Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
137/14.9TBCBC.G1
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMBARGO EXTRAJUDICIAL DE OBRA NOVA
RATIFICAÇÃO
CÂMARA MUNICIPAL
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - O tribunal comum, que não o administrativo, é o efectivamente competente para conhecer de uma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova efectuado directamente por requerente que invoca ter ocorrido violação do seu direito de propriedade sobre imóvel por parte de Câmara Municipal no âmbito de obras que vem executando.
II - É que, não obstante a invocada ofensa do direito de propriedade por parte do requerente da providência se conexione com uma relação jurídico administrativa, referente à realização de uma obra pública por parte da requerida Câmara Municipal, o que importa é que não é a primeira disciplinada por normas de direito administrativo, mas antes e tão só por normas de direito privado.
III - Acresce que, em sede de aferição do tribunal materialmente competente, se o comum ou antes o administrativo, o que importa é ter em atenção qual a relação jurídica que está na base do litígio e qual a natureza das normas que a disciplinam, e tal como se mostra aquela configurada nos autos pelo requerente.
IV - Assim, caso a relação jurídica referida em III diga respeito a um litígio de natureza privada, a decidir por aplicação de normas de direito privado, e ainda que um dos sujeitos seja uma entidade pública, então o tribunal administrativo não é o competente, antes o é o tribunal comum.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1.Relatório.
A… e T…, ambos de Cabeceiras de Basto, instauraram providência cautelar de ratificação de embargo de obra nova contra a Câmara Municipal de…, pedindo a ratificação de embargo extrajudicial efectuado pelos Requerente.
Para tanto, alegaram em síntese que :
- Sendo donos do prédio rústico sito no lugar da …, freguesia de Refojos, de Cabeceiras de Basto, inscrito na matriz sob o artigo … e não descrito na Conservatória, o certo é que no dia 28 de Abril, a requerida, através de funcionários seus, procedeu à abertura de uma rota, numa extensão de cerca de 10 metros e nela colocaram um tubo de cor preta, para condução de águas provenientes da estrada já existente, e em terreno propriedade dos requerentes ;
- Ainda a mesma requerida, e em prédio dos requerentes, retiraram a vedação do terreno em relação à estrada existente e dos postes que a suportavam, atirando-os para o terreno dos requerentes, o que tudo fez sem a autorização e contra a vontade dos mesmos requerentes;
- É que, no essencial, pretende a requerida executar , em parcela ainda propriedade dos requerentes ( porque não foi objecto de expropriação e de DUP ) , uma parte da estrada que está a edificar e que é a variante à EN 205 entre Lameiros e a sede do concelho;
- Ora, em razão do referido, e porque no dia 28 de Abril, pelas 14horas procederam os requerentes ao embargo da obra, o que fizeram nas pessoas dos funcionários da Requerida, pretendem a ratificação do referido embargo extrajudicial, sendo que a providência cautelar intentada é preliminar da acção judicial a intentar pelos requerentes contra a requerida, de reconhecimento de propriedade da parcela de terreno em causa.
1.1. - Após citação da requerida, veio a mesma deduzir oposição à providência, o que fez por excepção e impugnação, sendo que no âmbito da defesa por excepção veio arguir designadamente a incompetência absoluta do tribunal para conhecer da acção, aduzindo que o Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto é incompetente em razão da matéria, o que tudo implica a absolvição da requerida da instância, nos termos dos artigos 576.º e 577.º do CPC.
1.2. - Seguindo a resposta dos requerentes , incidindo a mesma sobre as excepções aduzidas pela requerida em sede de oposição, e após a prolação de despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial , foi a 9/9/2014 proferida decisão que conheceu da excepção dilatória da incompetência absoluta arguida pela requerida, sendo o respectivo excerto decisório do seguinte teor :
“ (…)
A situação em presença configura, por isso, a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, a qual é de conhecimento oficioso, enquanto não houver decisão com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, e impõe que a Requerida seja absolvida da instância - de harmonia com o disposto nos artigos 96.°; 97.°; 98.°; 99.°; 278.° n.01 alínea a); 576.°, 577.oalínea a) e 578.° do Novo Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julga-se pela incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da matéria e, em consequência, absolve-se a Requerida, Câmara Municipal de…, da instância.
Custas a cargo dos Requerentes, nos termos do artigo 527.°, n.os 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
1.3. - Da referida decisão, porque com ela não concordando, e inconformados , apelaram então os requerentes , formulando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
1ª) Contrariamente ao decidido pelo Tribunal "a quo", o tribunal judicial de Cabeceiras de Basto é o competente para dirimir o conflito entre os Requerentes/Recorrentes e Requerida/Recorrida;
2ª) O objecto do pedido principal dos Recorrentes, que são particulares, é o reconhecimento pela Recorrida, de que são proprietários de um imóvel;
3ª) Os Recorrentes actuam visando a salvaguarda de um bem que é privado, no caso um terreno, cuja posse e propriedade é posta em causa pela Recorrida;
4ª) Não existe entre Recorrentes e Recorrida qualquer relação jurídica administrativa como erradamente considerou o tribunal "a quo";
5ª) O que está aqui em causa nos presentes autos, é a propriedade de um terreno dos Requerentes, que foi objecto de uma intervenção de funcionários da Câmara Municipal de…, sem para tal estarem, autorizados, ou seja, a ofensa do direito de propriedade dos Requerentes, por parte da Requerida;
6ª) A Requerida através dos seus funcionários, procedeu à abertura de uma rota, numa extensão de cerca de 10 metros e nela colocou um tubo de cor preta, para condução de águas provenientes da estrada já existente e em terreno que pertence aos aqui Recorrentes, tendo igualmente retirado a vedação do terreno em relação à estrada existente e dos postes que a suportavam;
7ª) Dispõem os artigos 211° e 212° da Constituição da República Portuguesa, que os tribunais administrativos e fiscais têm competência para o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, enquanto que, os tribunais judiciais têm uma competência residual - exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais;
8ª) Estes princípios orientadores encontram-se nos artigos 26° da Lei n" 52/2008 de 28 de Agosto, onde refere que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional;
9ª) Aos tribunais administrativos e fiscais, foi-lhes atribuída competência para "administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais", nos termos do disposto nos artigos 1° nº 1 e 4° do ETAF;
10ª) "As regras determinativas da competência estão orientadas no sentido da obtenção da idoneidade do julgamento, isto é, a competência está funcionalmente ligada à determinação do tribunal mais adequado para apreciar a causa." - Anselmo de Castro, in "Direito Processual Civil Declaratório, voI. II;
11ª) Assim, para aferir da competência de um tribunal há, pois, que considerar a identidade das partes e os termos em que a acção é proposta;
12ª) Deve atender-se à natureza da pretensão formulada ou do direito para o qual o demandante pretende a tutela jurisdicional e ainda aos factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito, ou seja, ao pedido e à causa de pedir;
13ª) Tudo isto no seguimento da jurisprudência dominante conjugada com as normas legais em vigor sobre esta matéria (cfr., por todos, os Acs. do Tribunal de Conflitos de 20/09/2012, Procº. 2/12, Cons. Santos Botelho, e a vasta jurisprudência aí mencionada, e de 16/02/2012, Procº. 020/11, Cons. Fernanda Xavier, disponíveis in www.dgsi.pt);
14ª) No mesmo sentido vai a doutrina, e refere Manuel de Andrade, "a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum ) " (in "Noções ... /1, pág. 91);
15ª) É, pois, a estrutura da causa, tal como vem configurada pelo autor, a determinar a competência material do tribunal;
16ª) Tudo isto foi ignorado pelo tribunal" a quo";
17ª) E mais, os conceitos de gestão pública e de gestão privada dos entes administrativos deixaram de ser relevantes para a atribuição da competência jurisdicional dos tribunais administrativos;
18ª) Actualmente, o critério material da distinção assenta em conceitos como a relação jurídica administrativa e a função administrativa - Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15.05.2013, em que foi relator Fonseca Ramos, (Proc. nº 024/13, n° convencional ISTA000P15746, disponível em www.dgsi.pt;
19ª) Na situação em apreço, os Recorrentes instauram um procedimento cautelar prévio a uma acção de reivindicação (1311° do CC), atenta a urgência do assunto em discussão, e fazem-no invocando a violação do seu direito de propriedade;
20ª) O que está em causa numa acção de reivindicação é se o direito de propriedade invocado existe e é oponível ao réu por forma a tirar-lhe a detenção da coisa reivindicada;
21ª) Trata-se, pois, de uma questão de direito privado que compete aos tribunais comuns dirimir já que a sua competência é residual e não existe norma a atribuí-la à jurisdição administrativa - não cabe, com efeito, em nenhuma das situações enumeradas (ainda que a título exemplificativo) no artigo 4°, do ETAF.
22ª) Assim, por todo o exposto estamos perante uma relação jurídica privada, e o tribunal judicial é o tribunal competente para dirimir este litígio ;
23ª) A douta sentença, aqui em crise, viola entre outras normas, as constantes dos artigos 211°, 212° da CRP, 26° da LOFTJ e 1° e 4° do ETAF.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se a sentença por acórdão que julgue o tribunal judicial de Cabeceiras de Basto materialmente competente, para dirimir o conflito existente entre o Recorrente e Recorrida, com todas as legais consequências, no que farão V.Exas, a sempre Inteira e Costumada JUSTIÇA!
1.3.- A recorrida não apresentou contra-alegações.
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1.4. - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, a questão a apreciar e a decidir é a seguinte :
- Saber se, in casu, é o tribunal a quo o competente em razão da matéria para conhecer da presente acção , pelos apelantes intentada , ou, ao invés, se para o efeito a respectiva competência incumbe antes ao tribunal administrativo, tal como o decidiu a primeira instância.
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2.- Motivação de facto
Para efeitos de decisão do mérito da instância recursória, importa atender tão só à factualidade que resulta do relatório do presente acórdão.
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3.Motivação de Direito
Como vimos supra, importa tão só apreciar no âmbito da presente instância recursória da competência em razão da matéria do tribunal a quo para conhecer da providência cautelar intentada pelos apelantes, importando pois aferir da efectiva verificação de excepção dilatória da incompetência absoluta, excepção esta que, podendo é certo ser suscitada oficiosamente pelo tribunal (cfr. artº 97º,nº1, do CPC), foi porém in casu arguida pela apelada, e , em sede de despacho proferido, atendida pelo tribunal de primeira instância.
Para tanto, fundamentou-se na decisão apelada, para concluir pela incompetência em razão da matéria do tribunal judicial, e em traços gerais, do seguinte modo :
“ (…)
Apreciando a posição dos Requerentes, na sua petição, verifica-se que estes vieram requerer ao Tribunal a ratificação de um embargo que eles efectuaram extrajudicialmente, embargo esse que recaiu sobre obras efectuadas pelos funcionários da Câmara Municipal de…, consistentes na abertura de uma rota, numa extensão de cerca de 10 metros, tendo colocado um tubo de cor preta, para condução de águas provenientes da estrada já existente e em terreno que é da sua propriedade.
Essas obras relacionam-se com a execução da estrada que a Câmara Municipal está a edificar e que é a variante à EN 205 entre Lameiros e a sede do concelho.
De acordo com o estabelecido na Lei nº 159/99, de 14/9, os municípios têm atribuições no âmbito do equipamento [artigo 13.°, n.º 1, alíneas a) ], nas quais se compreendem as competências do seu órgão câmara relativas à realização de investimentos nas ruas e arruamentos (artigo 16.°, alínea b».
O que significa que as obras efectuadas pelos funcionários da Câmara Municipal de… que vieram a ser objecto de embargo cuja ratificação judicial vem requerida se inserem no âmbito das atribuições do município e da competência da sua Câmara.
E, assim sendo, a actividade por eles desenvolvida, seguramente no cumprimento de ordens recebidas dos órgãos ou agentes competentes para o efeito, não pode deixar de ser qualificada como uma actividade de gestão pública.
Não é, com efeito, o facto de terem invadido terrenos alegadamente privados, que coloca essa actividade em paridade com a resultante de eventual invasão dessa propriedade por quaisquer simples particulares, pela decisiva razão de que estes não estavam investidos nos poderes públicos em que estavam os agentes da Requerida. O facto da propriedade "invadida" ser privada apenas determina a ilicitude dos actos de gestão pública praticados pelos agentes em causa, não os transforma em actos de gestão privada, pois que essa invasão, mesmo que ilícita, visou a satisfação dos interesses públicos dos utentes da estrada em causa, que à Requerida incumbia satisfazer e daí que o tenham feito, mesmo que de forma ilegal, no exercício de um poder que qualquer particular não tinha.
Assim sendo, impõe-se concluir que a relação jurídica subjacente à conduta que a Requerente pretende ver ratificada pelo Tribunal (embargo da obra), e que constitui a causa de pedir, é uma relação jurídica administrativa.
Assinala-se ainda, na tentativa de dissipação das dúvidas suscitadas, que a decisão sobre a natureza pública ou privada do terreno onde foi efectuada a obra embargada não é o que vem pedido ao Tribunal, mas sim a proibição de continuação das obras em causa, pelo facto do terreno onde foram efectuadas ser privado.
Ou seja, que essa natureza não é uma questão a decidir a título principal, mas apenas como pressuposto da legalidade da execução da obra pela Requerida, no âmbito da sua actividade de gestão pública.
Ora, para além dessa proibição poder ser pedida no âmbito do contencioso administrativo (cfr. artigos 2.°, 37.° e 112.° do CPTA), também a natureza do terreno, como pressuposto da viabilidade da pretensão, pode ser conhecida no âmbito do procedimento exercitado na jurisdição administrativa para a defesa dos direitos ou interesses legítimos dos Requerentes, pelo menos a título prejudicial, com efeitos restritos ao processo do contencioso administrativo (cfr. artigo 15.° do CPTA) - no sentido da possibilidade de conhecimento dessa matéria a título principal, vd. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Anotado, Vai. I, pág. 36 .
Em conclusão: considera-se que, estando em causa o embargo de uma obra pública, a relação jurídica que está subjacente à pretensão em causa é uma relação jurídica administrativa, pelo que o conhecimento das questões decorrentes dessa relação são os tribunais da jurisdição administrativa.
A situação em presença configura, por isso, a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, a qual é de conhecimento oficioso, enquanto não houver decisão com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, e impõe que a Requerida seja absolvida da instância - de harmonia com o disposto nos artigos 96.°; 97.°; 98.°; 99.°; 278.° n.º1 alínea a); 576.°, 577.oalínea a) e 578.° do Novo Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julga-se pela incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da matéria e, em consequência, absolve-se a Requerida, Câmara Municipal de…, da instância. “
Já para os apelantes, e ao invés do decidido pelo tribunal a quo, o que está em causa no procedimento cautelar que instauraram e que prévio a uma acção de reivindicação , é a violação do seu direito de propriedade, ou seja, uma questão de direito privado que compete aos tribunais comuns dirimir já que a sua competência é residual e não existe uma qualquer norma a atribuí-la à jurisdição administrativa.
Ora Bem.
Adiantando desde já o nosso veredicto, e não obstante reconhecer-se que a questão não é pacífica, razão porque tem vindo a mesma a objecto de decisões judiciais de sentido diferente, a ponto de, em última instância, ter sido amiúde o Tribunal de Conflitos chamado a decidir diversos conflitos negativos de jurisdição, é para nós de alguma forma incontornável que, em razão da causa petendi que alicerça a providência intentada pelos apelantes, a decisão apelada não justifica manter-se.
Senão, vejamos.
Antes de mais, importa reconhecer que, efectivamente, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos ( causa petendi ) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição ( quid disputatum ou quid dedidendum ), que cabe determinar a competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer (1).
Depois, nos termos dos artigos 24º e 26º, nº1, ambos da LOFTJ ( Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, e in casu aplicável ), mister é outrossim não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual ( os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que ela - a competência - “ (…) fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram “, e as de direito, “ excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.(2)
Ou seja, e dito de uma outra forma (3) , sendo em atenção à matéria da lide, ao acto jurídico ou facto jurídico de que a acção emerge, que importará aferir se deve a acção correr termos pelo tribunal comum ou judicial (4) , ou , antes , por um tribunal especial , e sendo o primeiro o tribunal regra [ porque goza de competência não discriminada, incumbindo-lhe apreciar e decidir todas as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial , ou outra ordem jurisdicional ], então a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes [ não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência de algum tribunal especial, cai ela inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial ] .
Isto dito, e importando in casu aferir da competência material dos tribunais administrativos ( em razão da decisão apelada ) , recorda-se que, do artº 212º, nº 3, da CRP , e do artº 1º, nº1, do ETAF (5) , resulta , respectivamente , que “ Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” , e que “ Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Por outra banda, e agora no respectivo artº 4º, identifica o ETAF , em diversas alíneas, diversos tipos de litígios cuja apreciação, em razão do respectivo objecto, incumbe/compete forçosamente aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, sendo que, de entre eles, salientam-se aqueles que se prendem ( al. a) ) com a “ Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal “ , ou, (alínea c) com a “ Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública”.
Finalmente, recorda-se que rezando o artº 399º, do CPC, que “ Não podem ser embargadas, nos termos desta secção, as obras do Estado, das demais pessoas colectivas públicas (…) quando, por o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa, a defesa dos direitos ou interesses lesados se deva efectivar através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso “, tal equivale a dizer que consagra outrossim a lei adjectiva uma norma de definição de competência da jurisdição administrativa, proibindo expressamente a intervenção dos tribunais comuns em sede de julgamento de litígios decorrentes de relações jurídico-administrativas.
Ora, começando por caracterizar o objecto do litigio da acção principal a intentar pelos apelantes, e isto porque o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado, podendo ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ( cfr. artº 364º,nºs 1 e 2, do CPC ), recorda-se que em razão do alegado pelos apelantes no respectivo requerimento inicial , e invocando ambos a violação - em consequência de obra - pela requerida de um direito de propriedade dos requerentes, inevitável é concluir que a acção principal a intentar será sempre uma normal e típica “acção de reivindicação” ( uma acção real ), consabido que, como há muito ensina o Prof. Manuel Rodrigues (6), “ há na acção de reivindicação um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração de existência da propriedade e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide”.
Ou seja, e tendo presente o disposto no artº 581º, nº4, do CPC , o qual e tal como o pretérito nº 4, do artº 498º do CPC, reza que “Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real “, manifesto é que em razão da providência intentada ( e da factualidade, ainda que demasiado sucinta, na mesma alegada, o que não é grave em razão de em sede de providência bastar-se o respectivo deferimento com uma aparência do direito assente em mero juízo de probabilidade ou verosimilhança ) e da acção principal que terá que forçosamente seguir-lhe em consonância com o direito na primeira acautelado, a causa petendi mostra estar relacionada com questão cuja apreciação e decisão pelo julgador postula tão só a aplicação de normas do direito privado, que não público ou de natureza jurídica administrativa.
Não se olvida que, a par da titularidade do direito real alegado pelos apelantes, e de resto em consonância com o disposto no artº 397º, nº1, do CPC [ qual segundo requisito (7) do embargo de obra nova ] , alegam ainda os apelantes no requerimento inicial da providência a existência de obra executada pela requerida, qual facto ilícito que constitui/integra igualmente a causa de pedir do embargo, exprimindo ele o perigo de insatisfação do direito dos requerentes (8).
Não obstante, e podendo é certo os apelantes, na acção principal , impetrarem a condenação da requerida no pagamento de uma qualquer indemnização para ressarcimento dos prejuízos causados [ como é doutrina uniforme (9), a acção de reivindicação, sendo uma acção condenatória e compreendendo essencialmente dois pedidos concomitantes, a saber, o pedido de reconhecimento de determinado direito de propriedade e o pedido de entrega da coisa objecto desse mesmo direito - cfr. de resto o disposto do nº1, do artº1311º, do CC - , nada obsta a que o autor da reivindicação junte ainda aos dois pedidos referidos o pedido de indemnização ], ainda assim não deixa a causa petendi considerada no seu todo de demandar a valoração e aplicação tão só de normas do direito privado. (10)
No seguimento do acabado de expor e concluir, e tendo presente que , no essencial, a relação jurídico administrativa mais não configura que uma relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada/disciplinada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas (11) (12) (13) , temos assim que, em razão da causa petendi invocada pelos apelantes e que ancora/suporta o pedido que formulam na acção, não existe qualquer fundamento pertinente que justifique considerar que o litígio a dirimir na acção principal a intentar pelos requerentes da providência se reporta a uma relação jurídico-administrativas, isto por um lado.
E, por outro, não se descobre no artº 4º do ETAF, em todas as suas alíneas, ou numa outra qualquer disposição legal, um qualquer comando que obrigue a que o litígio que opõe apelantes à apelada, em razão da natureza do seu objecto, deva necessariamente [ porque , em razão do objecto do litigio , estar pretensamente melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelos apelantes ] ser dirimido em tribunal administrativo.
Assim sendo, e porque como vimos supra a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes [ não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência de algum tribunal especial, cai ela inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial ] , inevitável é concluir-se que o litígio que opõe apelantes à apelada há-de forçosamente ser dirimido ( apreciado e julgado ) em tribunal judicial ou tribunal comum.
Em suma, a apelação deve justificadamente proceder, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
Resta tão só acrescentar que, se é verdade - como acima se referiu - que a questão ora em apreço não é pacífica, existindo diversas decisões judiciais de sentido diferente, é porém nossa convicção que, em razão do entendimento que vem sendo sufragado pelos tribunais de segunda instância (12) e pelo Tribunal dos Conflitos (13) em diversos Ac.s mais recentes, a tendência actual vem caminhando paulatinamente e de forma praticamente unânime para o “julgamento” no sentido de que são os tribunais comuns – e não os administrativos - os competentes para conhecer v.g. de uma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial com fundamento em pretensa ofensa do direito de propriedade do requerente por obras realizadas por município.

4.- Concluindo e sumariando ( cfr. artº 663º,nº7, do CPC)
1 - O tribunal comum, que não o administrativo, é o efectivamente competente para conhecer de uma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova efectuado directamente por requerente que invoca ter ocorrido violação do seu direito de propriedade sobre imóvel por parte de Câmara Municipal no âmbito de obras que vem executando.
II - É que, não obstante a invocada ofensa do direito de propriedade por parte do requerente da providência se conexione com uma relação jurídico administrativa, referente à realização de uma obra pública por parte da requerida Câmara Municipal, o que importa é que não é a primeira disciplinada por normas de direito administrativo, mas antes e tão só por normas de direito privado.
III - Acresce que, em sede de aferição do tribunal materialmente competente, se o comum ou antes o administrativo, o que importa é ter em atenção qual a relação jurídica que está na base do litígio e qual a natureza das normas que a disciplinam, e tal como se mostra aquela configurada nos autos pelo requerente.
IV - Assim, caso a relação jurídica referida em III diga respeito a um litígio de natureza privada, a decidir por aplicação de normas de direito privado, e ainda que um dos sujeitos seja uma entidade pública, então o tribunal administrativo não é o competente, antes o é o tribunal comum..
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5- Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, na sequência dos fundamentos supra aduzidos, em conceder provimento à apelação , e , consequentemente , revogando-se a decisão recorrida :
5.1.- Determina-se o prosseguimento dos autos, pois que, o tribunal recorrido é efectivamente o competente, em razão da matéria, para conhecer da providência cautelar.
Sem custas.
***
(1) Cfr. Manuel de Andrade, “in Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 91).
(2) Cfr. ainda o disposto no art.º 5º, nº1, do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro.
(3) Cfr. José A. dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I , Coimbra 1960 , págs. 146 e segs..
(4) Reza o artº 211º,nº1, da CRP, que “ Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais “
(5) O ETAF - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - foi aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, a qual por sua vez foi sujeita já a diversas alterações, designadamente introduzidas pelas Leis nºs 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, 107-D/2003, de 31 de Dezembro, 1/2008, de 14 de Janeiro, 2/2008, de 14 de Janeiro, 26/2008, de 27 de Junho, 52/2008, de 28 de Agosto, e 59/2008, de 11 de Setembro.
(6) In Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 57/114.
(7) Cfr. L.P. Moitinho de Almeida, in “ Embargo ou Nunciação de Obra Nova “ , 2ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, 1986, pág. 25.
(8) Cfr. L.P. Moitinho de Almeida, ibidem, e socorrendo-se de José A. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. II , pág.60.
(9) Cfr. designadamente Manuel Salvador - in Elementos da Reivindicação, Lisboa, 1958, pág. 21 - , Pires de Lima e Antunes Varela - in CC anotado, Volume III, 1972, pág. 100 e segs- e o Prof. Paulo Cunha in “Processo Comum de Declaração”, I , pág. 208.
(10) Cfr. Ac. de 25/9/2014, do Tribunal de Conflitos, Proc. nº 027/14, e sendo Relator José Augusto Fernandes do Vale.
(11) Cfr. Fernandes Cadilha, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, págs. 117/118, citado no Ac. do Tribunal de Conflitos de 15/05/2013, Proc. nº 024/13 e in www.dgsi.pt.
(12) No entender de Gomes Canotilho e de Vital Moreira - in “Constituição da República Anotada”, 3ª ed., pág. 815 - , a relação jurídico-administrativa pressupõe duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
(13) Também para Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 9.ª Edição, Almedina, pág. 55, e na falta de definição legal expressa, prudente é qualificar-se a “relação jurídica administrativa” partindo-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” , ou seja, no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
(14) Vide, de entre outros, v.g. os Ac.s do Tribunal da Relação do Porto de 27/9/2011 ( Proc. nº 2911/11.9TBVFR-A.P1 ), 18/6/2013 ( Proc. nº 54/13.0TBTBC.P1) e de 4/11/2013 ( Proc. nº 790/08.2TVPRT.P2 ) ; do Tribunal da Relação de Évora, de 19/12/2013 ( Proc. nº 80/11.3TBEVR.E1 ) ; do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/9/2013 ( Proc. nº 1215/12.4TBVVD.G1) ; do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/9/2014 ( Proc. nº 17/14.8TBPPS.C1 ) e de 16/9/2014 ( Proc. nº 1998/12.1TBMGR.C1), todos eles acessíveis in www.dgsi.pt.
(15) Vide, de entre muitos outros, os Ac.s do Tribunal de Conflitos de 6/2/2014 ( Proc. nº 058/13, e sendo Relator Lopes do Rego ) , de 5/6/2014 ( Proc. nº 04/14, e sendo Relator Paulo Sá ), de 19/6/2014 ( Proc. nº 013/14, e sendo Relator Alberto Augusto Oliveira ), de 10/9/2014 ( Proc. nº 016/14, e sendo Relator Melo Lima ) e de 25/9/2014 ( Proc. nº 027/14, e sendo Relator Fernandes do Vale).
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Guimarães, 10/11/2014
António Santos
Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte