Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2274/20.1T8VNF.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: NULIDADES DA SENTENÇA
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Relativamente à forma de aquisição, face ao disposto nos arts. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1, ambos do CC, as servidões prediais não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
Consideram-se não aparentes, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art. 1548º, nº 2, do CC).
II - Na tarefa de aferição da existência de sinais visíveis e aparentes da servidão há que levar em conta o concreto tipo de utilidade que integra o conteúdo dessa servidão.
III - Provando-se que num prédio existia um caminho com a largura de 1,5 metros em toda a sua extensão de cerca 90 metros, com marcas no solo visíveis da circulação de veículos, animais e pessoas, estas descritas caraterísticas constituem sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho perfeitamente demarcado, sinais esses que são reveladores de uma servidão aparente, nada impedindo a sua constituição por usucapião posto que se verificam os demais requisitos da aquisição por usucapião referidos nos arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e BB, propuseram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra L... pedindo que a ré seja condenada a:

a) reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores dos prédios identificados no artigo 1º da p.i.;
b) reconhecer que os autores são titulares do direito de servidão de acesso aos prédios identificados no artigo 1º da p.i., por uma faixa de terreno com 1,5 metros de largura por 90 de comprimento que nasce na confrontação do prédio da ré com a EN ...06 e termina nos prédios dos autores para passagem de pessoas, animais, carros de bois e tratores;
c) demolir a vedação do seu prédio na parte que confronta com a EN ...06 para permitir o acesso desta e para esta aos referidos prédios dos autores, deixando livre uma faixa de terreno da largura de 1,5 por 90 metros de comprimento afeta àquela servidão;
d) pagar aos autores uma indemnização pelos prejuízos que se vierem a liquidar em execução de sentença.

Como fundamento dos seus pedidos, alegaram, em síntese, que são proprietários dos prédios identificados no artigo 1º da p.i., sendo a ré proprietária do prédio confinante com os dos autores.
Os prédios dos autores não confrontam com a via pública, sendo prédios encravados.
No prédio da ré sempre existiu um caminho que permitia a passagem de pessoas e carros da via pública aos prédios dos autores, o qual desde sempre foi usado por estes e antepossuidores para esse efeito.
No ano de 2019, a ré realizou obras no seu prédio, obstruindo a passagem dos autores pelo prédio serviente, impedindo-os de aceder e, consequentemente, cultivar os seus prédios.
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Regularmente citada, a ré contestou, impugnando a existência de direito de servidão e passagem sobre o seu prédio. Alegou que a passagem para os prédios dos autores se faz pelo caminho de servidão existente pelo lado norte com acesso pela Av. ....
Pediu a condenação dos autores como litigantes de má-fé, em multa e no pagamento de indemnização condigna, sustentando que os mesmos alegam factos que bem sabem ser falsos com o único propósito de obter decisão favorável com o inerente prejuízo da ré.
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Por despacho proferido em 30.6.2021 foi fixado à causa o valor de € 52 853,00.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do processo e procedeu-se à enunciação dos temas de prova.
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Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
“Pelo exposto, julgo:
A.
Parcialmente procedente o pedido formulado pelos Autores:
- declarando que os Autores são donos e legítimos possuidores dos prédios identificados nos artigos 1º e 2º da p.i.;
- declarando que os Autores são titulares do direito de servidão de passagem de pessoas, animais, carros de bois e tractores sobre o prédio descrito no facto provado número 5, para acesso aos prédios identificados nos factos provados números 1 e 2, por uma faixa de terreno com 1,5 metros de largura por aproximadamente 90 de comprimento que nasce na confrontação do prédio da Ré com a EN ...06 e termina nos prédios dos Autores;
- condenando a Ré repor o direito de servidão dos Autores aludido no parágrafo anterior, desobstruindo e demolindo todos os obstáculos à livre circulação dos Autores pelo seu prédio, na faixa de terreno aí descrita desde a EN ...06 até aos prédios dos Autores.
B.
Parcialmente improcedente a parte restante do pedido formulado pelos Autores, da qual se absolve a Ré.
C.
Improcedente o pedido de condenação por litigância de má-fé deduzido pela Ré, do qual se absolvem os Autores.”
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A ré não se conformou e interpôs recurso de apelação no qual apresentou 85 conclusões.
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Os autores contra-alegaram pedindo que o recurso fosse rejeitado por as conclusões não serem sintéticas e não enunciarem com precisão e concisão os fundamentos do recurso, situação que torna o recurso sem objeto e determina que o mesmo deve ser indeferido, como dispõe o art. 641º, nº 2, al. b), do CPC.
Pugnaram ainda pela manutenção da decisão recorrida.
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Foi proferido despacho pela relatora que:

a) indeferiu o pedido de rejeição do recurso feito pelos recorridos nas contra-alegações, por não existir falta absoluta de formulação de conclusões;
b) convidou a recorrente a apresentar alegações que contenham conclusões sintéticas dos fundamentos pelos quais pede a revogação da decisão, sob pena de não se conhecer do recurso na parte afetada.
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Notificada do aludido despacho, a recorrente apresentou as seguintes conclusões aperfeiçoadas:

“1) O Tribunal a quo considerou incorretamente provados os pontos 3, 6, 7, 8, 9, e 11 da matéria de facto provada.
2) E, conforme se refere na decisão proferida, fundamentou tal decisão no depoimento da Testemunha CC.
3) Sucede que, a referida testemunha está desavinda com a ora Recorrente, conforme a mesma admitiu, pelo que tal facto não podia ter sido desvalorizado e o referido depoimento não deveria ter sido considerado.
4) Face ao exposto, existe um erro de apreciação do Ilustre Julgador, o qual põe irremediavelmente em causa a validade da Sentença.
5) Por outro lado, a douta Sentença enferma do vício da contradição insanável da fundamentação.
6) O Tribunal acreditou nas declarações da testemunha CC, a qual afirmou que a Recorrente fechou o caminho de servidão na altura em que construiu a primeira loja.
7) No entanto, tal facto é mentira, pois a primeira loja da Recorrente não foi construída no prédio em apreço nos presentes autos, em 2017, mas no prédio contíguo, adquirido em 1999.
8) Além disso, o prédio em apreço nos presentes autos, apenas foi adquirido pela Recorrente em 2018, ou seja, 20 anos depois do que a testemunha alega.
9) A mesma testemunha refere ainda que a R..., proprietária do prédio ora em apreço até 2018, não aterrou o terreno.
10) No entanto, a versão da testemunha, é contrariada pelo depoimento de DD, o qual referiu que o caminho de servidão existiu ali há muitos anos, mas que agora já não há.
11) A referida testemunha disse que o caminho desapareceu há muitos anos atrás quando a R... terraplanou tudo.
12) Esta versão é corroborada pela testemunha EE e pelas testemunhas da Recorrente (FF e GG), as quais também disseram nunca ter ali visto o caminho de servidão.
13) No entanto, o Tribunal também não valorizou como depoimento destas testemunhas (FF e de GG), as quais são conhecedoras do local há mais de 25 anos.
14) Face ao exposto, não há dúvidas de que o depoimento da testemunha CC não foi credível, e, tendo sido considerado, traduz-se numa incoerência entre a realidade e a matéria de facto provada, pondo irremediavelmente em causa a decisão do Tribunal a quo.
15) Por outro lado, na versão das testemunhas DD, FF e GG, decorreram mais de vinte anos desde o desaparecimento do alegado caminho de servidão.
16) Pelo que, o Tribunal a quo deveria ter dada a servidão predial alegada pelos Autores como extinta.
17) Na verdade, a versão dos Autores (de que o caminho de servidão existiu até 2017) fica prejudicada pelo facto de a testemunha FF ter referido a existência de um muro de blocos que confrontava com a estrada nacional (e que impedia a passagem de pessoas, animais, carros).
18) Facto que foi confirmado pelas testemunhas GG e HH.
19) No entanto, o Ilustre Julgador não valorou o depoimento prestado pelo HH e também não fundamentou tal facto, conforme era a sua obrigação.
20) Ora, esta testemunha efetuou um levantamento um levantamento topográfico do muro confrontante com a estrada nacional, conforme se verifica pela análise do DOC. ... junto com a Contestação.
21) No referido DOC. ..., é evidente que, no local onde os Autores alegam existir um caminho, existia um muro de pedra antigo na confrontação de todo o prédio da Recorrente com a EN ...06.
22) Na verdade, de acordo com as testemunhas FF e GG, o referido muro era aberto apenas na altura das festividades da freguesia (a pedido da comissão de festas) para permitir a montagem do circo e, depois da romaria, era novamente tapado, vedando o acesso ao prédio da Recorrente.
23) Face ao exposto, analisada a douta Sentença recorrida percebemos que, contra as regras da experiência e o entendimento da generalidade das pessoas, o Ilustre Julgador apreciou a prova documental e a prova testemunhal produzida de forma errada.
24) Na verdade, o Julgador a quo errou ao considerar a existência de um muro em blocos aberto numa extensão suficiente para a passagem de todos os tipos de viaturas automóveis pesados até 2017, pois tal facto é falso e encontra-se devidamente fundamentado, quer pela prova documental já referida quer pela prova testemunhal.
25) Além disso, o Tribunal a quo, ao contrário do que refere, não considerou a fotografia do local (DOC. ... da Contestação), de Junho de 2018, onde é bem visível a existência do referido muro, bem como, a inexistência do caminho de servidão.
26) Por outro lado, o Ilustre Julgador também não considerou, (e não fundamentou) a versão apresentada pela Câmara Municipal, a qual considera não existir ali o caminho de servidão alegado – conforme certidão emitida pela Câmara Municipal ... e junta aos autos pela ora Recorrente.
27) Esta certidão foi referida pela testemunha FF.
28) E tal documento não podia ter sido ignorado pelo Tribunal a quo, uma vez que o parecer ali vertido refere expressamente que o caminho de servidão terá sido aterrado pela R..., muitos anos antes da compra e venda entre a R... e a Recorrente.
29) Tal como referido pela testemunha DD.
30) Por outro lado, o Tribunal a quo também desconsiderou a demais prova documental junta aos autos pela Recorrente, sem fundamentar os motivos que terão levado a tal desvalorização.
31) Desde logo, desconsiderou as fotografias juntas aos autos com a Contestação – DOC.... e DOC.... – tiradas em 2009 e 2018, nas quais também não é visível o caminho de servidão alegado.
32) Como também desconsiderou o teor das certidões prediais juntas pela Recorrente (DOC. ... da Contestação) onde consta o caminho de servidão registado, do lado norte, e cuja entrada se faz pela Avenida ..., mais concretamente no caminho de acesso às garagens do prédio urbano ali existente e demonstrado ao Tribunal a quo.
33) O referido caminho registado, do lado norte, foi corroborado pela testemunha FF.
34) Sem prescindir, mesmo que assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, ao contrário do que preconiza a Sentença, entende a Recorrente que os Recorridos não provaram, de forma concretizada, quais os sinais visíveis e permanentes que permitem concluir pela existência de uma servidão aparente.
35) Por conseguinte, os Recorridos não lograram prova no que toca aos factos que consubstanciam os pressupostos essenciais do direito sobre o alegado caminho de servidão, qual seja, a existência de sinais visíveis e permanentes da qual resultem aparência da alegada servidão.
36) Ora, para lograr provado a existência de um caminho de servidão é desde logo necessário provar a existência de sinais visíveis e permanentes traduzidos nas marcas no solo visíveis da circulação de veículos, animais e pessoas, o que não foi feito nos presentes autos.
37) Além disso, com o devido respeito, o Tribunal não fez o que lhe competia, em obediência ao princípio da investigação e da descoberta da verdade material, pois nunca se pronunciou quanto ao pedido de produção antecipada de prova da Recorrente e, mais de dois anos depois sobre o pedido e apenas na última sessão de audiência de julgamento é que iria tomar uma posição.
38) A Recorrente não tem dúvidas de que a produção antecipada de prova teria ajudado o Julgador a quo a decidir de outra forma, conhecendo o local e vendo com os seus próprios olhos que ali não existia nenhum caminho de servidão.
39) Por outro lado, o Tribunal a quo também errou ao ter considerado como provado que os Autores cultivavam os seus terrenos, deles retirando frutos das sementeiras e plantações.
40) Isto porque, tais factos não só não foram devidamente fundamentados na Sentença, como são contrariados pelas testemunhas FF e GG.
41) Face ao exposto, deverá a Sentença ser revogada e o pedido dos Recorridos ser considerado completamente improcedente por não provado.
42) Sem prescindir, pelo mesmo motivo, a Recorrente não tem dúvidas que os Recorridos instauraram a presente acção, cuja falta de fundamento conhecem, com o único objectivo de alterar a verdade dos factos.
43) Face ao exposto, invocam circunstâncias factuais falsas, com o único objectivo de alcançar uma decisão favorável à custa da Recorrente.
44) Assim, os Recorridos litigam de má fé porque se arrogam da titularidade de um direito de serventia quando sabem que no local onde alegam ter existido um caminho, nunca lá nada existiu além de vegetação por mais de 40 anos.
45) Devendo, por isso, ser condenados em multa e no pagamento de uma indemnização à Recorrente, nos termos e para os efeitos do art. 542.º do C.P.C.
46) Sem prescindir, nos termos das alíneas b), c) e d) do referido artigo citado, verificamos que a sentença recorrida enferma de nulidade, na medida em que se encontra insuficientemente fundamentada e verifica-se contradição insanável na fundamentação.
47) Ora, na verdade, o dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, dispondo o art. 205º, nº 1, da CRP que, “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
48) Assim, a fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.
49) Se atentarmos à matéria de facto dada como provada e à matéria de facto dada como não provada percebemos que, em suma, o Tribunal apenas justifica a sua decisão com base nas declarações apenas das testemunhas dos Recorridos, esquecendo-se de fundamentar com base em toda a prova produzida.
50) Além disso, o Ilustre Julgador não analisou pormenorizadamente toda a prova documental trazida para os autos pela Recorrente com o único objetivo de ser descoberta a verdade material.
51) Bem como não cuidou, como devia, de decidir sobre o requerimento antecipado de prova deduzido pela Recorrente no sentido de mostrar ao Ilustre Julgador a realidade dos factos.
52) Assim sendo, a falta do exame crítico das provas e a consequente insuficiência da fundamentação determina a nulidade da sentença.
53) Face ao exposto, impõe-se ordenar o suprimento da nulidade verificada, com a consequente revogação da decisão e a prolação de acórdão que considere a acção interposta pelos Recorridos totalmente improcedente por não provada.
54) E ainda que condene os Recorridos como litigantes de má fé, sendo fixada uma indemnização a favor da Recorrente.”
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Os autores responderam dizendo que consideram incumprido o despacho de convite ao aperfeiçoamento porquanto as novas conclusões apresentadas continuam a não ser proposições sintéticas dos fundamentos pelos quais se pede a revogação da decisão, continuando a padecer dos vícios de obscuridade, complexidade e extensão, o que, em seu entender, deve conduzir à rejeição do recurso, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do CPC, por existir falta absoluta de conclusões.
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Foi proferido despacho pela relatora que, considerando que as conclusões permitem de forma minimamente suficiente apreender as questões suscitadas e que constituem objeto do recurso não se podendo considerar incumprido o despacho de convite ao aperfeiçoamento e não se podendo também considerar que o recurso contenha uma falta absoluta de conclusões, indeferiu o pedido de rejeição do recurso formulado pelos recorridos.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – saber se a sentença é nula;
II – saber se a matéria de facto deve ser alterada e, na afirmativa, proceder à consequente reapreciação jurídica em função da alteração ocorrida;
III – independentemente da alteração da matéria de facto, saber se, face aos factos que se encontram provados, inexistem sinais visíveis e permanentes da servidão e quais as consequências jurídicas que daí advêm;
IV – saber se os autores devem ser condenados como litigantes de má fé em multa e indemnização a favor da recorrente.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1. Por escritura pública de partilha dos bens deixados por morte de II e JJ, outorgada no dia 11.07.2019 no Cartório do Notário ..., em ..., foram adjudicados ao Autor AA, entre outros, os prédios inscritos sob os artigos ...66º rústico e ...68º rústico, ambos da freguesia ..., na Repartição de Finanças ..., descritos sob os números ...21 e ...20 da freguesia ..., na Conservatória ... (cfr. certidão de escritura junta como documento número ... da p.i. - fls. 11 e ss. dos autos).
2. Pela Ap. ...22 de 2019/07/29, encontra-se registada a favor do Autor AA, casado com a Autora BB no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição por partilha extrajudicial, dos prédios descritos sob os números ...21 e ...20 da freguesia ..., na Conservatória ..., como: Prédio rústico, de pastagem e videiras, conhecido por “...”, com a área de 460m2, sito no lugar ..., da freguesia ..., ..., inscrito na matriz sob o art.º ...66; e Prédio rústico, de pastagem e videiras, conhecido por “...” com a área de 900m2, sito no lugar ..., da freguesia ..., ..., inscrito na respectiva matriz sob o art.º ...68 (cfr. certidões do registo predial juntas, respectivamente, como documentos números ... e ... da p.i. - fls. 8 e 9 v.º dos autos).
3. Por si e seus antepossuidores, os Autores, ininterruptamente, há mais de 5, 10, 15, 20 e 25 anos, vêm administrando, cultivando, colhendo os frutos das sementeiras e plantações dos prédios mencionados nos factos provados número 1 e 2, pagando os respectivos impostos, procedendo a obras de conservação, na convicção de serem os seus donos, praticando todos esses actos à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, nomeadamente da Ré e seus antepossuidores, por todos reconhecidos como tal e na convicção de exercerem um direito próprio (artigo 5º da p.i.).
4. Os prédios referidos nos factos provados anteriores não confrontam com a via pública, distando desta 90 metros, aproximadamente (artigo 7º da p.i.).
5. Pela Ap. ...03 de 1999/06/02, encontra-se registada a favor da Ré a aquisição, por compra, do prédio descrito sob o número ...03 da freguesia ..., na Conservatória ... (cfr. certidão do registo predial junta como documento número ... da p.i. (fls. 15 v.º dos autos).
6. Sobre o prédio identificado no facto provado número 5 existiu, até 2017 um caminho com a largura de 1,5 metros em toda a sua extensão de cerca 90 metros, com marcas no solo visíveis da circulação de veículos, animais e pessoas, que nascia na confrontação com a EN ...06, através de uma abertura no muro que aí existia e se prolongava para norte até ao limite do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...66, seguindo depois para sul, terminando junto ao prédio dos Autores inscrito na matriz sob o artigo ...68, que até 1999 teve a configuração assinalada na planta junta como documento ... da p.i. (fls. 17 v.º dos autos) delimitada por uma linha de água existente do lado nascente e no seu extremo norte por uma plantação de árvores (artigos 10º, 11º, 13º, 17º e 26º da p.i.).
7. Até 2017, o caminho referido no número anterior era utilizado por Autores e antepossuidores, bem como pela dona de prédio confrontante com o dos Autores, desde tempos imemoriais, há mais de 5, 10, 15, 20 e 25 anos, para circulação de pessoas, animais, carros de bois e, mais recentemente, tractores agrícolas para satisfazer todas as necessidades de agricultar os terrenos, colher os produtos neles produzidos, plantar árvores, cortar ervas e fenos e outras culturas, de e para a EN ...06, até e a partir dos prédios mencionados nos factos provados números 1 a 3 (artigos 9º, 10º, 12º, 16º e 17º da p.i.).
8. A actuação descrita no facto provado anterior decorreu sem interrupção, à vista de toda a gente, pacificamente, sem a oposição de quem quer que fosse, com o conhecimento e a autorização dos antepossuidores do prédio da Ré, na convicção dos Autores e respectivos antepossuidores de exercerem um direito próprio, de servidão de passagem de pessoas, animais e veículos sobre o prédio aludido no facto provado número 5, em benefício dos prédios identificados nos factos provados números 1 a 3, por todos reconhecido como tal (artigos 14º e 15º da p.i.).
9. No ano de 2017, a Ré procedeu à vedação com muro de blocos da entrada que dava acesso à EN ...06 (artigo 19º da p.i.).
10. Em meados do ano de 2019, a Ré realizou obras no prédio descrito no facto provado número 5, procedendo à execução de um muro junto à estrema dos prédios descritos nos factos provados números 1 a 3, à terraplanagem do terreno, à abertura de caboucos e à construção de um novo edifício (artigos 19º, 20º e 22º da p.i.).
11. Com a realização das obras mencionadas no facto provado anterior, os Autores ficaram impedidos de voltar a utilizar o caminho descrito no facto provado número 6 para acesso aos seus prédios (artigo 19º da p.i.).
12. No ano de 1999, a Ré construiu uma loja em parte do prédio aludido no facto provado número 5 (artigo 16º da contestação).
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Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1. O caminho descrito no facto provado número 6 foi utilizado pelos Autores entre 2017 e meados do ano de 2019 (artigos 12º a 17º da p.i.).
2. A colocação dos blocos aludida no facto provado número 9 ocorreu no ano de 2019 (artigo 19º da p.i.).
3. Os Autores sempre acederam aos seus prédios pelo caminho existente do lado Norte que dá acesso às garagens do prédio urbano ali existente cujo acesso se faz pela Avenida ... (artigo 12º da contestação).
4. A Ré procedeu à delimitação do terreno do prédio aludido no facto provado número 5, no ano de 1999 (artigo 13º da contestação).
5. No local onde os Autores e antepossuidores acediam da EN ...06 ao caminho aludido no facto provado número 6, há, desde há muitos anos, um muro de pedra (artigo 28º da contestação).
6. Devido à actuação descrita no facto provado número 10, o Autor ficou impedido de cultivar os seus prédios (artigo 23º da p.i.).
7. Os Autores propuseram a presente acção com intenção de alterar a verdade e único propósito de alcançar uma decisão prejudicial à Ré (artigo 45º da contestação).

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Nulidade da sentença

A recorrente considera que a sentença é nula por se encontrar insuficientemente fundamentada, por ocorrer contradição insanável na fundamentação, por erro notório na apreciação da prova e por não ter efetuado o exame crítico das provas.

Na motivação invoca, para sustentar a nulidade com tais fundamentos, o disposto no art. 410º, nº 2, als. a) e b) do CPP e, mais adiante, invoca o disposto no art. 615º, nº 1, als. b), c) e d), do CPC.

Dispõe efetivamente o art. 410º, nº 2, do CPP, que:

2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Sucede que esta norma invocada pela recorrente não tem aplicação no caso em apreço porquanto o presente processo não é um processo penal, mas sim um processo cível que se rege pelas normas do Código de Processo Civil.

Assim, a questão da nulidade invocada tem de ser apreciada à luz das disposições deste último diploma legal.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, (diploma ao qual se referem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

Como decorre da leitura das als. a) a e) do nº 1, do art. 615º, cujo elenco é taxativo, nas mesmas não se inclui a insuficiência de fundamentação, a contradição insanável na fundamentação, o erro notório na apreciação da prova ou a falta de exame crítico das provas.
A al. b) prevê, não a insuficiência de fundamentação, mas sim a falta de especificação de fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que é matéria distinta, como infra analisaremos de forma mais detalhada.

Uma vez que a recorrente invoca que a sentença viola as als. b), c) e d), do nº1, do art. 615º, analisemos, então lhe assiste razão.

O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, e previsto na al. b), encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior. E o tribunal superior só pode sindicar a decisão se conhecer os fundamentos de facto e de direito que subjazem à decisão proferida.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
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Ora, lendo a sentença recorrida, designadamente as folhas 103 a 111 do processo físico, verifica-se que a mesma não padece de falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito pois que contém o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da decisão da matéria de facto e a fundamentação de direito.
Assim, a sentença não padece do vício de nulidade previsto na al. b), do nº 1, do art. 615º.
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Relativamente à nulidade prevista na al. c), do nº 1, do art. 615º, a mesma ocorre quando:

1) os fundamentos estejam em contradição com a decisão;
2) ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

O vício decorrente da existência de oposição entre os fundamentos e a decisão ocorre quando existe uma contradição lógica entre o raciocínio desenvolvido na fundamentação e a decisão tomada.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 12.2.2008, Relator Sebastião Póvoas, (in www.dgsi.pt)trata-se de um vício intelectual, caraterizado pela ilogicidade entre as premissas e a conclusão do silogismo judiciário. (...) Esta [nulidade] só ocorre se o julgador, ao arrepio da lógica de raciocínio, extrai uma conclusão impertinente, por, numa perspetiva discursiva coerente, se impor uma ilação diversa, sem que, contudo, tal tenha a ver com a adoção de determinada corrente doutrinária ou jurisprudencial ou com a aceitação de um facto como bastante para justificar uma decisão de direito.
Todavia, “se ocorrer apenas falta de idoneidade dos fundamentos para alcançar a decisão final, o que ocorre é um erro de julgamento, que não um vício de limite. Ou seja, se o julgador faz errada subsunção dos factos ao direito não se verifica a nulidade”.
Como escreve Lebre de Freitas, (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, pág. 670) entre “os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial.”

No caso em análise, da leitura da sentença decorre que não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão. Bem pelo contrário, há uma absoluta coerência lógica entre o raciocínio desenvolvido e a conclusão a que se chegou.

Na verdade, a sentença analisa o pedido de reconhecimento do direito de propriedade invocado pelos autores relativamente aos prédios identificados no art. 1º., conclui que os autores gozam da presunção de titularidade desse direito de propriedade face ao art. 7º do CRPredial, refere que demonstraram também a aquisição derivada desse direito por via da partilha de bens por morte de II e JJ, considera que o direito de propriedade foi também adquirido de forma originária, por via da usucapião, e, em conformidade e de forma alinhada com esta fundamentação, declara que os autores são donos e legítimos proprietários dos prédios.
 
Prossegue com a análise do direito de servidão de passagem de que os autores se arrogam titulares e considera que os mesmos provaram que no prédio da ré existiu até 2017 um caminho, cujas caraterísticas descreve, considerando que existem sinais aparentes e permanentes desse caminho e que provaram ainda os pressupostos de aquisição da servidão por usucapião, por se ter verificado o exercício continuado do direito de passagem por mais de 25 anos contados até 2017, sem violência, publicamente e boa fé, na convicção de exercerem um direito de servidão sobre o prédio da ré em benefício dos seus. Com base nestes fundamentos, e de forma consequente e lógica, declara que os autores são titulares do direito de servidão de passagem.

De seguida, a sentença analisa a atuação da ré, conclui que a mesma é violadora do direito de passagem dos autores pelo leito do caminho e considera que deve repor a situação de direito pré-existente à violação do direito de passagem. Quanto ao pedido de pagamento de indemnização refere que não ficou provada a existência de qualquer dano, pois nem se provou que os autores tenham ficado impedidos de cultivar o seu prédio nem os mesmos alegaram qualquer prejuízo patrimonial.
De forma logicamente decorrente desta fundamentação, condena a ré a repor o direito de servidão e absolve-a da parte restante do pedido formulado pelos autores.

Por último, considera que assiste aos autores o núcleo essencial dos direitos que se arrogaram na ação pelo que considera desprovido de fundamento o pedido de condenação dos mesmos como litigantes de má fé e, de forma congruente com tal fundamentação, julga improcedente o pedido de condenação dos autores como litigantes de má fé.

Trata-se de um correto e coerente silogismo judiciário, não existindo qualquer contradição lógica entre a fundamentação e a decisão pois que aquela concreta fundamentação só podia conduzir às decisões que constam do dispositivo da sentença.
Questão absolutamente distinta é a de saber se a fundamentação e a subsequente decisão são ou não corretas do ponto de vista da adequada subsunção jurídica do direito aos factos. A ocorrer essa incorreção ou desacerto da decisão tal configura um erro de julgamento, e não uma nulidade da sentença.
Do que vem antedito conclui-se pela inexistência de qualquer nulidade da sentença por contradição entre a fundamentação e a decisão.
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No que toca ao vício de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, importa relembrar os ensinamentos de Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 151) o qual refere que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Na mesma linha de raciocínio, escreve Remédio Marques (in Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 667) que a ambiguidade da sentença “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”. A obscuridade, no entendimento do mesmo autor, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”.
Portanto, é “obscuro” o que não é claro, aquilo que não se entende; e é “ambíguo” o que se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.
Em qualquer caso, fica o destinatário do acórdão sem saber ao certo o que efetivamente se decidiu, ou quis decidir. Mas não é qualquer obscuridade, ou ambiguidade, que é sancionada com a nulidade do acórdão, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível (cf. Acórdãos do STA, de 12.2.2014 e 8.11.2018 in www.dgsi.pt).
E acresce dizer que a ininteligibilidade da decisão não deve ser apreciada do ponto de vista subjetivo do concreto sujeito que leu a decisão e alega que não a compreendeu, mas antes de acordo com um padrão objetivo por forma a verificar se a mesma, do ponto de vista objetivo, é ou não percetível, compreensível e inteligível.
Finalmente, importa ainda salientar que a decisão proferida tem de ser lida e interpretada à luz da sua fundamentação, com vista a aquilatar da existência de obscuridade ou ambiguidade geradora de ininteligibilidade.

Ora, da súmula da sentença que atrás fizemos a propósito da inexistência de contradição entre a fundamentação e a decisão só se pode concluir que a sentença não é nem ambígua nem obscura, não sendo de forma alguma ininteligível, antes é uma peça perfeitamente clara e inequívoca percebendo-se, sem necessidade de qualquer esforço interpretativo, a sua fundamentação e consequente decisão.

Do que se deixa explanado conclui-se pela inexistência de qualquer nulidade da sentença por ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
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Na al. d) comina-se com o vício de nulidade a sentença que não se pronuncie sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

O vício da decisão decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º, designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença, havendo, assim, de por ele ser integrado.
Desta conjugação de normativos resulta que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Importa, porém, não confundir questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9.2.2012, segundo o qual “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.
O conceito (questões) terá ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 5.4.2018, Relator Jorge Teixeira, in www.dgsi.pt).
Uma vez que as questões a decidir não se confundem com os argumentos fáctico-jurídicos apresentados, a não pronúncia sobre factos, em princípio, não é geradora de nulidade, integrando antes uma situação de erro de julgamento sindicável em sede de impugnação da matéria de facto.
Neste sentido escreve Rui Pinto (in CPC Anotado, Vol. II, págs. 178/179), citando em abono desta posição o Acórdão do STJ de 23.3.2017, Relator Tomé Gomes, que “as questões de mérito a resolver não se confundem com a apreciação dos factos em cuja decisão assenta a resolução daquelas. Se nos fundamentos da sentença ou acórdão o tribunal não atende a um facto que se encontre provado ou se considera facto que não devesse ser atendido em face dos requisitos do art. 5º, nº 1 e 2, não há omissão de pronúncia ou excesso de pronúncia, mas um erro de julgamento da matéria de facto, merecedora de recurso”.
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A nulidade decorrente de o juiz apreciar ou conhecer questões de que não podia tomar conhecimento, vulgarmente denominada como excesso de pronúncia, ocorre quando o tribunal conhece de questões que não foram suscitadas pelas partes e que não são de conhecimento oficioso.
A nulidade da sentença por excesso de pronúncia resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 608.º, do CPC, nos termos do qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que o excesso de pronúncia se traduz na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.
Deste modo, só haverá nulidade da sentença por excesso de pronúncia quando o julgador tiver conhecido de questões que as partes não submeteram à sua apreciação.

Confrontando o resumo das posições das partes e pedidos feitos nos articulados, que sintetizámos no relatório supra, com a súmula da sentença, que também já se fez, só se pode concluir que a sentença não incorreu em qualquer omissão ou excesso de pronúncia, tendo-se limitado a apreciar unicamente as questões que as partes suscitaram nos autos e tendo analisado e decidido cada uma delas.
Por conseguinte, conclui-se pela inexistência de qualquer nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia.

Em face do exposto, conclui-se pela improcedência desta questão recursória não padecendo a sentença do vício de nulidade por violação do disposto no art. 615º, nº 1, als. b), c) e d) que lhe é imputado pela recorrente.

II – Alteração da matéria de facto e reapreciação jurídica em função da alteração ocorrida

A recorrente na conclusão 1 refere que o tribunal a quo considerou incorretamente provados os pontos 3, 6, 7, 8, 9 e 11 da matéria de facto dada como provada.

Dispõe o art.º 640.º do C.P.C. sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto” que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

Cumpre, em primeiro lugar, referir que na tarefa de aferição do cumprimento do ónus imposto por esta norma importa que os aspetos de natureza formal sejam analisados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, em conformidade com a filosofia subjacente ao atual direito processual civil de prevalência da dimensão material ou substancial sobre a dimensão meramente formal.
Não obstante, sabido que o objeto de recurso é delimitado pelas respetivas conclusões, é imperativo que nas conclusões constem os pontos da matéria de facto impugnados e a decisão que se pretende seja proferida sobre tal matéria, só assim se cumprindo o ónus de impugnação constante do art. 640º.
Porém, no que toca à indicação dos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, considera-se que nada impede que se faça uma menção meramente genérica nas conclusões, cumprindo o ónus de impugnação no corpo das alegações.
Neste mesmo sentido, o acórdão do STJ de 19.2.2015, Relator Tomé Gomes (in www.dgsi.pt) considerou que “enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”.
Em idêntico sentido pronunciou-se também o acórdão do STJ, de 1.10.2015, Relatora Ana Luísa Geraldes (in www.dgsi.pt), em cujo sumário consta que:
“II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.
IV – Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação.”

De referir ainda que a sanção para o incumprimento dos ónus impostos no art. 640º, do CPC, é a rejeição do recurso quantos aos concretos pontos de facto em relação aos quais tal incumprimento se verifique, não admitindo a lei a prolação de despacho de aperfeiçoamento sobre esta matéria.

Assentes nestas premissas e revertendo ao caso concreto, verifica-se que a recorrente, na conclusão 1, refere que o tribunal a quo considerou incorretamente provados os pontos 3, 6, 7, 8, 9 e 11 da matéria de facto dada como provada, pelo que cumpriu o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, nº 1, al. a), do CPC.
Também indicou os meios probatórios constantes do processo ou do registo da gravação que impõem decisão diversa sobre os pontos de facto impugnados, pelo que cumpriu o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, nº 1, al. b), do CPC.
Todavia, não indicou qual a decisão que, em seu entender, deveria ser proferida sobre os factos impugnados, não tendo, por isso, cumprido o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, nº 1, al. c), do CPC.
E não o fez nem nas conclusões, nem sequer na motivação.

Poderia argumentar-se que é possível perceber qual a decisão que a recorrente pretende que seja proferida sobre tais pontos de facto pela circunstância de dizer que considera incorretamente julgados determinados factos provados, devendo daí concluir-se que pretende a inversão da decisão, ou seja, que pretende que sejam julgados não provados e que este tipo de interpretação se justifica no atual direito processual civil que dá primazia ao mérito em detrimento das questões de forma.

Não obstante a vertente do primado da substância sobre a forma presente atualmente no direito adjetivo, ainda assim o mesmo continua a impor o cumprimento de regras formais. Ora, se o legislador, em duas alíneas distintas, impôs dois ónus distintos, obrigando a parte a dizer os pontos que considera incorretamente julgados - al. a) - e a decisão que deve ser proferida sobre tais pontos - al. c) - é porque não se basta com a mera indicação dos factos impugnados e não permite a ilação de que a parte pretende que seja proferida decisão em sentido contrário ao que foi emitido, ou seja, que se forem impugnados factos provados pretende que sejam considerados não provados e se forem impugnados factos não provados pretende que sejam considerados provados.
Ainda que seja essa a pretensão da parte, não há que presumi-la, cabendo à parte que queira impugnar a matéria de facto, para cumprir o ónus de impugnação, dizê-lo de forma expressa e clara e sem que se exija ao tribunal que faça presunções ou suposições sobre essa matéria.

Acresce que, no caso concreto, não se justificaria sequer ter uma interpretação mais maleável ou flexível no que toca ao cumprimento dos ónus de impugnação.
Na verdade, as conclusões foram objeto de convite ao aperfeiçoamento por terem sido apresentadas 85 conclusões que, analisadas materialmente ou do ponto de vista substancial, não continham proposições sintéticas.
Não obstante a lei não prever a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento relativamente ao incumprimento dos ónus de impugnação, ainda assim, no despacho proferido sobre o aperfeiçoamento das conclusões transcreveu-se o art. 640º, relativo aos ónus de impugnação, e fez-se uma expressa e clara alusão aos ónus de impugnação da matéria de facto explicando de forma clara e simples como os mesmos deveriam ser cumpridos, constando expressamente do despacho proferido que “no que concerne à impugnação da matéria de facto, as conclusões são extensas e complexas, contêm transcrições de depoimentos bem como a apreciação da força probatória dos mesmos.
Esta matéria deve ser reservada à alegação. As conclusões, como proposições sintéticas que devem ser, apenas devem conter os concretos pontos da matéria de facto que se considera que foram incorretamente julgados, a decisão que deve ser proferida sobre esses pontos impugnados, ou seja, se devem ser considerados provados, não provados ou provados com determinada redação, que deve ser indicada, e a identificação dos concretos meios probatórios que justificam essa decisão, designadamente fazendo referência ao nome das testemunhas cujo depoimento justifica essa decisão ou identificando o documento que impõe essa decisão” (sublinhado nosso).

Não obstante esta expressa e clara alusão aos ónus de impugnação da matéria de facto e ao modo como deveriam ser cumpridos, a recorrente apresentou conclusões aperfeiçoadas sem o cumprimento do ónus em questão, não dizendo qual a decisão que, em seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
Pelo exposto, não se podendo considerar cumprido o ónus de impugnação do art. 640º, nº 1, al. c), do CPC, o recurso quanto à impugnação da matéria de facto tem de ser rejeitado.
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III – Inexistência de sinais visíveis e permanentes da servidão e as consequências jurídicas que daí advêm

A sentença considerou que se verificam todos os pressupostos de constituição do direito de servidão por usucapião e, consequentemente, declarou a sua existência.

Refere a recorrente, na conclusão 34, que “ao contrário do que preconiza a Sentença, entende a Recorrente que os Recorridos não provaram, de forma concretizada, quais os sinais visíveis e permanentes que permitem concluir pela existência de uma servidão aparente.

Vejamos, então, se, face à matéria de facto provada, se pode ou não concluir pela existência de uma servidão aparente.

Relativamente à forma de aquisição, face ao disposto nos arts. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1, ambos do CC, as servidões prediais não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
Consideram-se não aparentes, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art. 1548º, nº 2, do CC).

As servidões não aparentes distinguem-se das servidões aparentes pelo modo de exercício: no caso das servidões aparentes, ele é realizado por meio de atos que produzem consequências – sinais – no prédio serviente ou dominante que permitem o conhecimento da existência da servidão pelos interessados. Já no caso das servidões não aparentes, a atuação do seu titular sobre o prédio dominante ou serviente não é percetível para terceiros interessados” (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 415).

A razão pela qual apenas as servidões aparentes podem constituir-se por usucapião é a circunstância de um dos requisitos para a aquisição de um direito real de gozo por usucapião ser o exercício de uma posse pública à luz do art. 1297º do CC, além de que as servidões não aparentes podem ser confundidas com atos de mera tolerância do titular de um prédio para com o titular de outro prédio (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) págs. 415 e 416). Na verdade, se não existirem sinais visíveis e permanentes reveladores do exercício da servidão o proprietário do prédio onerado com tal encargo não terá sequer a possibilidade de se opor, por desconhecer a prática dos atos de posse, o que levou o legislador a afastar a possibilidade de aquisição por usucapião de servidões não aparentes.
Neste mesmo sentido, considerou o acórdão do STJ, de 4.2.2021, Relator Ferreira Lopes (in www.dgsi.pt) que “[a] visibilidade destina-se a garantir a não clandestinidade e a permanência da obra ou de sinais torna seguro que não se trata de acto praticado a título precário, mas dum encargo preciso, estável e duradouro, próprio de uma servidão (...).
A exigência de que os sinais sejam visíveis e permanentes justifica-se ainda por não poder ser imposta a constituição de ónus desta natureza ao dono do prédio serviente quando ele não poderia ter tido conhecimento das obras e sinais inerentes ao exercício da servidão e reagir contra os actos praticados.”

No mesmo alinhamento de ideias, referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. III, 2 ª ed., pág. 629) que “admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar em vez de estimular as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequidade”.
E, prosseguem os mesmos autores, (in Código Civil Anotado, Vol. III,  2 ª ed., pág. 630) dizendo que, para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião “torna-se imprescindível a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício (como, por exemplo, um caminho ou uma porta ou portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente)”.

Como referido no acórdão da Relação do Porto, de 10.7.2013, Relator Alberto Ruço, (citado no acórdão desta Relação de Guimarães, de 14.2.2019, Relatora Purificação Carvalho, in www.dgsi.pt)a visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.”

Quanto ao que se deva entender por sinais visíveis e permanentes, refira-se ainda o expendido no acórdão da Relação de Coimbra, de 16.10.2012, Relator Henrique Antunes (in www.dgsi.pt), segundo o qual “[p]or sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão.
Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc... A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta.
Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. (...)
Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência.”.

Estando em causa uma servidão aparente, ou seja, uma servidão que se revele por sinais visíveis e permanentes, a mesma pode ser adquirida por usucapião desde que se verifiquem os requisitos legais de tal instituto, o qual se encontra previsto nos arts. 1287º e ss, do CC.

Na tarefa de aferição da existência de sinais visíveis e aparentes da servidão há que levar em conta o concreto tipo de utilidade que integra o conteúdo dessa servidão.
No caso, trata-se de uma servidão de passagem pelo que constituirão sinais visíveis e permanentes da mesma aqueles que existam fisicamente no local, possam ser observados por qualquer pessoa, ao longo do tempo, e que permitam concluir que é por aquele local que se processa o acesso ao prédio dos autores.

Provou-se que sobre o prédio identificado no facto provado número 5 existiu, até 2017 um caminho com a largura de 1,5 metros em toda a sua extensão de cerca 90 metros, com marcas no solo visíveis da circulação de veículos, animais e pessoas, que nascia na confrontação com a EN ...06, através de uma abertura no muro que aí existia e se prolongava para norte até ao limite do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...66, seguindo depois para sul, terminando junto ao prédio dos Autores inscrito na matriz sob o artigo ...68 (facto provado 6).
Considera-se que estas descritas caraterísticas constituem sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho perfeitamente demarcado.
Até 2017, esse o caminho era utilizado por Autores e antepossuidores, bem como pela dona de prédio confrontante com o dos Autores, desde tempos imemoriais, há mais de 5, 10, 15, 20 e 25 anos, para circulação de pessoas, animais, carros de bois e, mais recentemente, tratores agrícolas para satisfazer todas as necessidades de agricultar os terrenos, colher os produtos neles produzidos, plantar árvores, cortar ervas e fenos e outras culturas, de e para a EN ...06, até e a partir dos prédios mencionados nos factos provados números 1 a 3 (facto provado 7).
Esta atuação decorreu sem interrupção, à vista de toda a gente, pacificamente, sem a oposição de quem quer que fosse, com o conhecimento e a autorização dos antepossuidores do prédio da Ré, na convicção dos Autores e respetivos antepossuidores de exercerem um direito próprio, de servidão de passagem de pessoas, animais e veículos sobre o prédio aludido no facto provado número 5, em benefício dos prédios identificados nos factos provados números 1 a 3, por todos reconhecido como tal (facto provado 8).
Assim, trata-se de sinais visíveis e permanentes, e não de atos clandestinos, ocultos ou de posse equívoca, sinais esses que são reveladores de uma servidão aparente, nada impedindo a sua constituição por usucapião posto que se verificam os demais requisitos da aquisição por usucapião referidos nos arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC.

Por conseguinte, improcede a pretensão da recorrente de não ser possível a constituição da servidão por usucapião por não existirem sinais visíveis e permanentes.

IV – Atuação dos autores como litigantes de má fé

A recorrente pede que os recorridos sejam condenados em multa e no pagamento de uma indemnização a seu favor, nos termos do art. 542.º.
Como fundamento desta pretensão invoca, no essencial, que “os Recorridos instauraram a presente acção, cuja falta de fundamento conhecem, já que se tratam de factos de conhecimento pessoal que não podiam ignorar, com o único objectivo de alterar a verdade dos factos(...) invocam nestes autos circunstâncias factuais falsas, alterando dolosamente a verdade dos factos, omitindo factos relevantes para a boa decisão da causa, com o único objectivo e propósito de alcançar uma decisão favorável à custa da Recorrente.
Porquanto, deturpam a acção da justiça ao deduzir a presente demanda quando sabem que a mesma é desprovida de qualquer fundamento sério ou legal.
Assim, os Recorridos litigam de má fé porque se arrogam da titularidade de um direito de serventia quando sabem que no local onde alegam ter existido um caminho, nunca lá nada existiu além de vegetação por mais de 40 anos.(...) Conformaram-se com o desaparecimento do alegado caminho de servidão, pelo que não podem agora vir exigir à Recorrente um direito extinto há muito.

Dispõe o art. 542º, que:
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Face à alegação da recorrente, considera-se que a mesma pretende integrar a conduta dos recorridos nas situações previstas nas als. a) e b) do nº 2 do art. 542º.

Verifica-se, porém, que, no essencial, a generalidade dos pedidos deduzidos pelos recorridos obteve provimento, pelo que não deduziram pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não deviam ignorar, não se enquadrando a sua conduta na al. a);
Também não resulta da factualidade provada que os recorridos tenham tido uma qualquer atuação tendente a alterar a verdade dos factos ou que tenham omitido factos relevantes para a decisão da causa, pelo que a sua atuação não preenche a previsão da al. b).
Relativamente às als. c) e d), verifica-se, por um lado, que a recorrente não invoca tais comportamentos como fundamento do pedido de litigância de má fé e, por outro lado, que nos autos não se encontra qualquer indício de que os autores tenham praticado condutas que possam preencher a previsão desses normativos.
Por conseguinte, resta concluir que não existe fundamento legal para condenar os recorridos como litigantes de má fé por a sua conduta processual não integrar na previsão do art. 542º, nº 2.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - Relativamente à forma de aquisição, face ao disposto nos arts. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1, ambos do CC, as servidões prediais não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
Consideram-se não aparentes, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art. 1548º, nº 2, do CC).
II - Na tarefa de aferição da existência de sinais visíveis e aparentes da servidão há que levar em conta o concreto tipo de utilidade que integra o conteúdo dessa servidão.
III - Provando-se que num prédio existia um caminho com a largura de 1,5 metros em toda a sua extensão de cerca 90 metros, com marcas no solo visíveis da circulação de veículos, animais e pessoas, estas descritas caraterísticas constituem sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho perfeitamente demarcado, sinais esses que são reveladores de uma servidão aparente, nada impedindo a sua constituição por usucapião posto que se verificam os demais requisitos da aquisição por usucapião referidos nos arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC.
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Guimarães, 27 de abril de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas