Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3688/20.2T8GMR.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: AUTORIDADE DE CASO JULGADO
INSOLVÊNCIA
REMISSÃO ABDICATIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Julgada certa «questão» numa primeira acção, esta decisão impõe-se, por força da autoridade do caso julgado, em todas as acções que venham a correr entre as mesmas partes, ainda que incidindo sobre um pedido diverso, desde que a apreciação deste dependa decisivamente do objecto previamente julgado, como seu antecedente lógico e jurídico ou premissa decisiva.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: AA
Apelada: E..., Ldª

I – RELATÓRIO

AA, com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra E..., Ldª, também nos autos melhor identificada, pedindo:

- Que o tribunal condene a ré a reintegrá-la no seu posto de trabalho com a categoria e a antiguidade que vinha mantendo ou, em alternativa, a pagar-lhe a indemnização no valor de € 1.905,00 e créditos no valor de € 4.010,50 (a título de salário de Junho de 2020, férias vencidas no início de 2020 e respectivo subsídio de férias, proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal e diferenças salariais) que, após dedução da quantia de € 1.485,66, entretanto paga pela ré, perfaz o valor total de € 4.429,84, bem como os juros de mora que se vencerem até integral pagamento.

Alega para tanto, e em síntese, ter sido despedida pela ré, no dia 24/6/2020, sem prévio procedimento, tendo deixado de trabalhar para ré nesse dia, contra a sua vontade e sem que esta lhe tivesse pago tais créditos, sendo que só posteriormente a ré lhe pagou, por conta dos mesmos, a aludida quantia.

Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação entre elas.

Notificada para o efeito, a ré apresentou contestação alegando, em suma, que o contrato de trabalho cessou em virtude do encerramento total e definitivo da ré e que, após essa cessação, houve uma remissão abdicativa através de documento que, após levar para analisar, a autora aceitou e assinou e recebeu da ré a respectiva compensação pecuniária global nele constante. No mais, alegou que esta demanda configura um abuso de direito por parte da autora e impugnou quer a causa de cessação contratual quer os créditos peticionados pela autora.

A autora apresentou resposta em que, no fundamental, invoca a anulabilidade do aludido documento por ter sido assinado sob coação e ameaça da ré e que tal quitação não configura uma remissão abdicativa por não refletir uma vontade expressa de a autora renunciar a créditos laborais. Mais alega que, tal renúncia sempre seria nula e sem qualquer efeito quanto à peticionada impugnação de despedimento, dada a natureza imperativa das respectivas normas legais.

A ré veio apresentar articulado superveniente, pedindo que sejam atendidos factos supervenientes e que importam a extinção do alegado direito da autora por, em resumo, ter havido uma acção de insolvência, em que a aqui autora figurou como co-autora e a aqui demandada figurou também na qualidade de ré, com sentença já transitada em julgado, e na qual foram dados como provados e como não provados factos idênticos aos dos presentes autos e cuja decisão acolheu a fundamentação idêntica à da ré nos presentes autos, com a inerente autoridade de caso julgado.

A autora veio pronunciar-se no sentido de que tal decisão não tem, nem pode ter qualquer influência na presente acção por a causa de pedir e pedido serem diferentes.

Prosseguindo os autos, veio a realizar-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo procedente a invocada exceção dilatória (inominada) da autoridade do caso julgado, abstendo-me de conhecer do mérito da presente lide e, em consequência, absolvo a ré, “E..., Ldª”, do pedido formulado pela autora, AA.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a autora interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“A.       Vem o presente recurso de apelação interposto da douta sentença que julgou procedente a invocada excepção dilatória (inominada) da autoridade do caso julgado, abstendo-se o Tribunal a quo de conhecer do mérito da presente lide e, em consequência, absolveu a ré da presente instância.
Vejamos porquê:
B. O Recorrente interpôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, impugnando o seu despedimento levado a cabo pela Ré e pedindo que o tribunal condene a Ré a reintegrá-lo no seu posto de trabalho com a categoria e a antiguidade que vinha mantendo ou, em alternativa, a pagar-lhe a indemnização no valor de € 1.905 e uma outra quantia a título de créditos salariais.
C. Para o efeito, alegou ter sido despedido verbalmente pela ré, no dia 24/6/2020, sem prévio procedimento e sem aceitar tal despedimento ilícito, tendo deixado de trabalhar para ré nesse dia.
D. A Ré, por seu lado, veio invocar a excepção de autoridade de caso julgado, por ter havido uma acção de insolvência, com sentença já transitada em julgado, e na qual foram dados como provados e como não provados factos idênticos aos dos presentes autos e também cuja decisão acolheu a fundamentação idêntica à da ré nos presentes autos, com a inerente autoridade de caso julgado.
E. Foi, entretanto, proferida sentença que deu razão à Recorrida e julgou procedente a invocada excepção dilatória (inominada) da autoridade do caso julgado, abstendo-se o Tribunal a quo de conhecer do mérito da presente lide e, em consequência, absolveu a ré da instância.
F. Entende o Recorrente, todavia, que se impunha uma decisão diversa da recorrida, e que fosse proferida decisão de mérito que apreciasse os fundamentos e a substância dos factos alegados e fosse aplicado o direito em conformidade.

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

G. Como se alegou supra, o Recorrente pretende, com o presente recurso, ver revogada a sentença proferida e que seja determinada a remessa dos presentes autos à primeira instância para que seja proferida decisão de mérito.
H. Salvo o devido respeito, o Recorrente não concorda com a decisão que julgou procedente a excepção de autoridade de caso julgado.
I. Em primeiro lugar, desde logo o próprio Tribunal a quo afirma – ipsis verbis - que “não existe (entre a acção de insolvência e a presente acção laboral declarativa) coincidência de causas de pedir e de pedidos exigíveis pela excepção dilatória de caso julgado” – sublinhado e negrito nossos.
J. Na verdade, enquanto na (primeira) acção de insolvência o Recorrente pretendia obter a declaração de insolvência da Recorrida por não ser capaz de cumprir as dívidas para com os seus credores e trabalhadores; na presente (segunda) acção visa a declaração de ilicitude do seu despedimento levado a cabo pela Ré e a condenação desta a reintegrá-lo e a pagar-lhe créditos laborais, acrescidos de juros de mora.
K. Daqui resulta, manifestamente, serem distintos tais pedidos, na medida em que são diferentes os respectivos efeitos prático-jurídicos visados com a instauração da respectiva acção.
L. Sendo que é manifestamente distinta a causa de pedir da insolvência, no tocante à alegação que o Recorrente havia feito de que a Recorrida se mostrava incapaz de lhe pagar os alegados créditos por ter cessado a sua actividade.
M. Ora, como sabemos, os arts. 577º, al. i), 580º e 581º do C.P.C. estipulam que esta excepção (dilatória nominada) do caso julgado material, está sujeita à “tripla identidade” (de sujeitos, pedido e causa de pedir) fixada nos sobreditos arts. 580º e 581º do C.P.C..
N. Daí que, salvo melhor opinião, não se verifica, na presente acção, a excepção dilatória (inominada) da autoridade do caso julgado, uma vez que a causa de pedir e os pedidos são manifestamente diversos, entre a aludida acção de insolvência e a presente acção comum.

SEM PRESCINDIR,

O. O Recorrente, com a presente acção declarativa comum, para além de peticionar o reconhecimento e pagamento de créditos laborais, também impugna a ilicitude do despedimento de que foi alvo (aliás, este é o pedido principal), peticionando, como consequência dessa ilicitude, a sua reintegração na Recorrida, direito que lhe é conferido pelo artigo 389.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho.
P. Daí que, desde logo, o Recorrente entenda que a presente acção por si instaurada não possa ter este desfecho, uma vez que, para além de reclamar créditos laborais, peticiona (a título principal) também a sua reintegração na Recorrida.
Q. E, como se sabe, tal pedido não pode ser efectuado perante o Tribunal de Comércio, nem o processo de insolvência é o meio adequado a reconhecer o direito à reintegração do Recorrente. As competências desse tribunal e a natureza do processo de insolvência não são, de todo, os que poderão assegurar aquele direito do Recorrente.

AINDA SEM PRESCINDIR,
R. O Recorrente entende que a sentença recorrida ofende princípios materiais da Constituição da República Portuguesa.
S. Em primeiro lugar, entende o Recorrente que a decisão recorrida viola, desde logo, o princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, plasmado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
T. Na verdade, a decisão recorrida, ao impedir que o Recorrente obtenha uma decisão de mérito, na medida em que o Tribunal se recusou a julgar e reconhecer-lhes um direito legalmente reconhecido e devidamente peticionado por aquele, violou o princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, plasmado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
U. Direito esse que, como se viu, não poderá ser reconhecido pelo Tribunal de Comércio, através de um processo de insolvência.
V. Em segundo lugar, a decisão recorrida, salvo o devido respeito, viola o princípio da segurança no emprego e do direito ao trabalho, plasmados nos artigos 53.º e 58.º da CRP, respectivamente.
W. Com efeito, ao não decidir do mérito da causa, a sentença proferida violou aqueles princípios, uma vez que impede que ao Recorrente seja reconhecido um direito [à reintegração] que lhe foi conferido pelo legislador ordinário (no C.T.) e que goza de protecção constitucional.
X. Em suma, diremos que a decisão proferida é materialmente inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), do princípio da segurança no emprego (artigo 53.º da CRP) e do direito ao trabalho (artigo 58.º da CRP).

FINALMENTE,
Y. Uma decisão muito recente do Supremo Tribunal de Justiça dá razão aos argumentos aqui trazidos pelo Recorrente.
Z. Com efeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.09.2021 (relator Fernando Baptista), disponível em www.dgsi.pt, decidiu que:

“III. Com efeito, o que está em causa no art.20.º, n.º1 do CIRE, é a legitimidade processual e não a legitimidade substantiva, pelo que a invocação do crédito na fase declarativa do processo de insolvência mais não é do que um factor-índice presuntivo da insolvência invocada, para efeitos da al. b) do nº 1 daquele normativo - sendo que no processode insolvência basta ao devedor tornar duvidosa a existência do crédito para que o tribunal tenha que indeferir o requerimento de insolvência, sem prejuízo da possibilidade de o credor continuar a poder instaurar processo judicial para a cobrança desse crédito.
IV. Assim, a sentença de improcedência da insolvência, cuja fundamentação não tiver reconhecido o crédito invocado na petição inicial desse processo, não tem força de caso julgado material em relação a este crédito não reconhecido, para vincular a apreciação de mérito de uma acção posterior destinada directamente a reconhecer ou cobrar esse crédito.”.
AA. Deste douto Acórdão, subscrevem-se ainda, e com a devida vénia, as seguintes palavras:
“Não se dá por verificada a autoridade de caso julgado, por o decidido na insolvência acerca da dívida não constituir uma questão condicionante ou prejudicial à sentença a proferir nos embargos de executado e o objecto da decisão proferida no processo de insolvência não se inserir no objecto destes autos (como se sustenta no Ac. RP de 15.12.2016 -ARISTIDES DE ALMEIDA - [5], onde (a nosso ver bem) é ressaltado: que o processo de insolvência não é um processo de partes; que a afirmação do crédito pelo credor legitima apenas a sua iniciativa processual; (…).”- sublinhado nosso.
BB. A sentença recorrida violou, assim, o artigo 389.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho e os artigos 577.º, al. i), 580.º e 581.º do Código de Processo Civil.”

A recorrida apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso, pois, e em suma:
“(…)
15.ª - As conclusões do interposto recurso são manifestamente improcedentes.”

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Tal parecer não mereceu qualquer resposta.
O recurso foi admitido na espécie própria e com o adequado regime de subida.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enuncia-se então a única questão que cumpre apreciar:

A – Saber se se verifica a invocada autoridade do caso julgado.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão da causa são os que assim constam da decisão recorrida (pois que não houve recurso da matéria de facto nem se vislumbra fundamento para alterar oficiosamente a decisão proferida sobre essa matéria):
Provados:

“1 – A Autora foi admitida ao serviço da Ré em 29/03/2018;
2 - Nessa data, por contrato verbal, iniciou funções ao serviço da Ré, como estofador, cumprindo o horário de 40 horas semanais, 08 horas diárias, de segunda a sexta-feira;
3 - Auferia, nesse período que decorreu até 03/07/2018, o salário mensal de 250,00 €, quantia essa que a Ré pagava através de Cartão presente Continente;
4 - Até que, nesse dia 03/07/2018, a Ré apresentou à Autora um contrato de trabalho sem termo certo, que esta assinou (cfr. doc. nº ... da petição inicial e aqui dado como reproduzido);
5 - Com a assinatura do referido contrato, a Autora continuou ao serviço da Ré, cumprindo o mesmo horário de trabalho, executando exactamente as mesmas funções, nas mesmas máquinas, reportando ao mesmo chefe de equipa e com os mesmos colegas e aí se mantendo a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da Ré, sempre com bom e efetivo serviço, exercendo as funções próprias de Estofador;
6 - A Autora, como contrapartida do trabalho prestado, a partir de 3/07/2018 começou a receber a retribuição mínima mensal garantida, que em 2020 era de € 635,00 e um subsídio de refeição por cada dia de trabalho no valor de 4,52 €;
7 - Sucede que, no dia 24 de Junho de 2020, o gerente da Ré BB dirigiu-se à Autora (bem como aos demais trabalhadores ao seu serviço) e comunicou-lhes, verbalmente, que não havia condições financeiras para continuar a atividade, não havia encomendas e comunicou-lhes, verbalmente, que o estabelecimento iria encerrar no dia 30/6/2020, conforme veio a suceder, efectivamente, e com a cessação do contrato de trabalho de todos os trabalhadores no dia 30/6/2020;
8 - Aquando do descrito no anterior item (actualmente nº 7), estavam em dívida à Autora os seguintes créditos com as seguintes proveniências:
a) salário de Junho de 2020 no montante de € 635,00;
b) férias vencidas e subsídio de férias de 2020 no montante total de € 1.270,00;
c) proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal no montante total de € 952,50;
d) diferenças salariais no montante total de € 1.000€;
e) compensação ou indemnização pela cessação do respectivo contrato de trabalho;
9 - No dia 24-06-2020, a propósito do descrito nos anteriores itens (actualmente nºs 7 e 8), a Ré apresentou à Autora e demais trabalhadores propostas individuais de liquidação de todos os créditos destes nos termos já constantes da alínea K da sentença proferida no Processo 1841/21.... do Juízo de Comércio ... -J...: "Na data referida em I., a Requerida apresentou aos Requerentes propostas individuais de liquidação de todos os créditos destes, nos termos dos recibos de quitação anexos à contestação como docs. ... a ..., cujo teor aqui se dá por reproduzido, e de onde constam, ademais, os seguintes dizeres:
“Recibo de quitação
Na sequência da comunicação de encerramento Total, Absoluto e Definitivo da Estofabasto, Lda. [Requerida], o (a) trabalhador (a) CC/DD/DD/EE/AA/FF/GG/HH [Requerentes], com o número de cartão de cidadão----------------------------------- receberá a quantia de 1.485,66€ [cada um dos Requerentes, com exceção da Requerente FF, cuja quantia foi de 920,51 €], onde estão incluídos os créditos vencidos à data da caducidade do contrato de trabalho e exigíveis em virtude desta caducidade, encontrando-se incluídos neste montante todas e quaisquer remunerações a que porventura a mesma [os Requerentes] tivesse direito, e nomeadamente vencimentos, férias não gozadas, subsídios de férias e de Natal, horas suplementares, diferenças salariais, prémios de assiduidade, diuturnidades, horas de trabalho noturnas, subsídio de compensação, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnizações pela não concessão de férias, complementos de subsídio de doença e de pensões, subsídio de refeição, indemnização por antiguidade, não podendo o (a) trabalhador (a) [Requerentes] exigir da sua entidade patronal [Requerida] qualquer outra quantia seja a que título for.
..., 24 de Junho de 2020";
10 - A Ré advertiu a Autora de que, com a assinatura do documento e recebimento da aludida quantia, ficavam saldadas as contas entre ambas, e nada mais lhe deveria ou poderia ser exigido (cfr. já consta, e também relativamente a todos os demais trabalhadores, da alínea L da sobredita sentença proferida no Juízo de Comércio ...);
11 - A Autora recebeu esse documento em mão, mas não o assinou imediatamente, tendo alegado que iria “pensar no assunto”, aconselhar-se com outras pessoas e certificar-se, junto da Segurança Social, se teria direito ao subsídio de desemprego (tal como consta, também relativamente a todos os demais trabalhadores, da alínea M da sobredita sentença proferida no Juízo de Comércio ...);
12 - A Autora ficou na posse do documento (também já constante, e também relativamente a todos os demais trabalhadores, da alínea N da sobredita sentença proferida no Juízo de Comércio ...);
13 - Em data indeterminada mas anterior a 30/6/2020, a Autora comunicou à Ré que aceitava a proposta desta e entregou-lhe esse documento, assinado, com o seu número de cartão de cidadão e respetiva data de validade manuscritos, tendo em seguida o sócio-gerente e legal representante da Ré aposto a sua assinatura sob carimbo da gerência (tal como o constante, também relativamente a todos os demais trabalhadores, da alínea O da sobredita sentença proferida no Juízo de Comércio ...) e o qual consta de fl. 25 dos presentes autos aqui dada por reproduzida;
14 - Em seguida, a Ré pagou à Autora, por transferência bancária para a conta desta, a acordada quantia de 1.485,66 €, que a Autora aceitou (tal como o constante, também relativamente a todos os demais trabalhadores, da alínea P da sobredita sentença proferida no Juízo de Comércio ...).
15 - A sobredita sentença proferida no Juízo de Comércio ... foi objecto de recurso e transitou em julgado em 23/11/2021, nos termos constantes da certidão de fls. 109vº a 131 dos presentes autos e aqui dada como reproduzida na íntegra.”
Não provados:
“Os demais factos alegados por ambas as partes que não estejam prejudicados pelos factos já assentes, nomeadamente o seguinte facto: que a Ré pressionou a Autora e os demais Trabalhadores a assinarem os documentos referidos no N.º 15 (actual item 9) com a ameaça de que não pagaria sequer o salário do último mês do contrato caso tais documentos não fossem assinados, tendo sido por receio de não receberem o salário que os trabalhadores assinaram tais documentos.”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
  
Contendendo com a questão supra enunciada, na decisão recorrida discorreu-se, designada e mais especificamente, nos termos seguintes:

“[…] a nossa doutrina e jurisprudência têm entendido de forma pacífica (e bem) que, para além desta excepção dilatória do caso julgado, também, há a excepção dilatória (inominada) da autoridade do caso julgado e que resulta do disposto no supra citado nº 1 do art. 580º do C.P.C., pois o caso julgado tem (sempre) como pressuposto a repetição de uma causa já decidida por decisão que já não admite recurso ordinário.
E sendo uma excepção dilatória (apesar de inominada) obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa repetida e dá lugar à absolvição dessa instância, nos termos estipulados pelo art. 576º, nºs 1 e 2, do C.P.C. - assim se cumprindo o desiderato previsto no nº 2 do citado art. 580º do C.P.C , isto é, evitando-se que o tribunal da causa repetida seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior já transitada em julgado, com o inerente desprestígio dos tribunais e falta de certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais mesmo apesar de transitadas em julgado.”
(…)
“Mas [não actuando a excepção dilatória de caso julgado], ainda assim, poderá actuar a excepção dilatória (inominada) da autoridade do caso julgado, quando (apesar de não haver tal tríplice identidade jurídica) haja relações de prejudicialidade entre os objectos processuais e, por isso mesmo, haja que evitar que o tribunal da causa repetida seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior já transitada em julgado, com o inerente desprestígio dos tribunais e falta de certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais mesmo apesar de transitadas em julgado.
A propósito desta excepção (dilatória inominada) da autoridade do caso julgado (material), importa atentar que, em regra, esta só produz efeitos entre as partes (vigorando o princípio da identidade subjectiva como reflexo do princípio do contraditório), isto é, por norma, não vincula terceiros, que não tenham sido partes no processo em que o caso julgado se formou por não terem tido possibilidade de defender os seus direitos e interesses. Sendo que tal identidade das partes não é a simples identidade física, mas a identidade jurídica (conforme prevê o nº 2 do art. 581º do C.P.C.), precisamente para deixar claro que o caso julgado se forma em relação a todos aqueles que, por sucessão mortis causa ou por transmissão intervivos, assumam a posição jurídica de quem foi parte no processo em que foi proferida a decisão coberta pelo caso julgado material.
Também sendo de salientar que este caso julgado aproveita a ambas as partes do processo em que foi proferida a decisão coberta pelo mesmo, quer seja a parte vencedora, quer seja a parte vencida e a sua força impõe-se, independentemente, da posição que as partes ocupem (como autor ou como réu) nas duas acções.
Para além disso [e, precisamente para evitar (não a mera colisão teórica de decisões, mas sim) a contradição prática dos julgados, isto é, para evitar que existam decisões concretamente incompatíveis a debruçarem-se sobre a mesma relação jurídica], a força vinculativa da autoridade do caso julgado pressupõe sempre (como limites objectivos cumulativos) que:
- sobre o objecto da primeira acção tenha recaído uma decisão de mérito contida na parte dispositiva da sentença;
- para qual, o julgador da primeira acção teve necessidade de resolver/decidir certas questões, com base em certos fundamentos de facto e de direito, como premissas ou antecedentes, lógicos e jurídicos, indispensáveis para a conclusão que o julgador extraiu e que consignou na parte dispositiva da sentença;
- esses pressupostos e essas questões preliminares que o julgador da primeira acção teve necessidade de resolver/decidir como premissas da conclusão retirada através da decisão de mérito proferida e transitada em julgado, sejam condicionantes ou prejudiciais da relação material controvertida na segunda acção.
Só assim se compreende e justifica garantir/salvaguardar que a decisão de mérito que, de forma definitiva, recaiu sobre certa matéria, objecto da primeira acção que correu termos entre determinadas partes, se imponha, necessariamente [com a força vinculativa do inerente caso julgado], em todas as acções posteriores que venham a correr entre as mesmas partes (mesmo incidindo sobre objecto diverso/sem haver identidade jurídica), desde que a respectiva apreciação nestas dependa, concreta e decisivamente, do objecto já previamente julgado naquela primeira acção, como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida nas posteriores acções – cfr. a este propósito José Lebre de Freitas/António Montalvão Machado/Rui Pinto em “Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2008, pág. 354, e Miguel Teixeira de Sousa em “O objecto da sentença e o caso julgado material (O Estudo sobre a funcionalidade processual)”, BMJ nº 325, 1983, pág. 171.
Em suma e por outras palavras, a força e autoridade do caso julgado (material) tem como efeito o de uma anterior decisão de mérito, já transitada em julgado, proferida numa certa acção entre certas partes, se impor numa outra acção subsequente entre as mesmas partes, quer a questão decidida por decisão transitada em julgado surja nessa outra acção a título principal ou a título prejudicial e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu, sempre que entre a causa de pedir e o pedido de ambas as acções interceda uma relação de prejudicialidade ou um nexo sinalagmático. Então, sempre que tal suceda “a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida” entre as mesmas partes – cfr. a título de exemplo os Acórdãos do STJ de 13/12/2007, 21/3/2012 e 15/1/2013 na base de dados da DGSI.”
E, por reporte ao caso concreto:
“Conforme ficou assente (através da respectiva certidão constante dos presentes autos), no tribunal de comércio foi proferida uma sentença através da qual foi julgado improcedente o pedido de insolvência que os trabalhadores haviam deduzido contra a empresa sua empregadora.
Sendo que tal decisão de mérito assentou na resolução, pela respectiva julgadora, de certos e determinados fundamentos, quer de facto quer de direito, mais concretamente:
essa julgadora considerou que, face à prova produzida, tinha ficado demonstrado um conjunto de factos concretos, entre os quais: que no dia 24/6/2020, o gerente da empregadora havia comunicado, verbalmente, a todos os trabalhadores que, devido a falta de encomendas, o estabelecimento iria encerrar no final desse mês e que os contratos de trabalho cessariam com efeitos no final desse mês; tendo naquele dia 24 sido dado pela empregadora a cada trabalhador uma proposta escrita de liquidação de todos os créditos destes, intitulada “Recibo de quitação” com os seguintes dizeres (…) [os constantes do ponto 9. da matéria de facto supra considerada provada] acompanhada da advertência verbal aos mesmos de que, com a assinatura desse documento e o recebimento da respectiva quantia aí aludida, ficariam saldadas as contas entre ambos e que nada mais lhe deveria ou poderia ser exigido; tendo os trabalhadores recebido e ficado na posse do respectivo documento, mas não o assinando de imediato, sob o argumento de que iriam “pensar no assunto”, aconselhar-se com outras pessoas e certificar-se, junto da Segurança Social, se teriam direito ao subsídio de desemprego; até que, em data não apurada mas anterior ao dia 30/6/2020, os trabalhadores comunicaram à empregadora que aceitavam a proposta deste, entregaram-lhe esses documentos assinados, incluindo com o número de cartão de cidadão e respectiva validade manuscritos, tendo de seguida o sócio-gerente e legal representante da empregadora aposto a sua assinatura sob o carimbo da gerência e, em seguida, a empregadora pagou aos trabalhadores, por transferência bancária, a respectiva quantia pecuniária acordada de € 1.485,66 para todos, salvo quanto à trabalhadora FF que era no valor de € 920,51 e que todos os trabalhadores aceitaram;
essa julgadora, subsumindo todo o acervo factual apurado, ao respectivo direito aplicável, considerou: que a empregadora havia levado a cabo um despedimento ilícito dos seus trabalhadores, porque desprovido de qualquer prévio procedimento escrito exigido legalmente; que face ao apurado contexto factual em que fora celebrado tal acordo escrito entre os trabalhadores e a empregadora e face aos dizeres contidos nesse acordo, tratava-se de um contrato de remissão abdicativa pelo qual os trabalhadores haviam renunciado, livremente e sem reservas, ao direito de exigir da empregadora os demais créditos laborais a que tinham direito, para além do valor que esta ali aceitou pagar-lhes e lhes pagou efectivamente; que, nessa conformidade, extinguiram-se os créditos remanescentes, incluindo diferenças salariais, subsídios, proporcionais, retribuições ou indemnização por antiguidade que pretenderiam ver-lhes reconhecida, já que nesse acordo haviam declarado não poder exigir da entidade patronal qualquer quantia seja a que título fosse; que tal contrato de remissão abdicativa, mesmo apesar de ter sido celebrado durante a vigência do contrato de trabalho, não contrariava normas imperativas, na medida em que, aderindo ao pacífico entendimento do STJ, havia sido celebrado já durante a fase de cessação do contrato de trabalho em que os trabalhadores se haviam predisposto a negociar tal cessação anunciada pela empregadora; que face ao apurado circunstancialismo fáctico que rodeou tal renúncia abdicativa (nomeadamente ao facto de a empregadora lhes ter entregue esse documento sem estar assinado; os ter advertido de que com a sua assinatura e o recebimento da respectiva quantia, ficariam saldadas as contas e que nada mais deveria ou poderia ser exigido; de cada trabalhador ter levado esse documento por assinar, para poder pensar e aconselhar-se; e que, volvidos alguns dias, tivessem comunicado à empregadora que aceitavam tal proposta, tivessem assinado esse documento respectivo que só então foi assinado pela empregadora e a qual, em seguida, lhes pagou a respectiva quantia acordada constante desse mesmo documento), durante esse processo negocial havido entre as partes, desde o dia .../.../2020, com vista à liquidação dos respectivos créditos laborais, incluindo os emergentes da cessação do contrato de trabalho, os trabalhadores eram livres de prescindir dos seus direitos na certeza, já anunciada pela empregadora, de que tal contrato cessaria os seus efeitos no dia 30/6/2020;
essa julgadora considerou, finalmente, que não tendo sido provado pelos trabalhadores que a sua aceitação tivesse sido obtida mediante alegada coação moral, nada obstava ao efeito extintivo decorrente desse contrato de renúncia abdicativa;
Para além disso, tal decisão de mérito foi objecto de recurso ordinário, tendo sido proferido acórdão, com trânsito em julgado a 23/11/2021, no qual foi confirmada aquela sentença, em suma, tendo o tribunal da 2ª instância considerado ter existido, no âmbito de uma negociação, prévia, entre as partes, livre e sem reservas, uma remissão abdicativa válida e eficaz e, consequentemente, a inexistência de qualquer direito dos trabalhadores relativamente à empregadora.
Ora, perante o teor da sentença de mérito proferida, quer pela 1ª instância quer pela 2ª instância, no âmbito dessa acção, com trânsito em julgado, esse caso julgado aí formado vinculou as partes, quer a vencedora/empresa aí requerida, quer os vencidos/trabalhadores aí requerentes e, também, se projecta extraprocessualmente às mesmas partes, passando a ter força obrigatória ou vinculativa inerente à autoridade desse caso julgado que tem de ser acatada.
Por isso, impondo-se, de modo absoluto, não só às partes como também a todos os tribunais, essa decisão de mérito que, para estatuir sobre a pretensão dos requerentes (indeferindo-a e de forma definitiva), teve de apreciar e definir a relação jurídica deduzida em juízo, com base na apreciação dos fundamentos de facto e de direito supra-expostos e na inerente resolução de certas questões quer de facto quer de direito.
Ora, olhando para a presente acção (segunda) intentada por uma dessas trabalhadoras contra a mesma empregadora, afigura-se-me que, indiscutivelmente, este tribunal está impedido de apreciar de novo aquela mesma causa, impondo-se-me o dever de, desde já, recusar conhecer do respectivo mérito e só assim se evitando, eventual, colisão prática de julgados com eventuais, decisões concretamente incompatíveis sobre a mesma relação.
Pois, face à factualidade apurada nos presentes autos, tão idêntica àquela outra já decidida definitivamente, a apreciação que viesse a ser feita nesta (segunda acção) relativamente ao pedido e respectiva causa de pedir, dependeria, concreta e decisivamente, do objecto já previamente julgado naquela (primeira) como verdadeira relação condicionante ou prejudicial.
Concretizando (e à semelhança daquela primeira acção), ficou provado na presente acção que: no dia 24/6/2020, o gerente da ré comunicou, verbalmente, à autora (bem como aos demais trabalhadores ao seu serviço) que não havia condições financeiras para continuar a atividade, por falta de encomendas, e que o estabelecimento iria encerrar no dia 30/6/2020, conforme veio a suceder, efectivamente, e com a cessação do contrato de trabalho de todos os trabalhadores no dia 30/6/2020; nessa ocasião estavam em dívida à autora vários créditos (em valor de, pelo menos, € 3.857,50) tendo então a ré apresentado à autora (e demais trabalhadores) propostas individuais de liquidação de todos os créditos destes nos termos já constantes da alínea K da sentença proferida no Processo 1841/21.... do Juízo de Comércio ... -J... (documento intitulado «Recibo de quitação» com os dizeres já transcritos); tendo a ré advertido a autora de que, com a assinatura do documento e recebimento da aludida quantia (no valor de € 1.485,66), ficavam saldadas as contas entre ambas, e nada mais lhe deveria ou poderia ser exigido; a autora recebeu esse documento em mão e ficou na posse dele, mas não o assinou imediatamente, tendo alegado que iria “pensar no assunto”, aconselhar-se com outras pessoas e certificar-se, junto da Segurança Social, se teria direito ao subsídio de desemprego; em data indeterminada mas anterior a 30/6/2020, a autora comunicou à ré que aceitava a proposta desta e entregou-lhe esse documento, assinado, com o seu número de cartão de cidadão e respetiva data de validade manuscritos, tendo em seguida o sócio-gerente e legal representante da ré aposto a sua assinatura sob carimbo da gerência, documento que consta de fl. 25 dos presentes autos; em seguida, a ré pagou à autora, por transferência bancária para a conta desta, a acordada quantia de € 1.485,66 que a autora aceitou.
Ora, conforme já vimos, esta idêntica factualidade e as respectivas questões jurídicas inerentes já foram decididas, de forma definitiva naquela primeira acção – com a inerente força e autoridade do caso julgado –, nomeada e concretamente aí consta que: perante a certeza já anunciada pela empregadora de que o respectivo contrato de trabalho com os seus trabalhadores cessaria os seus efeitos no dia 30/6/2020 (conforme sucedeu), os trabalhadores eram livres de negociar com a empregadora (conforme negociaram desde o dia .../.../2020 em diante) com vista à liquidação dos respectivos créditos laborais, incluindo os emergentes da cessação do contrato de trabalho; e, como tal, os trabalhadores eram livres de prescindir dos seus direitos e sem reservas, conforme veio a suceder, válida e eficazmente, antes do dia 30/6/2020, através desse acordo ou contrato de renúncia abdicativa, celebrado por escrito e acompanhado do pagamento do valor acordado, com inerente efeito extintivo de todas as obrigações da devedora, nos ternos previsto pelo art. 863º, nº 1, do Código Civil; e consequentemente, a inexistência de qualquer direito dos trabalhadores relativamente à empregadora.
Por isso, não podendo tais questões voltar a ser discutidas, entre as mesmas partes, nesta segunda acção, ainda que destinada a fazer valer um outro efeito dessa mesma relação e que era a pretendida declaração de ilicitude dessa cessação contratual por alegada ilicitude de despedimento desprovido de prévio procedimento, com vista à pretendida reintegração da autora/trabalhadora na ré/empregadora.
Sendo óbvia a relação de prejudicialidade entre estes objectos processuais: tendo sido julgada, em termos definitivos, a sobredita matéria (quer factual quer jurídica), objecto daquela primeira acção que correu termos entre estas partes, essa decisão de mérito impõe-se (necessária, obrigatória e indiscutivelmente) a esta segunda acção a decorrer entre estas mesmas partes - ainda que esta acção incida, parcialmente, sobre um objecto diverso, destinado a fazer valer outro efeito dessa relação -, porque a apreciação desta (segunda) acção depende (como pressuposto necessário, como antecedente lógico e jurídico ou como premissa decisiva), do objecto já (prévia e definitivamente) julgado naquela primeira acção.
Consequentemente, estando este tribunal impedido de apreciar de novo aquela mesma relação jurídica (já decidida definitivamente) e só assim se evitando, eventual, colisão prática de julgados com, eventuais, decisões concretamente incompatíveis sobre a mesma relação - sob pena de um desprestígio dos tribunais, de uma falta de certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais mesmo apesar de transitadas em julgado e de uma falta de pacificação social.”

Concordamos com a apreciação que faz o Tribunal recorrido quanto a impor-se no presente caso a autoridade do caso julgado.

Vejamos.

Nas conclusões do recurso a recorrente começa por enfatizar que não se verifica  a excepção dilatória do cado julgado precisamente porque – “desde logo o próprio Tribunal a quo afirma - “não existe (entre a acção de insolvência e a presente acção laboral declarativa) coincidência de causas de pedir e de pedidos exigíveis pela excepção dilatória de caso julgado

Diz bem a recorrente, o Tribunal recorrido considerou que não se verifica a identificada excepção dilatória.
Daí que, e atenta a posição, de concordância, da apelante, é despiciendo esgrimir agora no sentido de demonstrar isso mesmo.
Sucede que, como é comummente aceite, o caso julgado tem uma função negativa e uma função positiva.
A função negativa encontra-se na finalidade de impedir a repetição de uma ação, através do instituto da exceção de caso julgado - o juiz fica impedido de apreciar o mérito da causa (art.s 576.º/2, 577.º i) e 580.º/2 do CPC).
A função positiva revela-se, essencialmente, na autoridade do caso julgado e encontra a sua razão de ser na proibição da contradição – deve o juiz julgar o mérito da causa impondo às partes a declaração jurisdicional anterior (art.s 619 n.º 1 e 621.º do CPC).
É quanto à função positiva do caso julgado que bate o ponto.
Ora, prossegue a recorrente, que “Na verdade, enquanto na (primeira) acção de insolvência o Recorrente pretendia obter a declaração de insolvência da Recorrida por não ser capaz de cumprir as dívidas para com os seus credores e trabalhadores; na presente (segunda) acção visa a declaração de ilicitude do seu despedimento levado a cabo pela Ré e a condenação desta a reintegrá-lo e a pagar-lhe créditos laborais, acrescidos de juros de mora.”
Mas, embora não se afigure determinante para o caso, convém precisar que a acção de insolvência não visa apenas a obtenção da declaração de insolvência da ré, não se esgotando nisso o objecto dessa acção pois, como também desde logo decorre do art. 1.º, n.º 1, do CIRE (artigo cuja epígrafe é Finalidade) “1 - O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.” (realce nosso, embora, como advertem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1], satisfação de créditos essa “na medida do possível”)
Sucede que, e reportando ao caso ora em análise, como se diz no douto parecer do Ministério Público “Na acção de insolvência intentada pelos trabalhadores, incluindo o aqui Recorrente, contra a Ré, embora a causa de pedir e o pedido sejam necessariamente diferentes, dada a natureza e objectivos distintos das acções, o certo é que na acção de insolvência, que absolveu a Ré, por decisão de mérito transitada em julgado, após recurso que confirmou a decisão da primeira instância, foi apreciada questão essencial que era também fulcral nestes autos, questão que foi também apreciada no recurso: a existência de uma remissão abdicativa válida e eficaz, no âmbito de uma negociação prévia, entre as partes, livre e sem reservas, a determinar a inexistência de qualquer direito dos trabalhadores relativamente à empregadora.”

É com efeito este um caso em que existe uma conexão ou dependência entre o objeto desta segunda acção e o objeto definido na primeira ação, de insolvência, quanto à inexistência dos reclamados créditos[2] (por via de uma remissão abdicativa válida e eficaz), impondo-se que essa questão não seja decidida de forma diferente, devendo a decisão desta segunda acção acatar, como pressuposto indiscutível, o que foi decidido na primeira.   
Efectivamente, tem-se entendido, como se refere no sumário do Acórdão do STJ, de 12.7.2011[3], que «A expressão “limites e termos em que julga”, constante do art.673º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ela define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção», e que, como se diz no mesmo sumário « … a determinação  dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado».

Uma nota para referir que pese embora na decisão recorrida se tenha qualificado a presente situação como integrante de exceção dilatória inominada (artigos 576.º, 577.º, e 580.º do CPC) - o que se não verifica (visto não estarmos perante o efeito negativo do caso julgado, mas sim do efeito positivo do caso julgado, como acima se aludiu) -, o certo é que na mesma se concluiu pela absolvição da ré do pedido, o que, in casu, e repetindo, decorre efectivamente da autoridade do caso julgado[4].

A recorrente em abono da sua tese trouxe à colação o aresto do STJ de 08-09-2021, que cita.
No mesmo acórdão discorreu-se sobre a inexistência de autoridade de caso julgado entre uns autos de insolvência e outros autos de embargos de executado.
Sucede que, no contraponto aí efectuado entre a primeira e a posterior acção, nem as partes eram as mesmas, nem a questão da existência do crédito foi, ao que do aí expendido se depreende, tratada com o mínimo de profundidade, por tão só estar então em causa o apuramento da legitimidade do requerente da insolvência.

Ora, no caso dos presentes autos, a situação apresenta-se, a nosso ver, diversa.
Constituindo a remissão abdicativa a questão nevrálgica, essencial, comum ao presente processo e ao de insolvência anteriormente intentado (e decidido) contra a ora ré, constata-se que esse processo de insolvência não foi «abreviado», tendo havido lugar a audiência de julgamento e tendo, inclusive, alguns dos autores trabalhadores sido ouvidos em declarações de parte e inquiridos como testemunhas ex trabalhadores, constando da fundamentação da sentença, na motivação da matéria de facto, que os trabalhadores logo perceberam que o valor constante do documento de quitação que assinaram era o de considerar pagos todos os créditos a que tivessem direito, o que admitiram ter-lhes sido explicado pela aí requerida, não tendo assinado de imediato os documentos, por necessitarem de reflectir/“aconselhar-se”, mas só passados alguns dias.
Ademais, na presente acção e como resulta da acta da audiência de julgamento do dia 18.5.2022, em sede de audiência de julgamento as partes acordaram na matéria de facto (também) quanto à matéria que directamente contende com a questão da remissão abdicativa, considerando-a assente, em termos similares ao que assim já fora decidido na acção de insolvência – cf. n.ºs 15 a 20.º dos factos que as partes, no decorrer dessa audiência, acordaram em dar como assentes, e onde, aliás, se remete para a respectiva alínea do elenco da matéria de facto na acção de insolvência – como também acordaram quanto à factualidade, pertinente à mesma questão, não provada.

Assim, e considerando o que se vem apontando como justificativo para a não formação da autoridade de caso julgado em situações como a versada no douto acórdão do STJ que a recorrente trouxe à colação, v.g. não estar o processo de insolvência vocacionado para “longas discussões nem ofereça os meios e garantias apropriados para indagações aprofundadas sobre a existência ou não do direito que o requerente se arroga”, certo é que na presente situação esse problema, de facto, não o é, tanto assim que as partes prescindiram, nos presentes autos, de (à excepção dos parcos documentos que juntaram aos autos) produzir prova, assentando por acordo os factos provados e não provados. 

Destarte, impõe-se concluir que a recorrente também não tem razão na invocação de que está a ser-lhe vedado o acesso ao direito e à obtenção de uma decisão de mérito, afirmando que a decisão recorrida viola o plasmado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
A autora, ora apelante, teve acesso aos Tribunais e viu dirimido o conflito em questão, sendo até que (não sendo isso determinante para concluirmos pela sua falta de razão), como deflui do que supra dissemos, a decisão sob recurso também é, afinal, de mérito.
Carece igualmente de cabimento a referência à violação de outros preceitos Constitucionais – o princípio da segurança no emprego e do direito ao trabalho, plasmados nos artigos 53.º e 58.º da CRP, respectivamente.
Como é consabido, tais princípios visam impedir despedimentos arbitrários – sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos - e, bem assim, no direito de obter emprego ou de exercer uma actividade profissional e a igualdade de oportunidades, que ao Estado compete promover[5].
A recorrente não demonstra, muito menos de forma convincente, as inconstitucionalidades que invoca - o Tribunal recorrido não se “recusou a julgar”, constando da sentença recorrida as razões pelas quais não foi reconhecido à autora (entre o mais) o invocado “direito à reintegração” na ré -, nem se vê que a decisão recorrida, ao aplicar as normas, e com a interpretação, que aplicou, tenha atentado contra qualquer um destes princípios.

O recurso tem, pois, de improceder.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 27 de Abril de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor


[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2.ª Ed., pág. 69.
[2] Note-se que o direito à reintegração é, para este efeito, um “crédito” – cf, por ex., Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II, Almedina, pág. 581, Ac. RL de 07.12.2004, Proc. ..., Duro Mateus Cardoso, e da mesma Relação, de 04.11.2015, Proc. 1145/11...., Paula Santos, onde se escreveu “Já no domínio de aplicação da LCT constituía entendimento pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, que o prazo de prescrição previsto no nº1 do art. 38º daquele Regime, a que corresponde o actual art. 337º do CT, era aplicável a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, não devendo entender-se por “créditos” apenas as “prestações pecuniárias”, dado não corresponder essa noção "ao sentido técnico-jurídico que lhe poderia ser atribuído no quadro do direito das obrigações, abrangendo ainda, na especificidade do direito laboral, todos os seus direitos pessoais que se constituam na esfera jurídica do trabalhador por força do vínculo contratual a que se dirigir a prescrição.” (cfr. Ac Rel. Porto de 28-01-2013 Processo 419/10.9TTLMG.P1 e jurisprudência aí citada). O preceito não restringe o seu âmbito de aplicação às consequências inerentes ao despedimento ilícito, estendendo-se a todos os direitos que decorrem da prestação de trabalho ou que passaram a ser exigíveis por força da cessação ou violação do contrato de trabalho.”, ambos em www.dgsi.pt
[3] Proc. 129/07.4TBPST.S1, Moreira Camilo, www.dgsi.pt ; cf. também, e no mesmo sentido, Ac. de RG de 26-5-2022, Proc. 2231/21.0T8VRL.G1, Ana Cristina Duarte, Ac. RL de 15-12-2022, Proc. 25737/21.7T8LSB-A.L1-4, Albertina Pereira, Ac. RE de 15-12-2022, Proc. 352/22.1T8STR.E1, Paula do Paço, e Ac. RP de 06-02-2023, Proc. 11738/20.6T8PRT.P1, Jerónimo Freitas, todos em  www.dgsi.pt
[4] Cf. Ac. RL de 15-12-2022 já acima citado, e Comentário de Miguel Teixeira de Sousa ao Ac. da RC de 24/5/2022, Proc. 3077/19.1T8LRA.C2, in Blogue do IPPC - https://blogippc.blogspot.com/ -, Publicação do dia 02.3.2023.
[5] Cf. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, pág.s 763 e 764.