Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
711/20.4T8VRL.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
ERRO JUDICIAL GROSSEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A determinação do que seja a privação de liberdade (prisão preventiva) por grosseiro erro judicial, para os efeitos da atribuição de indemnização nos termos do art. 225º,1,b CPP, na redação da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto só pode ser feita tendo em consideração o tempo em que tal medida de coação foi aplicada, e mantida, com a prova que existia no inquérito nessa altura, e não à luz do que veio mais tarde a decidir o acórdão final.
II- O facto de o arguido ter recorrido da decisão que o prendeu preventivamente, e um Tribunal superior ter confirmado tal despacho torna já improvável a existência do alegado erro grosseiro.
III- O facto de o arguido vir a ser absolvido do crime que levou à prisão preventiva não significa que tenha ocorrido erro grosseiro na aplicação de tal medida de coação.
IV- Em síntese, o julgamento sobre a existência ou não de erro grosseiro só pode ser feito retroagindo ao momento em que a prisão preventiva foi decretada, analisando toda a prova existente nos autos nesse momento.
V- Não existe prisão injustificada por erro grosseiro, quando os fundamentos do acórdão absolutório -ilegalidade na obtenção da prova- não são pacíficos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

M. P., solteiro, residente na Rua ..., nº .., freguesia de … Ribeira de Pena, veio, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 22º e 27º, nº 5, da CRP, 225º, do CPP e 483º, do CC, instaurar a presente acção de processo comum, contra

O ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público junto deste Tribunal, formulando a seguinte pretensão:

A condenação do Estado Português no seguinte:
a) Indemnização, por danos não patrimoniais, de € 140.000,00 a favor do A., acrescida de juros de mora à taxa legal a partir da citação;
b) Indemnização em renda a favor do A., destinada a suportar o tratamento psiquiátrico e psicológico de que carece e cujo âmbito e duração ainda não é possível determinar, por falta da competente averiguação clínica.

Para fundamentar a sua pretensão, o autor alegou, no essencial:
-que foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, no âmbito do processo que identifica, prisão preventiva que foi mantida através de vários despachos, acabando por ser absolvido na decisão final;
-que os despachos de manutenção da prisão preventiva não tiveram em conta, nomeadamente, a prova pericial, entretanto, junta aos autos, a qual não foi sequer referida por quem decidiu, o que consubstancia erro grosseiro;
-que o Ministério Público deduziu acusação contra o ora autor e que a juíza de instrução manteve a prisão preventiva determinada, a qual também foi mantida pelo juiz titular do processo, até à decisão de absolvição;
-que o autor sofreu intensamente com a situação de prisão preventiva a que foi sujeito, sentindo grande revolta, e que após a libertação viu as disfunções e fragilidades psicológicas de que já padecia, agravadas, carecendo de apoio psicológico e psiquiátrico.

Regularmente citado, o réu Estado Português apresentou contestação, defendendo-se quer por excepção, quer por impugnação.

Concluiu nos seguintes termos:
a) julgar procedentes as excepções peremptórias de ilegitimidade do exercício do direito decorrente do abuso de direito e da cessação do dever de indemnizar, devendo o Réu, Estado Português, ser absolvido do pedido formulado de condenação na quantia de € 170.000,01 (cento e setenta mil euros e um cêntimo), nos termos dos artigos 334º, do C.C., 225º, nº 2 do C.P.P. e 576º, nºs 1 e 3 e 579º do C.P.C.;
b) caso não procedam as anteriores excepções peremptórias, julgar não provados os factos alegados pelo A. e, em consequência, absolver o Réu, Estado Português, do pedido de condenação na quantia de 170.000,01 (cento e setenta mil euros e um cêntimo);
c) julgar provados os factos relativos à litigância de má fé, devendo o A. ser condenado a pagar ao Estado a quantia de, pelo menos, € 3.000,00 (três mil euros), nos termos do art.º 542.º, nºs 1 e 2, al. b) do C.P.C..

Chegados os autos à fase de saneamento e condensação, o Tribunal considerou que estava em condições de conhecer logo do mérito da acção, pelo que proferiu sentença, julgando a acção totalmente improcedente, e, consequentemente, absolvendo o Estado Português dos pedidos contra si formulados.
Julgou também improcedente o pedido de condenação do autor como litigante de má fé.

Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente, nos autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 644º,1,a, 645º,1,a e 647º,1, todos do CPC. Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. O A. não se conforma com a decisão ínsita na Sentença recorrida, a qual julgou a acção totalmente improcedente.
2. O A., ora Recorrente, foi preso preventivamente, no âmbito do Proc. nº 361/18.5JAVRL, que correu termos no Juízo Central Criminal de Vila Real, 2º Juízo, como presumível autor da prática dos crimes de Homicídio Qualificado e Profanação de Cadáver sobre a sua própria mãe.
3. O Recorrente esteve preso por causa do supracitado processo, ininterruptamente por 406 dias.
4. Em 19/11/2019, o Recorrente foi absolvido da prática do crime de homicídio qualificado e profanação de cadáver.
5. A decisão de aplicação de medida de coacção e todos os actos que se lhe seguiram para justificar a manutenção do Recorrente em reclusão por 406 dias assentam num grosseiro erro judicial.
6. O erro grosseiro subsistiu na medida em que nunca existiu prova de que o Recorrente tivesse estado com a mãe nos termos descritos nos relatórios preliminares e na Acusação.
7. Pelo contrário, a prova demonstrava, clara e inequivocamente, que o Recorrente no dia dos factos criminosos estava noutro lugar.
8. Assim, apontando todos os indícios em sentido contrário, mesmo assim o Recorrente foi mantido em prisão preventiva, consubstanciada numa eventual confissão que os Inspectores da Polícia Judiciária afirmam ter feito.
9. A qual nem sequer respeitou os procedimentos legais, tendo sido considerada, à luz das conversas informais, meio de prova proibido.
10. A este propósito, o Acórdão absolutório consignou que “Todas as “conversas informais” (porque não exaradas em “auto de inquirição” ou “auto de interrogatório de arguido”) que o M. P. teve com os militares da GNR no dia 6 de Outubro de 2018, que os militares ao longo dos seus depoimentos mencionam, nomeadamente para explicar procedimentos de investigação, não podem ser valorados pelo tribunal.”
11. Os elementos constantes dos Autos, nunca poderiam levar a que os Juízes que compuseram o Tribunal Colectivo concluíssem de outra forma, senão pela absolvição do Recorrente.
12. E para a absolvição do Recorrente nem sequer foi necessário recorrer ao princípio do “in dubio pro reo”.
13. Conforme consta da Certidão Judicial junta aos Autos com a Petição Inicial, o julgamento demonstrou que “esta prova documental é temerária, não dá qualquer segurança sobre o que ali consta e acaba até por inquinar a versão da investigação por entrar em contradição com posterior prova produzida e já analisada (recolha de vestígios, resultados das perícias do LPC e relatório da autópsia).”
14. Mais se demonstrou objectivamente e sem qualquer margem para dúvidas que a alegada reconstituição levada a cabo pelo A. perante a Polícia Judiciária, não passara da tomada de declarações do A. transpostas para um auto, em discurso indirecto resumido, acompanhadas de registo fotográfico do mesmo A. num outro local completamente diverso daquele onde alegadamente teriam ocorrido os factos, não podendo ser valorada em sede de julgamento; acresce que tais declarações haviam sido logo desmentidas pelo A., que as justificou pelo medo com que estava da situação em que se encontrava.
15. Nesse Acórdão, o T. Colectivo sublinhou as contradições, incoerências e insubsistências do depoimento de L. T. e, quanto ao alegado “auto de diligência” efectuado pela Polícia Judiciária, considerou que as declarações nele incluídas não podiam valer como meio de prova, não podendo tal auto ser valorado, porque ele se resume no registo de declarações do Arguido transpostas em discurso indirecto resumido, acompanhadas de um registo fotográfico no local onde teriam ocorrido os factos.
16. E assim concluiu o Tribunal que o arguido foi preso preventivamente com base em conversas informais entre o arguido e os inspectores da Polícia Judiciária, rematando que «Assim, as chamadas “conversas informais” dos arguidos com os agentes policiais, antes de serem constituídos arguidos, não podem ser valorizadas em sede probatória.» De outra forma estaríamos a subverter o espírito da lei constitucional e mesmo a agir em fraude à lei ordinária se, porventura, sobrestássemos na constituição de arguido, com o mero fito de, desse modo, o arredar do benefício daquelas garantias e, dessa forma, obter provas incriminatórias contra ele.»
17. Consignou o Colectivo no seu Acórdão também que “O arguido esteve desacompanhado de qualquer pessoa de família e ou da sua confiança pessoal; durante a diligência estava acompanhado do patrão L. T., pessoa da sua confiança, mas naquele momento a “colaborar” (palavras da testemunha) com a Polícia Judiciária; o arguido estava desacompanhado de advogado e consciente da gravidade da sua situação (como em regra está quem é suspeito da morte de outrem e mais ainda da própria mãe).
O arguido estava mal física e psicologicamente. Fácil é concluir que o arguido não tinha uma vontade livre e espontânea de dizer, ou fazer o que quer que fosse (...)
(...) E tanto assim é, que logo que presente ao Juiz de Instrução para primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido rodeado do formalismo legal, nomeadamente, acompanhado por Defensor, não quis prestar declarações(...)
(...) Não se compreende, porque os autos não espelham, em que situação ficou o arguido desde o dia 6 (sábado), entre as 19.20 horas/19.50 horas (fls. 50 a 54), momento em que foi formalmente constituído arguido até ao dia 7 de Outubro de 2018, pelas 21.15 horas, momento em que foi formalmente detido (fls. 245) (...)
(...) A detenção e apresentação imediata à autoridade judiciária (Ministério Público e Juiz) competente teria permitido recolher de forma válida as declarações confessórias do arguido, com observância das legais formalidades, nomeadamente informação do direito ao silêncio, para mais tarde poderem ser usadas (artigos 61.º, 141.º, al. b) e 357.º, n.º 1, do CPP). O arguido só veio a ser presente ao Juiz de Instrução no dia 9/10 (terça-feira), sem que se almeje a impossibilidade de o arguido ter sido antes presente a magistrado do M.P., nomeadamente quando após a sua inquirição e constituição de arguido, não sendo as razões de urgência de localização do corpo da A. L., ainda com vida, como as referidas pela testemunha R. S., suficientes para justificar tal. Querendo, como se diz, o arguido colaborar espontaneamente nas diligências de localização do corpo da mãe (infrutíferas) e fotografadas no “auto de diligência” também o teria feito perante magistrado do M.P. (...)
18. No caso concreto e feito o enquadramento da matéria de facto com relevância para a questão cível em apreço nos presentes autos, importa realçar que o Recorrente não foi absolvido com base no princípio in dubio pro reo
19. Tenta o Tribunal concluir pela inexistência de erro judicial grosseiro, pelo facto de:
a) O Recorrente só tardiamente ter reagido à prisão preventiva;
b) Por o Recorrente ter sido absolvido com base no princípio do in dubio pro reo e não por ter sido comprovado que não praticou o crime.
20. Não corresponde à verdade que o Recorrente, arguido nos autos criminais, tenha sido absolvido com base no princípio do in dubio pro reo, nem isso resulta do Acórdão absolutório proferido em 19/11/2019 pelo Juízo Central Criminal de Vila Real.
21. O Recorrente M. P. foi absolvido com base na prova produzida e nas incongruências evidentes – desde a primeira hora – do auto de reconstituição (suporte para a prisão preventiva). – cfr. Acórdão Absolutório: “continuamos a não saber onde o M.P. foi “beber esta versão” da dinâmica dos acontecimentos de 4/10, entre as 19.05 e as 19.30 horas.”
22. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo, com a competência cível e não penal que lhe é atribuída, qualificou erradamente a noção do princípio do in dubio pro reo.
23. Este princípio é um princípio geral do processo penal e constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
24. Como tal, é um princípio que tem a ver somente com a questão de facto.
25. No caso concreto, resulta da exposição da sua motivação de facto do acórdão de 19/11/2019 não ter o Tribunal Colectivo de Vila Real ficado com quaisquer dúvidas, pelo contrário, ficou certo da não autoria do crime de homicídio de A. L..
Meritíssimos Juízes Desembargadores,
26. O despacho de 2 de Janeiro de 2019, que apreciou a medida de coacção e manteve a prisão preventiva, consubstancia erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto, porque já constavam dos autos e não foram levados em conta, os relatórios periciais de 6 de Outubro de 2018 e de 16 de Outubro de 2018, os quais, alegadamente, afastam o autor da prática dos actos que lhe eram imputados.
27. Ao contrário do que refere o Tribunal a quo, esta prova pericial poderia, e deveria, ser considerada pela Investigação como suficiente para alterar os indícios que existiam na data da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
28. Face ao exposto, mal andou o Tribunal a quo quando decidiu, numa breve narrativa, não enquadrar a situação dos autos no artigo 13º da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.
29. Tal normativo impõe que o Estado seja responsável civilmente pelos danos decorrentes de decisões manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
30. Devendo o pedido de indemnização ser fundado em decisão danosa pela jurisdição competente e é isso que, no caso concreto se impõe e deverá ser declarado.
31. Tais deficiências mais não são que erros grosseiros e que não têm que vir expressamente denominadas de erros, mas sim entendidas como tal, conduziram à absolvição do arguido, ora Autor e Recorrente.
32. A verdade é que por causa desse erro grosseiro, o Recorrente permaneceu preso no Estabelecimento Prisional de Vila Real por 401 dias, o que lhe causou danos e prejuízos irreparáveis, como resultou provado dos factos.
33. A situação de facto e de direito cumpre o requisito imposto no nº 2 do artigo 13º da Lei 63/2007, o Acórdão do Tribunal Colectivo absolve o Recorrente, verificando-se os danos decorrentes de decisão manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, como já foi sobejamente exposto, o que gera responsabilidade civil do Estado perante o Recorrente.
34. A absolvição e conclusão da não responsabilidade do arguido M. P. resulta da análise correcta dos factos e que não foram correctamente valorados pela Investigação, designadamente a partir do momento em que os supra aludidos Relatórios Periciais foram juntos aos Autos de Inquérito.
35. Para não subsumir o processo dos Autos a erro judicial, a enquadrar no artigo 13º da Lei nº 67/2007, com vista a inexistir qualquer consequência ou penalização para os seus pares, que pode advir do artigo 14º do mesmo diploma, a sentença do Tribunal a quo demonstrou, sempre com o devido respeito, uma fundamentação escassa e deficiente, desconsiderando decisões de tribunais, prova e factos inequívocos, considerações e leituras erradas, não diferentes ou opostas, dum acórdão e de princípios gerais de direito penal.
36. De tudo quanto se expôs, apenas se pode extrair que se existe processo em que ocorreu erro judiciário, grosseiro, com decisão judicial danosa (406 dias de privação de liberdade) manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, é este!
37. Verificados que estão os requisitos do art. 13º da Lei nº 67/2007, o artigo 22º da CRP, lido à luz do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 62º da CRP, e das normas dos artigos 62º e 83º da mesma CRP, inclui necessariamente um princípio de reparação pelo Estado da actividade pública lícita causadora de danos especiais e anormais, que se verificaram no caso do Recorrente e por isso, o Recorrido é responsável pela indemnização do sacrifício causado pelo acto jurisdicional que apreciou mal os pressupostos de facto.
38. É obrigação do Recorrido indemnizar o Recorrente, face ao erro judiciário previsto no art. 13º da Lei nº 67/2007, pelos fundamentos supra expostos, que o privou da sua liberdade por 406 dias, face às decisões danosas proferidas, devendo o presente recurso ser julgado procedente.
39. Pese embora o Recorrente discorde da aplicação do princípio in dubio pro reo na absolvição do arguido, tal como sobejamente alegado, o Tribunal a quo acaba por admitir, na verificação do requisito da alínea c) do nº 1 do art. 225º do CPP - comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente - que foi também absolvido por não haver indícios de ter cometido o crime por que foi acusado: “Parece-nos, contudo que, no caso sub judice, se pode dar como assente, para efeitos de indemnização, que o ora A. Não cometeu o crime de que era acusado e que justificou a prisão preventiva.”
40. O Tribunal a quo, somente para não ver verificado o erro grosseiro, decidiu, conscientemente contradizer-se, pois se continuasse no mesmo raciocínio que mantinha na verificação do requisito da al. c) do art. 225º do CPP, onde o Tribunal a quo deu como assente que o Recorrente fez prova que não foi o agente do crime, teria, necessariamente, que prolongar esse fio condutor para admitir, na análise dos requisitos do art. 13º da Lei nº 67/2007, que o Recorrente foi absolvido porque provou não ser o agente do crime, pelo que consequentemente, fez prova de que era inocente, logo, houve erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto pelo Juiz de Instrução do Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar e pelo Colectivo de Vila Real.
Senhores Desembargadores!
41. Encontra-se dado como provado que os danos sofridos pelo A./Recorrente foram muito graves e todos os factos que se reportam aos danos não patrimoniais e que não carecem de documentos se deram como provados.
42. Para fundar a improcedência do pedido do A., o Tribunal a quo, além do mais, atribui ao comportamento do Recorrente, contribuição relevante para a sua privação de liberdade, de 406 dias, pela confissão (sabe-se lá em que circunstâncias…) dos factos perante a Polícia Judiciária e colaborou na reconstituição dos factos, tendo, no entender do tribunal, somente reagido numa fase tardia do processo.
43. Discorda-se plenamente do entendimento do tribunal a quo, uma vez que, tal como se reproduziu supra, no Recurso interposto da decisão de aplicação de medida de coacção, após a realização do 1º interrogatório judicial, o Recorrente proclamou a sua inocência perante o Tribunal da Relação de Guimarães, deduziu posição processual contra a Acusação e deduziu queixa-crime pelos factos ocorridos no âmbito do interrogatório da Polícia Judiciária,
44. E, independentemente disso, a prova objectiva demonstra, inequivocamente, ser impossível o crime ter sido cometido pelo Recorrente.
45. A prisão a que o Recorrente foi sujeito causou-lhe danos não patrimoniais irreparáveis, dando-se por reproduzida a factualidade provada, quer na vida pessoal, quer profissional, quer na vida pública, designadamente na vertente social em que estava perfeitamente inserido, e, por isso é lícito que peticione uma indemnização por danos não patrimoniais, resultantes da privação do valor da liberdade de 406 dias, perfazendo um período global de 9744 horas, encarcerado ilegalmente, situação que lhe causou a queda irrecuperável do seu crédito moral, bem como, a impossibilidade de prosseguir com a sua actividade profissional.
46. A privação de liberdade do Recorrente causou-lhe grande constrangimento, pelo que não poderão ser insuficientemente calculados os prejuízos morais sofridos em consequência da permanência na cela de um estabelecimento prisional, pois tais riscos são de amplo e geral conhecimento, na medida em que a prisão traz hoje consigo risco de mal grave, perigo de lesão intensa, sem esquecer a quebra da dignidade da pessoa humana.
47. A ausência temporária da liberdade por um crime horrendo que não cometeu, de 406 dias, constitui um facto perpétuo na mente do Recorrente, que humilhou e constrangeu em elevado grau a sua pessoa, enquanto cidadão cumpridor.
48. Na fixação do quantum indemnizatório, pela apreciação da posição social do Recorrente como critério para valorar a indemnização, maior será a repercussão da ofensa, na medida em que ela se torna pública e nessa medida, a lesão por danos não patrimoniais sofridos por preso submetido a prisão preventiva injusta deve ser valorada de harmonia com a sua extensão e o sofrimento pelos correspondentes estados de angústia e solidão, mesmo que a personalidade do lesado se mostre refractária a uma conduta correcta e em consonância com os valores legalmente protegidos.
49. A prisão injustamente decretada de um jovem produziu um tremendo abalo de crédito pessoal mas também social, desse modo, resultando na descredibilização social do recorrente.
50. Acresce ainda que este processo foi fortemente mediatizado, tornando o Recorrente numa momentânea figura conhecida, «olhada de lado» na rua, nos cafés e nos supermercados.
51. A angústia experimentada no cárcere provocou um abalo interior e uma redução da auto-estima, sem falar na superlotação e promiscuidade do ambiente prisional, que colocaram em jogo a integridade física e psíquica do Recorrente enquanto preso, gerando sentimentos de humilhação e constrangimento.
52. Não pode o Recorrente concordar com a decisão do Tribunal a quo, devendo os Excelentíssimos Desembargadores revogar a sentença proferida e substituí-la por outra que condene o Recorrido ao pagamento da uma indemnização por danos não patrimoniais ao Recorrente no montante peticionado de €170.000,01.

O Estado Português apresentou contra-alegações, extraindo das mesmas as seguintes conclusões:

A) Como que a título prévio de análise do mérito da motivação apresentada e respectivas conclusões, sempre diremos que o recurso não vem interposto de facto, porque o recorrente não põe em causa os factos provados, e, se vem interposto de direito, o recorrente não deu cumprimento ao disposto no art.º 639.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (doravante, apenas C.P.C.), o que expressamente se invoca, com as necessárias consequências legais, nomeadamente, as do art.º 639.º, n.º3 do mesmo diploma;
B) São as conclusões que delimitam o objecto do recurso;
C) Em desrespeito de regras formais elementares, as conclusões do recurso apresentam inúmeras deficiências porque não sintetizam, em violação do normativo referido em A), a identificação das questões suscitadas, as questões às quais pretende uma resposta diversa daquela que foi dada pelo Tribunal a quo, indicação das normas jurídicas violadas, sentido que deve ser atribuído às normas cuja aplicação e interpretação determinou o resultado que pretende impugnar e, a existir erro, quais as normas que deveriam ter sido aplicadas;
D) O Recorrente, salvo o devido respeito, limita-se a secundar a petição inicial e a insurgir-se contra a Sentença recorrida porque a julgou totalmente improcedente, mas sem especificar e/ou condensar, em sede de conclusões, os fundamentos por que pugna pela revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo e sem enunciar verdadeiras questões de direito, omitindo a menção legalmente imposta de indicação das normas violadas;

SEM PRESCINDIR,
E) O Tribunal a quo proferiu decisão de mérito, julgando totalmente improcedente a acção instaurada, logo em sede de Despacho Saneador que, pelo seu teor e natureza decisória, ficou a ter, para todos os efeitos, o valor de Sentença - art.º 595.º, n.º1, alínea b), n.º 2 e n.º3, 2.ª parte, do C.P.C.;
F) É desta Sentença proferida a 15-02-2021 (ref.ª 35127744) que vem interposto o presente recurso;
G) O recorrente peticiona uma indemnização pelos danos que terá sofrido em consequência da alegada privação injustificada da liberdade, por ter estado sujeito à medida de coacção de prisão preventiva e, após realização da audiência discussão e julgamento, ter sido absolvido da prática dos crimes que lhe eram imputados [reportamo-nos ao processo criminal base, processo comum colectivo n.º 361/18.5JAVRL, que motivou depois a instauração da presente acção];
H) São três as questões decidendas, na nossa humilde perspectiva, neste momento, seguindo a fundamentação de facto e de direito da Sentença recorrida:
-A verificação dos requisitos da responsabilidade civil e a consequente obrigação de o demandado indemnizar o autor;
-Em caso afirmativo, os termos da obrigação de indemnizar;
-A verificação do abuso de direito por parte do autor e cessação do dever de indemnizar, nos termos do disposto no art.º 225.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante, apenas C.P.P.);
I) Atentas as conclusões da motivação do recurso interposto pelo Autor, que delimitam o seu objecto (art.º 639.º, n.º3 do C.P.C.) - embora com as deficiências que apontamos supra, em A), C) e D) -, e como que numa análise conjunta destas questões, temos que, segundo ele, a sentença do Tribunal a quo padece de fundamentação escassa e deficiente, desconsiderou decisões de tribunais, prova e factos inequívocos, teceu considerações e fez leituras erradas, não diferentes ou opostas, do acórdão absolutório e de princípios gerais de direito penal;
J) É inadmissível e é grave, além de insusceptível de ser apreciado por esse Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, que venha agora o recorrente, mas apenas em sede de recurso, alegar, conforme conclusão 40 que afinal o erro judicial grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto em que assentou a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva não se cinge apenas ao Juiz de Instrução Criminal no despacho proferido a 2 de Janeiro de 2019, mas também ao próprio Tribunal Colectivo de Vila Real (o mesmo Tribunal Colectivo que o absolveu da prática dos crimes e determinou a sua libertação apenas aquando da leitura do Acórdão, manutenção da prisão preventiva esta em relação à qual o recorrente nunca reagiu…);
K) O recorrente centra a sua motivação na alegada existência de erro judicial grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependeu a sua privação de liberdade por manutenção (e não aplicação, porque para o recorrente, como aduzimos na nossa Contestação, a aplicação desta medida de coacção foi perfeitamente legal e justificada), da medida de coacção de prisão preventiva [não de 401 (quatrocentos e um) dias, mas de 406 (quatrocentos e seis) dias, como certamente por lapso o recorrente fez constar da página 12., último parágrafo, segunda linha, e conclusão 32.];
L) Decompondo ponto por ponto a motivação do recurso, importa considerarmos o disposto no art.º 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31-12 -domínio específico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas - em especial no que toca à responsabilidade por erro judiciário: “(…) 1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de (…) privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. (…)”;
M) Dispõe o art.º 27.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante, apenas C.R.P.) que “(…) A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.
(…)”;
N) Caímos no âmbito de aplicabilidade da responsabilidade civil extracontratual, por actos ilícitos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 483.º e seguintes do Código Civil (doravante, apenas C.C.), ex vi art.º 225.º do Código de Processo Penal;
O) Concretizando aquele normativo da nossa Lei Fundamental em sentido estrito (art.º 27.º, n.º5), veio este último normativo - art.º 225.º do C.P.P. - , de natureza substantiva, impor de forma taxativa as situações conducentes a indemnização por privação ilegal ou injustificada da liberdade;
P) Para que o Estado, aqui Réu, se constituísse no dever de indemnizar o recorrente, chamando à colação os normativos referidos (sobretudo, pela sua especialidade como dissemos, o disposto no art.º 225.º, n.º1 do C.P.P.) e numa análise conjugada dos mesmos, teria de verificar-se, in casu, o preenchimento de algum dos seguintes factores e/ou pressupostos:
a) A privação da liberdade fosse ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tivesse ficado a dever a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; ou
c) Se comprovasse que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente.;
Q) Por outro lado, dispõe este mesmo art.º 225.º, no seu nº 2, que o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade;
R) Para o recorrente, o erro judicial grosseiro apenas se verifica a partir do despacho de 2 de Janeiro de 2019, que reapreciou e manteve a medida de coacção de prisão preventiva que lhe havia sido aplicada aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido no âmbito do inquérito n.º 361/18.5JAVRL e que depois correu termos no Juízo Central Criminal de Vila Real – Juiz 2;
S) Importa considerar os seguintes segmentos decisórios da Sentença recorrida, que remetem de forma expressa para a fundamentação que fizemos constar do articulado da nossa Contestação, julgada procedente, e que assim a materializam:
-não ocorre o fundamento previsto na alínea a), do nº 1, do art. 225º do CPP, já que não se pode dizer que a privação da liberdade foi ilegal, até porque não se verifica nenhum dos fundamentos previstos no nº 1 do artigo 220º, ou no nº 2 do artigo 222º do referido diploma legal; (sublinhado e ênfase nossos)
-o próprio autor admite que a prisão preventiva que lhe foi aplicada inicialmente, não padeceu do alegado erro grosseiro na sua aplicação (artigo 55º da petição inicial);
-E não se verifica também o fundamento previsto na alínea c) do preceito citado, ou seja, quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente;
-não há dúvidas de que o facto de o autor ter sido absolvido no processo crime mencionado, não significa que se tenha provado que não foi o agente do crime;
-A jurisprudência tem sido maioritária no sentido de considerar que a absolvição do arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, não preenche o requisito da al. c) do nº 1, do art. 225º do CPP;
-Ao contrário do que o autor refere, na decisão de manutenção proferida a 02 de Janeiro de 2019 baseou-se numa apreciação fundamentada quanto à subsistência dos pressupostos daquela medida de coacção; e (…) não desconsiderou em absoluto as informações periciais constantes dos autos ou outros elementos probatórios, apenas considerou que nada de relevante traziam aos autos, que levasse a que devesse ser alterada a medida de coacção;
-em despacho que manteve a prisão preventiva ao arguido, refere o senhor juiz que, no julgamento presidiu ao Tribunal Colectivo que veio a absolver o mesmo, e onde cita jurisprudência dos tribunais superiores, “a decisão que determina a prisão preventiva se não for objecto de recurso ou, tendo-o sido, mas mantida nos seus precisos termos adquire força de caso julgado, sem prejuízo do princípio “rebus sic standibus”, condição a que pelas contínuas variações do seu condicionalismo, estão sujeitas as medidas de coacção”;
-A decisão que impõe a prisão preventiva, embora não seja definitiva, apenas é modificável quando se verificar uma alteração das circunstâncias que a fundamentaram, o que não ocorreu no caso, já que a prova pericial invocada pelo autor, nada veio alterar quanto aos indícios que já existiam na data da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva;
-Ainda que assim não se entendesse, sempre seria indevida a pretendida indemnização, por via do disposto no nº 2 do art. 225º do CPP, que dispõe que nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade; (ênfase nosso)
-Como refere o Ministério Público na contestação, o Autor conformou-se com o despacho de 02-01-2019 bem como os subsequentes despachos que mantiveram a medida de coacção de prisão preventiva, nunca a eles reagiu por via de recurso e nunca requereu a alteração da medida de prisão preventiva até à leitura do Acórdão que o absolveu, a 19-11-2019, no âmbito do processo comum colectivo n.º 361/18.5JAVRL, apesar de, pelo menos desde que lhe foi notificada a acusação, ter conhecimento de todos os elementos de prova do processo;(sublinhado e ênfase nossos)
-O Autor também não requereu, como podia, a abertura de instrução, onde poderia questionar os fortes indícios ou indícios suficientes em que se fundamentava a acusação e a medida de prisão preventiva e invocar o erro grosseiro na apreciação da prova que agora invoca nesta acção, tendo-se mantido inerte até à leitura do Acórdão absolutório, que determinou a sua libertação a 19 de Novembro de 2019, no processo n.º 361/18.5JAVRL; (sublinhado e ênfase nossos)
-E dando por reproduzido o que se diz na contestação, “com esta atitude, ao conformar-se com os despachos que desde 02-01-2019 até 19-11-2019 decidiram pela manutenção da prisão preventiva, sem questionar ao longo desse período de tempo os pressupostos subjacentes à sua aplicação e manutenção, concorreu, pelo menos com culpa negligente, para a manutenção da sua privação de liberdade, tanto mais que estava representado pelo mesmo Advogado que agora o patrocina na presente acção, ciente que estava de que para a aplicação de qualquer medida de coacção e sua manutenção, à excepção do termo de identidade e residência, é necessário que se verifiquem os requisitos previstos nos arts. 202º e 204º, do Código de Processo Penal”; (sublinhado e ênfase nossos)
-Assim sendo, por via do preceito citado (art. 225º, nº 2 do CPP), cessa o dever de indemnizar, por o arguido (aqui autor) ter concorrido, com negligência, para a privação da sua liberdade. (sublinhado e ênfase nossos)
-E com a mesma atitude processual, pode considerar-se, ainda, que o Autor criou no Estado a confiança de que nunca se colocaria a questão da existência de qualquer erro grosseiro na apreciação da prova em que se fundamentou a conclusão de que havia fortes indícios da prática dos crimes imputados ao Autor, ali arguido, nem também de qualquer erro grosseiro na apreciação dos restantes pressupostos da prisão preventiva; (sublinhado e ênfase nossos)
-(…) o exercício do eventual direito do autor a pedir uma indemnização fundamentada na sua privação da liberdade por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação ou manutenção da prisão preventiva no âmbito do processo em que era arguido, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, constituindo um venire contra factum proprium; (sublinhado e ênfase nossos)
T) Não se verifica o requisito da alínea a) do n.º1 do art.º 225.º do C.P.P., porque não se verifica nenhum dos fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 220.º, ou no n.º 2 do artigo 222.º do mesmo diploma, que pudesse fundamentar a atribuição de uma indemnização pelos danos sofridos;
U) Não se verifica o fundamento previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 225.º do C.P.P., porque a privação da liberdade não se ficou a dever, de todo, a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, muito pelo contrário, a decisão de manutenção proferida a 02 de Janeiro de 2019 [assim como as sucessivas decisões de manutenção da medida de coacção], baseou-se numa apreciação fundamentada quanto à subsistência dos pressupostos daquela medida de coacção;
V) E não se verifica, também, o fundamento previsto na alínea c) do mesmo preceito, porque não se comprovou que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente; pelo contrário, no processo comum colectivo n.º 361/18.5JAVRL, existiu foi um juízo de carência probatória bastante, ou seja, inexistência de provas, e não por ter sido comprovado que o recorrente não praticou o crime;
W) A absolvição do arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, por falta de prova bastante, não preenche o requisito da al. c) do n.º 1, do art.º 225.º do C.P.P., como, aliás, tem sido decidido pela jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores (caso contrário, atrevemo-nos a este comentário lateral, todos os arguidos que fossem absolvidos em audiência e julgamento, mas tivessem estado em prisão preventiva, teriam direito a uma indemnização do Estado Português por privação ilegal e/ou injustificada da liberdade);
X) Ainda que assim não se entendesse, o que não concedemos, qualquer eventual dever de indemnizar que pudesse estar em causa cessou, nos termos do art.º 225.º, n.º 2 do C.P.P., o que constitui um facto que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo recorrente, integrando excepção peremptória que conduz, como assertivamente conduziu, à absolvição total do Estado relativamente ao pedido por aquele formulado na Petição Inicial (P.I.) (artigo 576.º, n.º3 e 579.º, ambos do C.P.C.);
Y) Por outro lado, é ilegítimo o exercício de tal direito pelo recorrente, nos termos do art.º 334.º do Código Civil, por configurar uma situação de abuso de direito, o que igualmente constitui excepção peremptória, por se tratar de facto que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo recorrente e implica, como implicou, a absolvição total do Estado relativamente ao pedido por aquele formulado na P.I. (artigo 576.º, n.º3 e 579.º, ambos do C.P.C.);
Z) Bem andou o Tribunal a quo quando decidiu e concluiu, como na Contestação, julgar a acção totalmente improcedente, e, consequentemente, absolver o réu Estado Português dos pedidos contra si formulados.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, cabe decidir se:
a) a privação da liberdade do autor se deveu a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;
b) ficou comprovado que o autor não foi agente do crime ou actuou justificadamente;

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

Em 04.10.2018, A. L., mãe do Autor, desapareceu.
Em 06.10.2018, a Polícia Judiciária fez buscas à habitação e automóvel do Autor, tendo sido apreendidos vários objectos (roupa e tapete da bagageira com vestígios supostamente hemáticos), a viatura e dois telemóveis.
No mesmo dia, o Autor foi constituído arguido, tendo prestado T.I.R., e nessa qualidade foi interrogado, pelas 19:50 horas, sem a presença de Advogado.
Em 07.10.2018, a Polícia Judiciária lavrou aquilo a que chamou “auto de diligência”, em que o Autor aparece fotografado junto a uma viatura e a um caixote do lixo, onde supostamente teria colocado a bengala que a sua mãe usava “em que se reconstituem os factos”.
E, em 08.10.2018, lavrou outro auto, no qual os inspectores da P.J. referem ter feito diligências, destinadas a localizar o cadáver da progenitora do arguido, que culminou com o despacho de fls. 94 e seguintes.
Em todas estas diligências não esteve presente defensor.
Apenas em 09.10.2018, o Autor é sujeito a 1º Interrogatório Judicial de arguido detido, no qual não prestou declarações e no qual foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
O exame pericial do Laboratório de Polícia Científica da P.J., realizado em 06.10.2018, que procedeu à análise dos vestígios do Renault, às peças de roupa e ao tapete da mala, concluiu pela ausência de qualquer vestígio de ADN de A. L. em qualquer desses objectos.
No dia 2 de Janeiro de 2019, já constavam dos autos não só o relatório de exame pericial, de 06.10.2018, como o relatório de exame pericial do Laboratório de Polícia Científica de 16.10.2018, com os resultados aos vestígios recolhidos supra discriminados.
10º Porém, o Ministério Público continuou a propugnar pela manutenção da prisão preventiva, e a Senhora Juíza de Instrução determinou que se mantivesse tal medida de coacção, como a única adequada e proporcional a acautelar os perigos de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e ainda perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e a tranquilidade públicas.
11º Nesse despacho, a Senhora Juíza de Instrução não referiu expressamente as informações periciais já constantes dos autos, e sustentou que os elementos recolhidos entre o momento em que foi aplicada a referida medida de coacção e a presente data não infirmaram os indícios elencados no despacho de aplicação da medida de coacção nem permitem concluir pela necessidade de alteração da medida que foi imposta.
12º Em 19.11.2018, o M.P. ordenou a realização de uma perícia ao Autor, para aferir o seu estado psíquico/saúde mental, ao tempo dos factos.
13º Em 04.02.2019, foi junta aos autos Relatório Pericial datado de 21.01.2019, no qual se conclui que o Autor não apresenta qualquer patologia do foro mental e tem capacidade de avaliação.
14º Em 01.04.2019, foi junto aos autos “Relatório de Autópsia Médico Legal”, subscrito pelos peritos médicos D. A. e J. A., de onde se extrai que “na hipótese de equimose, esta é resultante de traumatismo de natureza contundente ou como tal actuando.”
15º A autópsia também não é conclusiva quanto às demais lesões apresentadas pela Sr.ª A. L., referindo que quanto às fracturas do tecto das órbitas, estas poderiam resultar “de uma queda, de um embate contra uma estrutura dura, um murro, um pontapé” e quanto à equimose ao nível da cabeça, a resposta foi ainda mais inconclusiva, de onde se conclui que terá sido por asfixia que A. L. morreu, mas não pode concluir qual dos mecanismos de asfixia em concreto causou a sua morte.
16º Em 03.04.2019, o Ministério Público deduziu Acusação contra o Autor, pela suposta prática, em autoria material e em concurso real de um crime de homicídio qualificado e de um crime de profanação de cadáver, na pessoa de sua Mãe, A. L..
17º Em 04.04.2019, considerando a inexistência de factos supervenientes favoráveis ao Arguido após a prolação da decisão que determinou a prisão preventiva, suportado ainda na promoção do Ministério Público, a Senhora Juiz de Instrução manteve a prisão preventiva do Autor.
18º Em 01.07.2019, o Juiz titular dos autos manteve a prisão preventiva do Autor, considerando que se mantêm os fundamentos que determinaram tal medida de coacção.
19º O julgamento teve lugar em sessões que decorreram nos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2019, tendo, em 19.11.2019, sido lavrado o acórdão respectivo, que absolveu o Autor, ali arguido, e determinou a sua imediata libertação.
20º Nessa sentença, o tribunal deu apenas como provados os seguintes factos:
1) O arguido é filho de A. L. e vivia com ela juntamente com o irmão L. A. na Rua ..., n.º … Ribeira de Pena.
2) A. L. nasceu a - de Março de 1951, tinha à data dos factos 67 anos de idade e era uma pessoa com uma saúde debilitada, padecendo, entre outros, de perturbação depressiva, de distonia cervical, de tirotoxicose, de hemitireoidectomia, de asma, de bronquite crónica, de hipertiroidismo, de espondilose e de hipertensão.
3) A relação da mãe com os filhos M. P. e L. A., e dos filhos entre si, era conflituosa.
4) O arguido tinha problemas de alcoolismo.
5) No dia em que foi autopsiada A. L. apresentava as seguintes lesões:
-uma área de coloração mais escurecida na região frontal à direita da linha média que poderá corresponder a uma equimose.
-traços de fractura no osso frontal superiormente à arcada supraciliar à esquerda da linha média, nos tectos das órbitas e na porção inferior e medial do rebordo orbitário ao nível da maxila direita.
-ao nível do esqueleto laríngeo fractura do grande corno da cartilagem tiroideia à direita.
Lesões essas que determinaram a sua morte.
6) O cadáver de A. L. foi descoberto por caçadores no dia 23 de Dezembro de 2018 envolto em lama e em avançado estado de decomposição.
21º Concluiu o Tribunal Colectivo que “esta prova (auto de diligência de 07.10.2018 e fotografias do autor) documental é temerária, não dá qualquer segurança sobre o que ali consta e acaba até por inquinar a versão da investigação por entrar em contradição com posterior prova produzida e já analisada (recolha de vestígios, resultados das perícias do LPC e relatório da autópsia).”
22º Nesse Acórdão, o Tribunal Colectivo sublinhou as contradições, incoerências e insubsistências do depoimento de L. T. e, quanto ao alegado “auto de diligência” efectuado pela Polícia Judiciária, considerou que as declarações nele incluídas não podiam valer como meio de prova, não podendo tal auto ser valorado, porque ele se resume no registo de declarações do Arguido transpostas em discurso indirecto resumido, acompanhadas de um registo fotográfico no local onde teriam ocorrido os factos.
23º E mais diz esse acórdão: «Assim, as chamadas “conversas informais” dos arguidos com os agentes policiais, antes de serem constituídos arguidos, não podem ser valorizadas em sede probatória.» De outra forma estaríamos a subverter o espírito da lei constitucional e mesmo a agir em fraude à lei ordinária se, porventura, sobrestássemos na constituição de arguido, com o mero fito de, desse modo, o arredar do benefício daquelas garantias e, dessa forma, obter provas incriminatórias contra ele.»
24º E prossegue o Tribunal, afirmando que “Todas as “conversas informais” (porque não exaradas em “auto de inquirição” ou “auto de interrogatório de arguido”) que o M. P. teve com os militares da GNR no dia 6 de Outubro de 2018, que os militares ao longo dos seus depoimentos mencionam, nomeadamente para explicar procedimentos de investigação, não podem ser valorados pelo tribunal.”
25º Consignou o Colectivo no seu Acórdão também que “O arguido esteve desacompanhado de qualquer pessoa de família e ou da sua confiança pessoal; durante a diligência estava acompanhado do patrão L. T., pessoa da sua confiança, mas naquele momento a “colaborar” (palavras da testemunha) com a Polícia Judiciária; o arguido estava desacompanhado de advogado e consciente da gravidade da sua situação (como em regra está quem é suspeito da morte de outrem e mais ainda da própria mãe). O arguido estava mal física e psicologicamente. Fácil é concluir que o arguido não tinha uma vontade livre e espontânea de dizer, ou fazer o que quer que fosse (...) (...) E tanto assim é, que logo que presente ao Juiz de Instrução para primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido rodeado do formalismo legal, nomeadamente, acompanhado por Defensor, não quis prestar declarações(...) (...) Não se compreende, porque os autos não espelham, em que situação ficou o arguido desde o dia 6 (sábado), entre as 19.20 horas/19.50 horas (fls. 50 a 54), momento em que foi formalmente constituído arguido até ao dia 7 de Outubro de 2018, pelas 21.15 horas, momento em que foi formalmente detido (fls. 245) (...). (...) A detenção e apresentação imediata à autoridade judiciária (Ministério Público e Juiz) competente teria permitido recolher de forma válida as declarações confessórias do arguido, com observância das legais formalidades, nomeadamente informação do direito ao silêncio, para mais tarde poderem ser usadas (artigos 61.º, 141.º, al. b) e 357.º, n.º 1, do CPP). O arguido só veio a ser presente ao Juiz de Instrução no dia 9/10 (terça-feira), sem que se almeje a impossibilidade de o arguido ter sido antes presente a magistrado do M.P., nomeadamente quando após a sua inquirição e constituição de arguido, não sendo as razões de urgência de localização do corpo da A. L., ainda com vida, como as referidas pela testemunha R. S., suficientes para justificar tal. Querendo, como se diz, o arguido colaborar espontaneamente nas diligências de localização do corpo da mãe (infrutíferas) e fotografadas no “auto de diligência” também o teria feito perante magistrado do M.P. (...)
26º Segundo o Tribunal, “Toda a prova produzida (depoimentos e exame ao local) permite apenas convencer o tribunal que no dia 4/10/2018, no período compreendido entre as 18.30 horas e 19.30 horas, (o alegado na acusação) A. L. caminhava, com a ajuda de uma bengala, pela berma da Estrada Nacional 312, no sentido Bragadas/Santo Aleixo, sendo vista pela última vez a cerca de 1.700 metros da sua casa.
Só por si, um facto criminalmente irrelevante. Do que se passou desde esse momento (dia e hora) até ao momento do aparecimento acidental do seu cadáver, em 23/12/2018, nada se sabe. Ninguém sabe nada, porque ninguém viu nada. E nenhuma prova de outra natureza, nomeadamente pericial foi produzida que convença o Tribunal do que se passou a seguir ao ter sido vista pela última vez até ser encontrado o seu cadáver.
Inexiste prova válida que explique a versão da acusação ou qualquer das versões, relatada pelo arguido a terceiros.”
27º O Tribunal Colectivo chega ao ponto de afirmar: “continuamos a não saber onde o M.P. foi “beber esta versão” da dinâmica dos acontecimentos de 4/10, entre as 19.05 e as 19.30 horas.”
28º Esse Acórdão transitou em julgado em 19.12.2019.
29º No âmbito do inquérito n.º 361/18.5JAVRL, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar e que deu origem ao processo comum colectivo com o mesmo número, que correu termos no Juízo Central Criminal de Vila Real – Juiz 2, o A. ficou sujeito à medida de coacção de prisão preventiva por despacho judicial proferido na sequência do seu interrogatório judicial, de arguido detido, no dia 09 de Outubro de 2018, nos termos e no cumprimento escrupuloso do disposto no art.º 141.º do C.P.P..
30º O Autor juntou procuração nesses autos, a favor do mesmo Mandatário da presente acção, Dr. N. F., nesse mesmo dia, ou seja, a 09 de Outubro de 2018.
31º O Autor, através do seu Ilustre Mandatário interpôs recurso daquela medida de coacção de prisão preventiva, apenas decorrido quase um mês desde a sua aplicação, dando entrada da peça processual no dia 07 de Novembro de 2018.
32º O Tribunal da Relação de Guimarães proferiu Acórdão, datado de 11 de Fevereiro de 2019, no qual julgou o recurso do ali arguido, aqui A., totalmente improcedente, confirmando integralmente aquele despacho judicial que havia determinado a aplicação ao A. da medida de coacção de prisão preventiva.
33º Submetida ao escrutínio de um tribunal superior, a medida de coacção de prisão preventiva foi julgada a única medida adequada, justificada, proporcional e necessária.
34º Decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão datado de 11 de Fevereiro de 2019, que: “(…) Debruçando-nos sobre os elementos carreados para os autos importa concluir que analisada a prova por declarações prestada pelo arguido de fls. 173 a 175 (fls. 52 a 54 destes autos) e 232 a 236 (fls. 55 a 59 destes autos), os depoimentos colhidos junto das testemunhas L. A. de fls. 176 a 179 e L. T. de fls. 229 a 231 (fls. 63 a 68 destes autos) – e feita a sua conjugação com a prova por documentos de fls. 24 e seguintes – assentos de nascimento, de fls. 24 e seguintes destes autos, auto de noticia de fls. 37 e seguintes, relatórios de ocorrência de fls. 43 e seguintes, auto de ocorrência de fls. 49 e seguintes, auto de busca e apreensão de fls. 60 e seguintes, relatório de exame pericial de fls. 69 e seguintes e os autos de diligencia com fotogramas de fls. 107 e seguintes e fls. 117 importa concluir que se acha fortemente indiciado que:
-O arguido, ora recorrente, é filho da vítima A. L.;
-A vítima, nascida a - de Março de 1951, tinha à data dos factos 67 anos de idade e padecia da doença de Alzheimer;
-No dia 4 de Outubro de 2018, no período compreendido entre as 18 horas e 30 minutos e as 19 horas e 30 minutos, na localidade de Bragadas, na berma da Estrada Nacional 312, o arguido, ora recorrente, abordou a vítima e pediu-lhe a quantia de 20,00€ para comprar gasolina;
-Em virtude de a vítima haver negado a solicitação do arguido, ora recorrente, travou o mesmo com ela uma discussão;
-Nessa sequência, o arguido, ora recorrente, usando da força física, empurrou a vítima contra o rail de protecção da estrada, fazendo-a embater com a cabeça no solo;
-Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, ora recorrente, a vítima sofreu lesões que determinaram a sua morte;
-Em acto contínuo, o arguido, ora recorrente, arrastou o corpo da vítima até ao veículo no qual se fazia transportar, de marca Renault, modelo Mégane, com a matrícula LV, abriu a mala e colocou o cadáver no seu interior, levando-o para lugar desconhecido para que não pudesse ser encontrado;
-O arguido, ora recorrente, actuou com o propósito concretizado de usar a força física contra a vítima e de lhe causar lesões corporais para lhe retirar a vida, o que quis e conseguiu;
-O arguido, ora recorrente, sabia que a sua investida era determinada por um pretexto insignificante e que era dirigida contra a sua mãe, pessoa idosa e incapaz de se defender;
-O arguido, ora recorrente, actuou ainda com o desígnio alcançado de esconder o cadáver da vítima para que não seja possível verificar a amplitude da sua conduta;
-O arguido, ora recorrente, agiu de forma calculista e insensível com total indiferença pela vida humana e sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, estando ciente que essa sua conduta, especialmente censurável e perversa, era proibida e punida por Lei.
Da leitura de tais factos, quer na sua vertente objectiva, quanto subjectiva, importa a conclusão que o recorrente M. P. se encontra fortemente indiciado pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de homicídio agravado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas a) e e) do Código Penal, a que corresponde a moldura penal abstracta de 12 a 25 anos de prisão e de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma legal, cuja moldura penal abstracta é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias. (…)
Somos, nestes termos, de concluir que nenhuma crítica merece a Meritíssima Juiz “a quo” relativamente à decisão proferida, posto que estão reunidos todos os legais pressupostos para a aplicação, em concreto, de tal medida coactiva.
Outrossim, face à factualidade dada como assente, nenhum outro estatuto coactivo se apresenta adequado e suficiente para obviar ao enunciado perigo nos termos em que o mesmo se circunstancia, já que apenas uma medida cautelar restritiva da liberdade é a adequada, por ser a necessária e suficiente.
De entre as duas medidas de tal natureza, a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica que é menos danosa que a prisão preventiva, não se mostra adequada, por ser insuficiente face às versadas exigências, razão por que apenas se mostra adequada, necessária e suficiente a medida cautelar de prisão preventiva para obviar aos aludidos perigos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 191º, 193º e 204º, alíneas b) e c) do Código do Processo Penal.
Destarte, face a tudo o que se deixa consignado, quer de facto como de direito, terá forçosamente de improceder a lide recursal do recorrente M. P., confirmando-se na sua integralidade o despacho recorrido.”.
35º O Autor não reagiu ao despacho de 02-01-2019 nem aos subsequentes despachos que mantiveram a medida de coacção de prisão preventiva, quer por via de recurso, quer requerendo a alteração da medida de prisão preventiva, até à leitura do Acórdão que o absolveu, a 19-11-2019, no âmbito do processo comum colectivo n.º 361/18.5JAVRL, apesar de, pelo menos desde que lhe foi notificada a acusação, ter conhecimento de todos os elementos de prova do processo.
36º O Autor não requereu a abertura de instrução, onde poderia questionar os fortes indícios ou indícios suficientes em que se fundamentava a acusação e a medida de prisão preventiva e invocar o erro grosseiro na apreciação da prova que agora invoca nesta acção, tendo-se mantido inerte até à leitura do Acórdão absolutório, que determinou a sua libertação a 19 de Novembro de 2019, no processo n.º 361/18.5JAVRL.

IV
Conhecendo do recurso.

Em primeiro lugar, verifica-se que o recorrente não impugna a matéria de facto dada como provada, pelo que a mesma se tem como definitiva.
O que está em causa no recurso é, pois, o saber se com os factos provados, o Tribunal de primeira instância deveria ter considerado que o autor era titular de um direito de indemnização.
Recordemos que com esta acção, como ele próprio afirma, o autor vem exercer o seu direito a uma indemnização por privação injustificada da liberdade, nos termos dos arts. 225.º e 226.º do CPP.

Dispõe o art. 225º,1 CPP, na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, na sequência do art. 27º,5 CRP, que quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:

a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do nº 1 do artigo 220º, ou do nº 2 do artigo 222º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; ou
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente.

Acrescenta o nº 2 que “nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade”.
O art. 225º do CPP de 1987 é a consagração legislativa correcta do princípio constitucional estabelecido no nº 5 do art. 27º da CRP (acórdão do STJ de 06-01-2000 - Miranda Gusmão (Relator).
Vejamos em traços largos o raciocínio que a sentença recorrida seguiu.
Começou por constatar que o autor fundamentou a sua pretensão na existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que levaram à sua privação da liberdade, por aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, embora admita que essa situação apenas se verifica a partir do despacho de 2 de Janeiro de 2019, que reapreciou e manteve a medida de coacção de prisão preventiva que lhe havia sido aplicada, aquando do primeiro interrogatório judicial.
É pacífico que no âmbito do inquérito nº 361/18.5JAVRL, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar e que deu origem ao processo comum colectivo com o mesmo número, que correu termos no Juízo Central Criminal de Vila Real – Juiz 2, o autor ficou sujeito à medida de coacção de prisão preventiva por despacho judicial proferido na sequência do seu interrogatório judicial, de arguido detido, no dia 9 de Outubro de 2018. Nesses autos, o autor juntou procuração a favor do mesmo Mandatário da presente acção, Dr. N. F., nesse mesmo dia, ou seja, a 9 de Outubro de 2018, e interpôs recurso daquela medida de coacção de prisão preventiva, recurso que, contudo, veio a ser julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Guimarães, através de Acórdão, datado de 11 de Fevereiro de 2019, que confirmou integralmente o despacho judicial que havia determinado a aplicação ao Autor da medida de coacção de prisão preventiva.
Perante isto, o Tribunal recorrido concluiu logo que não ocorre o fundamento previsto na alínea a), do nº 1, do art. 225º do CPP, já que não se pode dizer que a privação da liberdade foi ilegal, até porque não se verifica nenhum dos fundamentos previstos no nº 1 do artigo 220º, ou no nº 2 do artigo 222º do referido diploma legal.
Recordemos que os fundamentos previstos no nº 1 do art. 220º são objectivos: a) estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial; b) manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos; c) ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente; d) ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite. Nada disso sucedeu no caso sub judice, nem o recorrente o afirma.

Avancemos.
Concluiu a sentença recorrida que não se verifica também o fundamento previsto na alínea c) do preceito citado, ou seja, “quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente”. Citando agora a sentença recorrida, “é que, não há dúvidas de que o facto de o autor ter sido absolvido no processo crime mencionado, não significa que se tenha provado que não foi o agente do crime, uma vez que resulta do acórdão citado supra, que o autor, ali arguido, foi absolvido por falta de provas e não por ter sido comprovado que não praticou o crime. A jurisprudência tem sido maioritária no sentido de considerar que a absolvição do arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, não preenche o requisito da al. c) do nº 1, do art. 225º do CPP”.
Assim, a sentença recorrida fixou-se no fundamento previsto na alínea b) do nº 1 do art. 225º do CPP já citado, ou seja, saber se a privação da liberdade se ficou a dever a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia.
E concluiu a sentença que não houve erro grosseiro algum. Citando: “ao contrário do que o autor refere, na decisão de manutenção proferida a 02 de Janeiro de 2019, e nas sucessivas decisões que determinaram a manutenção da medida de coacção, a decisão baseou-se numa apreciação fundamentada quanto à subsistência dos pressupostos daquela medida de coacção. Como o próprio autor refere, a senhora juíza “sustentou que os elementos recolhidos entre o momento em que foi aplicada a referida medida de coacção e a presente data não infirmaram os indícios elencados no despacho de aplicação da medida de coacção nem permitem concluir pela necessidade de alteração da medida imposta”.
E refere ainda a sentença recorrida, que é o próprio autor a admitir que a prisão preventiva que lhe foi aplicada inicialmente não padeceu do alegado erro grosseiro na sua aplicação, tendo em conta os vestígios recolhidos pela PJ (artigo 55º da petição inicial).

Ora bem.
Vem agora o autor/recorrente insistir em que a decisão de aplicação da prisão preventiva assentou num grosseiro erro judicial.
Desde logo, vemos como muito difícil para o recorrente defender esta tese, quando foi ele mesmo que, no art. 55º da sua petição inicial, alegou: “O A. ainda admite que a prisão preventiva ordenada a 09.10.2018 não padecesse de tal erro grosseiro, tendo em conta os vestígios recolhidos pela PJ”.
Recordemos que em 9.10.2018 o Autor foi sujeito a 1º Interrogatório Judicial de arguido detido, no qual não prestou declarações e no qual lhe foi aplicada a prisão preventiva.
Medida de coacção essa que foi mantida em 2.1.2019, 4.4.2019 e 1.7.2019.
Provou-se ainda que o ora autor, então arguido, interpôs recurso do primeiro despacho que lhe aplicou a prisão preventiva, mas que este Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão de 11 de Fevereiro de 2019, julgou esse recurso totalmente improcedente, confirmando integralmente o despacho judicial que havia aplicado a prisão preventiva.
Se parássemos por aqui, já haveria razões para dizer que não existiu qualquer erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto da prisão preventiva. Com efeito, o facto de, em recurso, um Tribunal superior ter analisado esses mesmos pressupostos, e ter concluído pelo bem fundado da aplicação de tal medida, já torna praticamente impossível que tivesse ocorrido o referido erro grosseiro, pois não é crível que 3 Juízes, de instâncias diversas, tivessem cometido o mesmo erro grosseiro. Acresce ainda que, por definição, os Juízes do Tribunal superior, pela sua maior experiência profissional, estão ainda em melhores condições para analisar a situação e emitir um julgamento correcto.

Mas não fiquemos por aqui.
Podemos dizer mais.
O recorrente vê um erro grosseiro no facto de nunca ter existido prova de que ele tivesse estado com a mãe nos termos descritos nos relatórios preliminares e na Acusação.
Mas o recorrente incorre aqui num manifesto lapso. Ele parece querer fazer retroagir as razões do acórdão que o absolveu ao tempo em que foi decretada a sua prisão preventiva. O que não pode ser feito, de todo. É uma simples questão de a linha temporal ser de um só sentido. A busca do alegado erro grosseiro na aplicação da prisão preventiva tem de ser feita ao tempo em que tal medida de coacção foi aplicada, e mantida, com a prova que existia no inquérito nessa altura, e não à luz do que veio mais tarde a decidir o acórdão final.
Vejamos primeiro, em abstracto, o que entender por erro grosseiro, para efeitos de aplicação deste art. 225º,1,b CPP. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário, 3ª edição), “o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto da privação da liberdade é um erro indesculpável, crasso ou palmar, cometido contra todas as evidências e no qual incorre quem actua sem os conhecimentos ou as diligências exigíveis, bem como o acto temerário, no qual, devido à ambiguidade da situação, se corre o risco evidente de provocar um resultado injusto (acórdão do STJ de 28.1.2003, in CJ, XXVIII, 1, 52)”.
Mais adiante este Professor reitera uma ideia que já aqui avançámos: “os pressupostos de facto da privação da liberdade devem ser avaliados à luz das circunstâncias do momento em que foi aplicada a medida de coacção ou detida a pessoa (acórdão do STJ de 19.10.2004, in CJ, XII, 3, 74…). Isto é, o Tribunal deve proferir um juízo de prognose póstuma reportado à data em que foi proferida a decisão”.

O Acórdão do STJ de 11 de Setembro de 2008 (Santos Bernardino) começa por referir que “o art. 225º, apesar de inserido num diploma de carácter adjectivo, assume natureza eminentemente substantiva; e, estabelecendo o regime da indemnização cível por danos causados pelo Estado a qualquer pessoa, no exercício da função jurisdicional, é verdadeiramente uma regra de direito privado comum ou civil, uma norma sobre a responsabilidade civil extracontratual, sendo a sua aplicação no tempo definida pelas regras do art. 12º do Cód. Civil”. E, mais adiante: “no nº 2 do art. 225º prevê-se o caso de prisão preventiva legal, mas que posteriormente veio a verificar-se ser total ou parcialmente injustificada, por erro grosseiro – ou seja, por erro escandaloso, crasso ou palmar, que procede de culpa grave do errante – na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. O erro grosseiro na aplicação da prisão preventiva tem de ser apreciado à luz de um juiz de médio saber, razoavelmente cauteloso e ponderado na valoração dos pressupostos de facto invocados como fundamento desta. O juízo sobre o erro grosseiro na valoração dos pressupostos de facto determinantes da prisão preventiva, a formular em momento posterior, tem por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na ocasião em que esta foi decretada ou mantida. E o facto de o arguido sujeito a prisão preventiva legalmente decretada vir a ser posteriormente absolvido em julgamento, por não provados os factos que lhe eram imputados, é, por si só, insusceptível de revelar a existência de erro grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de coacção, e, por isso, não implica, só por si, a possibilidade de indemnização nos termos do art. 225º/2 do CPP”.
E também o Acórdão do STJ de 19-09-2002 (Neves Ribeiro -Relator): “a circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida, e vir depois a ser absolvido em julgamento, e nessa altura libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita, automaticamente, o direito à indemnização”.
E ainda o Acórdão do STJ de 29-01-2008 - Salvador da Costa (Relator): “o erro significa o engano ou a falsa concepção acerca de um facto ou de uma coisa, distinguindo-se da ignorância porque esta se traduz essencialmente na falta de conhecimento. O erro grosseiro de facto e/ou de direito na apreciação judicial dos pressupostos de facto da prisão preventiva é o indesculpável ou inadmissível, porque o juiz podia e devia consciencializar o engano que esteve na origem da sua decisão e que a determinou. A circunstância de o recorrente ter sido absolvido a final por falta de prova do cometimento do crime por que foi pronunciado é insusceptível, só por si, de revelar o referido erro”.

E bem se compreende que assim seja. Sem ser necessário entrar agora em grandes análises da estrutura do processo penal Português, é sabido que o mesmo é composto de uma fase de inquérito, seguida de uma fase (meramente eventual) de instrução, e, finalmente, a audiência de julgamento. E atentos os vários “filtros” processuais em vigor, à medida que o processo avança de uma fase para outra podem ir desaparecendo provas nas quais se baseou o juízo de aplicação da prisão preventiva. Basta pensar em testemunhos que vão sendo alterados, testemunhas que desaparecem ou falecem, provas que vão sendo declaradas nulas, e já para não falar nas declarações do arguido, as quais têm um regime muito próprio, e que permite que o arguido não apresente nenhuma versão ao longo do processo, ou apresente várias, tudo a coberto, por um lado, do direito ao silêncio, e por outro do direito (que de forma encapotada ou envergonhada lhe foi igualmente conferido) a mentir.
Daí que seja, ao que supomos pacífica a interpretação jurisprudencial segundo a qual “a prisão não é injustificada, e muito menos por erro grosseiro, só porque o interessado vem a ser absolvido. A circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida, e depois vir a ser absolvido em julgamento, sendo então libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita o direito a indemnização” (Acórdão do STJ de 1-6-2004 - Azevedo Ramos (Relator).
Pensamos ser igualmente incontornável que “a apreciação e qualificação do erro grosseiro ou temerário, de que resultou a prisão preventiva posteriormente revelada como injustificada, há-de ser feita tendo por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na altura em que a prisão foi decretada ou mantida, sendo, por isso, em princípio, irrelevante, para tal constatação, o facto de, mais tarde, o detido ter vindo a ser absolvido ou mesmo não submetido a julgamento por, entretanto, haverem surgido novas provas que afastaram a sua anterior indiciação” (Acórdão do STJ de 19-10-2004; Relator - Araújo de Barros).
Resumindo de forma cabal o que até aqui dissemos, pode ler-se no Acórdão do STJ de 27.9.2005 (Ribeiro de Almeida): “a prisão preventiva decorre dos riscos normais da actividade judiciária, que é exercida no benefício da sociedade. Considerando que a prisão preventiva, nos antecedentes do julgamento, se mostrava legal, oportuna e justificada, e que a absolvição posterior do arguido se deveu a falta de prova da prática do crime, e não a prova positiva da sua inocência, inexistem os pressupostos para a responsabilidade civil do Estado consagrada no art.º 27, n.º 5, da CRP”.

Os Juízes que aplicaram e mantiveram a prisão preventiva cometeram um erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto da mesma ?

Para responder a essa pergunta temos de saber o que continham os autos à data da aplicação ao arguido (e posterior manutenção) da medida de coacção prisão preventiva.
Sabia-se que em 04.10.2018, A. L., mãe do Autor, desapareceu. E que em 06.10.2018, a Polícia Judiciária fez buscas à habitação e automóvel do Autor, tendo sido apreendidos vários objectos (roupa e tapete da bagageira com vestígios supostamente hemáticos), a viatura e dois telemóveis (mais tarde apurou-se que nenhum destes objectos continha vestígios genéticos da vítima).
No mesmo dia, o Autor foi constituído arguido, tendo-lhe sido lidos os seus direitos, tendo prestado T.I.R., e nessa qualidade foi interrogado, pelas 19:50 horas, sem a presença de Advogado. De acordo com esse auto, como se pode ver a fls. 31 dos autos, o arguido terá declarado, em resumo, que se cruzou com a sua mãe na estrada e pediu-lhe dinheiro para meter gasolina; esta negou, e o arguido deu-lhe um empurrão, tendo ela caído ao chão. Depois deu-lhe uns abanões e ela levantou-se, metendo-a no carro e levando-a a casa. Depois ela saiu do carro mas foi atrás do arguido, e este deu-lhe outro empurrão que levou a que ela caísse pelo monte abaixo, num local com bastantes fetos.
Não vale a pena referir aqui a totalidade do auto, pois o resumo que fizemos já é, salvo melhor opinião, totalmente esclarecedor.
Mas estas declarações do arguido, apesar de assinadas por si, nem são o mais importante. Mais importante é o auto de diligência elaborado pela Polícia Judiciária a 7/10/2018, no qual se refere que os Inspectores se deslocaram, juntamente com o arguido, aos locais que ele indicou como tendo sido aqueles onde teria empurrado a sua mãe e ela teria ficado caída. Essas diligências resultaram infrutíferas, não se tendo encontrado o corpo da vítima. No acórdão penal absolutório é feita a referência a este meio de prova nestes termos:
Fls. 100 a 109: “Auto de diligência”, cujo original se mostra de fls. 219 a 228, datado de -/10/2018, sendo o local da diligência EM 312 (Bragadas), Santo Aleixo e Além Tâmega, identificando-se os inspectores da PJ que executaram a diligência, bem como se identificou que presente esteve como testemunha L. T. (é a primeira testemunha arrolada pela acusação); não esteve presente Defensor do arguido; a fls. 100 e 101 descrevem-se as diligências que foram feitas com base apenas nas declarações do arguido; de fls. 102 a 109 estão fotografias, com legendas, em que se “reconstituem” os factos apenas com base em tais declarações do arguido. E fotografias de alguns locais indicados onde teria sido depositado o corpo de A. L., sem que tenha sido encontrado em qualquer um deles”.
E ainda:
Fls. 133 com original a fls. 252: “auto de diligência” de 8/10/2018, na EM 312, sentido Ribeira de Pena-Boticas, em que os inspectores aí identificados referem ter feito diligências, com o arguido presente, destinadas à localização do cadáver da progenitora do arguido, não sendo o mesmo localizado”.
Diga-se desde já que é óbvia a urgência e a imperiosidade de realização destas diligências, pois havia ainda a esperança de conseguir encontrar a desaparecida A. L. com vida, e todos os segundos contavam.
Os referidos autos estão documentados com fotografias aéreas, e fotografias do local supostamente indicado pelo arguido como sendo aquele onde teria empurrado a sua mãe e ela teria ficado caída. Nessas fotografias pode ver-se o arguido e uma testemunha, L. T. (a qual foi posteriormente inquirida como tal no inquérito e na audiência de julgamento). Vamos ainda acrescentar, por nos parecer particularmente relevante, que no Acórdão penal se pode ler: “o depoimento desta testemunha é muito relevante, não porque tenha visto a prática de qualquer um dos factos em julgamento, ou tenha estado presente em qualquer momento circunstancial anterior ou posterior à imputada actuação do arguido, mas apenas porque teve intervenção activa e presenciou diligências de investigação da PJ, durante as quais o arguido fez declarações ou gestos relacionados com os factos em julgamento”.
E ainda: “Fls. 913 a 916: auto de diligência de 8/01/2019 executada pelos inspectores da PJ no mesmo identificado em que com recurso a um DRONE foi sobrevoado/registado o local, junto às margens do Rio Tâmega onde apareceu o cadáver de A. L., estando anexas quatro fotografias, com legenda no final, referindo que o local onde foi encontrado o corpo de A. L. que fica a escassos metros do rio Tâmega e nos limites da Quinta onde M. P. trabalhava”.

Com toda esta prova constante dos autos, é por demais óbvio que não foi cometido erro grosseiro algum.
Havia abundante prova de que o arguido sabia o que tinha acontecido à sua mãe, tanto que ele se dispôs voluntariamente a colaborar na diligência conduzida pela Polícia Judiciária para tentar localizar a mesma. Certamente, supomos, ninguém se terá lembrado de dizer que foram os Inspectores da PJ que escolheram os locais para onde foram passear com o arguido, e com a testemunha supra referida, apenas para queimar tempo. Claro que foi o arguido que, repetimos, voluntariamente, indicou os referidos locais, dando ainda outras indicações que constam dos respectivos autos.
E para que não restem dúvidas, vamos imaginar que o arguido teria sido agredido e coagido pelos Inspectores da PJ a participar dessa diligência, e que teria indicado aleatoriamente alguns locais como sendo aqueles onde poderia estar a sua mãe, apenas para que não lhe batessem mais. Se este cenário fosse verdadeiro, então podemos ter como garantido que mal fosse presente ao Juíz de Instrução (diligência na qual podemos ter a certeza que ninguém o coagiu ou agrediu) o arguido diria que nada do que constava dos autos era verdade, e que tinha sido coagido e agredido. Curiosamente, nesse momento o arguido não disse nada, e usou o seu direito a não prestar declarações. Processualmente, nada de mais legítimo. Porém, nem mesmo no ambiente por vezes esquizofrénico (1) do processo penal português os arguidos podem querer “sol na eira e chuva no nabal”. É que no meio de tanta retórica a exaltar e endeusar o direito ao silêncio dos arguidos, parece ficar esquecido o direito, certamente menor, de prestar declarações e esclarecer erros e contradições da investigação. Neste caso concreto, o arguido não quis prestar declarações, direito que lhe assiste. Mas, ao assim optar, não impugnou os autos de diligência e reconstituição do facto, no momento em que para ele seria mais importante fazê-lo, e perante a entidade certa para o fazer, o Juiz de Instrução. Ao não o fazer, o Juiz de Instrução ficou com um conjunto sólido, uniforme e congruente de indícios que apontavam todos, sem excepção, para ser o arguido o autor do desaparecimento de sua mãe.
Pensamos não ser necessário dizer mais para explicar que não assiste qualquer razão ao recorrente, e que não foi cometido qualquer erro na análise da situação de facto pelo Juíz que decretou a sua prisão preventiva, muito menos um erro grosseiro.
Aliás, à mesma conclusão já tinha chegado este Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão datado de 11 de Fevereiro de 2019, que incidiu sobre a decisão de aplicação da prisão preventiva, e onde se pode ler: “(…) Debruçando-nos sobre os elementos carreados para os autos importa concluir que analisada a prova por declarações prestada pelo arguido de fls. 173 a 175 (fls. 52 a 54 destes autos) e 232 a 236 (fls. 55 a 59 destes autos), os depoimentos colhidos junto das testemunhas L. A. de fls. 176 a 179 e L. T. de fls. 229 a 231 (fls. 63 a 68 destes autos) – e feita a sua conjugação com a prova por documentos de fls. 24 e seguintes – assentos de nascimento, de fls. 24 e seguintes destes autos, auto de noticia de fls. 37 e seguintes, relatórios de ocorrência de fls. 43 e seguintes, auto de ocorrência de fls. 49 e seguintes, auto de busca e apreensão de fls. 60 e seguintes, relatório de exame pericial de fls. 69 e seguintes e os autos de diligencia com fotogramas de fls. 107 e seguintes e fls. 117 importa concluir que se acha fortemente indiciado que:
-O arguido, ora recorrente, é filho da vítima A. L.;
-A vítima, nascida a - de Março de 1951, tinha à data dos factos 67 anos de idade e padecia da doença de Alzheimer;
-No dia 4 de Outubro de 2018, no período compreendido entre as 18 horas e 30 minutos e as 19 horas e 30 minutos, na localidade de Bragadas, na berma da Estrada Nacional 312, o arguido, ora recorrente, abordou a vítima e pediu-lhe a quantia de 20,00€ para comprar gasolina;
-Em virtude de a vítima haver negado a solicitação do arguido, ora recorrente, travou o mesmo com ela uma discussão;
-Nessa sequência, o arguido, ora recorrente, usando da força física, empurrou a vítima contra o rail de protecção da estrada, fazendo-a embater com a cabeça no solo;
-Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, ora recorrente, a vítima sofreu lesões que determinaram a sua morte;
-Em acto contínuo, o arguido, ora recorrente, arrastou o corpo da vítima até ao veículo no qual se fazia transportar, de marca Renault, modelo Mégane, com a matrícula LV, abriu a mala e colocou o cadáver no seu interior, levando-o para lugar desconhecido para que não pudesse ser encontrado;
-O arguido, ora recorrente, actuou com o propósito concretizado de usar a força física contra a vítima e de lhe causar lesões corporais para lhe retirar a vida, o que quis e conseguiu;
-O arguido, ora recorrente, sabia que a sua investida era determinada por um pretexto insignificante e que era dirigida contra a sua mãe, pessoa idosa e incapaz de se defender;
-O arguido, ora recorrente, actuou ainda com o desígnio alcançado de esconder o cadáver da vítima para que não seja possível verificar a amplitude da sua conduta;
-O arguido, ora recorrente, agiu de forma calculista e insensível com total indiferença pela vida humana e sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, estando ciente que essa sua conduta, especialmente censurável e perversa, era proibida e punida por Lei”.

O recorrente, nas suas conclusões de recurso, mais não faz do que acolher-se à argumentação do acórdão que o absolveu, nomeadamente à parte em que ali se decidiu que a variada prova acabada de referir não podia ser valorada pelo Tribunal do julgamento, sejam as conversas informais, seja a reconstituição do facto. Registamos apenas com alguma surpresa um passo dessa argumentação, quando se escreve que “acresce que tais declarações haviam sido logo desmentidas pelo A., que as justificou pelo medo com que estava da situação em que se encontrava”. Não sabemos a que é que o Tribunal se refere, pois como vimos, no primeiro interrogatório, logo a seguir a toda essa situação que incutiu medo ao arguido, ele optou por não prestar declarações.
Dito isto, não custa reconhecer razão ao recorrente quando diz que não é por ele ter reagido tardiamente à prisão preventiva que se pode concluir que não houve erro grosseiro.
Ou ainda quando diz que não foi absolvido com base na regra in dubio pro reo. Com efeito, da leitura do acórdão absolutório, não resulta que ele tenha sido absolvido com base numa dúvida insanável sobre os factos. O que resulta, isso sim, é que ele foi absolvido porque o Tribunal considerou que a prova que demonstrava a sua culpabilidade não podia ser valorada.
Mas ao contrário do que refere o recorrente, não ficou comprovado que o arguido não tenha sido o agente do crime.
Uma coisa é não se terem provado os factos que preenchiam o tipo de crime imputado ao arguido.
Que foi o que aconteceu.
Coisa bem diferente é ter ficado demonstrado que o arguido não cometeu o crime: isto poderia suceder se tivesse ficado provado que foi um terceiro a cometer o crime, ou que, por razões objectivas incontornáveis, o arguido não poderia ter cometido o crime naquele local e naquele momento.
Coisa que não aconteceu, de todo. Como já vimos, o Tribunal Colectivo absolveu o arguido porque considerou, pelas razões que ficaram explicadas no Acórdão, que não podia valorar as provas que apontavam o arguido como autor do crime.
Esse Acórdão transitou em julgado, e é definitivo.
Mas temos de dizer aqui, embora respeitando a argumentação utilizada e que levou à absolvição do arguido, que essa não é a única interpretação possível do quadro legal pertinente.
Havia outra, quanto a nós, mais correcta, a qual teria levado, ou pelo menos poderia ter levado à condenação do arguido pelos crimes pelos quais vinha acusado.
Vamos referir aqui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 30 de Setembro de 2020 (Relator: Paulo Ferreira da Cunha), que defende solução diversa para uma situação semelhante à destes autos. Estava em causa o regime legal do meio de prova designado “reconstituição do facto”, previsto no art.º 150º do CPP. E afirma-se nesse aresto que, havendo o contributo do arguido nesse meio de prova, a sua participação na diligência não se confunde com a prova por declarações. Afirma-se nesse Acórdão, concretamente, o seguinte: “a jurisprudência assim como a doutrina têm vindo a entender de forma unânime que a reconstituição dos factos constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações. “A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de “declaração”, pois o discurso ou “declaração” produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto” (cfr. acórdão do STJ de 20.04.2006; ST200604, in wwwdgsi.pt). Entende-se, assim, que só poderão ser valorados os factos que resultem da reconstituição e as declarações do arguido indispensáveis à compreensão da reconstituição, sem outra feição que não a explicitação do ocorrido, assim se ficando a conhecer os termos em que decorreu a diligência e o seu resultado. Donde, tudo o que o arguido tenha admitido e que esteja para além do âmbito intrínseco da diligência, excede o âmbito probatório deste meio de prova, não podendo ser valorado. E este meio de prova só não será admissível se não tiver sido validamente adquirido, sendo um dos pressupostos de validade assegurar que não foi utilizado qualquer método proibido de condicionamento da vontade do arguido ou de outro interveniente, “seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no art.º 126º do CPP” (cfr. acórdão do STJ de 5.01.2005, relator Cons. Henrique Gaspar, in www.gjsi.pt). Este meio de prova autónomo fica documentado nos autos (art.º 99º, CPP), e por essa via processualmente adquirido, bastando-se a si próprio, a valorar segundo as regras de experiência e a livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP. Também os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre o modo e os termos em que decorreu a diligência. (…) Tratando-se de prova documentada a mesma pode ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio. Esta tem sido a posição jurisprudencial dominante, de valoração da prova documental, ainda que não lida ou examinada em audiência, mostrando-se garantido plenamente o exercício do contraditório, pois os arguidos tiveram oportunidade de se pronunciarem ao longo do processo acerca de tais meios de prova”.
E, mais adiante: “dos autos resulta que o arguido, ora recorrente, se disponibilizou para indicar o percurso percorrido dias antes, e tendo sido devidamente esclarecido dos seus direitos (fls. 78 e 79), prescindiu de defensor em auto por si assinado (cfr. fls. 79 a 81), e acompanhou os Agentes da Polícia Judiciária, conduzindo-os por onde havia circulado dias antes, indicando a estação de abastecimento da … onde foi adquirido o isqueiro e o combustível e vasilhame, assim como o local onde se encontrava o cadáver da vítima, conforme auto de diligência de reconstituição do facto de fls. 90 a 92, donde a alegada omissão de assinatura do arguido nos autos é manifestamente irrelevante”.
E ainda: “o relato de órgãos de polícia criminal sobre afirmações ou contribuições do arguido (v.g. factos, gestos, silêncios, reacções) de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligências de prova (…), bem como no âmbito de actos de investigação e meios de obtenção de prova (v.g. buscas, revistas, exames ao local do crime, reconstituição do crime (…) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento válido e eficaz por se mostrarem alheias à tutela dos arts. 129.º e 357.º do CPP”. (in www.dgsi, relator Santos Cabral). Podemos assim concluir, sem necessidade de mais alongadas considerações, que os depoimentos dos Inspectores da Polícia Judiciária prestados em audiência são válidos, contemplando o contraditório, pelo que nada impedia a sua valoração pelo tribunal, nem a reconstituição se mostra ferida de inconstitucionalidade, não merecendo por isso qualquer censura a decisão recorrida”.
Podemos ainda acrescentar o seguinte: o regime legal da prova de “reconstituição do facto” está previsto no art. 150º CPP, que dispõe no seu nº 1 o seguinte: “1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.
É uma diligência que não depende da intervenção do arguido, mas também não a exclui, e pela natureza da diligência faz todo o sentido a sua participação. E no caso concreto, o arguido colaborou voluntariamente na mesma.
Este meio de prova só não será admissível se não tiver sido validamente adquirido, sendo um dos pressupostos de validade assegurar que não foi utilizado qualquer método proibido de condicionamento da vontade do arguido ou de outro interveniente, “seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no art.º 126º do CPP” (cfr. acórdão do STJ de 5.01.2005, relator Cons. Henrique Gaspar, in www.dgsi.pt).
Como já vimos, o arguido, quando foi levado perante Juíz de Instrução, agora por vezes referido como o “Juiz das garantias e das liberdades”, não se queixou de ter sido coagido a participar na diligência referida, podendo tê-lo feito. Optou por ficar em silêncio.
Em suma, é um meio de prova autónomo que fica documentado nos autos (art. 99º CPP), e por essa via processualmente adquirido, bastando-se a si próprio, a valorar segundo as regras de experiência e a livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP. E como deveria ser evidente, pode ser valorado mesmo que o arguido mais tarde exerça o seu direito ao silêncio.
Também os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre o modo e os termos em que decorreu a diligência.
Não se pode dizer que assim fique por qualquer forma afectado o princípio do contraditório, pois o arguido teve oportunidade de se pronunciar ao longo do processo acerca de tal meio de prova. E a jurisprudência tem trilhado este caminho, mesmo ao nível da prova pessoal, vindo o STJ mais recentemente a fixar jurisprudência no sentido de que “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do art.º 271º do CPP, não têm que ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, al. a) do mesmo Código” (Ved. acórdão nº 8/2017, in DR nº 224/2017 de 21/11/2017, Serie I).
Mais: a competência para determinar na fase de inquérito a reconstituição do facto pertence ao Ministério Público. O art. 1º, al. b) do CPP define como “Autoridade judiciária” o Juiz, Juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos autos processuais que cabem na sua competência”.
Por sua vez, a al. c) define “Órgãos de polícia criminal” todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código”.
Acontece que a diligência em causa não está sujeita à competência reservada da autoridade judiciária (nº 2 do art.º 270º, CPP), podendo o Ministério Público delegar competência para o efeito a órgãos de polícia criminal (OPC), dispondo precisamente o nº 1 do mesmo art.º 270º que “O Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito”.
Terá sido o que ocorreu nos autos.
Assiste razão à Magistrada Judicial recorrida quando escreve: “ora, ao contrário do que o autor refere, na decisão de manutenção proferida a 02 de Janeiro de 2019, e nas sucessivas decisões que determinaram a manutenção da medida de coacção, a decisão baseou-se numa apreciação fundamentada quanto à subsistência dos pressupostos daquela medida de coacção. Como o próprio autor refere, a senhora juíza “sustentou que os elementos recolhidos entre o momento em que foi aplicada a referida medida de coacção e a presente data não infirmaram os indícios elencados no despacho de aplicação da medida de coacção nem permitem concluir pela necessidade de alteração da medida imposta”. Ou seja, a senhora juíza, ao contrário do que o autor alega, não desconsiderou em absoluto as informações periciais constantes dos autos ou outros elementos probatórios, apenas considerou que nada de relevante traziam aos autos, que levasse a que devesse ser alterada a medida de coacção. Efectivamente, o facto de não ter sido encontrado sangue ou ADN da vítima na viatura ou roupas do arguido, não significa que percam validade os demais indícios que existiam nos autos e que levaram à aplicação da prisão preventiva, sendo certo que tal facto também não infirma os tais indícios”.
E, para terminar, vamos citar o Acórdão do STJ de 22.1.2008 (Revista n.º 2381/07 - 1.ª Secção - Moreira Alves (Relator), cuja doutrina se pode aplicar ao caso destes autos, no qual se pode ler: “a decisão do acórdão da Relação que anulou o primeiro julgamento, ou a decisão final que na sequência daquele absolveu o ora autor e então arguido do crime que lhe vinha imputado, não vincula este Tribunal quando se trata de saber se estão ou não reunidos os pressupostos de que depende a atribuição ao autor da indemnização por ele peticionada ao Estado. Não existindo prisão manifestamente ilegal, pois à data em que foi decretada e mantida a prisão preventiva estavam presentes os requisitos gerais exigidos pelo art. 204.º do CPP, nem prisão injustificada por erro grosseiro, já que os fundamentos do acórdão absolutório da Relação – ilegalidade na obtenção da prova - não são pacíficos, não tem o autor direito à peticionada indemnização”.
Aqui chegados, estamos em condições de concluir pela total improcedência do recurso.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 13/5/2021


Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)




1. Queremos com isto referir que o conjunto de normas criadas exclusivamente para proteger o arguido, nomeadamente as normas que impedem a produção de meios de prova ou as que levam à declaração de nulidade de provas apresentadas, bem como a hiper-regulamentação, muitas vezes verdadeiramente obsessiva, de cada meio de prova, pelas mais variadas razões, têm vindo a criar uma “realidade processual penal” que cada vez está mais longe da realidade concreta e objectiva do mundo exterior. Há cada vez mais uma verdadeira fractura entre essas duas realidades, e mais tarde ou mais cedo a realidade artificial produzida no âmbito do processo penal vai chocar com a verdadeira realidade, com consequências imprevisíveis. Tornaram-se moda afirmações do tipo “a verdade não pode ser obtida a qualquer preço”, mas não é menos verdade que um sistema processual que frequentemente emite decisões formalmente impecáveis mas que nada têm a ver com a verdadeira realidade é um sistema que não serve para grande coisa.