Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
343/19.0PABCL.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: HOMICÍDIO TENTADO
PRISÃO EFECTIVA
NÃO SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A decisão de suspender, ou não, uma pena requer, nos termos do art. 50º do Código Penal, além do mais, uma avaliação global das circunstâncias que possibilitam uma conclusão sobre o comportamento futuro do arguido, designadamente, a sua personalidade (inteligência e caráter), a sua vida anterior (também a refletida no registo criminal), as circunstâncias da prática do crime (motivação e fins), a conduta depois dos factos (reparação do dano e arrependimento), outras circunstâncias da vida (profissão desempenhada, família constituída) e os presumíveis efeitos da suspensão no comportamento do arguido.
2. Nos crimes passionais, dadas as emoções envolvidas, é ainda mais necessário que o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do arguido se revista de objetividade, racionalidade e clareza, de modo a afastar-se da inflação emotiva que, tantas vezes, acompanha a análise, sobretudo mediática, de tais crimes.
3. A constatação de que um arguido, decorridos mais de 4 anos sobre o divórcio, continua a não conseguir libertar-se dos impulsos agressivos relativamente à ex-mulher, a ponto de tentar matá-la na via pública e na presença dos filhos menores, impede a formulação de um juízo positivo de prognose e, portanto, impossibilita a suspensão da pena de 4 anos de prisão imposta por tal crime.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo que, com o nº 343/19.0PABCL, corre termos no JCC de Braga foi decidido, além do mais, condenar o arguido J. M., pela prática como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 22º, nºs 1 e 2 alínea c), 26º, 1ª proposição, 131 e 132, nºs 1 e 2 alínea b), todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão efetiva e bem assim no pagamento do montante de 5.000€, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos do artigo 82º-A do CPP e do artigo 6º do Estatuto da Vítima, acrescidos de juros de mora (…) contabilizados desde a prolação desta decisão até efetivo e integral pagamento.
*
Inconformado com a condenação, recorreu o arguido para este tribunal da relação concluindo o recurso do seguinte modo (transcrição):

1. O Recorrente foi condenado pela prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 22º, ns 1 e 2, al. c), 26º, 1ª proposição, 131º e 132, ns 1 e 2, al. b), todos do CP, na pena efectiva de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
2. O arguido sofreu e sofre de desgosto amoroso.
3. O recorrente à data dos factos consumia bebidas alcoólicas e por vezes em excesso.
4. O recorrente mediante a imposição de regras e condutas poderá cumprir a pena em que foi condenado em liberdade.
5. O recorrente trabalhava em Inglaterra.
6. O recorrente tem emprego em Inglaterra.
7. O recorrente tem apoio familiar em Portugal.
8. O recorrente em Inglaterra para onde pretende regressar após a resolução deste processo tem apoio familiar e profissional.
9. A pena aplicada ao recorrente de quatro Anos deve ser suspensa.
10. Já que a simples ameaça da pena de prisão é suficiente para afastar o arguido da prática de futuros crimes.
11. O crime praticado pelo arguido foi-o em virtude da “doença” que é o consumo de bebidas alcoólicas e por desgosto amoroso.
12. Foram violadas as normas dos arts. 70º e 71º do C.P..
13. Existe, assim, fundamento para recurso, nos termos do art. 410º, nº 1.
14. Deve, por isso, o Douto Acórdão ser revisto.
15. E substituído por outro que permita ao arguido conviver em sociedade.
16. Foi aplicada ao arguido uma pena inferior a cinco anos.
17. Pena esta que deverá ser suspensa, mediante a imposição ao arguido de regime de prova.
18.
TERMOS EM QUE, MERETISSIMOS Srs. JUÍZES DESEMBARGADORES, apreciando melhor, decidirão fazendo a habitual JUSTIÇA.
*
O recurso foi corretamente admitido.
*
Responderam o ministério público e a assistente em primeira instância, ambos defendendo a sua improcedência.
*
Idêntica posição veio a ser tomada pelo ministério público junto este tribunal.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
*
Após os vistos, realizou-se conferência.

II.
A apreciação do recurso é balizada pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Assim sendo, analisando a síntese conclusiva termos que a única questão a solver é a de saber se a pena de prisão imposta ao arguido recorrente deveria ser suspensa na sua execução.
*
É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância (transcrição):

Da acusação pública
1. O, aqui, arguido J. M., no dia 23 de Agosto de 2003, contraiu casamento católico com a, aqui, assistente D. T..
2. Nos assentos de nascimento nºs … e …, dos anos de 2010 e de 2013, respectivamente, das Conservatórias do Registo Civil de Barcelos e de Viana do Castelo, respectivamente, consta que J. P. e P. D. nasceram no dia - de Setembro de 2004 e no dia - de Novembro de 2013, respectivamente, tendo como pais inscritos os, aqui, arguido e assistente.
3. O casamento entre o arguido e a assistente, referido em 1., foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida no dia 16 de Março de 2015 e transitada em julgado no dia 28 de Abril de 2015.
4. Na sequência do divórcio referido em 3., foram reguladas as responsabilidades parentais dos mencionados J. P. e P. D., que ficaram confiados à, aqui, assistente, residindo com esta.
5. Em Dezembro de 2018, aquela D. T. e os filhos residiam na Rua …, em Barcelos.
6. Desde data que, em concreto, não foi possível, apurar, mas situada após o divórcio referido em 3., o arguido emigrou para a Inglaterra.
7. Nessa altura, o mencionado J. M. regressava a Portugal, regularmente, nos períodos de férias do Natal e do Verão (em Agosto).
8. Em dias que, em concreto, não foi possível precisar, mas situados por ocasião das férias do Natal de 2018, o arguido pernoitou à entrada de uma garagem sita na rua identificada em 5.
9. O aludido J. M., nesse período temporal, nas horas em que a assistente saía e regressava à sua habitação – o que ocorria entre as 07 horas/07 horas e 30 minutos e as 20 horas/20 horas e 30 minutos, respectivamente –, permanecia na via pública, junto da entrada da residência da mencionada D. T., de forma a que esta notasse a sua presença.
10. No dia 21 de Dezembro de 2018, pelas 20 horas, quando a assistente regressava à sua residência, o arguido, encontrando-se na via pública, junto à entrada dessa habitação, apelidou-a de “puta” e de “vaca”, acusou-a de só querer o seu dinheiro e de pretender viver à sua custa.
11. Nessas circunstâncias espácio-temporais, o arguido, dirigindo-se à assistente, proferiu a seguinte expressão: “não hás-de ser minha, não hás-de ser de mais ninguém”.
12. Continuamente, seguiu no encalce da assistente e, durante esse percurso, dirigindo-se à identificada D. T., disse-lhe que caso entrasse na esquadra da Polícia de Segurança Pública (doravante, abreviadamente, PSP) também entraria consigo.
13. No dia 13 de Agosto de 2019, em hora que, em concreto, não foi possível precisar, mas situada entre as 21 horas e as 22 horas e 40 minutos, no Parque Municipal ..., o arguido dirigiu-se à assistente em tom agressivo, com indícios de encontrar-se alcoolizado.
14. Nestas circunstâncias afirmou que a mencionada D. T. apenas queria o seu dinheiro e chamou-a de “interesseira”.
15. A assistente, nessa ocasião, encontrava-se na companhia dos filhos J. P. e P. D. e ainda do sobrinho M. C..
16. A aludida D. T., nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 13., ao aperceber-se que as pessoas que ali se encontravam começavam a olhar para o que se estava a passar, sentiu-se incomodada, pelo que decidiu abandonar aquele Parque Municipal e encaminhar-se para a sua viatura, que se encontrava aparcada no Campo da …, junto à Igreja do …, em Barcelos.
17. Quando assim se deslocava, a assistente verificou que o arguido seguia no seu encalço, distanciado cerca de 1m, mantendo-se a implicar consigo pelos motivos referidos em 14., pelo que decidiu telefonar à polícia.
18. Na execução desta decisão e porque a bateria do seu telemóvel estava quase gasta, a mencionada D. T. pediu o telemóvel da filha J. P., que a acompanhava, juntamente com o irmão e o identificado M. C..
19. A assistente, ao atravessar a passadeira para peões existente junto ao “Hospital” de Barcelos, conseguiu contactar a polícia e dizer que o seu ex-marido, aqui arguido, estava a persegui-la.
20. O aludido J. M., nestas circunstâncias espácio-temporais, ao aperceber-se dessa chamada telefónica, de forma inesperada, pelas costas da assistente, agarrou-a pelo pescoço com o braço esquerdo e, com o outro, fazendo uso de uma faca de cozinha, de que se havia previamente munido antes de deslocar-se ao Parque Municipal ..., da marca “Hoyca”, em inox, com cabo em madeira, com 17cm de comprimento total e 7,5cm de comprimento de lâmina, apontou-a ao pescoço daquela D. T. e proferiu as seguintes expressões: “Ai chamaste a polícia? Agora vou-te matar”, “Pensas que te vais safar, que vais ficar com o meu dinheiro”, “Ou és minha ou eu vou para a prisão”.
21. Nesta ocasião, a assistente pediu de imediato que o seu sobrinho e os seus filhos se afastassem, uma vez que a sua filha J. P. encontrava-se em pânico, a gritar e a suplicar ao arguido para parar, ao mesmo tempo que lhe agarrava o braço que segurava a faca referida em 20. e se interpunha entre os identificados D. T. e J. M., tendo em vista afastar este último da sua progenitora.
22. O arguido, nas descritas circunstâncias, desferiu empurrões na assistente que a fizeram cair ao chão.
23. Nessas mesmas circunstâncias, para além da assistente, também o aludido J. M. caiu ao chão.
24. Quando a mencionada D. T. se conseguiu levantar, voltou a sentir a faca referida em 20., desta feita na zona das costelas, ao mesmo tempo que ouviu o arguido a afirmar, de forma contínua, que a matava.
25. Porém, nesse instante, o aludido J. M. foi agarrado por P. M. – um arrumador de carros que ali se encontrava –, que lhe torceu o pulso direito, assim fazendo com que o arguido largasse aquela faca de cozinha e a deixasse cair ao chão.
26. Nestas circunstâncias, porque o arguido oferecia resistência e pretendia libertar-se, o identificado P. M. pediu auxílio às demais pessoas que por ali passavam, as quais rodearam o mencionado J. M. e chamaram as autoridades policiais.
27. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido no dia 13 de Agosto de 2019, supra descrita, a assistente D. T. sofreu traumatismo no tórax à esquerda, escoriação superficial do maléolo peroneal à esquerda e escoriação no membro inferior esquerdo, com 0,5cm x 0,5cm de maiores dimensões, o que lhe determinou 3 (três) dias para a consolidação médico-legal, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
28. O arguido, nos termos supra mencionados, insultou a assistente de “puta”, de “vaca” e de “interesseira”, apareceu na rua onde esta residia, no período referido em 8., para que o visse, disse-lhe “não hás-de ser minha, não hás-de ser de mais ninguém”, afirmou que a aludida D. T. apenas queria o seu dinheiro e muniu-se de uma faca de cozinha com as características referidas em 20., ciente de que se tratava de um objecto potencialmente letal.
29. O identificado J. M., ao dirigir essa faca ao pescoço e às costelas da assistente, nas circunstâncias em que o fez, ou seja, na presença dos seus filhos P. D. e J. P., menores de idade, e proferindo as expressões referidas em 20., agiu com o objectivo de causar lesões em órgãos vitais para a vida da mencionada D. T. e assim provocar-lhe a morte.
30. O arguido, nessas circunstâncias, actuou com consciência que a sua conduta era idónea a produzir o resultado que almejava e que anunciou por repetidas vezes, só o não logrando alcançar por motivos alheios à sua vontade, em concreto, por a assistente ter sido auxiliada por terceiros, designadamente, num primeiro momento pela sua filha J. P. e, posteriormente, pelo mencionado P. M., que agarrou aquele J. M..
31. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Provou-se, também, que:

32. O arguido J. M. viveu em Inglaterra quando ainda era solteiro, bem como na constância do casamento com a assistente D. T..
33. Quando o arguido e a assistente eram casados entre si, aquele tinha por hábito consumir bebidas alcoólicas em excesso, que o tornavam uma pessoa verbalmente mais agressiva para com a aludida D. T..
34. O divórcio referido em 3. foi litigioso uma vez que o arguido não aceitou, nem aceita, o fim do seu casamento com a assistente.
Provou-se, igualmente, que:

35. O mencionado J. M., no dia 13 de Agosto de 2019, ao munir-se de uma faca de cozinha e ao dirigi-la ao pescoço e às costelas da assistente, causou-lhe forte angústia e perturbação.
36. A aludida D. T., nas circunstâncias referidas em 20., temeu seriamente pela sua vida.
37. A assistente, imediatamente após o ataque perpetrado pelo arguido, além de evidenciar preocupação com os seus filhos, chorava, queixava-se de dores, mostrava-se aterrorizada, muito nervosa e em estado de choque.
38. A identificada D. T., nessa mesma noite, foi encaminhada para o serviço de urgências do “Hospital” de Barcelos, onde foi observada e medicamente assistida, realizando raio-X.
39. A assistente ainda hoje teme que uma situação idêntica à do dia 13 de Agosto de 2019 volte a repetir-se e sente dificuldades em falar do sucedido uma vez que os seus filhos estiveram presentes.
40. A assistente, por força dessa situação, não consegue passar no local onde ocorreram os factos.
41. Como resultado do comportamento assumido pelo arguido no dia 13 de Agosto de 2019, a assistente e os seus filhos J. P. e P. D. encontram-se a ser acompanhados em consulta de psicologia.
42. A assistente D. T. é empregada de limpeza e retira dessa sua actividade um rendimento mensal que, em concreto, não foi possível apurar.

Do pedido de indemnização civil

43. O tratamento hospitalar referido em 38., concretizado em consulta, meios complementares de diagnóstico e demais cuidados médicos e medicamentosos prestados à assistente D. T. pelo “Hospital” de Barcelos, e que foi resultado do comportamento adoptado pelo arguido/demandado J. M. no dia 13 de Agosto de 2019, já supra descrito, originou custos no montante total de €109,41 (cento e nove euros e quarenta e um cêntimos), que se mantêm por pagar.

Dos antecedentes criminais do arguido

44. O arguido J. M. foi já condenado, por sentença proferida no dia 04 de Abril de 2019, transitada em julgado no dia 13 de Maio de 2019, pela prática, no dia 26 de Dezembro de 2017, de um crime de injúria e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, ambos na pessoa da assistente D. T., no âmbito do Processo Comum Singular nº1381/17.2GBBCL, do Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, com regime de prova – quanto ao crime de ofensa – e na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à razão diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de €260,00 (duzentos e sessenta euros) – quanto ao crime de injúria; posteriormente, foi tal pena de multa declarada extinta pelo pagamento.

Dos factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido

45. O processo de socialização do aludido J. M. decorreu integrado no agregado de origem, composto pelos pais e 3 (três) irmãos, de condição socioeconómica modesta, com uma dinâmica relacional descrita como disfuncional, negativamente condicionada pelos consumos problemáticos alcoólicos do progenitor e subsequentes comportamentos agressivos/violentos para com a família.
46. A trajetória escolar do arguido decorreu até à conclusão da 4º classe, altura em que, por dificuldades económicas da família, decidiu não prosseguir os estudos com o objetivo de trabalhar.
47. Sem prejuízo do referido em 46., o arguido não sabe ler, nem escrever.
48. O arguido iniciou-se laboralmente aos 16 (dezasseis) anos de idade, a trabalhar na lavoura, profissão que manteve de forma regular ao longo do seu percurso de vida, designadamente, na Córsega e depois em Inglaterra, onde se manteve laboralmente activo durante anos.
49. Não obstante, na procura de melhores condições socioeconómicas, e entre 2 (duas) temporadas de trabalho, o arguido foi 1 (um) ano para Espanha, onde trabalhou na área da construção civil.
50. Após cerca de 4 (quatro) anos de namoro com a assistente, o arguido contraiu matrimónio quando contava 23 (vinte e três) anos de idade e aquela D. T. 18 (dezoito) anos.
51. Inicialmente o casal residiu em casa dos sogros do arguido.
52. Posteriormente arrendou uma habitação em Esposende e por último em … – Barcelos, de onde são naturais.
53. A dinâmica conjugal e familiar, no início, foi sentida pelo arguido como gratificante, afectiva e estável.
54. No entanto, com o passar dos anos de matrimónio, passou a ser vivida com episódios de desarmonia, com maior altercação e/ou agressividade, designadamente quando o agregado residia numa habitação arrendada em … – Barcelos, época em que o arguido trabalhava em Espanha e depois foi para Inglaterra.
55. Ao regressar Portugal, o mencionado J. M. passou a considerar que a esposa, aqui assistente, não administrava de forma criteriosa o dinheiro que aquele auferia do seu trabalho, que o gastava de forma supérflua e aprazível, reagindo os 2 (dois) com uma dinâmica relacional exaltada, contexto que terá criado constrangimentos na conjugalidade.
56. Neste contexto, em Abril de 2015, o casal divorciou-se, continuando a assistente a residir em Esposende, com os 2 (dois) filhos, actualmente com 15 (quinze) e 6 (seis) anos de idade.
57. Por sua vez, o arguido manteve-se a trabalhar em Inglaterra, regressando a Portugal apenas para gozo dos períodos de férias (Natal e Verão).
58. À data dos factos sob discussão nos presentes autos, o identificado J. M. residia sozinho, numa casa arrendada em Barcelos, concelho onde igualmente residia a assistente e os filhos J. P. e P. D., e mais recentemente, num anexo arrendado pelo arguido em ….
59. O mencionado J. M., de forma irregular, beneficiava das visitas dos filhos, que eram mediadas por familiares maternos dos menores.
60. Segundo expressou, perante a separação afectiva, o arguido sentiu-se desgostoso e emocionalmente perturbado, focalizando-se no ex-cônjuge, a aqui assistente.
61. O arguido mantém vinculação afectiva e convívio com a sua progenitora e com os seus irmãos, designadamente com as irmãs e respectivos agregados.
62. Socialmente é referenciado como um homem trabalhador, mas com apetência pela ingestão alcoólica, sobretudo quando acompanhado, consumos que o próprio desvaloriza e perante os quais afirma a desnecessidade de sujeição a tratamento.
63. O arguido menciona a sua motivação e empenho laboral e sente-se com capacidades físicas e intelectuais para dar continuidade à sua vida profissional.
64. O identificado J. M., no dia 14 de Agosto de 2019, deu entrada no Estabelecimento Prisional de Braga, em virtude da medida de coacção de prisão preventiva aplicada nos presentes autos.
65. Trata-se da sua primeira entrada em instituição prisional.
66. O arguido, em contexto de entrevista com o técnico da DGRSP, demonstrou no seu discurso alguns pensamentos legitimadores do seu contexto de vida e de minimização do processo, assente na sua instabilidade psicoemocional.
67. Perante a problemática criminal em causa, ainda que em abstracto, o arguido verbaliza reconhecimento da ilicitude e censurabilidade, mas manifesta insuficiente interiorização das noções de ofendidos e danos.
68. Para além da privação da liberdade e inactividade laboral, não sinaliza outros impactos decorrentes da presente situação judicial, por continuar a beneficiar de algum apoio e solidariedade da família de origem.
*
II.2. Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos alegados nos autos ou em audiência de julgamento com interesse para a decisão da causa, designadamente:
a) que o arguido J. M., nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas sob o nº10, dos factos provados, ao seguir no encalce da assistente D. T., percorresse cerca de 300m;
b) que o arguido, nas circunstâncias espácio-temporais referidas sob o nº20, da factualidade assente, agarrasse o pescoço da assistente com as duas mãos;
c) que a lâmina da faca de cozinha, referida sob o nº20, dessa mesma factualidade, tivesse 7,2cm de comprimento;
d) que a expressão proferida pelo arguido nas circunstâncias de espaço e de tempo referidas sob o nº20, dos factos provados, fosse: “ligaste para a polícia, agora vais morrer”;
e) que o arguido, nestas circunstâncias, desferisse diversas bofetadas na assistente;
f) que o aludido J. M., nessas mesmas circunstâncias, com o objectivo de impedir a passagem de oxigénio pelas vias aéreas até aos pulmões daquela D. T., procurasse asfixiar esta última;
g) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir.
*

Apreciação do recurso

Como se disse a única questão trazida pelo recorrente a este tribunal é a de saber se é possível suspender a pena imposta ao arguido recorrente. (O recorrente faz referência ao art. 410 do CPP, mas não identifica qualquer vício, nem a sentença recorrida dele padece ).
Nos termos do artigo 50º do Código Penal o tribunal suspende a execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A suspensão de uma pena, conforme decorre incontroversamente da lei, depende da verificação de dois pressupostos, sendo um formal, a duração não superior a 5 anos, e um material, a prognose de que a simples censura do facto acautele adequada e suficientemente as finalidades da punição.
Quanto ao pressuposto formal ele está preenchido, uma vez que estamos perante uma pena de 4 anos de prisão.
Já quanto ao pressuposto material, impõe-se fazer algumas considerações, porque assim o exige a lei ao obrigar o juiz a refletir sobre a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime, as circunstâncias em que o crime foi praticado e bem assim a não esquecer de lançar um olhar sobre as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa da sociedade.
Como ensinam Manuel Simas Santos e Leal Henriques in Noções Elementares de Direito Penal, 1999, Vislis Editores, 146 “a suspensão não é, nem deve ser mera substituição automática de prisão. Com efeito, como reação do conteúdo pedagógico e reeducativo que é (particularmente quando acompanhada do regime de prova) só deve ser decretada quando o tribunal o julgar conveniente e concluir (…) ser essa a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.
Acrescentam os mesmos autores, (como já havia sido dito também por Yescheck in Tratado de Derecho Penal – Parte General – Cuarta Edicion, Editorial Comares, Granada, 760) que o tribunal deverá correr um risco prudente – esperança não é seguramente certeza – mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa.
Portanto, o prognóstico, servindo-nos dos ensinamentos de Yescheck, ob. cit., 761, requer uma avaliação global de todas as circunstâncias que possibilitam uma conclusão acerca do comportamento futuro do arguido. Aí se incluem, entre outras, a sua personalidade (inteligência e caráter), a sua vida anterior (também a refletida v.g. no registo criminal), as circunstâncias da prática do crime (motivação e fins), a conduta depois dos factos em apreço (reparação do dano e arrependimento), outras circunstância da sua vida (profissão desempenhada, família constituída) e, bem assim, os presumíveis efeitos de suspensão no comportamento do arguido. Só na avaliação global dos referidos fatores se poderá concluir se a suspensão da pena é adequada, isto é, se produzirá algum efeito positivo na situação em apreço ou, antes, a agravará.
Mas ainda antes de se chegar a tal conclusão há que tecer algumas considerações sobre o crime em causa, uma vez que ele tem de ser visto no âmbito dos crimes passionais, considerações que, contudo, deverão ser despidas de qualquer inflação emotiva que habitualmente acompanha a análise, pelo menos mediática, de crimes como o que está em apreço nos autos. Aliás, é essa inflação emotiva que tantas vezes provoca uma inflação incriminatória porque, como diz F. Dias – in Lei Criminal e Controlo da Criminalidade. O processo legal social de criminalização e descriminalização – Revista da Ordem dos Advogados, 1976, nº 36, p. 73 citado por Dyellber Fernando de Oliveira Araújo in Direito Penal hoje – Novos desafios e novas respostas – Organizadores Manuel da Costa Andrade e Rita Castanheira Neves, Coimbra Editora pág. 151, nota 15 – o legislador não é, com efeito, completamente livre nas suas decisões de criminalização e descriminalização. Tais decisões, seguindo quase sempre muito de perto a evolução histórica da sociedade na qual são tomadas, revelam-se estreitamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos diretamente políticos, pelos interesses dos grupos sociais e pelas representações axiológicas neles prevalentes em certo momento histórico.
Este modo de agir que por vezes parece terminar com o depósito dos autos na banca do jornal (ob. cit. 175) leva a que se vá enraizando o equívoco matemático e legiferante da equação prisão igual a justiça, acrescido do estigma de que quanto mais dura é a pena mais se realiza a justiça.
Como esta falta de liberdade decorrente da inflação emotiva não pode atingir o juiz, a análise do comportamento do arguido e da possibilidade ou não de suspensão da pena imposta terá de evidenciar racionalidade, clareza, de modo a que todos - e especialmente o condenado- percebam por que razão pode, ou não, ser suspensa a pena imposta.
O crime praticado pelo arguido insere-se num quadro de crimes passionais os quais têm na sua base, quase sempre, uma explosão de emoções ou um acumular de emoções. E assim é porque, como é dito por João Curado Neves in A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, Coimbra Editora, 58 o marido (na grande maioria dos casos) não consegue dissuadir a mulher de o deixar, mas não pode resignar-se com a situação, porque a perda da esposa representa para ele uma catástrofe inultrapassável.
As reações perante a perda são muito díspares, como diz o citado autor ao analisá-las, mas é a reação do arguido recorrente que nos importa, em conjugação com as circunstâncias envolventes da prática do crime. Recordemo-las.
O arguido e a assistente casaram em 2003 e o casamento durou 12 anos, uma vez que terminou por divórcio decretado em março de 2015.
Após o divórcio o arguido emigrou para Inglaterra, voltando ao nosso país em épocas festivas.
Já tinham decorrido mais de 3 anos sobre o divórcio, quando o arguido pela altura do Natal de 2018, à semelhança de outras atitudes anteriormente tomadas, passou a estar à porta da assistente para que esta o visse, aí pernoitando, aí permanecendo.
Numa ocasião chamou-lhe puta, vaca acusou-a de viver às suas custas e disse-lhe que já que não era dele, não seria de mais ninguém.
Passados 8 meses, em agosto de 2019, o arguido, aparentando estar alcoolizado, voltou a abordá-la, chamando-lhe interesseira, estando ela na companhia dos seus dois filhos e de um sobrinho. Foi nessa altura que, munido de uma faca, o arguido perseguiu a assistente que entretanto telefonou à polícia, agarrou-a pelo pescoço, que apertou, e disse que a matava, que não pensasse que ia ficar com o dinheiro dele e que, ou era dele, ou ele iria para a prisão.
Entende, então, o recorrente que, por se tratar de um comportamento adotado na sequência de um desgosto amoroso e sob o efeito de consumo de bebidas alcoólicas, a pena - cuja dimensão o arguido não contesta - deveria ser suspensa.
Vejamos se o desgosto amoroso, aliado ao consumo de álcool bastam para justificar a atitude do arguido, permitindo prognosticar que, se colocado em liberdade, doravante o arguido não mais importunaria a assistente.
Como decorre da matéria de facto, entre o divórcio e os factos em apreço decorreram mais de 4 anos. É um período de tempo longo, durante o qual o arguido esteve ausente do nosso país, só cá regressando em períodos festivos. Esta ausência e afastamento, de acordo com a normalidade da vida seriam suficientes para que o desgosto amoroso se fosse atenuando, permitindo ao arguido ir aceitando a rejeição ou, pelo menos, o afastamento inerente ao divórcio. Mas tal não sucedeu. O arguido já antes tinha dado sinais de que pretendia continuar na vida da assistente ao permanecer junto da porta da casa dela, interpelando-a de forma agressiva, demonstrando, assim, que não tinha ultrapassado a separação.
Quando 8 meses depois, munido de uma faca, a procura de novo, indiferente ao facto de os filhos crianças estarem presentes, fazendo menção de que a mataria, permite a conclusão de que, contrariamente ao que seria normal, o decurso do tempo não levou a uma diminuição das emoções ligadas à perda, mas antes ao seu agravamento, num crescendo de raiva que veio a explodir no comportamento agora em apreço.
Se o comportamento do arguido se tivesse seguido ao divórcio, mas daí para cá se percebesse uma mudança de atitude demonstrativa de que o arguido atuara toldado pelo sofrimento que a perda da esposa constituiu, mas que com o passar do tempo adquirira capacidade para dominar as emoções e impulsos, conduzindo a vida de forma refletida e de acordo com valores corretos, a suspensão da pena equacionar-se-ia necessariamente. Mas não é isso que se verifica. É precisamente o contrário. Constata-se que o arguido, decorridos mais de 4 anos, revela que não consegue libertar-se dos impulsos agressivos, deixa-os crescer e dominar o seu comportamento ao ponto de se decidir a praticar um crime de homicídio.
O arguido não foi, na vertente afetiva da sua vida, capaz de se orientar por valores corretos, não formou corretamente a sua vontade, não aproveitou o decurso do tempo e da distância para também se distanciar das emoções à flor da pele e dos pensamentos de raiva ou vingança por que fosse ensombrado.
É precisamente esta orientação de vida em sentido contrário ao que seria a normalidade do acontecer que afasta a possibilidade de prognosticar que, doravante, o arguido vai conseguir dominar a impulsividade e vai conseguir agir de outra maneira. Acresce que, nem a presença dos filhos crianças o demoveu, nem o facto de estar na rua e de haver pessoas a assistir, o retraiu.
Nestas circunstâncias, o facto de estar embriagado não desculpa, nem justifica o comportamento. E também não é apenas um tratamento ao álcool (que, aliás, o arguido não reconhece como premente) que permitirá ultrapassar a situação. É certo que o arguido beneficiaria seguramente, e muito, em deixar de consumir álcool, mas o comportamento adotado, vai para além do referido consumo, porque atinge a forma como o arguido foi moldando a sua personalidade, a sua atitude interior reveladora de uma personalidade a carecer de correção.
E não é o facto de o arguido ser quase analfabeto que o impede de conseguir respeitar os filhos, respeitar a ex-mulher e respeitar-se a si próprio, até porque, por exemplo, nunca deixou de trabalhar, mesmo no estrangeiro, revelando capacidade para responder às exigências profissionais com que se foi deparando.
Acresce que não há notícia nos autos que até agora o arguido tenha sequer querido ultrapassar de forma positiva a perda afetiva, tanto mais quanto estando no período de suspensão com regime de prova de uma anterior pena que lhe foi imposta pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa da assistente, não se coibiu de a molestar de novo, mostrando indiferença para com a anterior condenação e para com a advertência que a mesma deveria ter constituído.
Assim sendo, o tribunal não consegue afirmar, ou, pelo menos, ultrapassar a dúvida de que o arguido em liberdade optará por um comportamento normativo. E esta dúvida impede o prognóstico positivo, e consequentemente, a suspensão da pena, porque, como ensina Yescheck e merece a concordância de F. Dias “o principio in dubio pro reo vale só para os factos que estão na base do juízo de probabilidade, mas desta deve o tribunal estar convencido” (Yescheck Tratado do Direito Penal § 79, I, 3 citado por F. Dias in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, 344-345). E foi exatamente esta a conclusão a que chegou o tribunal a quo. Ponderando o facto de o arguido se revelar “uma pessoa resistente a uma convivência social de acordo com as regras do direito”, não ter conseguido “refrear os seus ímpetos”, não se ter mostrado arrependido, ter mostrado indiferença perante a pena suspensa anteriormente imposta, o tribunal a quo concluiu pela impossibilidade de formular um juízo de prognose favorável, e portanto, pela impossibilidade de suspensão da pena. A conclusão a que chegou, pelo que ficou exposto, não merece reparo, pelo que é de manter a decisão de não suspender a pena imposta ao recorrente J. M..
*
*
III.
DECISÃO.

Em face do exposto, decidem os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC's.
Guimarães, 14 de setembro de 2020

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho