Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
861/18.7T9BGC.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
FASE ADMINISTRATIVA
EXERCÍCIO DIREITO DEFESA
FORMA DE NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
ARTºS 47º
NºS 2 E 3
54º
2
66º E 75 DO RGCO E 120º
Nº 2
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. É um ato inútil proceder à gravação da prova produzida no julgamento de uma contraordenação no Tribunal de Primeira Instância, uma vez que, em caso de recurso, ao Tribunal da Relação está vedada a reapreciação da matéria de facto ( art.s 66º e 75º do RGCOC).

2. Se num processo de contraordenação o arguido constitui mandatário ainda na fase administrativa, é este notificado da decisão, sendo o arguido apenas dela informado por cópia ( art. 47 nº 2 e 3 do RGCOC).

3. Na fase administrativa de um processo de contraordenação, o exercício do direito de defesa assume uma importância inegável. Se a autoridade administrativa, no âmbito do poder de que dispõe de investigação e instrução do processo ( art. 54 nº 2 do RGCOC), decidir não aceitar as diligências de prova requeridas pelo arguido, deverá fundamentar a sua decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática da nulidade prevista no art. 120 nº 2 d) do CPP, aplicável ao processo de contraordenação ex vi art. 41º do RGCOC.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes de Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
Por decisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP foi a arguida X Taxis, Lda condenada pela prática da infração ao disposto no nº 1 do artigo 3º do DL 251/98 de 11.8 e punida nos termos do artigo 28º do mesmo diploma, com a coima de 2.500€, acrescida de custas no montante de 52,50€.

Tendo a arguida impugnado judicialmente a decisão, foi proferida sentença pelo Juiz Local Criminal de Bragança que julgou improcedente o recurso e manteve a decisão administrativa.
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Inconformada com tal decisão dela interpôs recurso a arguida, concluindo do seguinte modo:

1. A falta da documentação oral da Sentença, que é o se verifica consubstancia uma nulidade insanável, o que se invoca nos termos e para os efeitos legais;
2. A arguida não foi notificada da decisão, como preceitua o artigo 47º do R.G.C.O.;
3. Igualmente deve ser notificado o legal representante da pessoa coletiva nos termos do artigo 135º - 2 e 171º - 2 do Código da Estrada, para identificar a pessoa que estava ao volante do veículo;

Trata-se de duas nulidades que desde já se invocam nos termos e com as legais consequências.
4.A arguida apresentou defesa administrativa, tendo a requerido a produção de prova, o que não foi realizado;
Ao não produzir a prova a decisão violou o artigo 58º nº 1 al. b) do R.G.C.O., nulidade que se invoca nos termos do artigo 374º do Código de Processo Penal.
5..O Instituto da Mobilidade e dos Transportes I.P., é incompetente para processar a presente contraordenação, porquanto:

-Tipifica a contraordenação nos seguintes termos, “A apresentação do alvará caducado equipara-se à sua falta”,
-Neste aspeto remete para o nº 3 do artigo 12º;
-Assim sendo, este preceito remete para o artigo 30º nº 2, al. c) que por sua vez remete para o artigo 27º nº 2 do D.L. nº 251/98 de 11 de Agosto;
-Desta forma a autoridade administrativa é incompetente para processar a contraordenação em causa, o que desde já se invoca.
6.Consequentemente, ao demais a considerar, em sede de alegações/conclusões, tem perfeito cabimento invocar a falta de fundamentação da decisão, pois:

a) Não se encontram integrados os factos a um tipo legal de ilícito, que leve a concluir da competência de uma instituição em concreto, para processar a contraordenação em causa;
b) Aliás da decisão tudo leva a crer, ser da competência da Câmara Municipal do local;
c) Veja-se neste sentido, a própria Autoridade Policial não cumpriu o preceituado no artigo 28º, a que estaria obrigada;
d) Igualmente a Autoridade Administrativa, não fez alusão a este aspeto, o que demonstra a sua incompetência em razão da matéria em causa;
e) Esta matéria, cabe dentro da fundamentação, no nosso modesto entender;
f) Mas igualmente a fundamentação omite a culpa, relativamente à pessoa coletiva, a quem imputa a infração (onde está formulado o dolo – consciência do significado antijurídico do agente, ou vontade consciente – a agente deve ser representada por uma pessoa física…);
g) Por esta razão foi omitido o elemento subjetivo da contraordenação o que consubstancia desde logo a falta de fundamentação;
h) Da decisão, pouco mais se alcança que a identificação da arguida (pessoa coletiva) e o duvidoso enquadramento de factos (peca logo pela falta de identificação da pessoa que tinha a direção efetiva do veículo, que não consta em lugar algum da decisão);
i) Acresceria sempre à decisão, demonstrar, se o veículo se encontrava em serviço público, ou era utilizado a título particular, para onde se deslocava, se levava passageiros, e quem eram…
j) Conclui o órgão administrativo que, os factos se coadunam com a falta de alvará;
k) Não são claras as razões que levaram à condenação da arguida;
l) Não estão na decisão administrativas todos os elementos que dela devem constar, que decorrem do disposto no artigo 58º nº 1 do R.G.C.O, o que desde logo implica uma nulidade nos termos do artigo 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal – ex VI artigo 41º do R.G.C.O., artigo 374º nº 2;
7.Por sua vez e para que conste, o veículo em causa, e adstrito à licença e alvará, não se encontrava naquela data adstrito ao serviço de transporte público, de onde não pode à arguida ser imputada a infração em causa;
8.Quanto à coima/sanção, não se encontram reunidos os elementos ou requisitos da punibilidade, sendo os mesmos cumulativos, como resulta do artigo 18º do D.L. 433/82 de 27/10.

a) Sendo a gravidade diminuta, não se verificando, não tendo sido retirado benefício da hipotética atuação, restaria à Autoridade Administrativa isentar o agente da sanção;
b) Por outro lado, a conduta posterior aos factos, sempre funciona em favor da arguida, pois em prazo excecional, colocou-se na situação legal, não tem antecedentes, não causou prejuízos a ninguém, impondo-se no mínimo, por isto e pelo demais, questionou-se quanto à punibilidade, já que a dúvida é no mínimo evidente, no que concerne à agente ter praticado, qualquer infração in dúbio pro reo.
c) Seja qual for, ou deva ser a opção, sempre a agente deve ser isentada de pena, nos termos do artigo 74º nº 1 al. c) do Código Penal, ou se assim não se entendendo,
d) Aplicar-lhe a multa nos termos do artigo 30º nº 2 al. c) do D.L. nº 251/92.

TERMOS EM QUE DEVE SER REVOGADA A SENTENÇA, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, pugnando pela manutenção da decisão.
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Idêntica posição veio a ser defendida pelo Ministério Público junto deste Tribunal.
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Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417º do CPP.
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II
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que em matéria de contraordenações o Tribunal da Relação funciona, como Tribunal de revista, por conhecer apenas da matéria de direito – artigo 75, nº 1 do DL 433/82 de 27/10, sem prejuízo da apreciação dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP e das nulidades que não devam considerar-se sanadas.
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É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância e respetiva motivação:

1.No dia …, pelas 18:10 horas, na rotunda de …, Bragança, o veículo táxi com a matricula …, encontrava-se a exercer a actividade em regime de aluguer de passageiros (serviço táxi);
2.O referido veículo estava ao serviço da Recorrente;
3.A viatura encontra-se afecta ao serviço táxi;
4.Nessa data a Recorrente tinha alvará, emitido em 27-12-2010 para o exercício de tal actividade;
5.Em 12-07-2016 a Recorrente solicitou a renovação do alvará;
6.Ao apenas solicitar a renovação de alvará em 12-07-2010, a Recorrente teve um comportamento descuidado, ao arrepio das regras da atividade desempenhada as quais prevêem a validade por um período de 5 anos;
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Motivação de facto:

Como ponto prévio deve salientar-se que, ao nível da matéria factual, a Recorrente apenas contesta que o veículo circulasse ao serviço público, isto é, serviço táxi.

Posto isto.

O Tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos dados como provados, no auto de notícia de fls. 6 que, nos termos do artigo 170.º, n.º 3 do Código da Estrada, faz fé em juízo, nos registos de fls. 7-8 (pedido de renovação de alvará com data de 12-07-2016), fls. 9-10 (pagamento de renovação e cópia de alvará), fls. 19 (alvará emitido em 18-07-2016), fls. 63 (comprovativo de pedido de renovação de alvará e respectivo deferimento em 27-12-2010),

Por outro lado, e quanto ao mencionado em 1. a 4., foi ainda decisivo o depoimento de Manuel, militar da Guarda Nacional Republica que procedeu à fiscalização, o qual, além de confirmar o vertido no auto de noticia, confirmou de forma peremptória que o veículo encontrava-se a fazer transporte de passageiros, com o taxímetro ligado, que se encontrava ao serviço da Recorrente e que apenas tinha o alvará mencionado em 4., ficando de apresentar posteriormente um alvará não caducado, o que não ocorreu.

Por outro lado, quanto ao facto descrito em 6., a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-02-93, in BMJ 324/620 os elementos subjectivos são insusceptíveis de “directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.

Apreciando.

Uma vez que se reconhece alguma sequência lógica na ordenação das questões trazidas à apreciação deste Tribunal, respeitar-se-à a ordem indicada pela recorrente.

A primeira questão invocada pelo recorrente respeita à falta de documentação oral da “sentença” (referência feita, certamente, por lapso já que o recorrente quererá referir-se à falta da documentação da audiência).

Conforme se disse já, o Tribunal da Relação apenas conhece de direito, uma vez que funciona como segunda instância, de acordo com o disposto no artigo 75º do RGCOC.

E assim é porque, apesar dos amplos poderes conferidos pela alínea a) do nº 2 do artigo 75º do RGCOC ao Tribunal da Relação, está legalmente afastada a possibilidade de documentação da prova produzida em julgamento (artigo 66º do RGCOC) e, portanto, obviamente também a sua gravação (o registo áudio veio substituir a redução a escrito a que o artigo 66º do RGCOC ainda faz referência). Compreende-se que assim seja. De facto, a apreciação feita pelo Tribunal da Relação situa-se num segundo grau se recurso, uma vez que com a impugnação judicial da decisão administrativa para o Tribunal de primeira instância o recorrente beneficia já de um primeiro grau de recurso. Ora, o registo da prova produzida em audiência num Tribunal de primeira instância, destina-se tão só a permitir a reapreciação dessa mesma prova pelo Tribunal ad quem. Se ao Tribunal ad quem está vedada a reapreciação da matéria de facto, a gravação da audiência constituiria um ato inútil, proibido por lei.

Esta solução é jurisprudencialmente incontroversa (a título de exemplo veja-se os acórdãos da RL de 28.05.2015, da RP de 05/04/2017; da RC de 21/06/2017 todos in www.dgsi.pt) e já mereceu também aprovação por parte do Tribunal Constitucional (a título de exemplo cfr Ac.TC nº 50/99 de 19.01, Ac 73/2007 e 632/2009, todos reafirmados no acordão TC proferido no processo 432/17 de 4.7).

Tanto basta para que se considere que nenhuma nulidade foi cometida pela omissão da gravação da audiência noTribunal a quo.
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Invoca depois a recorrente a sua falta de notificação da decisão proferida pela autoridade administrativa.

Dispõe o artigo 47º do seu nº 1 do RGCOC que a notificação será dirigida ao arguido e comunicada ao seu representante legal, quando este exista.

Mas acrescenta o nº 2 que a notificação será dirigida ao defensor escolhido, cuja procuração conste do processo ou ao defensor nomeado no caso de existirem e o nº 3 estipula que, neste caso, o arguido será informado através de uma cópia da decisão ou despacho. (Esta norma vem na sequência do artigo 46º que impõe que todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas sejam comunicadas às pessoas a quem se dirigem. E assim é, porque nos termos do artigo 55º do RGCOC as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são suscetíveis de impugnação judicial, por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem).

Portanto, resumindo, se no processo de contraordenação (em que não é obrigatória a constituição de advogado ou a nomeação de defensor, sem prejuízo do disposto no artigo 53º do RGCOC) o arguido tiver advogado constituído, é este que é notificado da decisão, sendo o arguido apenas informado através de cópia (artigo 47º, nº 3 do RGCOC).

Nos presentes autos a arguida recorrente constituiu mandatário que juntou aos autos, em 09/12/2016, procuração datada de 21/11/2016 (fls 18).

Portanto, a partir da junção aos autos da procuração, teria de ser o ilustre mandatário da recorrente a ser notificado da decisão, havendo apenas que remeter cópia à recorrente.

Dos autos colhe-se que o ilustre mandatário foi, de facto, notificado da decisão, como o mesmo admite (fls 41 e 46) e à recorrente foi remetida carta registada com a/r, dirigida ao representante legal que foi devolvida sem ser reclamada, contendo, apenas, a indicação do pagamento da coima e custas.

Ora, no prazo legal de recurso de tal decisão, a recorrente veio a apresentar impugnação judicial, que foi recebida, tendo os autos chegado a julgamento, onde foram apreciadas as diversas questões nela invocadas, quer processuais, quer de mérito.

No regime processual penal vigente ( art. 118 nº 1 do CPP) aplicável aos autos por força do art. 41º do RGCOC “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”. Isto é, o regime das nulidades obedece ao princípio da tipicidade, pelo que, não existindo qualquer norma que comine com nulidade a realidade processual exposta, quando muito teria sido cometida uma mera irregularidade (artigo 118º, nºs 1 e 2 do CPP) a arguir nos termos do artigo 123º do CPP, o que não ocorreu.

Mas mesmo que se entendesse que foi cometida uma nulidade ao não ser remetida à recorrente cópia da decisão, teria a mesma de considerar-se sanada, atento o facto de a recorrente ter interposto recurso, prevalecendo-se da faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia (artigo 121º, nº 1 alínea c) do CPP).

Improcede, assim, a invocada nulidade.
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A terceira questão trazida à apreciação deste Tribunal é, no entender do recorrente, a nulidade consubstanciada no dever, não cumprido, que cabia à entidade administrativa de notificar o legal representante da pessoa coletiva, nos termos dos artigos 135º, nº 2 e 171º, nº 2 do Código da Estrada, isto é, para identificar a pessoa que estava ao volante do veículo.

Como se percebe da alegação e conclusão da recorrente, esta entende que se está perante uma contraordenação rodoviária, “atendendo aos intervenientes”. Para tanto invoca o teor do artigo 1º do DL 251/98 de 11.8.

Preceitua esta norma que o diploma em apreço se aplica “aos transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, adiante designados por táxi”.

Ora é evidente que, não é por estarem em causa veículos de transporte que, automaticamente, se está perante uma contraordenação rodoviária, nos termos do Código da Estrada.

À recorrente não foi imputada uma qualquer infração prevista no Código da Estrada, pelo que não se percebe como pode a recorrente invocar a violação dos artigos 135º e 171º do referido código (que regula as infrações nele previstas e, bem assim, na legislação complementar).

A infração atribuída à recorrente tem, pois, de ser avaliada à luz do DL 251/98 de 11.08 (alterado pela Lei 156/99 de 14 de setembro, pela Lei 106/2001 de 31 de agosto; pelo DL 41/2003 de 11 de março; pelo DL 4/2004 de 6 de janeiro; pela Lei 5/2013 de 26 de janeiro e pela lei 35/2016 de 22.11), não havendo que fazer apelo a qualquer norma do Código da Estrada.

Improcede, assim, a invocada nulidade.
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A quarta questão trazida à apreciação deste Tribunal pelo recorrente é a nulidade da decisão administrativa, por não ter sido produzida a prova requerida pela recorrente e, nessa medida, ter sido violado o artigo 58º, nº 1, alínea b) do RGCOC e o artigo 374º do CPP.

Antes de entrarmos, diretamente nesta questão impõe-se fazer, rapidamente, um enquadramento que permita compreender a decisão que será alcançada.

Como se sabe, o direito penal apenas é, ou deve ser, utilizado como ratio ultima da política criminal, destinando-se a punir aqueles comportamentos que são intoleráveis em face dos valores necessários à convivência humana.

Para os demais comportamentos que, sendo ilícitos, não têm a mesma ressonância ética, autonomizou o legislador o direito de mera ordenação social. Este é o ramo do direito que mais se aproxima do direito penal, havendo até a possibilidade de aplicação subsidiária de normas penais e processuais penais (artigo 32º e 41º do RGCOC).

No processamento de uma qualquer contraordenação há, essencialmente, duas fases: a fase administrativa e a fase judicial. É na fase administrativa que é tomada a decisão sobre a ocorrência ou não da contraordenação e a consequente aplicação de sanções; a fase judicial inicia-se com a apresentação da decisão administrativa – que equivale a acusação – por parte do MP ao Tribunal de primeira instância (artigo 62º, nº 1 RGCOC e assento 1/2001 in DR 93/2001, I Série A de 20/04/2001) que dispõe de poderes de apreciação de facto e de direito.

Sendo a fase administrativa aquela onde é tomada a decisão, o exercício do direito defesa nesta fase assume uma importância inegável ( tanto mais quanto são cada vez as áreas da vida sujeitas ao direito de mera ordenação social e são cada vez mais pesadas as coimas impostas, num processo classificado pelo interpelante acórdão da Relação de Évora de 8.04.2014 in www.dgsi.pt como cada vez mais asfixiante, não só pela proliferação das entidades que pretendem regular cada passo da vida do cidadão, também pela substância das cada vez mais metediças exigências das entidades administrativas que conseguem meter em leis as suas tendências tecnocratas). Trata-se, aliás, de um direito com consagração constitucional (artigo 32º, nº 10 da CRP) e legal (artigo 50º do RGCOC), não podendo ser visto com ligeireza, como coisa menor.

Dispõe, então, o artigo 50º do RGCOC com a epígrafe “Direito de audição e defesa do arguido” que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imposta e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

Só que, o direito de audição não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido, abrange o poder de intervir no processo, apresentando provas, requerendo diligências. É certo que a autoridade administrativa não tem que aceitar todas as diligências de prova requeridas pelo arguido, no âmbito do poder de que dispõe de investigação e instrução do processo (artigo 54º, nº 2 do RGCOC), mas não o fazendo deverá fundamentar a decisão em obediência ao princípio da legalidade, que tem consagração constitucional (artigos 266º e 268º da CRP) (Cfr Ac. RE de 06/11/2018 in www.dgsi.pt).

Invoca a recorrente que, na fase administrativa, requereu produção de prova que não foi realizada. Efetivamente, no exercício do direito de audição, a recorrente, para além de elencar diversas questões e juntar documentos, requereu a audição de duas testemunhas (fls 17).

Após a apresentação da defesa e sem que tivessem sido ouvidas as testemunhas arroladas veio a ser proferida decisão onde ficou plasmado além do mais que “em momento algum da defesa, a arguida consegue demonstrar, com prova documental que a empresa possuía uma situação regular, como alega no ponto 31 do articulado. Deste modo, a defesa apresentada carece de fundamento, limitando-se a invocar generalidades formais, ignorando a matéria de facto que resulta dos autos.

Deste modo temos de considerar provada a infração”.

Desta decisão é interposto, pela arguida, recurso de impugnação onde invoca falta de matéria de facto, alegando que as razões que levaram à contraordenação não são claras. Concretizando, defende o recorrente que se tornava necessário alegar e “demonstrar se o veículo estaria em serviço de aluguer, ou se estava em uso particular dos legais representantes da arguida, para onde se deslocava, se levava passageiros” (pontos 35 e 36), acrescenta (ponto 39) que “perante este cenário não estão claras as razões que levaram à condenação da arguida, pois além de não estar identificada a pessoa que tinha a direção do veículo (propriedade da arguida), não é esclarecido quem era o condutor, para onde ia, se o veículo estava de serviço (devidamente sinalizado) ou se por hipótese estaria em serviço particular”; acrescenta ainda (ponto 43) que “retira-se da lei que, em circunstância alguma, é proibido aos veículos afetos ao serviço de taxi, serem utilizados no serviço particular dos seus proprietários ou de outrem (dos autos não resulta que o veículo em causa circulasse afeto ao serviço público)”; continua (ponto 44) reafirmando que das averiguações constantes dos autos – do inquérito – não se pode concluir que o veículo circulasse afeto ao serviço público, ou não, consta apenas uma remissão para preceitos legais, sem mais considerações (…) para onde se deslocava o veículo; se transportava um cliente; se transportava uma pessoa da família; se havia contrato de prestação de serviços, qual o percurso feito, ou a fazer, distância a percorrer…), concluiu depois (artigo 47) dizendo que a arguida naquela data não circulava em serviço de taxi, e como tal, não lhe pode ser imputada a infração em causa, invocando o princípio in dubio pro reo.
*
A decisão recorrida debruça-se sobre a questão da não audição das testemunhas arroladas pelo recorrente, nos seguintes termos:

(…)
É certo que a recorrente requereu a inquirição de testemunhas, não tendo a entidade ouvido as mesmas.
Todavia e analisado o recurso interposto pela recorrente, constata-se que o mesmo não foi prejudicado pela não inquirição.
Na verdade, em sede judicial, concretamente em sede de julgamento, a recorrente arrolou várias testemunhas (uma delas coincidente) e, após a admissão de tais meios de prova, prescindiu dessa inquirição”.

Invoca depois o tribunal a quo o AUJ 1/2003 publicado no DR I de 25/01/2003 e ainda um acordão da Relação de Guimarães e outro da Relação de Coimbra, para concluir que, ainda que se tivesse verificado a invocada nulidade, ela estaria sanada.

Não se afigura que esta conclusão esteja correta.

De facto, se o recorrente indica testemunhas para serem ouvidas, compete à autoridade administrativa, caso entenda questionar a pertinência da sua audição, aduzir as razões pelas quais entende que a prova testemunhal não se reveste de importância para a decisão. É certo que, como já se disse (e se pode ler, por exemplo, no Ac. RE de 06/11/2018 in www.dgsi.pt) a autoridade administrativa não tem que proceder a todas as diligências de prova requeridas pelo arguido, designadamente inquirição de testemunhas, mas apenas aquelas diligências que surgem como relevantes no quadro legal em vigor para o apuramento de informação, mas também é verdade que, ao não aceitar as diligências da prova requeridas, terá de fundamentar a decisão.

Assim, a autoridade administrativa omitiu completamente a inquirição das testemunhas e, bem assim, a justificação para tal omissão; o Tribunal a quo não retirou daí quaisquer consequências; o arguido tem direito a exercer a sua defesa (artigo 32º, nº 10 e 18, nº 1, ambos da CRP), direito este que não foi justificadamente respeitado, o que consubstancia a invocada nulidade prevista no artigo 120º, nº 2 alínea d) do CPP, que a recorrente atempadamente arguiu perante a entidade administrativa, depois perante o Tribunal a quo e, finalmente, perante este Tribunal, arguição que terá de proceder.

III.
DECISÃO

Em face do exposto decidem os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

- conceder provimento ao recurso interposto e, consequentemente, declarar nulas a sentença recorrida e a decisão administrativa;
- determinar a remessa dos autos à entidade administrativa – através do Tribunal recorrido – para instrução do processo com inquirição das testemunhas indicadas pelo recorrente e posterior decisão;
- declarar prejudicado o conhecimento das demais questões elencadas pelo recorrente.

Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 11 de fevereiro de 2019

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho