Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
47/13.7TAGMR-A.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: PROCESSO PENAL
RECURSO PENAL
RECLAMAÇÃO PENAL
DESPACHO DE PRONÚNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: DESATENDIDA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário: I – A decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação do MP é irrecorrível, nos termos do artº 310º, nº 1, do CPP, não sendo esta norma inconstitucional por violação do disposto nos artºs 13º, 18º e 31º, nº2, da CRP.
Decisão Texto Integral: Reclamante: AA… (arguido);
Recorrido: Ministério Público;

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I - Relatório

AA… veio reclamar do despacho do Sr. Juiz da Comarca de Braga - Inst. Criminal de Guimarães - J1, datado de 16.01.2017, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, por inadmissibilidade, cujo teor é o seguinte:
«Considerando que a decisão instrutória pronunciou o arguido recorrente pelos factos e disposições legais constantes da acusação pública, a mesma, nos termos do art° 310º, n° 1, do CPP é irrecorrível, (sendo que tal norma não padece de qualquer inconstitucionalidade), razão pela qual, concordando com os fundamentos do MP a fis. 1229, por irrecorribilidade se rejeita o recurso- cfr. art° 399°, 400º, n° 1, al. g) e 414°, nº2, todos do CPP.
Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em uma UC.
Notifique.»

Na perspectiva do reclamante o recurso deveria ter sido admitido, apresentando, para tanto e resumidamente, os seguintes fundamentos:
1. O artigo 310º n° 1 do Código de Processo Penal restringe o direito ao recurso em matéria penal, consagrado no artigo 32° n° 1 da Constituição da República Portuguesa;
2. A Constituição da República Portuguesa não distingue a que tipo de decisões se aplica o direito ao recurso consagrado no artigo 32°, não podendo, onde a lei não distingue, o intérprete fazê-lo;
3. A Constituição da República Portuguesa prevê, no artigo 18°, o processo a seguir em caso de colisão de direitos, liberdades e garantias;
4. A simples supressão do direito ao recurso, por parte do arguido, do despacho de pronúncia não se revela nem necessária nem proporcional à garantia do direito à celeridade processual, podendo esta celeridade ser obtida através de outros meios que não a pura e simples supressão do direito ao recurso;
5. O artigo 3100 n° 1 do Código de Processo Penal permite que o despacho instrutório possa ser impugnado em certos casos por certos sujeitos processuais e não possa ser impugnado noutros casos pelo arguido;
6. O preceito em apreciação encurta de forma inadmissível e intolerável as garantias de defesa por parte do arguido, ao passo que permite à acusação usufruir de todos os direitos de defesa, em particular do direito de recurso;
7. É, assim, o artigo 310° n° 1 do Código de Processo Penal, inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32° n°1, 18° e 13°, todos da Constituição da República Portuguesa.

Pede que seja dado provimento à reclamação, admitindo-se o recurso.

Decidindo:
As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:
- Com data de 22.11.2016, foi proferido despacho de pronúncia no qual se decidiu:
« Em face do exposto, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 308.°, n,° 1, do Código de Processo Penal, decido:
a) Não pronunciar o arguido BB… casado, filho de CC … e de DD…, nascido a 24/01/ 1977, natural da freguesia e concelho de Caldas de Vizela (5. Miguel), residente na Rua 25 de Abril, n.°…, 48 15-647 Vizela e com domicílio profissional na Praça do Município, Fórum Vizela, bloco …, n.°… — 50, 4815-013, Vizela, pela prática dos factos que lhe vinham imputados na acusação pública;
b) Pronunciar para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido AA… casado, filho de EE e FF, nascido a 18/01/1957, natural da freguesia de 5. João das Caldas, concelho de Vizela e residente na Rua da Laje, Habitação …nº…. Miguel, Vizela e com domicílio profissional na Praça do Município, Fórum Vizela, bloco …nº… — 50, 48 15-013, Vizela pelos factos e disposições legais constantes da acusação pública de fis. 784 a 796, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do disposto no art.° 307.°, n.° 1, do Código de Processo Penal (com as ressalvas decorrentes da não pronúncia do arguido BB…».
- O arguido AA…recorreu de tal decisão instrutória com o fundamento de que o mesmo foi indevidamente pronunciado relativamente aos factos constantes da acusação por não ser possível assacar-lhe qualquer responsabilidade criminal.

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Decidindo:
Atento o disposto no artº 405º do Código de Processo Penal (CPP), do despacho que não admitir ou retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, reclamação cujo exclusivo fim é o de impugnar as decisões que não admitem um recurso ou o retenham, estando arredado do respectivo âmbito a apreciação da bondade do despacho recorrido.


Assim, o verdadeiro objecto da reclamação consubstancia-se em saber se se mostram preenchidos os requisitos processuais para que seja recorrível a decisão em crise.
O recurso constitui um meio de impugnação de decisão judicial. Procura-se, através dele, eliminar os defeitos de que eventualmente aquela padeça, submetendo-a a nova apreciação por tribunal superior.
No âmbito do processo penal está consagrado o princípio da recorribilidade (art.º 399º), mas tal não significa que todas as decisões são recorríveis, existindo limites.
A garantia do acesso ao direito e aos tribunais contemplada no art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos.
Ou seja, ainda que o direito ao recurso esteja expressamente incluído na parte final do n.º 1 do art. 32.º da CRP, não podendo o legislador ordinário abolir na globalidade o sistema de recursos, pode impor limites razoáveis à sua admissibilidade.
É isso que sucede, por exemplo, relativamente aos casos indicados no art.º 400º, n.º 1, do CPC, em que a faculdade de recurso está excluída por lei – veja-se por exemplo a sua alínea g).
Mas, em disposições dispersas pelo Cód. Proc. Penal, existem, além desses, outras situações em que o recurso não é admissível.
O legislador ordinário, ponderando os interesses em jogo e a necessária celeridade do processo, terá optado reflectidamente em limitar o recurso em relação a decisões proferidas em determinadas fases processuais.
É precisamente o caso de a decisão instrutória pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, a qual tornou irrecorrível, conforme dispõe o art.º 310º, n.º 1 do CPC, determinando a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
A ratio legis da irrecorribilidade da decisão instrutória configura-se assim com a dupla conformação dos factos vertidos na acusação e na pronúncia.
Neste sentido, veja-se a decisão da Reclamação do TRC, proc. 424/06.0, proferida em 09.02.2006, in dgsi.pt.

Aliás, o despacho reclamado fundamentou a rejeição do recurso na sua irrecorribilidade por a decisão instrutória pronunciar o arguido recorrente pelos factos e disposições legais constantes da acusação pública, nos termos do artº 310º, nº1, do CPP, e por esta norma não padecer de qualquer inconstitucionalidade.
Tanto basta para a reclamação ser desatendida, pois que, como acima ficou dito, o âmbito desta cinge-se à aferição em si de o despacho não admitir ou reter o recurso.
Sem conceder, sempre se dirá que a constitucionalidade da norma inserta no artº 310º, nº1, do CPP, inexistindo violação dos preceitos constitucionais dos artºs 13º, 18º e 32º, nº 1, da CRP, é questão praticamente pacífica na doutrina e na jurisprudência.
É só ler, entre outros, o “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª ed. pág. 781 a 787, de Paulo Pinto de Albuquerque: a irrecorribilidade da decisão de pronúncia que confirma os factos constantes da acusação do MP constituiu uma das principais características estruturantes do CPP 1987 e com o intuito manifesto do legislador em pôr fim aos “estrangulamentos e desvios” do CPP de 1929, identificando-se a recorribilidade do despacho de pronúncia como um desses estrangulamentos.
Como se defende na obra citada, “Não há violação do princípio de presunção de inocência porque a instrução não é um julgamento. A constituição não equipara a garantia da instrução à garantia do julgamento.
(…) Não há violação do princípio da igualdade porque o despacho de pronúncia não é idêntico ao despacho de não pronúncia. A natureza transitória do despacho de pronúncia é consentânea com a sua insindicabilidade, em face da sindicabilidade da decisão resultante do julgamento.
Em conclusão, a irrecorribilidade da pronúncia não é inconstitucional, sendo compatível com as garantias de defesa e, nomeadamente o direito ao recurso, à presunção da inocência e o princípio da igualdade (Acórdão do TC nº 265/94)”.
Acrescente-se: mesmo na fase de instrução prevêem-se casos do direito ao recurso (artº 310º, nº 3, do CPP), o despacho de pronúncia não traduz uma condenação, não beliscando juridicamente a presunção de inocência nem a igualdade de armas, sendo garantida a ‘dupla conforme’ dos factos imputados ao arguido entre a acusação e a pronúncia.
No sentido da constitucionalidade da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do MP, designadamente por não violar a garantia do recurso consagrada no artº 32º, nº 1, da CRP, vejam-se ainda os Acs. do TC 610/96, DR, II Série, de 06.07.1996; 156/98, DR, II Série, de 07.05.1998; 527/2003; 30/2001; 79/2005, DR, II Série, de 06.04.2005.

Por todas as razões aduzidas, mantém-se, assim, o despacho reclamado.

Sumariando:
I – A decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação do MP é irrecorrível, nos termos do artº 310º, nº 1, do CPP, não sendo esta norma inconstitucional por violação do disposto nos artºs 13º, 18º e 31º, nº2, da CRP.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, desatende-se a reclamação apresentada.

Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em três UC’s.
Guimarães, 20.02.2017


O Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,

António Júlio Costa Sobrinho