de dignidade e integridade, onde não haverá possibilidade de ponderação de interesses conflituantes já que se trata de um valor que não admite restrição.
O exame de pesquisa de álcool encontra-se previsto e regulado por lei, nos artigos 152.º, n.º 1, 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio) de onde decorre a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores, os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução.

O procedimento normal para a detecção e quantificação da taxa de álcool no sangue é feita nos termos da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio que, com relevo para o caso em apreço, define e preceitua o seguinte:

Artigo 1.º
Detecção e quantificação da taxa de álcool
1 - A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.
2 - A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.
3 - A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.

Por seu turno, o artigo 4º do mesmo regulamento concretiza que há lugar à análise de sangue quando as condições físicas em que o examinando se encontra não lhe permitam a realização do teste no ar expirado.
Resulta, assim, das citadas disposições legais, que a regra é que a detecção e a quantificação do álcool relativa à circulação rodoviária fazem-se através de teste no ar expirado. Apenas em caso de impossibilidade de realização daquele teste é que o examinando deve efectuar análise de sangue.
No caso em apreço está assente que o recorrente foi interveniente num acidente de viação (facto 3).

Estando em causa apenas um procedimento destinado a detectar a condução sob influência do álcool por parte de um condutor interveniente em acidente de viação, a norma que é directamente aplicável ao caso é a do artigo 156.º do C da Estrada, que prevê:

“1- Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.”

Também o nº 8 do art.º 153º (norma atinente aos procedimentos normais de fiscalização rodoviária) estabelece que se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.

No caso em análise, está provado que o acidente de viação que o arguido foi interveniente ocorreu por despiste da viatura que conduzia, tendo acorrido ao local uma patrulha da GNR, que tomou conta da ocorrência.
Resultou ainda provado que na sequência de tal acidente de viação, “atentos os ferimentos sofridos pelo arguido, foi o mesmo transportado ao hospital, motivo pelo qual não efectuou o teste de pesquisa no álcool no sangue através do ar expirado, sendo que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, através da respectiva colheita, apresentou uma taxa de álcool no sangue de 2,51 g/l.”, factos estes que foram confessados integralmente e sem reservas na audiência e não foram impugnados no recurso agora em análise.
Esses factos são ainda sustentados, como é referido na motivação da sentença recorrida, pelos documentos juntos autos (cf. auto de notícia e aditamento e relatório de urgência), de que resulta que logo a seguir ao acidente o arguido estava impossibilitado de fazer exame por ar expirado e que, por esse motivo, foi transportado pelos Bombeiros para o Hospital, bem como pelas próprias declarações do arguido que “admitiu que, por momentos, quase que se apagou, só tendo percebido depois que já lhe tinha sido colocado um cateter, o que é bem revelador do seu estado físico/psicológico na altura e aponta, salvo melhor opinião, para a conclusão de que tornava-se impossível sujeitar o arguido ao Posto de modo a sujeitá-lo a exame quantitativo através do método do ar expirado ou mesmo sujeitá-lo a este tipo de exame no Hospital.
Esse circunstancialismo associado ao facto do recorrente ter apresentado uma taxa de álcool no sangue de 2,88g/l, já com referência ao momento da recolha, a que se subtraiu a margem de erro, sendo certo que a colheita teve lugar cerca de uma hora depois da admissão hospitalar (cf. ref.ª 11430199), e que essa taxa, segundo as regras da experiência, da razoabilidade e de estudos científicos, está associada a transtornos graves dos sentidos, inclusive consciência reduzida dos estímulos externos, entendemos que é legítimo concluir, como se concluiu na sentença recorrida, o estando incapacitante do recorrente, que o impediu de realizar o exame nos termos do n.º 1 do artigo 156.º do Código da Estrada e que motivou a realização de exame de pesquisa de álcool no sangue, nos termos previstos no nº 2 da mesma disposição legal.
Insurge-se ainda o recorrente com o facto da recolha da amostra de sangue ter sido realizada sem que em algum momento fosse informado da prática desta diligência de prova e sem lhe ter sido dada oportunidade de se opor à mesma, violando-se, assim, os artºs 18 nº 2 e 32º. nºs 1 e 7 da C. República Portuguesa (2º fundamento da primeira questão).
O art.º 18º nº 2 da C.R. P. prevê que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Por sua vez, o art.º 32º da C.R.P., que tem como epígrafe “Garantias de processo criminal” estabelece que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (cfr. nº 1) e que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei (nº7).
Analisada toda a legislação e regulamentação da matéria e especificamente as disposições do regulamento anteriormente citadas, verifica-se que nela não se prevê a obtenção necessária do consentimento prévio para a recolha de amostra de sangue.
Por seu turno, como se salienta na sentença recorrida, embora dos autos não resulte que arguido tenha dado o consentimento para a colheita de sangue, que, como afirmamos não está legalmente previsto, também não espelham que a colheita de sangue tenha sido efectuada contra a sua vontade.
Como acima já explanámos a colheita de sangue é um método de obtenção de prova legalmente previsto para os casos de condutores intervenientes em acidentes de viação, no caso de não ser possível realizar o teste em analisador quantitativo (art.º 1º/3 do Regulamento), como foi o caso do recorrente.
É uma prova de natureza perecível e urgente e, por isso, deve, como legalmente previsto, ser feita no mais curto prazo possível (cfr. art.º 5º, nº1 da Lei 18/2007, de 17 de Maio).
Não é de utilização indiscriminada ou arbitrária, uma vez que esta sujeita a regime rigoroso e pormenorizado. Com efeito, a forma como em caso de acidente de viação deve ser feita a recolha de amostra de sangue está expressamente prevista no já citado nº 2 do art.º 156º C. da Estrada.
Por outro lado, ao contrário do que o recorrente pretende extrair, a previsão legal da hipótese de recusa prevista no nº 3 do art.º 152 do Código da Estrada, sob a cominação de desobediência, não significa que a realização de recolha de sangue seja facultativa, destinando-se antes a evitar a sua realização coerciva.
Acresce que, também não pode considerar-se que a colheita de sangue para exame pericial à respectiva taxa de álcool viole o direito à não auto-incriminação, uma vez que a jurisprudência mais recente dos tribunais superiores (4) tem vindo pacificamente a aceitar que tal direito se circunscreve, essencialmente, ao direito ao silêncio e não, também, ao direito de não ser compelido a realizar determinados exames com vista à obtenção de provas, não alcançáveis por outra via.
Assim, à semelhança do que o Tribunal Constitucional já decidiu, a este propósito, no âmbito do Acórdão 418/2013 (5) o direito à não auto-incriminação «Encontra-se sobretudo associado ao direito ao silêncio, ou seja, à faculdade de o arguido não prestar declarações autoincriminatórias, nomeadamente não respondendo a questões sobre os factos que lhe são imputados e cuja prova pode importar a sua responsabilização e sancionamento.
(…) a recolha de amostra de sangue, para deteção do grau de alcoolemia, em condutor incapaz de prestar ou recusar o seu consentimento, não implica uma violação do direito à não autoincriminação, sendo que tal recolha constitui a “base para uma mera perícia de resultado incerto”, não contendo qualquer declaração ou comportamento ativo do examinando no sentido de assumir factos conducentes à sua responsabilização.»
De todo o modo, o certo é que a colheita de sangue com vista à realização de perícia à taxa de álcool não só não constitui em si qualquer declaração, como também nem sequer visa a condenação do respectivo sujeito, destinando-se antes e exclusivamente a averiguar a verdade material sobre o seu estado de influencia de álcool, que é desconhecido e, à partida, tanto pode servir a acusação como beneficiar a defesa (6).
Noutra perspectiva, também se tem entendido que visa a impedir um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução perigosa que, além do mais, ponha em risco a vida e a integridade física quer do próprio quer dos restantes utentes da estrada.
Assim, a sua imediata sujeição a exame pericial mostra-se adequada à salvaguarda desses bens fundamentais e ao fim da descoberta da verdade visada no processo penal.
Os tribunais superiores (7) tem entendido de forma maioritária, (sendo os acórdãos citados pelo recorrente uma minoria) no sentido da legalidade desse meio de prova, tendo-se procurado equilibrar os valores em presença, e que no confronto entre os direitos individuais à segurança da integridade física e a protecção da segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, da comum segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida e/ou a integridade física – bens jurídicos protegidos, máxime, pelo tipo-de-ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez (p. e p. pelo art.º 292.º do C. Penal) –, se deverá conceder natural prevalência a este último interesse geral, em conformidade com a estatuição normativa do n.º 2 do art.º 18.º da Constituição.
Na linha do que já tem vindo a ser defendido pela citada jurisprudência também o tribunal Constitucional (8) se tem pronunciado que a recolha de amostra de sangue, nas específicas circunstâncias em análise no presente recurso, apesar de contender com o direito à integridade pessoal e o direito à reserva da vida privada do examinando, não comporta um juízo de desconformidade constitucional.
Esse entendimento assenta essencialmente no fundamento que se trata de uma mera análise de sangue, algo de muito vulgar e de diminuta relevância em termos de consequências físicas, sendo o seu alcance intrusivo reduzido, com vista a uma informação muito circunscrita, destinada a fins legalmente fixados, sendo que a recolha se desenrola num espaço recatado - o estabelecimento hospitalar e é realizada por profissionais de saúde sujeitos a segredo profissional.
Neste sentido pronunciou-se o já citado Ac. do Tribunal Constitucional nº 418/2013 “A intervenção nos referidos direitos fundamentais dirige-se à salvaguarda da eficácia da pretensão punitiva do Estado, relativamente a normas sancionatórias criadas como garantia de efetiva tutela material de outros direitos fundamentais valiosos - a vida, a integridade física, a propriedade privada - abarcados pela proteção da segurança da circulação rodoviária.
No caso, por um lado, a intervenção em análise é obrigatoriamente realizada em estabelecimento de saúde, com observância das leges artis médicas, e envolve um grau de afetação da integridade corporal muito baixo. Por outro lado, nas circunstâncias que analisamos, tal intervenção não envolve uma direta violação da vontade do examinando, mas uma impossibilidade de consideração da mesma - dada a circunstância de o examinando não estar em condições de prestar ou recusar o consentimento - correspondendo, assim, a uma forma menos grave de interferência no direito à autodeterminação. Por último, apesar de corresponder a uma ingerência no direito à esfera pessoal de privacidade do examinando, tem um alcance intrusivo reduzido, porquanto apenas implica a recolha, para fins restritos e legalmente delimitados, de uma amostra de um material biológico preciso, revelador de limitadas informações acerca da vida privada do visado, realizada no recato conatural ao contexto hospitalar, por pessoal de saúde sujeito a segredo profissional.
Tudo ponderado, resulta que a restrição obedece ao princípio da proporcionalidade, sendo adequada – correspondendo a meio idóneo à prossecução do objetivo de proteção dos direitos fundamentais em análise – bem como necessária – por corresponder ao único meio, face ao caráter perecível da prova, que ainda permite a satisfação da pretensão punitiva do Estado – e proporcional, em sentido estrito, apresentando-se como equilibrada e correspondente à justa medida imposta pela proteção dos direitos que cumpre acautelar.”
Por último, quanto à alegada falta de informação do recorrente quanto à prática desta diligência de prova, não podemos deixar de referir que o regime de sujeição a exame de alcoolemia (por aparelho qualitativo, quantitativo ou por análise de sangue) está estabelecido no Código da Estrada e na Lei nº 18/2007 e é de conhecimento público, mormente pelos cidadãos que se confrontam com a condução e que sejam intervenientes em acidentes de viação, como sucede no caso concreto.
Deste modo, a alegada falta de informação que iria ser sujeito a uma recolha de sangue para efeitos analíticos não tem cobertura legal, sendo consabido e legalmente consagrado que a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.
Não foram, pois, violados os artºs 18.º, n.º 2 e 32.º, nºs 1 e 7 da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, pois, a primeira questão.

3.2 A sentença é nula por violar o disposto no artigo 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

A este respeito invoca o recorrente que o Mmº. Juiz fundamentou a sentença recorrida nos documentos de fls. 4 e 6 dos autos, sem que estas provas tenham sido produzidas ou examinadas na audiência de julgamento.
Prevê o art.º 355º, nº 1 do C. Penal que “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”
Tal exigência prende-se com a necessidade de evitar que concorram para a formação da convicção do julgador provas que não tenham sido apresentadas e juntas ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e já não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais, todas as provas documentais constantes dos autos.
É jurisprudência maioritária, (9) senão mesmo uniforme, que os documentos probatórios que se encontram juntos aos autos, não são de leitura obrigatória na audiência de julgamento e se consideram “examinados” e produzidos em audiência, independentemente de nesta ter sido feita a respectiva leitura e menção em acta . (10)

A título ilustrativo cita-se o Ac. da Relação de Coimbra de 05-11-2008 (11) em que se escreveu o seguinte:
“I.-Na formação da convicção do tribunal não valem outras provas que não as que hajam sido produzidas em julgamento, de harmonia com o disposto no artigo 355.º do C.P.P..
II.-O preceito referido no item antecedente, que consagra o princípio da imediação, não abrange a prova documental e outros meios de obtenção de prova, designadamente, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, que podem ser invocados na fundamentação da sentença ainda que não tenham sido formalmente examinados em audiência.
III.É que, sendo o inquérito conhecido da defesa, pode esta, se assim o entender, contrariar atempadamente o valor probatório quer dos documentos, quer dos meios de obtenção de prova que se encontram nos autos, assim ficando eficazmente assegurado o princípio do contraditório “.

E, tem como fundamento essencial que essa interpretação não põe em causa o fim visado por aquele normativo, que como acima referimos, é o de evitar que o tribunal possa formar a sua convicção alicerçando-se em material probatório não apresentado e junto ao processo pelos diversos intervenientes e relativamente ao qual não tenha sido exercido o princípio do contraditório.
Dai decorre que, encontrando-se os documentos no processo e tendo os sujeitos processuais integral acesso aos autos na fase do julgamento, não há razão para que os mesmos não devam servir para formar a convicção do tribunal, uma vez que sobre eles pode ser exercido o princípio do contraditório.
O Tribunal Constitucional (12) já emitiu um juízo de não inconstitucionalidade, por não violarem o disposto no art.º 32º, n.º 5 da Constituição, os preceitos ínsitos no citado art.º 355º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que os documentos juntos aos autos até à fase de julgamento não têm de ser lidos em audiência de julgamento, considerando-se os mesmos examinados desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.

Ora, no caso em apreço, os documentos em causa encontram-se juntos aos autos e foram indicados na acusação como meio de prova, pelo que o recorrente teve a oportunidade de os examinar, impugnar ou questionar o seu valor probatório.
Assim, tendo em consideração o referido enquadramento não existe qualquer impedimento legal para o tribunal a quo na sentença recorrida ter valorado, como efectivamente valorou, os documentos de fls. 4 e 6 dos autos, pelo que não violou o disposto no artigo 355.º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Improcede também esta questão.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art.º 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e art.º 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
*
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – artº. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 26 Abril de 2022

Anabela Varizo Martins (relatora)
Cruz Bucho (adjunto)
Fernando Chaves (Presidente da Secção)



1. Cf. entre outros Ac.do STJ de 27-10-2016 e de 06-06-2018, disponíveis in www.dgsi.pt e, na doutrina, Germano Marques da Silva- Direito Processual Penal Português, 3, pág. 335.
2. §1 Pedro Soares de Albergaria em anotação ao artº 125º do Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª edição, Tomo II.
3. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário, (2011), pág. 339.
4. Entre outros Ac. da Relação de Guimarães de 11-03-2019, Processo nº 38/18.1GAVNF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
5. Processo n.º 120/11, disponível em www.dgsi.pt.
6. Ac. da Relação de Guimarães de 05/06/2017, Processo nº 70/16.0PTBRG.G1 e de 09-03-2020, Processo nº 91/18.GAVNH.G1, Ac. da Relação do Porto de 20.10.2010, Processo n.º 1271/08.0PTPRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
7. Além dos acórdãos citados na anterior nota, também da R Guimarães, de 23-01-2012 Proc. n.º 32/10.0GBGMR e de 05-12-2016, Processo nº 82/15.0GBPVL.G1, Ac. da Relação de Coimbra 23-05-2012, Processo n.º 123/09.0GTVIS.C1, de 20-12-2011, Processo 408/09.6GAMMV.C1, 25-01-2012, Processo nº 123/09.0GTVIS.C1, 30-01-2013, Processo nº 252/11.0GTLRA.C1 Ac. da Relação de Lisboa de 11-02-2020, Processo nº 112/18.4GBSXL.L1-5 e Ac. da Relação de Évora de 06-06-2017, Processo nº 344/15.7GCSLV.E1 disponíveis em www.dgsi.pt.
8. Em igual sentido ACÓRDÃO N.º 397/2014, Processo n.º 937/13 Ac. nº 319/95, processo 200/94 e Ns. 319/95, 479/2010, 485/2010, 15/2011, 16/2011, 28/2011, 47/2011, 48/2011, 397/2011 e 407/2011, disponíveis/consultáveisem http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos;
9. Acs. do STJ de 23-02-2005, CJ/STJ, XIII, tomo I, pág. 50, e de 31-05-2006, Processo n.º 06P1412, Ac. da Relação de Coimbra de 06-01-2010, Processo nº 20/05.9TAAGD.C1, disponíveis em www.dgsi.pt., Ac. da Relação de Coimbra de 12 de Setembro de 2018, Processo nº 696/15.9 T9 CTB.C1, in CJ, XLII, T. IV, pág. 60.
10. Vinício A.P. Ribeiro Código de Processo Penal, notas e comentários, pág. 769.
11. Processo nº 120/06.8TAVLF.C1, disponível in www.dgsi.pt.
12. Acórdão n.º 87/99, de 09-02-1999, processo n.º 444/98, in DR - II-A, de 01-07-1999.